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A Esquerda Dividida: Os Governos Lula e Dilma no Pensamento Político Brasileiro* * Agradeço muito a dois amigos, Amaro de Oliveira Fleck e Francisco Guerra Ferraz, que leram o manuscrito quando ele era pouco mais do que uma ideia e aos pareceristas anônimos, que fizeram contribuições decisivas para que este artigo tivesse menos erros.

The Divided Left: the Lula and Dilma Governments in Brazilian Political Thought

La Gauche Divisée: les Gouvernements Lula et Dilma dans la Pensée Politique Brésilienne

La Izquierda Dividida: Los Gobiernos de Lula y Dilma en el Pensamiento Político Brasileño

RESUMO

Os governos Lula e Dilma constituem um ponto de clivagem entre os intelectuais de esquerda do país. Mas o que o lulismo representou para a história brasileira? Um retrocesso político e a negação da história do Partido dos Trabalhadores, que o viabilizou, ou um modo importante, ainda que limitado em comparação ao programa petista original, de inclusão social e promoção da cidadania? Este artigo recorre a algumas hipóteses do pensamento político brasileiro a fim de lançar luz sobre o debate que envolve autores como André Singer, Emir Sader, Francisco de Oliveira, Luiz Werneck Vianna e Marcos Nobre. Nossa tese é que o debate sobre o lulismo guarda, como “formas de pensar”, profundas semelhanças com a antiga controvérsia entre “autoritários instrumentais” e “liberais doutrinários”, do final do século XIX e início do século XX, justamente porque ainda há forças regressivas que resistem à constitucionalização e à democratização do país.

lulismo; pensamento político brasileiro; cidadania; exclusão social; formas de pensar

ABSTRACT

The Lula and Dilma governments created a rift among Brazil’s left-wing intellectuals. Nonetheless, what did lulism represent for the country’s history? A political setback and denial of the history of the Workers’ Party, which made lulism possible? Or a significant - albeit compared to the Party’s original program, limited - path towards social inclusion and advancement of citizenship? This article draws on some hypotheses present in Brazilian political thought to shed light on the debate, drawing upon authors such as André Singer, Emir Sader, Francisco de Oliveira, Luiz Werneck Vianna, and Marcos Nobre. Our thesis is that as “ways of thinking”, the debate on lulism has striking similarities with the old controversy between “instrumental authoritarians” and “doctrinal liberals” of the late 19th and early 20th centuries - precisely because regressive forces are still resisting the processes of national constitutionalization and democratization.

lulism; brazilian political thought; citizenship; social exclusion; thought forms

RÉSUMÉ

Les gouvernements Lula et Dilma constituent un clivage parmi les intellectuels de gauche brésiliens : mais qu’a représenté le lulisme pour l’histoire du pays ? Un revers politique et un déni de l’histoire du Parti des Travailleurs, qui l’a d’abord rendu possible; ou une voie importante (quoique, par rapport au programme initial du Parti, limitée) vers l’inclusion sociale et la promotion de la citoyenneté ? Cet article recourt à quelques hypothèses de la pensée politique brésilienne pour éclairer le débat, en s’appuyant sur des auteurs comme André Singer, Emir Sader, Francisco de Oliveira, Luiz Werneck Vianna et Marcos Nobre. Notre thèse est qu’un tel débat présente de profondes similitudes, en tant que « formes-pensées », avec la controverse entre « autoritaires instrumentaux » et « libéraux doctrinaux » à la fin du XIXe et au début du XXe siècle, précisément parce qu’il existe encore des forces régressives qui résistent aux processus de constitutionnalisation et démocratisation du pays.

lulisme; pensée politique brésilienne; citoyenneté; exclusion sociale; formes-pensées

RESUMEN

Los gobiernos de Lula y Dilma constituyen un punto de ruptura entre los intelectuales de izquierda del país. Pero, ¿qué representó el lulismo para la historia de Brasil? ¿Una regresión política y una negación de la historia del Partido de los Trabajadores, que lo hizo viable, o un modo importante, aunque limitado, de inclusión social y promoción de la ciudadanía en comparación con el programa petista original? Este artículo se basa en algunas hipótesis del pensamiento político brasileño para arrojar luz sobre el debate en el que participan autores como André Singer, Emir Sader, Francisco de Oliveira, Luiz Werneck Vianna y Marcos Nobre. Nuestra tesis es que el debate sobre el lulismo guarda, como «formas de pensar», profundas similitudes con la vieja polémica entre «autoritarios instrumentales» y «liberales doctrinales», de finales del siglo XIX y principios del XX, precisamente porque todavía hay fuerzas regresivas que se resisten a la constitucionalización y democratización del país.

lulismo; pensamiento político brasileño; ciudadanía; exclusión social; formas de pensar

INTRODUÇÃO

Durante parte do período que antecedeu as eleições de 2014, Luís Inácio Lula da Silva foi lembrado como possível candidato à Presidência da República não apenas por líderes descontentes com a condução do governo de Dilma Rousseff, como também por eleitores que espontaneamente mencionaram o seu nome. Após os controversos episódios do impeachment de Dilma (que havia vencido uma eleição extremamente acirrada), Lula, mesmo preso em Curitiba, continuou pautando, em grande medida, o dia a dia da política nacional. Os candidatos à Presidência no pleito de 2018 ainda se dividiam, como nas duas eleições anteriores, entre os que construíram a sua imagem por afinidade a ele e os que, de outro lado, procuravam se opor ao seu legado. Lançado inicialmente pelo PT (Partido dos Trabalhadores), Lula, ainda preso, alcançou imediatamente o primeiro lugar nas intenções de voto (39%). Uma vez proibido definitivamente de concorrer pela justiça eleitoral, o seu substituto conseguiu ir ao segundo turno, sendo, no entanto, derrotado por Jair Bolsonaro. Libertado em 2019, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), Lula retomou seu protagonismo como líder da oposição e tem grandes chances de vitória nas eleições presidenciais de 2022. Fazendo um balanço dos últimos três ou quatro decênios, pode-se afirmar que esse pernambucano tem sido um personagem decisivo na política brasileira, ideia essa implícita no bordão repetido incansavelmente por ele próprio – o “nunca antes na história deste país” – e endossada também por alguns estudos científicos feitos a seu respeito.

Há, contudo, uma profunda discordância interpretativa sobre a era Lula, que começa pelo próprio modo de se denominar o fenômeno. Enquanto uns o caracterizam como “lulismo”1 1 . O termo apareceu inicialmente em artigos publicados por André Singer na revista Novos Estudos CEBRAP e posteriormente incorporados ao livro Os sentidos do lulismo (2012). , outros questionam o termo, argumentando que se trata de personalização injustificada de um projeto partidário, nascido da confluência de diversos movimentos sociais (Guimarães, 2013Guimarães, Juarez. (2013), “Quem Somos e para Onde Vamos?”, Teoria & Debate. Disponível em http://www.teoriaedebate.org.br/materias/politica/quem-somos-e-para-onde-vamos-2. Acesso em 4/6/2014.
http://www.teoriaedebate.org.br/materias...
)2 2 . Considerando que não é um aspecto insignificante entre os intérpretes da era Lula, este artigo respeitará as escolhas terminológicas dos autores aqui abordados. Fora isso, fará indistintamente uso da expressão “lulismo” e de termos como “governos petistas” e “governos Lula e Dilma”. . A querela terminológica evidencia como o lulismo é atravessado por controvérsias. Teria ele promovido a classe trabalhadora a um novo patamar de dignidade, ou seria antes uma estratégia de cooptação do povo? De capitulação frente às elites e manutenção do status quo? Não é o caso de tentar aqui responder a essas difíceis questões, mas os discursos elaborados sobre esse tema constituem material muito rico para quem quer compreender a política nacional e, especialmente, para os que se dedicam ao pensamento político brasileiro (PPB).

Como explica Lynch (2016)Lynch, Christian. (2016), “Cartografia do Pensamento Político Brasileiro: Conceito, História e Abordagens”’. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 19, pp. 75-119., o PPB designa tanto uma área de especialização científica, como um objeto de estudo. No primeiro sentido, ele representa um tipo de estudo que surge por volta dos anos de 1960, com os trabalhos pioneiros de Wanderley Guilherme dos Santos e Bolívar Lamounier, “pais-fundadores” da moderna ciência política brasileira, quando passaram a investigar os escritos de autores do passado (até então quase completamente ignorados), em busca de hipóteses para compreender melhor a política nacional. Em seu segundo sentido, como objeto de estudo, o PPB apresenta diferenças próprias do ponto de vista formal e de seu conteúdo. Formalmente, ele é composto de distintos gêneros textuais (panfletos, sermões, ensaios etc.) e abrange tanto a “velha ciência política” (por vezes, chamada de “tradição ensaística”), quanto a “nova ciência política” (isto é, os escritos feitos posteriormente à institucionalização desse saber nas universidades do país). Do ponto de vista de seu conteúdo, o PPB é caracterizado por uma “conformação temática e estilística específica” (Lynch, 2016Lynch, Christian. (2016), “Cartografia do Pensamento Político Brasileiro: Conceito, História e Abordagens”’. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 19, pp. 75-119.:82), qual seja, o fato de ser um pensamento que concebe o Brasil a partir da ideia do atraso em relação aos países tidos como modernos. Como “pensamento periférico”, o PPB possui traços que o diferenciam da “teoria política”, sendo, supostamente, um saber mais localizado espacial e temporalmente quando comparado àquela. A própria utilização corrente do termo “pensamento”, no lugar de “teoria” (tida como mais universal e densa conceitualmente do que o primeiro), expressa como o “fantasma da condição periférica” (Lynch, 2013Lynch, Christian. (2013), “Por que Pensamento e Não Teoria? A Imaginação Político-social Brasileira e o Fantasma da Condição Periférica”. Dados, v. 56, n. 4, pp. 727-767.) marca ainda a cultura nacional.

A proposta deste artigo é examinar algumas das principais leituras sobre os governos Lula e Dilma (2003-2016) formuladas por intelectuais que se situam em um mesmo campo ideológico, o da esquerda. A pergunta de pesquisa que orienta este trabalho pode ser descrita da seguinte forma: como compreender as divergências entre os pensadores brasileiros de esquerda sobre o significado político da era Lula? Para tal, abordar-se-á escritos de Francisco de Oliveira, Luiz Werneck Vianna, André Singer, Emir Sader e Marcos Nobre3 3 . A escolha por esses cinco autores foi feita segundo os seguintes critérios: a) sua importância na cultura acadêmica e na esfera pública nacional; b) a repercussão pública de suas publicações; c) a diversidade geracional entre eles e de opinião a respeito do lulismo. e, a partir de algumas teses de interpretação sobre o PPB, se procurará compreender como as divergências sobre o lulismo podem ser esclarecidas a partir de “formas de pensar” recorrentes na história do país.

Mas cumpre antes indagar: o que significa “ser de esquerda”? Norberto Bobbio (1995)Bobbio, Norberto. (1995), Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma Distinção Política. São Paulo: Ed. Unesp. salienta, que desde a Revolução Francesa, os termos direita e esquerda têm sido empregados em lutas pela liberdade, valor, curiosamente, defendido pelos dois lados da contenda. Não sendo conceitos absolutos, nem ontológicos, mas relativos e topológicos, os dois polos dessa díade designam programas políticos “reciprocamente excludentes e conjuntamente exaustivos” (Bobbio, 1995Bobbio, Norberto. (1995), Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma Distinção Política. São Paulo: Ed. Unesp.:31). Assim, a esquerda extrai da direita a sua razão de ser e vice-versa. Dizer, todavia, que não descrevem uma ontologia política não equivale a dizer que esquerda e direita são palavras vazias. Ao contrário, se a direita é definida pela defesa da liberdade, mas também de uma sociedade desigual (vista como natural, divina e/ou inexorável), a esquerda constitui-se como campo que aglutina forças políticas para as quais a luta pela liberdade não pode ser dissociada do acesso mais equitativo aos bens e às oportunidades.

Essa díade, esclarece Bobbio, não deve ser confundida com extremismo versus moderação, uma vez que essa última oposição não diz respeito a ideias específicas, mas à radicalização das práticas defendidas para implementá-las. O moderantismo é gradualista e evolucionista, ao passo que o extremismo concebe que a história opera por “saltos qualitativos” (Bobbio, 1995Bobbio, Norberto. (1995), Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma Distinção Política. São Paulo: Ed. Unesp.:54), rechaçando qualquer tipo de compromisso e conciliação. Extremistas podem ser de direita e de esquerda, assim como pode se encontrar moderados nos dois grupos. Como resume o filósofo: “na contraposição entre extremismo e moderantismo é questionado sobretudo o método, na antítese entre direita e esquerda são questionados sobretudo os fins” (Bobbio, 1995Bobbio, Norberto. (1995), Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma Distinção Política. São Paulo: Ed. Unesp.:60) Definidos apenas como “tipos ideais”, o significado preciso de esquerda e direita depende também das circunstâncias históricas. De qualquer forma, a esquerda sempre está associada a uma avaliação positiva da igualdade, assim como a direita está relacionada à uma avaliação negativa da mesma. Além disso, sempre há, a cada um desses campos, clivagens internas importantes.

As diferenças entre os intelectuais de esquerda supracitados expressam precisamente algumas dessas fraturas, incluindo um conjunto de autores mais “moderados” (defensores de que o lulismo produziu uma transformação gradativa, mas importante no país) e outros mais “extremistas” (críticos do lulismo e defensores de uma ruptura que represente “saltos qualitativos” em direção a uma sociedade mais igualitária). Em certo sentido, a querela sobre o lulismo diz respeito sobretudo ao “método” (e não aos “fins”) para tornar o Brasil mais igualitário – pauta comum entre esses intelectuais de esquerda.

Mais do que isso, defende-se também que as discordâncias sobre o lulismo são, em linhas gerais, semelhantes às que opunham, no contexto do Brasil do século XIX e início do século XX, os “liberais-doutrinários” aos “autoritários instrumentais”, ainda que, obviamente, os termos do debate tenham mudado e o próprio país tenha se modernizado bastante. Esta semelhança, importa destacar, não está no aspecto autoritário ou liberal, mas sim na divergência entre a obediência a certos princípios, ou na necessidade de sua adequação em função da realidade nacional (novamente, uma questão de “método”). Essa similaridade está associada ao fato de que a modernização do Brasil, antes aludida, não foi suficiente para solucionar o que o filósofo italiano Antonio Gramsci (1987)Gramsci, Antonio. (1987), A Questão Meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra., chamou de a “questão meridional” que, no caso nacional está associado especialmente à região setentrional, quer dizer, à exclusão social e à privação sistemática de direitos a que estão sujeitos milhares de brasileiros, não integrados à ordem capitalista e à cidadania moderna. Justamente por conta da permanência desse “atraso” e da resistência das elites a uma maior democratização do país, que parte da esquerda brasileira justifica a adequação pragmática das políticas lulistas, como faziam os conservadores do passado em relação às medidas “heterodoxas” (autoritárias) a serem adotadas na construção da ordem burguesa.

Antes de passar à análise desse debate e da exposição detalhada da tese de interpretação aqui elaborada, é preciso reconhecer alguns limites deste artigo. Não se pretendeu abordar minuciosamente a obra de cada um dos intelectuais aqui mencionados, suas relações com os partidos e/ou movimentos sociais, nem tampouco procurou-se apresentar exaustivamente o “pensamento de esquerda” sobre o lulismo. Ao contrário, optou-se por tentar abarcar um número relativamente reduzido de pensadores brasileiros, mas expressivo deles, de modo que o leitor possa ter à mão um mapa intelectual que represente, minimamente, as principais visões da esquerda sobre o lulismo. A segunda ressalva é que esses escritos têm natureza diversa: boa parte deles são análises de conjuntura, publicadas em órgãos da imprensa, alguns são ensaios, lançados como livros, e poucos são estudos mais sistemáticos sobre o tema. Não foram, outrossim, avaliados os estudos que investigavam apenas algum aspecto ou alguma política pública específica dos governos Lula e Dilma, mas apenas aqueles que faziam algum tipo de “balanço geral” deles. Uma última ressalva diz respeito à datação razoavelmente variável desses escritos, sendo alguns deles publicados logo após a primeira vitória de Lula e outros já no início do segundo mandato de Dilma Rousseff. O recorte temporal de análise deste estudo compreende aproximadamente o período de uma década (entre 2003 e 2014). Em função dos limites de espaço, este artigo não se deterá também na diferenciação eventualmente estabelecida por esses estudiosos entre os governos Lula e Dilma. Como precaução, tanto os autores quanto os seus textos serão minimamente apresentados e contextualizados, a fim de evitar juízos inadequados.

HEGEMONIA ÀS AVESSAS E CICLO NEOLIBERAL

Francisco de Oliveira4 4 . Nos anos de 1950-60, Francisco de Oliveira (1933-2019) foi membro do Banco do Nordeste e da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), a convite de Celso Furtado, embora fosse já um crítico do nacional-desenvolvimentismo. Após o golpe, se vincula ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Na Universidade de São Paulo (USP), instituição a qual se vinculou posteriormente, coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, o Cenedic. Nos anos 1980, filiou-se ao PT, mas passou a apoiar depois a criação do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), dissidência daquele surgida no primeiro governo Lula. O ensaio “O ornitorrinco”, foi lançado conjuntamente com a reedição de seu conhecido Crítica da razão dualista, de 1972 (2003). Os demais textos aqui utilizados, “Hegemonia às avessas” (2007) e “O avesso do avesso” (2009), foram publicados na revista Piauí. Sobre o conjunto da obra desse autor, sugere-se a leitura de: Rizek e Romão (org.), 2006. formula, talvez, a interpretação mais crítica e negativa sobre os governos petistas que se pode encontrar no campo da esquerda. Quando dos primeiros anos de Lula no poder, Chico de Oliveira, como é conhecido, já caracterizava em tons fortes o cenário brasileiro como um “ornitorrinco”. Conciliando a princípio aquilo que deveria ser inconciliável – uma economia industrializada, mas em condição de subordinação financeira e de forte urbanização e, ao mesmo tempo, domínio político do agronegócio – o ornitorrinco brasileiro é um ser híbrido (um mamífero ovíparo, com bico de pato, que dá à luz a filhotes que mamam), e que desafia, portanto, a imaginação sociológica (cf. Moreira, 2014a:s/p).

De um modo geral, a tese de Oliveira é que o país se modernizou ao longo do século XX, mas de um modo “truncado”, isto é, sem romper com padrões de sociabilidade e de cultura próprias ao nosso passado colonial e escravista, o que explicaria a coexistência de traços oligárquicos e autoritários e de aspectos avançados da sociedade nacional. Mais do que isso, e reiterando uma tese sua formulada no clássico Crítica à razão dualista, os elementos de atraso são aquilo que, paradoxalmente, viabilizam a modernização do país, de modo que nosso “subdesenvolvimento” não deve ser compreendido como uma etapa anterior do desenvolvimento, nem tampouco como obstáculo e elemento desconexo à ordem capitalista global, mas sim como uma formação social peculiar aos países perifericamente integrados e necessária, historicamente, ao processo de acumulação de capital. O “atraso” (um enorme contingente de pessoas terceirizadas e precarizadas) é um meio para a “modernidade” (a acumulação de capital).

Ao final de Crítica à Razão Dualista: O Ornitorrinco, Oliveira identifica uma convergência entre PT e PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira). Mais do que simplesmente uma concordância programática contingente (como por conta de o petista manter, no início de seu governo, as linhas da política macroeconômica de Fernando Henrique Cardoso – FHC), ele avalia que tal fenômeno decorria do surgimento de um novo tipo de burocracia sindical, levada então à direção do Estado brasileiro, que passa a administrar fundos de previdência privados e ter, portanto, interesses muito similares à burguesia. Se por um lado o lulismo promoveu o capitalismo internacional, desde seus primeiros meses de gestão, repetindo o feito de FHC, por outro lado, ele inovou, na medida em que deu origem a uma nova classe social: não são mais trabalhadores, nem propriamente burgueses, mas uma elite sindical endinheirada, dado que administradores de enormes somas de capital controlado pelo Estado brasileiro (Oliveira, 2003a:147-148). Essa nova fração de classe, simultaneamente trabalhadora e rentista, exemplifica o estranho animal no qual o Brasil se converteu.

Em “Hegemonia às avessas” (2010a), o sociólogo acentua sua crítica afirmando que Lula realizou o programa neoliberal de modo ainda mais radical do que seus antecessores, pois, ao desmobilizar os movimentos sociais, minando as resistências populares, favoreceu de modo espetacular a acumulação capitalista e inviabilizou qualquer possibilidade de democratização do país. Dessa forma, após a eleição do ex-metalúrgico, o país passou a viver uma condição análoga à África do Sul sob o comando de Nelson Mandela: “parece que os dominados dominam, pois fornecem a ‘direção moral’ e, fisicamente, até, estão à testa do Estado” (Oliveira, 2010a:26-27). Recorrendo criativamente à noção gramsciana de hegemonia, Oliveira avalia que Lula e o PT não apenas negaram o projeto político original pelo qual foram eleitos, mas, mais do que isso, realizaram precisamente o seu avesso. O lulismo representaria, primeiramente, uma degradação do PT, formado originalmente com o propósito de transformar radicalmente a estrutura social brasileira. Como um fenômeno histórico regressivo, o lulismo criou uma nova forma de dominação política: “os dominados realizam a ‘revolução moral’ – derrota do apartheid na África do Sul e eleição de Lula e Bolsa Família no Brasil – que se transforma, e se deforma, em capitulação ante a exploração desenfreada” (Oliveira, 2010a:27). Se os anos 90 foram marcados por intensas mobilizações sociais, a partir do governo federal petista, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), entre outras forças de esquerda, aquietou-se. Mais do que apenas “desmobilizador”, a era Lula seria um fenômeno de cooptação dos movimentos sociais, como já denunciado (2003a) -”, ao tratar da burocracia sindical.

O ex-presidente, elevado à época à condição de “mito político” teria também despolitizado a questão da pobreza e das desigualdades, transformando-as, doravante, em temas de administração pública. “Ele não tem inimigos de classe”, ironiza Chico de Oliveira (2003a:144). Mesmo depois de viver décadas de crescimento econômico, o Brasil continua a ser um dos países mais atrasados do ponto de vista da distribuição da riqueza. A “solução” dada por Lula, como por meio do Bolsa Família, não apenas não resolve o problema, mas, ao contrário, o agrava, pois funciona como o “mais poderoso narcótico social” (Oliveira, 2003a:144). Assim, afirma este sociólogo, estão errados os intelectuais que compreendem essa política social como um mecanismo de inclusão, pois, na realidade, ela representa paradigmaticamente o novo modo de dominação, consolidando uma exploração inédita no país com o consentimento dos dominados – “anestesiados” pela recém-conquistada capacidade de consumo.

Em “O avesso do avesso”, Oliveira reitera que a era Lula aprofundou o ciclo neoliberal no Brasil, iniciado com os governos Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e FHC. Os “músculos do Estado” já haviam sido destruídos para realizar as privatizações (que, na sua concepção, consistiram em uma transferência inédita de gigantesco patrimônio estatal para agentes do mercado). Com Lula, foram os “músculos da sociedade” que foram destroçados para garantir a reprodução do capital, sob condições outrora inaceitáveis, a não ser na periferia do mundo e sob o comando de um líder popular (Oliveira, 2010b:375). Novamente, esse autor assevera ser absolutamente falacioso o argumento de que Lula teria sido responsável pela redução das desigualdades sociais, resolvendo parcialmente um problema histórico de nossa formação sociopolítica. Ao contrário, diz ele, o que Lula realizou foi um limitado programa de combate à pobreza, mas que não impediu que os ricos ficassem ainda mais ricos, como sugere o recorrente aparecimento de milionários brasileiros nas listas da revista Forbes, assim como indica a discrepância entre o montante gasto com o pagamento de juros da dívida pública (200 bilhões de reais por ano) e os gastos com Bolsa Família (10 a 15 bilhões de reais anuais) (Oliveira, 2010b:374).

O lulismo, segundo essa chave de interpretação, seria, na base, uma nova forma de pacificação social dos conflitos entre capital e trabalho e, no topo, a integração das cúpulas sindicais aos órgãos do Estado. Uma forma de dominação social nova no país – a “hegemonia às avessas” – que pode ser compreendida como um arranjo político que viabilizou a superexploração do capital na periferia do mundo, o que só seria possível sob a direção de um líder carismático.

REVOLUÇÃO PASSIVA E MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA

Lançado como coletânea de artigos, o livro A modernização sem o moderno apresenta uma nova interpretação sobre o governo Lula, suas possibilidades e seus impasses que, em alguma medida, foram herdados pelo governo Dilma. Nele, Luiz Werneck Vianna5 5 . Luiz Werneck Vianna (1938-) é um sociólogo carioca ligado, desde a juventude, à tradição do PCB (Partido Comunista do Brasil). Formou-se em direito e em ciências sociais e, como aluno, esteve, por um breve período, no antigo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Como pesquisador, esteve ligado à USP (onde doutorou-se sob a orientação de Francisco Weffort), ao CEBRAP e ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), institutos fundamentais para a consolidação das ciências sociais brasileiras nos anos 1960 e 1970. Foi também presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Atualmente é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Além de sua tese de doutorado, transformada em livro, Liberalismo e sindicatos no Brasil (1976), um clássico da sociologia do trabalho, Werneck Vianna se notabilizou por interpretações do PPB e por criar ele próprio uma leitura do processo de modernização do país, a partir de referências teóricas como Gramsci e Weber, como em A revolução passiva: iberismo e americanismo (1997). Sobre sua trajetória, consultar: Werneck Vianna, 2010. apresenta uma visão que se, por um lado, denuncia alguns aspectos regressivos da política liderada pelo PT, reconhece, por outro, avanços não apenas durante a gestão petista, mas que ocorreram desde a Constituição de 1988.

Basicamente, a sua leitura é que, a partir dos governos Lula, o país viveu, mais uma vez, um caso de “modernização conservadora”, ou falando em linguagem gramsciana, uma “revolução passiva”, que consistiria na eliminação do “atraso” do país sob a direção do Estado, isto é, sem qualquer autonomia e ativismo da sociedade civil (cf. Moreira, 2014a:s/p).

Revoluções passivas são processos de revolução sem revolução em que as elites políticas das classes dominantes se apropriam total ou parcialmente da agenda dos setores subalternos, cooptando suas lideranças, afastando outras, em uma estratégia de conservar-mudando (Werneck Vianna, 2011:172).

Werneck, contudo, não se limita à filosofia do pequeno grande sardo, também ele preocupado em entender o processo tardio e incompleto de formação de uma sociedade burguesa. A partir de Weber, Werneck Vianna afirma que o Brasil de Lula seria também um caso de “capitalismo politicamente orientado”, isto é, um processo de modernização no qual as forças da sociedade civil são tuteladas por um Estado patrimonialista, que dirige a economia e procura atender algumas de suas próprias demandas. Nesse sentido, ele assevera que, com o lulismo, estabelece-se no Brasil um “Estado de compromisso”6 6 . Essa noção, é preciso destacar, comparece no PPB em artigos de autoria de Francisco Weffort dos anos 1960, depois reunidos em um livro clássico do PPB, O populismo na política brasileira, de 1978. , quer dizer, um Estado que se autodeclara acima dos interesses de classes, um árbitro entre as elites industriais, agrárias e uma parcela dos trabalhadores assalariados, como uma reedição, ainda que com alguma especificidade, de nosso passado autoritário, vivido com Vargas, Jango e os militares em 1964. Sem-terra e ruralistas sentam-se, lado a lado, nos fóruns decisórios do Estado lulista, de composição, pois, pluriclassista, a “zelar” por todos eles.

Adotando a estratégia do Estado de compromisso, o lulismo deslegitima, consequentemente, as instituições formais da política, uma vez que elas se tornam irrelevantes para a mediação dos conflitos. O Parlamento brasileiro, por exemplo, se viu “substituído” pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), criado por Lula em 2003, e que atua como uma “Câmara corporativa”. Além disso, considerando o contexto do presidencialismo de coalizão, os partidos gravitam em torno do chefe do governo federal, em busca de seus disputados recursos (ministérios, cargos na administração pública, emendas orçamentárias etc.). Lula, naquele contexto, representava o chefe, cada vez mais apartidário, que se torna o centro, o artífice e o fiador dessa forma de Estado para qual se dirige toda ordem social brasileira.

Werneck Vianna denuncia o caráter fundamentalmente antirrepublicano do governo Lula, na medida em que a sociedade civil é desmobilizada e os espaços de participação e de representação caem no total descrédito. Mais do que isso, esse autor afirma que os movimentos populares foram aliciados pelo lulismo, por meio do Bolsa Família e outras benesses de que se valem as ONGs, por exemplo. Aliada à capacidade de legislar por meio das Medidas Provisórias (MP), o Estado lulista dirige a vida pública brasileira “de cima para baixo” e, por isso, a degrada (cf. Moreira, 2014a:s/p).

O grande paradoxo é que o PT nasceu como um partido profundamente crítico ao estatismo e que propunha ser um “novo começo” para a sociedade brasileira (contra a “velha política”). Negando o seu “código genético”, que tinha como referência as obras de Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes e Francisco Weffort, críticos do patrimonialismo, do corporativismo e do populismo, Lula e o PT teriam viabilizado a captura da sociedade brasileira pelo Estado. Werneck Vianna, arguto intérprete do PPB, intitula um de seus textos como “A viagem (quase) redonda do PT”, parafraseando o título do capítulo final da obra Os donos do poder, de Faoro, para argumentar que, após oito anos de governo Lula, é “como se o partido assumisse, inconscientemente, a tradição que pretendeu renegar”” (Werneck Vianna, 2011:36). Como o jurista de Vacaria, o texto de Werneck Vianna apresenta uma visão bastante pessimista da história brasileira, na medida em que nosso passado antirrepublicano parece ser capaz de, mais uma vez, reeditar, ainda que sob novas vestes.

Mas pior do que simplesmente reviver o estatismo (e especialmente o varguismo, fenômeno com o qual Lula se aproximou deliberadamente7 7 . Cf. entrevista de Werneck Vianna ao jornal Estadão (2009). ), o PT recupera agora o elemento “nacional” sem o seu conteúdo popular que lhe era típico – dado o esvaziamento da esfera pública. Comparado ao Estado Novo, que pretendia “ser mais moderno que sua sociedade” (Werneck Vianna, 2011:29), com a vitória do PT, o Estado brasileiro agora quer ser mais justo do que a sociedade que governa, mas faz uso, em essência, dos mesmos meios – corporativismo e centralização político-administrativa.

Sendo originalmente um fator de transformação social (com um programa político de um clássico partido de esquerda), uma vez posto como polo dirigente do país, é ele que refreia o processo de democratização, em curso desde os anos 1980. As forças da antítese desse processo “se apropriam das forças da tese”, redundando em uma “dialética sem síntese” (Werneck Vianna, 2011:31), a “viagem redonda”, tão frequente na história nacional. Nesse sentido, ele fala de uma “inversão da lógica da revolução passiva” tradicional, tal como definida por Gramsci, pois, no caso brasileiro, é o “elemento de extração jacobina” que “aciona os freios a fim de deter o movimento das forças da revolução” (Werneck Vianna, 2011:32), formulando argumento similar à tese da “hegemonia às avessas”, de Oliveira.

Para o sociólogo carioca, a incorporação dos pilares da política econômica do governo FHC não deveria ser motivo de assombro. Na realidade, as semelhanças entre Lula e seu antecessor não param por aí: ambos são frutos de partidos paulistas, originalmente antigetulistas, e que defendiam um “aprofundamento do capitalismo e da consolidação da ordem burguesa no país sob a égide das instituições da democracia política” (Werneck Vianna, 2011:71). A matriz crítica do estatismo, presente no PT e no PSDB dos anos 1980, teria, contudo, dado lugar a um padrão de governo (no caso de Lula e Dilma) que aposta, paradoxalmente, na direção estatal como estratégia de modernização do país.

Segundo Werneck Vianna, o PT foi ultrapassado e sucumbiu ao lulismo. Mais do que somente a derrota de um partido em específico, o lulismo consolida o fracasso da república brasileira, pois esta continua a subsistir sem uma cidadania ativa. Quando, em 1889, se proclamou a República, o Brasil era, a rigor, uma oligarquia, não uma democracia, pois a maior parte da população adulta estava proscrita da polis. Com Lula, conclui ele, a democracia estaria sendo afirmada em prol da justiça social, mas em detrimento do ideal republicano – de participação e de cidadania ativa. Antes, república sem democracia e, com o lulismo, democracia sem república.

Como dito, Werneck Vianna reconhece alguns avanços recentes da política nacional, ainda que não devam ser tributados exclusivamente a Lula, mas aos quase 30 anos de funcionamento regular da democracia no país. Admite, de qualquer forma, a repercussão positiva das políticas públicas lulistas (como o favorecimento do crédito popular, o aumento real do salário mínimo e os programas de cunho assistencialista, como o Bolsa Família), possíveis na medida em que a Carta Constitucional de 1988 avançou enormemente em matéria de regulação social. Entretanto, ele alerta que não se pode abrir mão da liberdade em prol da justiça social, trade-off feito pelo PT durante a era Lula. Fica, pois, patente a frustração do autor ante os governos petistas, dado o seu distanciamento em relação a um projeto partidário e a uma experiência histórica que lhe deram origem, a do sindicalismo dos anos 1970, de “auto-organização do social e da autonomia do indivíduo” (Werneck Vianna, 2011:41).

REFORMA GRADUAL E PACTO CONSERVADOR

O lulismo existe sob o signo da contradição. Conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança num mesmo movimento. É o caráter ambíguo do fenômeno que torna difícil a sua interpretação (Singer, 2012:9).

Logo nas primeiras linhas do que se tornou o estudo mais sistemático de interpretação desse enigma político, Os sentidos do lulismo, de André Singer8 8 . Filho de um economista e fundador do PT, Paul Singer, André Singer (1958-) graduou-se em ciências sociais e em jornalismo pela USP. É doutor e professor de ciência política na mesma instituição e autor de Esquerda e direita no eleitorado brasileiro (2000), Os sentidos do lulismo (2012) e O lulismo em crise (2018), dentre outros trabalhos. Filiado ao PT, foi Secretário de Imprensa e porta-voz da Presidência da República do governo Lula (entre 2003-2007). Comparado aos autores antes mencionados, pode-se dizer que sua formação intelectual (talvez por ser de uma geração mais jovem e que se formou em um contexto no qual as ciências sociais brasileiras já estavam bastante institucionalizadas) tenha seguido mais a trajetória de um scholar do que a de um intelectual-militante, não obstante, a sua filiação partidária e seus reiterados posicionamentos públicos na imprensa nacional. , revela, talvez, a sua grande virtude, qual seja, a de levar em consideração a ambiguidade própria dos governos federais petistas, que faz com que tantos analistas discordem entre si.

Após sua eleição em 2002, esclarece o autor, Lula, aparentemente manteve a ordem econômica conservadora consolidada nos anos Collor e FHC: aumento de juros, pagamento da dívida, elevação da meta de superávit primário, isto é, o tripé macroeconômico, parte conhecida do receituário neoliberal. Passados menos de oito anos, em 2010, o cenário era radicalmente diferente: redução do superávit primário, diminuição dos juros, aumento do salário mínimo, incremento dos gastos sociais, favorecimento do crédito popular etc., produzindo redução da pobreza e das desigualdades sociais. O que ocorreu entre o Lula de 2003 e aquele que encerrava o segundo mandato com invejáveis índices de aprovação popular? (Cf. Moreira, 2014b:s/p)

Singer argumenta que, a partir de 2003, houve uma reorientação significativa do governo, com adoção de políticas sociais mais substantivas, ativação do mercado interno etc., que se intensificou com a crise do que veio a ser chamado de “mensalão”, em 2005, ocorrendo, então, um realinhamento eleitoral, de modo que o apoio de um bloco de eleitores das classes mais baixas (já favorecidas desde 2003) permitiu a instalação de uma agenda de transformação gradual do país de longo prazo (embora tivesse que lidar, cada vez mais, com um polo ideológico antilulista: a classe média)9 9 . Importa lembrar que, originalmente, o PT teve apoio inverso a esse da era Lula. Seus eleitores nos pleitos presidenciais de 1989, 1994 e 1998 (nos quais o ex-metalúrgico do ABC foi derrotado) eram, em geral, mais escolarizados, mais ricos e residentes nos grandes centros urbanos, localizados nas regiões do Sul e do Sudeste (Singer, 2001). .

Esse é um dos pilares da interpretação de Singer, quer dizer, o de que o lulismo é um fenômeno baseado no apoio de um grupo tradicionalmente marginalizado, o subproletariado, isto é, trabalhadores sem vínculos regulares de trabalho, mal remunerados pelos “bicos” que fazem, desmobilizados politicamente (normalmente, não sindicalizados) e usualmente fora de qualquer regulação social e trabalhista. A massa rural e semi-rural, em grande parte localizada no Norte e Nordeste, se desvincula, então, eleitoralmente dos partidos conservadores (com os quais mantinha relações de clientela) e se alia ao lulismo, que dá uma solução, portanto, à mencionada “questão meridional” tematizada por Gramsci. Integrando à ordem burguesa essa massa inorgânica de que nos falam alguns intérpretes do Brasil (como Caio Prado Jr. e Celso Furtado), o lulismo conseguiu desvinculá-la eleitoralmente dos representantes da burguesia, ao mesmo tempo que não confrontou essa classe.

É por isso que Singer reconhece que o lulismo se diferencia muito do projeto petista originário, de reformar radicalmente a estrutura social brasileira através da mobilização popular. É um projeto de “reformismo fraco”, lento e desmobilizador, mas que soube aproveitar de um momento favorável para a economia brasileira (o boom de commodities, promovido, especialmente, pelas importações chinesas) para incorporar as classes mais baixas à condição proletária, transformando, ainda que parcialmente, a atual sociedade brasileira. Essa teria sido a principal virtú de Lula e tal padrão teria permitido, inclusive, a vitória de Dilma, uma figura quase desconhecida publicamente.

Nesse sentido, por adotar parte do programa do governo do PSDB, com a finalidade de que o capital avalizasse o novo presidente, Lula e o PT, de fato, mudaram bastante. Singer argumenta que hoje coabitam no partido duas almas: a do Sion, colégio na cidade de São Paulo onde o partido foi fundado, em fevereiro de 1980, e que propunha uma ruptura intransigente com o populismo, o corporativismo etc., defendia a democracia participativa e a realização de transformações profundas na sociedade nacional; e a alma do Anhembi (local onde foi redigida e publicada a “Carta ao Povo Brasileiro”, documento do comitê de campanha de Lula, e divulgada pouco antes do pleito de 2002), de acordo com a qual o PT passava a assumir, então, uma disposição mais pragmática, oposta ao purismo do Sion, e comprometida, em parte, com o grande capital. Com Lula, o PT se converteu no “partido dos pobres”, por oposição ao PSDB, o “partido dos ricos”, de modo similar ao contexto partidário de MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e ARENA (Aliança Renovadora Nacional), nos anos 1970.

Considerando as diversas transformações pelas quais passou o PT na última década (no padrão de financiamento das campanhas, no papel desempenhado pelos militantes etc.), Singer reconhece que o núcleo duro do lulismo é um projeto pragmático de “reforma gradual”, legitimado por um “pacto conservador” (que inclui partidos fora do campo da esquerda). Mas pondera que embora dominante, o espírito do Anhembi não suprimiu de todo o do Sion, mais notório nas políticas sociais, por exemplo. Nesse sentido, conclui: “A convivência das duas almas faz da era Lula uma ‘síntese contraditória’” (Singer, 2012:122). Mas esse autor nega que, por essas razões, o lulismo possa ser caracterizado como um governo neoliberal. Trata-se, ao contrário, de um projeto que aproxima o país do ideal de um Estado de bem-estar. Tal como o New Deal estadunidense, Lula promoveu não o crescimento das desigualdades sociais (como é típico dos neoliberais), mas a sua redução; não a precarização do trabalho, mas a sua valorização etc. (Cf. Moreira, 2014a:s/p).

O PÓS-NEOLIBERALISMO LATINO-AMERICANO

Emir Sader10 10 . Filósofo e cientista político formado na USP, Sader (1943-) é secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Nos anos 1960, participou da fundação da POLOP (Política Operária), grupo de resistência à ditadura militar. Nos anos 1970, exilou-se do país, tornando-se professor da Faculdade de Economia da Universidade do Chile. Com o golpe que depôs Salvador Allende, passou por vários países até seu retorno ao Brasil, em 1983, quando filia-se ao PT. Foi também Presidente da Associação Latino-americana de Sociologia (ALAS). O livro sobre a era Lula aqui analisado reúne artigos de diversos intelectuais e é organizado por Sader, também autor de um dos seus capítulos. Sobre sua trajetória, consultar: Sader, 2005. defende a tese segundo a qual a vitória do PT ao governo federal produziu uma ruptura com o passado recente do país, instituindo uma nova era – a do pós-neoliberalismo. Visto sob esse prisma, o Brasil seria uma experiência de vanguarda (junto a essas outras nações latino-americanas), na medida em que se teria rompido com a hegemonia neoliberal, feito raro na história nacional, sempre interpretada sob a chave do atraso. O autor argumenta que foram as forças sociais envolvidas na redemocratização brasileira que impediram que o país naufragasse totalmente ante à poderosa vaga conservadora que varreu o mundo no final do século passado. Mesmo assim, com algum atraso e com alguma resistência social, o neoliberalismo chega ao país no início dos anos 1990, com Collor, Itamar e FHC. Depois de aproximadamente duas décadas de políticas de privatização, corte nas contas públicas, inserção subalterna do país no cenário internacional, financeirização da economia, priorização da estabilidade econômica, precarização das relações de trabalho, a partir de 2002, a história brasileira viveu uma importante inflexão.

Contrariamente ao que fizeram os governos antes citados, que procuraram integrar o Brasil à onda liberalizante e mercantil, Lula priorizou as políticas sociais, a integração regional e o intercâmbio Sul-Sul (valorizando os tratados internacionais com países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento), e, por fim, retomou a orientação do Estado como indutor do crescimento econômico e da distribuição da renda (como preconizado no período áureo do desenvolvimentismo nos anos de 1950-60), em vez do Estado mínimo e da centralidade do mercado. Ao mesmo tempo que a eleição de Lula representava uma guinada em relação aos governos anteriores, se restabelecia, doravante, a ligação com uma tradição popular e trabalhista, interrompida diversas vezes na história brasileira por ação das elites:

Como resultante, o governo Lula representa uma nova expressão do campo popular, que teve nos governos de Getúlio e de Jango, seus antecedentes mais próximos. Governos de coalizão de classes, pluriclassistas, que assumem projetos de unidade e desenvolvimento nacional, com forte peso das políticas sociais. Da mesma forma que os governos anteriores, cruzado por uma série de contradições, agora produto mais direto da era da globalização neoliberal. O povo brasileiro mudou, o campo popular também, o próprio Brasil é outro. Mas há uma linha de continuidade que permite dizer que a luta de hoje é, no essencial, a mesma de há oito décadas, quando o Brasil contemporâneo começou a ser construído. A construção de um projeto de nação e de sociedade, é um processo em curso, entrecortado por longos períodos de desarticulação do Estado, de fortalecimento dos interesses externos na nossa economia, de predomínio dos interesses privados no seio do Estado, de importação de formas de vida alheias, de estilos e formas oligárquicas e ditatoriais de forjar opinião pública. Pode-se dizer que as forças que levaram Getúlio ao suicídio, que deram o golpe contra Jango e que se opõem ao governo Lula são as mesmas forças de direita que foram hegemonias durante a ditadura militar e que instauraram e promoveram o neoliberalismo no Brasil. E que sobrevivem no tempo, porque são os mesmos que ganham com a hegemonia do capital financeiro, com o agronegócio, com a mídia oligárquica (Sader, 2010Sader, Emir. (2010), “Brasil: de Getúlio a Lula”. Carta Maior. Disponível em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Brasil-de-Getulio-a-Lula/4/15961. Acesso em 27/9/2018.
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria...
, s/p.).11 11 . O texto “Brasil, de Getúlio a Lula” (2010), publicado no site Carta Maior (de onde se retirou essa citação), reproduz o capítulo do livro Brasil, entre o passado e o futuro, organizado pelo autor em parceria com Marco Aurélio Garcia, publicado no mesmo ano.

Autonomia nacional, governo de coalizão de classes, desenvolvimentismo e trabalhismo – esses são os conceitos centralmente mobilizados por esse autor na interpretação do lulismo que procura “localizá-lo” temporalmente e compreendê-lo segundo uma estrutura social que se perpetua no país por décadas. É verdade, reconhece Sader, que a vitória do PT à Presidência da República foi viabilizada através de certas concessões feitas ao capital, expressas na já mencionada “Carta ao Povo Brasileiro” e encarnadas na aliança vitoriosa com o empresário e político mineiro, José de Alencar, escolhido para ser o candidato a vice-presidente de Lula. Também é correto afirmar que a sua ascensão ao poder não foi precedida de grandes mobilizações sociais, contrariando o ethos original petista. Destarte, Sader concorda quanto ao caráter “desmobilizador” do lulismo, embora o interprete mais como um efeito do impacto que duas décadas de neoliberalismo tiveram sobre os movimentos sociais (minando suas forças e desarticulando-os), do que propriamente uma opção política do governo Lula. As concessões às elites foram, em geral, necessárias e pragmáticas.

Mais criticamente em relação à sucessora de Lula, Sader pondera que, sob a gestão de Dilma Rousseff, o país passou a viver um processo crescente de desindustrialização pari passu ao seu protagonismo como exportador primário. Além disso, os governos petistas, de um modo geral, haviam revelado os seus limites por não criarem uma política de tributação progressiva, democratizado os meios de comunicação (um oligopólio a serviço das elites tradicionais) e tampouco reformado o sistema político (por meio da adoção do financiamento exclusivamente público das campanhas).

Pela leitura que o sociólogo faz desse período, fica evidente que a ruptura com o neoliberalismo no Brasil deve ser creditada, em grande medida, à inventividade do próprio Lula. Diz ele: “a construção da hegemonia política do governo foi produto da intuição e do pragmatismo do Lula como presidente” (Sader, 2013Sader, Emir. (2013), “A Construção da Hegemonia Pós-neoliberal”. In: E. Sader (org.), 10 Anos de Governos Pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo.:139). Parte dessa estratégia consistiu em, inicialmente, contestar o neoliberalismo nos pontos em que havia menor resistência (políticas sociais e integração regional, principalmente), ao mesmo tempo que tomava medidas preventivas para a crise mundial (ajuste fiscal e reforma da previdência, entre outras). Num segundo momento, quando o “Lulinha paz e amor” não assustava mais o empresariado nacional e internacional, o ex-presidente teria orientado mais claramente o seu governo segundo o ideário do desenvolvimentismo, de acordo com o qual o “Estado é indutor do crescimento econômico e garantidor dos direitos sociais” (Sader, 2013Sader, Emir. (2013), “A Construção da Hegemonia Pós-neoliberal”. In: E. Sader (org.), 10 Anos de Governos Pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo.:141).

PEMEDEBISMO E IMOBILISMO

No contexto de crise do lulismo, quando os manifestantes ainda ocupavam as ruas de diversas cidades brasileiras (motivados, inicialmente, pelo aumento das tarifas de ônibus e, depois, contra a má qualidade dos serviços públicos vis-à-vis os gastos do governo federal com as obras para a realização da Copa do Mundo, os escândalos de corrupção noticiados pela mídia, e contra, enfim, os políticos, de um modo geral, e o PT e a presidenta Dilma Rousseff, em particular), Marcos Nobre12 12 . Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do CEBRAP, Nobre (1965-) tem pesquisado e publicado textos que tratam, sobretudo, de filosofia e teoria crítica, e não propriamente de política brasileira. Dentre todos autores aqui analisados, é também o único cujo perfil é mais apartidário. Não obstante, ele tem, usualmente, desempenhado (como os demais) o papel comum aos cientistas sociais brasileiros que Schwartzman (1991) denominou de “intelectual público”, manifestando-se, sobretudo na imprensa, sobre temas da política nacional. Sobre a trajetória desse autor, consultou-se: Nobre, 2012. , publicou Choque de democracia. Neste pequeno ensaio, escrito no calor do momento, Nobre defende a tese de que o sistema político brasileiro colapsou diante das rápidas e complexas demandas de uma sociedade civil, cada vez mais avançada e complexa. Junho de 2013 seria um sintoma inequívoco do descompasso crescente entre o Estado – estagnado e fechado em torno de seus próprios interesses – e a sociedade brasileira – dinâmica e cada vez mais conectada com as transformações mundiais.

Grosso modo, as mesmas ideias expostas em Choque de democracia (Nobre, 2013a) seriam retomadas pelo autor em Imobilismo em movimento. Nesse livro, Nobre assevera que o Brasil, desde a redemocratização, convive com uma “cultura de baixo teor democrático” (Nobre, 2013b:9), que permitiu blindar o país contra transformações sociais mais substantivas, como, por exemplo, a redução das gigantescas desigualdades sociais. O autor entende por democracia mais do que somente como um conjunto de instituições políticas, tomando-a como um verdadeiro “modo de vida” (Nobre, 2013b:21), sem, contudo, esclarecer ao certo o que entende por essa expressão, mas sugerindo que é na dimensão cultural que se encontra a chave de explicação do “atraso” brasileiro.

Assim, ele defende a tese segundo a qual a cultura política brasileira contemporânea pode ser definida pelo pemedebismo, justificando sua escolha em função do MDB (mais tarde o PMDB, e, hoje, MDB novamente) ter sido o partido no qual se concentraram as diferentes forças de resistência à ditadura e, ao mesmo tempo, ser expressão maior da “ideologia oficial de uma transição morna para a democracia” (Nobre, 2013b:11). Cumpre esclarecer que o pemedebismo não é algo limitado a um partido específico, sendo antes um fenômeno a dominar todo espectro político, inclusive o PT, força originalmente antipemedebista.

Ele define o pemedebismo a partir de cinco características fundamentais. A primeira é o governismo, ou seja, independentemente de qual seja a orientação ideológica do governo de ocasião, segundo a lógica peemedebista é preciso estar permanentemente no poder. A segunda característica é a da produção de supermaiorias legislativas, isto é, supõe-se que, para governar, seja necessário conquistar uma ampla base de apoio no Congresso Nacional, o que implica que todo partido vencedor tem que costurar alianças fora do seu espectro ideológico original. Funcionar como um sistema de vetos constitui a terceira característica do pemedebismo, impedindo reformas mais profundas na sociedade. Nesse sentido, mais do que um projeto propositivo de poder, o pemedebismo caracteriza-se por ser um sistema reativo e que impede o aprofundamento da democracia brasileira. A quarta característica consiste em inviabilizar a entrada de novos membros no poder nesse “condomínio político”, tornando o bloco governista pouco plural, quando contrastado com a diversidade de interesses que compõem a sociedade nacional. A última característica do pemedebismo é evitar o conflito aberto, solucionando, sem a devida publicidade, as disputas nos bastidores da política.

A despeito de viver uma “normalidade democrática” (Nobre, 2013b:9), o Brasil continuaria a não ser propriamente uma democracia plena. Com a eleição de Lula e Dilma, pode-se dizer que a redemocratização brasileira se encerrou, mas não se completou, em virtude da dinâmica oligárquica e bloqueadora do pemedebismo. Essa cultura política imobiliza, por assim dizer, o processo provocado pela sociedade civil de aprofundar a democracia no país.

Para esse filósofo, a compreensão adequada do pemedebismo requer também um esclarecimento acerca de quais modelos de sociedade se construiu no Brasil no último século. De acordo com ele, desde os anos 1930, se constituiu um ideal de sociedade “nacional-desenvolvimentista”, que visava a modernização do país por meio do protagonismo estatal, e que não tinha como “pedra de toque” a democracia. Com o ocaso do nacional-desenvolvimentismo, a partir da derrocada do regime militar, surge um novo modelo de sociedade, o “social-desenvolvimentismo”. Se no primeiro o que importava era promover o desenvolvimento econômico do país de modo autônomo, no segundo modelo a questão capital é combater as desigualdades sociais, de poder, de reconhecimento etc. (Cf. Moreira, 2016Moreira, Marcelo. (2016), “Em Busca de uma Metateoria: Análise de Conjuntura, Ciência e Política a partir dos Textos sobre as Jornadas de Junho”. Anais do 10o Encontro da ABCP, Belo Horizonte, s./p., ISBN 978-85-66557-02-2.:s/p). Tendo nascido neste ciclo de redemocratização do país, pode-se dizer que o PT representa precisamente esse segundo modelo de sociedade. O grande problema, afirma ele, é que o social-desenvolvimentismo é incompatível com o pemedebismo, que se incrustou no sistema político nacional e que perpetua o status quo. Por conta dessa incompatibilidade, entre o social-desenvolvimentismo e o pemedebismo, nasceram as manifestações de rua de 2013.

Percorrendo o período que vai do fim da ditadura militar ao mandato de Dilma Rousseff, a análise de Nobre identifica sucessivas crises do pemedebismo desde o seu surgimento, mas que ele sempre conseguiu superar, dada a dispersão das forças transformadoras da sociedade civil. Com as “Diretas Já”, a pressão dos movimentos sociais durante a Assembleia Constituinte de 1986, o movimento pelo impeachment de Collor, em 1992, o pemedebismo “sofreu arranhões”, mas foi sempre capaz de neutralizar essas forças, e, em alguns casos, pervertê-las, trazendo-as para o seu bloco de poder, como teria ocorrido com o PT, sobretudo, a partir de 2005, quando o partido se viu muito fragilizado diante do escândalo do “mensalão”.

O governo Lula, nesse sentido, representa, na interpretação de Nobre, a própria capitulação do PT ao pemedebismo, não sendo o primeiro, portanto, um padrão político propriamente original (diferentemente do projeto do PT dos anos 1980). Talvez por isso, o livro Imobilismo em movimento trate do governo Lula apenas marginalmente, em especial para se contrapor à tese de Singer, segundo a qual o contexto nacional à época consistia num novo pacto político de transformação gradual do país, assentado sob uma polarização entre “pobres” e “ricos” (sendo os primeiros capitaneados pelo PT, e os segundos por PSDB e Democratas – DEM). Ao contrário, Nobre, defendendo a tese do imobilismo do sistema político nacional, afirma que a “ocupação pela esquerda do condomínio pemedebista” (2013b:150), pelo governo Lula, redundou no fim da polarização ideológica que marca os anos 1980-90 e na normalização do pemedebismo, como um “caldo cultural comum indistinto” (2013b:156).

O LULISMO COMO TEMA DO PPB

Vistas em conjunto, as leituras sintetizadas aqui sobre o lulismo revelam diferentes possibilidades de interpretação sobre esse período histórico. Como notou Fernando Perlatto (2013)Perlatto, Fernando. (2013), “Interpretações sobre o Brasil Contemporâneo”, Gramsci e o Brasil. Disponível em https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1562. Acesso em 4/2/2021.
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, essas interpretações podem ser compreendidas do seguinte modo: há quatro delas mais polarizadas: uma eminentemente positiva, a de Sader, e outra bastante negativa, a de Oliveira. Além disso, há outras três que oscilam entre esses polos: a de Werneck Vianna e a de Nobre, mais próxima do negativo; e a de Singer, do polo positivo.

Independentemente desse dissenso interpretativo, é preciso reconhecer, que, até meados de 2013, o grau de entusiasmo com o Brasil do século XXI era enorme. Transformações sociais substantivas foram produzidas durante as gestões Lula e Dilma: milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema, podendo então adquirir bens de consumo só acessíveis à classe média; pobres, negros e indígenas ingressaram pela primeira vez nas universidades do país; a luta de algumas minorias alcançou mais visibilidade e foi incorporada às agências do Estado etc. O Brasil parecia concretizar a antiquíssima promessa sobre si próprio – a de ser o país do futuro. Mas o sentimento de que o Brasil, enfim, alcançava o trem da história durou pouco. Após 11 anos de otimismo e ascensão, o lulismo entrou em crise. E junto com ele, o país inteiro parecia sucumbir, como representou iconicamente a revista inglesa The Economist em duas de suas capas sobre a política nacional. Na de 2009, “The Brazil takes off”, a estátua do Cristo Redentor representa um foguete, que decola com toda força, demonstrando a confiança difusa no futuro do país. Na edição de 2013, cujo título é “Has Brazil blown it?”, e o “Cristo-foguete” caía tragicamente. O ocaso dos governos petistas não significa, necessariamente, o fim do lulismo. Das lutas identitárias aos planos econômicos, passando pelas cotas raciais, pela exploração do pré-sal, pelo Bolsa Família etc., a herança desse “estilo de governo” continua a pautar a política nacional.

Como uma chave de leitura do debate sobre esse período, o que se pretende aqui é revisitar a história das ideias do Brasil em busca de elementos de compreensão para o dissenso que anima parte da esquerda brasileira. Apesar das diferenças entre os autores mencionados, todos reconhecem a “novidade” dos governos petistas e concedem um peso razoável à personalidade de Lula. Líder carismático, político dotado de um senso de oportunidade etc. – não são poucos os traços atribuídos a ele. Quanto mais peso se dá ao elemento pessoal, mais fácil é pensar que a sua substituição por Dilma foi decisiva na derrocada do lulismo. Entretanto, é um risco superestimar a virtú (ou a falta dela), considerando que há fatores da fortuna que extrapolam a ação individual, tais como o contexto econômico internacional, a correlação de forças dentro do Congresso nacional etc. Mas o que mais se pode concluir a respeito desse debate? De que maneira o estudo do PPB pode esclarecer as controvérsias sobre o papel do lulismo na história brasileira?

Como já dito, a própria escolha do termo “pensamento” para designar a produção cultural brasileira (por diferenciação à teoria), estaria baseada na percepção de que se vive em “atraso” quando comparado às nações do Atlântico Norte. Ainda que, como esclarece Lynch (2013)Lynch, Christian. (2013), “Por que Pensamento e Não Teoria? A Imaginação Político-social Brasileira e o Fantasma da Condição Periférica”. Dados, v. 56, n. 4, pp. 727-767., o modo como se concebe a relação entre os “pensamentos” formulados no Brasil e as “teorias” importadas do estrangeiro, ao longo da história, não tenha permanecido estático (de modo que a identidade periférica foi sendo gradativamente questionada pelos intelectuais do país em busca de uma concepção política autenticamente nacional), a mácula de ser uma nação atrasada parece ainda presente na cultura brasileira.

Nesse sentido, cumpre indagar em que medida o debate sobre o lulismo não repõe a questão histórica do atraso nacional? Quase todos os intelectuais de esquerda aqui analisados (Oliveira, Werneck Vianna e Singer) recorrem com mais centralidade a Gramsci do que a Marx, o que talvez indique que na obra do primeiro encontram-se ideias-chave para pensar a exploração capitalista e a reação a ela, não no contexto dos países que se modernizaram primeiro e mais solidamente, mas onde tal processo ocorreu a reboque dessas nações e precariamente (como colônias de exploração ou países dependentes). Mas, diferentemente do filósofo sardo, os intelectuais brasileiros aqui avaliados têm o desafio adicional de pensar ainda nas possibilidades de emancipação da classe trabalhadora justamente no contexto político em que parte importante da esquerda partidária chegou ao poder. Não se trata de intelectuais que formulam sua obra e pensam o futuro do país na condição do cárcere e governados por um Estado fascista. Ao contrário: são pensadores que esperavam que o PT, à época, alçado ao cargo mais importante de poder, poderia produzir transformações substantivas no país. Daí que mesmo as categorias gramscianas de questão meridional, hegemonia e revolução passiva, criadas já em um contexto periférico, tenham que ser adequadas pelos autores nacionais para esclarecer o Brasil da era Lula.

Obviamente que o fato de todos eles, como intelectuais de esquerda, terem que lidar com as especificidades do atraso brasileiro não faz com que concordem a respeito de quais são as raízes do atraso nacional e quais estratégias deve-se adotar para a sua superação. Mesmo intelectuais diretamente ligados ao PT e que adotam uma avaliação mais positiva sobre o lulismo (como Sader e Singer), formulam diagnósticos diferentes a esse respeito, da mesma forma, que autores ligados a outros partidos e/ou mais críticos da era Lula, como Oliveira, Werneck Vianna e Nobre. Como, então, compreender tais divergências?

Wanderley Guilherme dos Santos, em Ordem burguesa e liberalismo político (1978), afirma que o ponto fulcral que dividia, durante o Império, os intelectuais e políticos conservadores (ou autoritários) dos liberais, não era propriamente questões de princípio, mas sim de estratégia13 13 . A tese tirou do limbo, por assim dizer, obras de pensadores descartados até então como puros reacionários, revelando certa racionalidade interna a elas. A interpretação de Santos gerou bastante controvérsia precisamente por compreender que esses autores também buscavam a consolidação de uma ordem burguesa no país e por avaliar negativamente certas correntes do liberalismo brasileiro (como doutrinárias). . Ambos concordavam que era necessário criar uma sociedade liberal no Brasil – marcada pela livre iniciativa do mercado, pelo controle mútuo dos poderes etc. A divergência decorria, pois, dos meios para a consecução dessa finalidade. Enquanto os liberais defendiam a implementação imediata das medidas liberais clássicas (descentralização, extensão do sufrágio, fortalecimento do Legislativo etc.), tais como as adotadas classicamente pelos países da Europa Ocidental e da América do Norte, os autoritários asseguravam que era necessário adotar meios não liberais para a realização desse fim, dada a morfologia da sociedade brasileira – marcada pelo poder privado dos latifundiários, por uma cultura autoritária e insolidária etc. Cientes de que a eficácia das instituições políticas depende da ordem social, os autoritários instrumentais afirmavam que somente por meio da centralização do poder político seria possível transformar, pela ação do governo federal, a sociedade nacional. Se no liberalismo clássico, quanto mais forte o Estado, maior é a ameaça às liberdades individuais, no caso brasileiro, a equação era invertida. A aplicação, portanto, da mesma terapêutica implementada nos Estados Unidos da América, defendida pelos “liberais doutrinários”, produziria, por aqui, o efeito contrário, quer dizer, o fortalecimento de práticas antiliberais, como o mandonismo dos coronéis.

Ora, ainda que certamente em um contexto bastante diferente – qual seja, o da existência de um Estado nacional bastante consolidado e de uma sociedade complexa, industrializada, majoritariamente urbana etc. – e com um horizonte normativo também distinto – isto é, não apenas de uma sociedade liberal, mas democrática e socialmente justa – pode-se dizer que a divergência que opunha os “autoritários instrumentais” aos “liberais doutrinários” não é muito diferente da divergência entre os autores que reconhecem um importante avanço civilizatório produzido pelo lulismo (Sader e Singer, sobretudo, dentre os autores aqui analisados) e os que veem como uma forma de regresso, ou ainda de degradação de um projeto de transformação social mais autêntico e radical (Oliveira, Werneck Vianna e Nobre). Novamente, a divergência não se dá em relação aos fins, mas, sim, em relação aos meios e, no que tange aos analistas do lulismo, recai não sobre ser autoritário ou ser liberal, mas sim entre poder adotar, para o Brasil, ideias e projetos políticos gestados em países modernos, ou ter que adaptar tais ideias e projetos à realidade local, transigindo e fazendo concessões políticas, a fim de vencer as resistências que impedem a democratização do país.

A analogia entre o debate entre “autoritários instrumentais” e “liberais doutrinários” e a cizânia sobre o lulismo se sustenta, ademais, porque há um enorme contingente populacional no Brasil que, em pleno século XXI, não foi sequer foi propriamente integrado à ordem burguesa: desconhecem ou vivem privados dos direitos civis mais básicos, dos direitos trabalhistas e sociais, incapazes ou descrentes das instituições políticas, sem acesso à justiça – problema já denunciado por “autoritários instrumentais”, como Oliveira Vianna, por exemplo. Como argumenta Santos (1993)Santos, Wanderley Guilherme dos. (1993), Razões da Desordem. 3a ed. Rio de Janeiro: Rocco., ao lado do formalismo poliárquico que acompanha o país desde a sua redemocratização (com inequívocos ganhos do ponto de vista da inclusão política e da competição eleitoral), o Brasil vivencia ainda um déficit grave de direitos fundamentais que se revela pela rotineira, mas consistente descrença nas instituições de justiça. Tal descrença se deve menos a uma deficiência das instituições políticas (como o sistema eleitoral e partidário) e mais a uma carência de direitos elementares, como o direito de ir e vir e de não ser preso a não ser de acordo com devido processo legal. Há uma péssima distribuição desses direitos no país e, acrescenta Santos, o seu corolário é a ausência de uma cultura cívica capaz de fundamentar as instituições poliárquicas existentes. Nesse sentido, ao problema da exclusão social e da exploração do mundo do trabalho assalariado (pauta típica da esquerda) soma-se o problema da privação de direitos, da ausência de uma ordem burguesa efetiva em todo o território nacional (pauta comum da esquerda com certos setores da direita nacional). Mais do que isso, a privação sistemática dos direitos fundamentais explica, em grande medida, a persistência da exclusão social. Sobre isso, Santos (2006) assegura que no Brasil, os horizontes do desejo da população brasileira são bastante estreitos (isto é, a diferença entre o que os cidadãos comuns consideram como “vida boa” e “vida ruim” é muito pequena) e os custos do fracasso da ação coletiva são altíssimos, gerando uma tendência a um comportamento social inercial, dado que os indivíduos temem que sua condição atual piore (o que os desestimula a participar de ações coletivas que procurem melhorar sua condição social). Dizendo de outro modo, o autor identifica que, a despeito das crônicas desigualdades sociais de toda sorte ao longo de nossa história, não há um sentimento difuso e forte de privação relativa entre nós: “pode haver inveja, paralisante, mas nenhum miserável imagina que consiga chegar sequer próximo do seu topo”; ou ainda, “o horizonte do desejo é ainda muito medíocre para que uma precária mudança marginal seja interpretada como estímulo a demandas ulteriores” (Santos, 2006Santos, Wanderley Guilherme dos. (2006), Horizonte do Desejo: Instabilidade, Fracasso Coletivo e Inércia Social. Rio de Janeiro: Ed. FGV.:174). Longe de uma imutabilidade social, a história brasileira é marcada por profundas alterações, mas que não diminuíram os custos do fracasso da ação coletiva, de tal modo que grande parcela da população, ainda que dramaticamente carente de bens básicos, adota um comportamento conservador, como estratégia de sobrevivência individual.

Retomando o debate sobre o lulismo, o que se percebe é que enquanto Singer e Sader argumentam que o lulismo adota práticas conciliatórias, mas que se fazem necessárias, como um instrumento para o avanço de certas pautas da própria esquerda (dada as correlações de forças políticas e a existência dos problemas constitucionais e sociais básicos supramencionados), os outros intérpretes do fenômeno (Oliveira, Werneck Vianna e Nobre) concebem que a efetivação dos valores e de práticas emancipatórias exigem uma imediata e mais radical transformação da sociedade nacional. Como diria Bobbio, no primeiro grupo tem-se uma esquerda mais “moderada”; no segundo, uma mais “extremista”. Os termos dos dois debates (sobre o lulismo e o período do Império) são outros, mas as posições em face da realidade nacional são bastante similares. Se antes, na transição do século XIX para o XX, ser realista era perceber que as medidas liberais não poderiam ser adotadas automática e imediatamente no país, o realismo político exige, no século XXI e em relação a um projeto de uma esquerda democrática, uma moderação do projeto partidário original. Considerando as diferenças ideológicas e contextuais entre esses dois debates, de que modo se deve interpretar essas semelhanças?

Como nota Gildo Brandão (2007)Brandão, Gildo. (2007), Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Ed., a polarização entre “autoritários instrumentais” e “liberais doutrinários”, identificada polemicamente por Santos, repõe a identificada anteriormente por Oliveira Vianna, entre “idealistas constitucionais” e “idealistas orgânicos”, ainda que essa estivesse associada a uma justificação ideológica de um projeto autoritário de poder por parte do jurista fluminense. Segundo Brandão, enquanto os “idealistas orgânicos”, baseados em um diagnóstico segundo o qual a sociedade nacional é débil e incapaz de gerar uma ordem liberal, defendem o protagonismo da ação estatal, os “idealistas constitucionais” apostam na ideia de que leis e instituições liberais (como o federalismo, o mercado etc.) poderiam transformar positivamente a sociedade nacional.

De qualquer forma, o que importa se destacar aqui, seguindo a interpretação de Brandão (que retomou as pesquisas de Santos sobre a “imaginação social brasileira”), é compreender como se formam, ao longo da história do PPB, “‘estilos’ determinados e formas de pensar persistentes extraordinariamente persistentes no tempo, modos intelectuais de se lidar com a realidade” (Brandão, 2007:29). Como ele próprio propõe:

(...) sem deixar de examinar o conteúdo substantivo das ideologias e visões de mundo, a ênfase analítica será posta na descrição de “formas de pensar” subjacentes, estruturas intelectuais e categorias teóricas, com base nas quais a realidade é percebida, a experiência prática é elaborada e a ação política é organizada (Brandão, 2007Brandão, Gildo. (2007), Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Ed.:30).

Pode-se, pois, identificar duas formas de pensamento presentes tanto no debate político do século XIX, quanto no debate sobre o lulismo e que estão relacionadas a uma questão de método. De um lado, um “estilo” marcado pela defesa da necessidade da conciliação, frente ao “atraso” e aos desafios estabelecidos pela correlação de forças políticas do país; e, de outro lado, uma outra forma de pensar que alega ser necessária a implementação de propostas políticas que rompam drasticamente com o status quo, compreendendo qualquer conciliação como mera capitulação ou traição dos princípios originais. De modo similar aos “autoritários instrumentais”, que advogavam a necessidade de adaptação dos meios para a consecução dos fins desejados, Singer e Sader avaliam que o lulismo representou o meio factível de promover inclusão social e promoção da cidadania. Ao passo que, como os “liberais doutrinários” que, no passado, condenavam as estratégias “conservadoras” de seus adversários, Oliveira, Werneck Vianna e Nobre argumentam que o lulismo é um fenômeno regressivo, posto que retoma elementos da política tradicional brasileira e viola um programa político concebido como emancipatório. Para o primeiro grupo, o lulismo consiste em uma concessão estratégica para avançar em direção a uma sociedade mais justa. Para o segundo, o lulismo significou o abandono à ideia dessa mesma sociedade. A permanência dessas “formas de pensar” ao longo de mais de um século, a despeito das significativas diferenças contextuais dos dois debates, é resultante do fato de serem pensamentos que se formam na periferia e que têm de lidar com um passado que é concebido sob a chave do atraso, conforme esclarece Lynch (2013)Lynch, Christian. (2013), “Por que Pensamento e Não Teoria? A Imaginação Político-social Brasileira e o Fantasma da Condição Periférica”. Dados, v. 56, n. 4, pp. 727-767.. Por essas razões, o centro do debate se desloca de uma avaliação dos fins a serem perseguidos para uma avaliação sobre os métodos de ação.

É certo, contudo, que do ponto de vista estritamente doutrinário, as perspectivas aqui apresentadas sobre o lulismo se afastam tanto do “autoritarismo instrumental”, quanto do “liberalismo doutrinário”. Não há convergência, obviamente, de princípios e fins, entre as ideias esposadas pelos intelectuais de esquerda antes discutidos e as ideias de Rui Barbosa e Tavares Bastos – expressão do “liberalismo doutrinário” ou do “idealismo constitucional” – ou de Visconde do Uruguai e Oliveira Vianna – expoentes da linhagem do “autoritarismo instrumental” ou do “idealismo orgânico”. Sob esse aspecto, Brandão propõe compreender o pensamento da esquerda brasileira a partir das linhagens do “radicalismo de classe média”, para retomar interpretação de Antonio Candido (1990)Candido, Antonio. (1990), “Radicalismos”. Estudos Avançados, v. 4, n. 8, pp. 4-18., e do “marxismo de matriz comunista”, avaliada por ele próprio. Este artigo, todavia, tomou caminho diferente: ao invés de analisar o “conteúdo ideológico” desses escritos, procurou-se aqui destacar a curiosa semelhança, como uma “forma de pensamento”, entre o debate contemporâneo sobre o lulismo e o debate sobre a formação da ordem burguesa, há mais de um século, semelhança estabelecida mais em função do método e das estratégias de ação face à exclusão social que, continuadamente, atravessa a história nacional.

Agradecimentos

*Agradeço muito a dois amigos, Amaro de Oliveira Fleck e Francisco Guerra Ferraz, que leram o manuscrito quando ele era pouco mais do que uma ideia e aos pareceristas anônimos, que fizeram contribuições decisivas para que este artigo tivesse menos erros.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

  • 1
    . O termo apareceu inicialmente em artigos publicados por André Singer na revista Novos Estudos CEBRAP e posteriormente incorporados ao livro Os sentidos do lulismo (2012).
  • 2
    . Considerando que não é um aspecto insignificante entre os intérpretes da era Lula, este artigo respeitará as escolhas terminológicas dos autores aqui abordados. Fora isso, fará indistintamente uso da expressão “lulismo” e de termos como “governos petistas” e “governos Lula e Dilma”.
  • 3
    . A escolha por esses cinco autores foi feita segundo os seguintes critérios: a) sua importância na cultura acadêmica e na esfera pública nacional; b) a repercussão pública de suas publicações; c) a diversidade geracional entre eles e de opinião a respeito do lulismo.
  • 4
    . Nos anos de 1950-60, Francisco de Oliveira (1933-2019) foi membro do Banco do Nordeste e da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), a convite de Celso Furtado, embora fosse já um crítico do nacional-desenvolvimentismo. Após o golpe, se vincula ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Na Universidade de São Paulo (USP), instituição a qual se vinculou posteriormente, coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, o Cenedic. Nos anos 1980, filiou-se ao PT, mas passou a apoiar depois a criação do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), dissidência daquele surgida no primeiro governo Lula. O ensaio “O ornitorrinco”, foi lançado conjuntamente com a reedição de seu conhecido Crítica da razão dualista, de 1972 (2003). Os demais textos aqui utilizados, “Hegemonia às avessas” (2007) e “O avesso do avesso” (2009), foram publicados na revista Piauí. Sobre o conjunto da obra desse autor, sugere-se a leitura de: Rizek e Romão (org.), 2006.
  • 5
    . Luiz Werneck Vianna (1938-) é um sociólogo carioca ligado, desde a juventude, à tradição do PCB (Partido Comunista do Brasil). Formou-se em direito e em ciências sociais e, como aluno, esteve, por um breve período, no antigo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Como pesquisador, esteve ligado à USP (onde doutorou-se sob a orientação de Francisco Weffort), ao CEBRAP e ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), institutos fundamentais para a consolidação das ciências sociais brasileiras nos anos 1960 e 1970. Foi também presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Atualmente é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Além de sua tese de doutorado, transformada em livro, Liberalismo e sindicatos no Brasil (1976), um clássico da sociologia do trabalho, Werneck Vianna se notabilizou por interpretações do PPB e por criar ele próprio uma leitura do processo de modernização do país, a partir de referências teóricas como Gramsci e Weber, como em A revolução passiva: iberismo e americanismo (1997). Sobre sua trajetória, consultar: Werneck Vianna, 2010.
  • 6
    . Essa noção, é preciso destacar, comparece no PPB em artigos de autoria de Francisco Weffort dos anos 1960, depois reunidos em um livro clássico do PPB, O populismo na política brasileira, de 1978.
  • 7
    . Cf. entrevista de Werneck Vianna ao jornal Estadão (2009).
  • 8
    . Filho de um economista e fundador do PT, Paul Singer, André Singer (1958-) graduou-se em ciências sociais e em jornalismo pela USP. É doutor e professor de ciência política na mesma instituição e autor de Esquerda e direita no eleitorado brasileiro (2000), Os sentidos do lulismo (2012) e O lulismo em crise (2018), dentre outros trabalhos. Filiado ao PT, foi Secretário de Imprensa e porta-voz da Presidência da República do governo Lula (entre 2003-2007). Comparado aos autores antes mencionados, pode-se dizer que sua formação intelectual (talvez por ser de uma geração mais jovem e que se formou em um contexto no qual as ciências sociais brasileiras já estavam bastante institucionalizadas) tenha seguido mais a trajetória de um scholar do que a de um intelectual-militante, não obstante, a sua filiação partidária e seus reiterados posicionamentos públicos na imprensa nacional.
  • 9
    . Importa lembrar que, originalmente, o PT teve apoio inverso a esse da era Lula. Seus eleitores nos pleitos presidenciais de 1989, 1994 e 1998 (nos quais o ex-metalúrgico do ABC foi derrotado) eram, em geral, mais escolarizados, mais ricos e residentes nos grandes centros urbanos, localizados nas regiões do Sul e do Sudeste (Singer, 2001Singer, André. (2001), O PT. São Paulo: Publifolha.).
  • 10
    . Filósofo e cientista político formado na USP, Sader (1943-) é secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Nos anos 1960, participou da fundação da POLOP (Política Operária), grupo de resistência à ditadura militar. Nos anos 1970, exilou-se do país, tornando-se professor da Faculdade de Economia da Universidade do Chile. Com o golpe que depôs Salvador Allende, passou por vários países até seu retorno ao Brasil, em 1983, quando filia-se ao PT. Foi também Presidente da Associação Latino-americana de Sociologia (ALAS). O livro sobre a era Lula aqui analisado reúne artigos de diversos intelectuais e é organizado por Sader, também autor de um dos seus capítulos. Sobre sua trajetória, consultar: Sader, 2005.
  • 11
    . O texto “Brasil, de Getúlio a Lula” (2010), publicado no site Carta Maior (de onde se retirou essa citação), reproduz o capítulo do livro Brasil, entre o passado e o futuro, organizado pelo autor em parceria com Marco Aurélio Garcia, publicado no mesmo ano.
  • 12
    . Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do CEBRAP, Nobre (1965-) tem pesquisado e publicado textos que tratam, sobretudo, de filosofia e teoria crítica, e não propriamente de política brasileira. Dentre todos autores aqui analisados, é também o único cujo perfil é mais apartidário. Não obstante, ele tem, usualmente, desempenhado (como os demais) o papel comum aos cientistas sociais brasileiros que Schwartzman (1991)Schwartzman, Simon. (1991), “As Ciências Sociais nos Anos 90”. In: H. Bomeny; P. Birman (orgs.), Assim Chamadas Ciências Sociais: Formação do Cientista Social no Brasil. Rio de Janeiro: UERJ/Relume Dumará. denominou de “intelectual público”, manifestando-se, sobretudo na imprensa, sobre temas da política nacional. Sobre a trajetória desse autor, consultou-se: Nobre, 2012Nobre, Marcos. (2012), Memorial. Memorial apresentado ao Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do Título de Livre-Docente. Campinas..
  • 13
    . A tese tirou do limbo, por assim dizer, obras de pensadores descartados até então como puros reacionários, revelando certa racionalidade interna a elas. A interpretação de Santos gerou bastante controvérsia precisamente por compreender que esses autores também buscavam a consolidação de uma ordem burguesa no país e por avaliar negativamente certas correntes do liberalismo brasileiro (como doutrinárias).
  • *
    Agradeço muito a dois amigos, Amaro de Oliveira Fleck e Francisco Guerra Ferraz, que leram o manuscrito quando ele era pouco mais do que uma ideia e aos pareceristas anônimos, que fizeram contribuições decisivas para que este artigo tivesse menos erros.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2020
  • Revisado
    23 Mar 2021
  • Revisado
    6 Set 2021
  • Aceito
    8 Dez 2022
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