Acessibilidade / Reportar erro

Padrões e Modos de Vida: Mobilidade Social nas Periferias de São Paulo (2000-2016)

Standards and Ways of Life: Social Mobility in the Peripheries of São Paulo (2000-2016)

Niveaux et Modes de Vie : Mobilité Sociale dans la Périphérie de São Paulo (2000-2016)

Estándares y Modos de Vida: Movilidad Social en las Periferias de São Paulo (2000-2016)

RESUMO

Com base em uma pesquisa multimétodos em dois distritos da periferia de São Paulo, este artigo analisa o processo de mobilidade social observado no Brasil na primeira década e meia deste século. O texto tem dois objetivos: i) compreender as relações entre mudanças no padrão de vida, de caráter mais quantitativo, e no modo de vida, com características qualitativas; e ii) analisar essas mudanças em relação ao projeto de mobilidade das diferentes gerações de trabalhadores das periferias paulistanas. Argumento que, embora seja possível constatar melhorias significativas no padrão de vida, há grande heterogeneidade e frustração nos processos de mobilidade social em torno de três questões: a) ganhos de renda que, embora significativos, não chegam a alcançar os padrões fordistas de décadas passadas; b) melhorias quase sempre instáveis nos rendimentos de trabalhadores e empreendedores; c) frustração de uma mobilidade mais intensa a partir do alcance do ensino superior. Diante de um contexto individualizador com perdas de laços significativos no âmbito familiar e vicinal, promessas não cumpridas de chegada à “classe média” e permanência de precariedade nos serviços públicos, o modo de vida das pessoas foi impactado de formas diversas e, por vezes, traumática.

mobilidade social; periferia; São Paulo; modo de vida; projeto de vida

ABSTRACT

This article analyzes the social mobility process observed in Brazil in the first decade and a half of this century based on multi-method research in two districts on São Paulo’s periphery. The paper has two purposes: I) to understand the relations between changes in the standard of living, with a more quantitative character, and in the way of life, with qualitative characteristics; and II) to analyze these changes in relation to the mobility project of the different generations of workers in the peripheries of São Paulo. I argue that, although it is possible to see significant improvements in the standard of living, there is great heterogeneity and frustration in the processes of social mobility around three issues: a) income gains that, although significant, do not reach the Fordist standards of past decades; b) almost always unstable improvements in the income of workers and entrepreneurs; c) frustration whereas more intense mobility for those who reach higher levels of education. In turn, an individualizing context with loss of significant ties in the family and in the neighborhoods, unfulfilled promises to reach the “middle class” and the permanent precariousness in public services caused a traumatic impact on the way of life.

social mobility; periphery; São Paulo; way of life; life project

RÉSUMÉ

Basé sur une recherche multiméthode dans deux quartiers de la périphérie de São Paulo, cet article analyse le processus de mobilité sociale observé au Brésil dans la première décennie et demie de ce siècle. Le texte a deux objectifs : i) comprendre les relations entre les changements du niveau de vie, de nature plus quantitative, et du mode de vie, avec des caractéristiques qualitatives ; et ii) analyser ces changements par rapport au projet de mobilité des différentes générations de travailleurs de la périphérie de São Paulo. Je soutiens que, bien qu’il soit possible d’observer des améliorations significatives du niveau de vie, il existe une grande hétérogénéité et frustration dans les processus de mobilité sociale autour de trois questions : a) des gains de revenus qui, bien qu’importants, n’atteignent pas les niveaux fordistes de décennies passées ; b) des améliorations presque toujours instables des revenus des travailleurs et des entrepreneurs ; c) la frustration d’une mobilité plus intense hors de portée de l’enseignement supérieur. Face à un contexte individualisant avec perte de liens importants dans la famille et le quartier, promesses non tenues d’atteindre la «classe moyenne» et permanence de la précarité dans les services publics, le mode de vie des personnes a été impacté de différentes manières et, parfois, traumatique.

mobilité sociale; périphérie; São Paulo; mode de vie; projet de vie

RESUMEN

Con base en una investigación multi-métodos en dos distritos de la periferia de São Paulo, este artículo analiza el proceso de movilidad social observado en Brasil en la primera década y media de este siglo. El texto tiene dos objetivos: i) comprender las relaciones entre cambios en el estándar de vida, de carácter más cuantitativo, y en el modo de vida, con características cualitativas; y ii) analizar estos cambios en relación al proyecto de movilidad de las diferentes generaciones de trabajadores de las periferias paulistanas. Argumento que, aunque sea posible constatar mejorías significativas en el estándar de vida, hay una gran heterogeneidad y frustración en los procesos de movilidad social en torno de tres cuestiones: a) aumento de ingresos que, aunque significativos, no llegan a alcanzar los estándares fordistas de décadas pasadas; b) mejorías casi siempre inestables en los rendimientos de trabajadores y emprendedores; c) frustración de una movilidad más intensa a partir del alcance de la enseñanza superior. Delante de un contexto individualizador con pérdidas de lazos significativos en el ámbito familiar y vecinal, promesas no cumplidas de llegada a la “clase media” y permanencia de precariedad en los servicios públicos, el modo de vida de las personas fue impactado de formas diversas y, a veces, traumática.

movilidad social; periferia; São Paulo; modo de vida; proyecto de vida

INTRODUÇÃO

Dois objetivos guiam esta pesquisa. Primeiramente, busca-se explorar as relações e contradições entre o padrão e o modo de vida dos moradores das periferias urbanas em torno do processo de mobilidade social que ocorreu no Brasil entre meados dos anos 2000 e a primeira metade da década de 2010. Em segundo lugar, pretende-se analisar este processo em relação ao projeto de mobilidade das diferentes gerações de trabalhadores periféricos. Ao oferecer um olhar multimetodológico integrado, o artigo avança na discussão em torno da mobilidade social recente, suas possibilidades, limites e frustrações e traz subsídios para acompanhar as mudanças do projeto de ascensão social entre moradores das periferias urbanas.

Conforme definido por Thompson:

o termo “padrão” nos leva de informações suscetíveis de medição estatística (salários ou artigos de consumo) para aquelas satisfações algumas vezes descritas como “imponderáveis” pelos estatísticos. Da alimentação passamos à moradia, da moradia à saúde, da saúde à vida familiar, e desse ponto ao ócio, à disciplina no trabalho, à educação e lazer, à intensidade do trabalho, e assim por diante. Do padrão de vida passamos ao modo de vida. Mas eles não significam a mesma coisa. O primeiro é uma medida de quantidades; o segundo, uma descrição (e, às vezes, uma avaliação) de qualidades. Enquanto as evidências estatísticas são apropriadas para o primeiro caso, precisamos confiar em “dados literários” para o segundo. (Thompson, 1966THOMPSON, Edward P. (1966), The making of the English working class. New York, Vintage Book.:211)

Falar de modo de vida , portanto, significa compreender como as próprias pessoas constroem relações e significados a partir de suas próprias experiências . Ao priorizar a dimensão da experiência, o que se busca fazer, então, é compreender as estruturas das relações em termos de como estas são “vividas” e “experimentadas”, e como os sujeitos “as definem e a elas respondem” (Hall, 2003HALL, Stuart. (2003), “Estudos culturais: dois paradigmas”, in Dá diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG.:143). A análise das experiências em torno de mudanças no modo de vida requer, portanto, um olhar para além dos aspectos individuais em direção a questões coletivas e intersubjetivas.

O debate a respeito dos sentidos e da profundidade da mobilidade social no Brasil no começo do século XXI esteve bastante focado em temas relacionados ao padrão de vida e teve início com a publicação dos trabalhos de Marcelo Neri (2008NERI, Marcelo. (2008), A nova classe média. Rio de Janeiro, FGV/IBRE/CPS.; 2010), que definiu esse grupo ascendente como uma “nova classe média”. A análise de Neri partia de critérios utilizados por pesquisas de mercado e que definem as classes em torno de cinco faixas de renda e capacidade de consumo identificados por letras de A a E. O autor apresenta dados que demonstram uma forte expansão, ao longo da década de 2000, no que chama de “classe C” – formada por famílias com renda per capita entre R$ 214,00 e R$ 923,00, em valores de 2008 – devido ao forte ingresso de pessoas que saíram das classes D e E, as mais baixas nesse espectro. Nas palavras do autor, “a classe C aufere, em média, a renda média da sociedade, ou seja, é a classe média em sentido estatístico”, e seria, por isso, “a imagem mais próxima da média da sociedade brasileira” (Neri, 2010NERI, Marcelo. (2010), A nova classe média: o lado brilhante dos pobres. Rio de Janeiro, FGV/CPS.:29).

A definição de Neri foi duramente criticada por economistas e sociólogos ao longo dos anos seguintes. Uma primeira linha de crítica focava no conceito de classes sociais utilizado por Neri, alegando que seria necessário incorporar outros elementos a esta definição. Para esses autores, a explicação unicamente baseada nos rendimentos “não dá conta de entendermos as variáveis que integram as condições culturais, religiosas, sociais e econômicas desse público” (Paula, 2013PAULA, Marilene de. (2013), “A Nova Classe Trabalhadora e o Neopentecostalismo”. In BARTELT, Dawid (ed.), A ‘nova classe média’ no Brasil como conceito e projeto político. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll.:126). Sendo assim, enfatizou-se que “a estrutura e cultura de classe não podem ser reduzidas à renda”, pois “a estratificação social deve ser vista de forma multidimensional, incorporando elementos como educação, cultura de classe, ocupação, posição na estrutura produtiva” (Ribeiro, 2014RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2014), “Mobilidade e Estrutura de Classes no Brasil Contemporâneo”. Sociologias, vol. 16, n. 37, pp. 178–217.:184).

A essa crítica de cunho mais teórico, somaram-se outas que buscaram trazer dados empíricos para contestar a ideia de que o Brasil estaria se tornando um país de classe média. Nesse sentido, Pochmann (2012POCHMANN, Márcio. (2012), Nova Classe Média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo, Boitempo.:20) destaca que, na década de 2000, 95% das vagas de emprego abertas tinham remuneração mensal de até 1,5 salário mínimo. Desse modo, no entendimento do autor, embora essa parcela da população “não seja mais pobre, tampouco pode ser considerada classe média” (Pochmann, 2012POCHMANN, Márcio. (2012), Nova Classe Média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo, Boitempo.:30).

Adentrando nos estudos que abordaram o tema do ponto de vista da estrutura de estratificação social, Scalon e Salata (2012)SCALON, Celi; SALATA, André. (2012), “Uma nova classe média no Brasil da última década? O debate a partir da perspectiva sociológica”. Revista Sociedade e Estado, vol. 27, n. 2, pp. 387–407. afirmam que “a participação relativa das classes na estrutura social não parece sofrer grandes modificações substantivas entre 2002 e 2009” (Scalon e Salata, 2012SCALON, Celi; SALATA, André. (2012), “Uma nova classe média no Brasil da última década? O debate a partir da perspectiva sociológica”. Revista Sociedade e Estado, vol. 27, n. 2, pp. 387–407.:396). Ou seja, diferentemente do que foi apresentado por Neri em termos de renda, ao analisarmos os dados relativos a categorias ocupacionais, poucas mudanças concretas podem ser notadas. Contudo, quase todos os grupos apresentaram aumento nos seus rendimentos no período analisado, com destaque para aqueles localizados na metade inferior da estrutura social. Com isso, em termos de rendimentos “uma parcela da classe trabalhadora” se aproximou “dos setores mais baixos das classes médias.” (Scalon e Salata, 2012SCALON, Celi; SALATA, André. (2012), “Uma nova classe média no Brasil da última década? O debate a partir da perspectiva sociológica”. Revista Sociedade e Estado, vol. 27, n. 2, pp. 387–407.:404) 1 1 . Cumpre ressaltar que essa redução relativa da desigualdade social ocorreu apenas entre os setores mais baixos e intermediário da distribuição de renda, mas teria permanecido em patamares relativamente estáveis quando se incluem dados das camadas mais altas da sociedade brasileira (Medeiros, Souza e Castro, 2015a e 2015b; Medeiros, Galvão e Nazareno, 2015). .

Do mesmo modo, Cardoso e Préteceille (2017)CARDOSO, Adalberto; PRÉTECEILLE, Edmond. (2017), “Classes Médias no Brasil: Do que se Trata? Qual seu Tamanho? Como Vem Mudando?” Dados, vol 60, n. 4, pp. 977–1023., apontam, a partir de estudos baseados em um esquema de estratificação social adotada na França, que a classe C, medida em termos de renda seria bem mais “popular” do que “média”. Desse modo, as famílias alçadas a essa classe teriam alcançado tal patamar de renda graças ou ao acúmulo das rendas das pessoas ocupadas na família, ou a um salário de não pobres, pouco acima de R$2.000 ou pouco abaixo de três salários mínimos em valores de 2014. Logo, na visão dos autores, seria “um abuso de linguagem caracterizá-los como ‘nova classe média’” (Cardoso e Préteceille, 2017CARDOSO, Adalberto; PRÉTECEILLE, Edmond. (2017), “Classes Médias no Brasil: Do que se Trata? Qual seu Tamanho? Como Vem Mudando?” Dados, vol 60, n. 4, pp. 977–1023.:998).

Complementarmente, Salata (2015)SALATA, André. (2015), “Quem é Classe Média no Brasil? Um Estudo sobre Identidades de Classe”. DADOS - Revista de Ciências Sociais, vol. 58, n. 1, pp. 111–149. traça um panorama a respeito do que chama de “identidade de classe”. Por meio de um survey nacional, o autor analisa como se dá o processo de autoidentificação das pessoas em termos de classes sociais. De acordo com seus dados, dentro da chamada “classe C” apenas 35% das pessoas se identificam como “classe média, 24% como “classe média baixa”, 23% como “classe trabalhadora” e 15% como “classe baixa/pobre”. Assim, a chamada “nova classe média brasileira” não se perceberia como integrante da classe média ou reivindicaria pertencer a essa classe uma vez que não há uma identidade de classe clara para esse perfil socioeconômico intermediário.

É possível afirmar, portanto, que esses estudos e a própria realidade brasileira de crise e queda no nível de renda após 2015 superaram em grande medida a polêmica em torno da ideia de que estaria se formando no Brasil uma “nova classe média” demonstrando os diversos equívocos trazidos por essa categorização 2 2 . Além dos autores citados, cumpre destacar análises de cunho qualitativos como os realizados por Souza (2012) e Braga (2012, 2014) que também se contrapõem à ideia de “nova classe média”. Esses autores defendem, respectivamente, as categorias de “batalhadores” e “precariado” como forma de classificar esse setor ascendente da sociedade brasileira. Para uma análise sistemática dessa bibliografia ver Fontes (2018b). . Esse estudo situa-se, portanto, em um momento pós-nova classe média, ou seja, não pretende adentrar nesse debate, mas deve levá-lo em consideração, tendo em vista que, no momento em que a pesquisa de campo começou a ser realizada, no início de 2015, o debate público estava bastante influenciado por essa temática, com reflexos inclusive na autopercepção dos interlocutores da pesquisa, como será explorado mais adiante.

De todo modo, é possível afirmar que se formou um consenso na literatura que indica que o crescimento econômico observado naquele período veio acompanhado de um aumento na formalização do emprego, com ganhos reais nos salários, ampliação do acesso ao crédito pelos mais pobres e aumento da renda de ocupações por conta própria como resultado do aumento da massa salarial. Esses fatores somados se traduziram em uma “inequívoca expansão da capacidade de consumo de parcelas expressivas da população brasileira” (Cardoso e Préteceille, 2017CARDOSO, Adalberto; PRÉTECEILLE, Edmond. (2017), “Classes Médias no Brasil: Do que se Trata? Qual seu Tamanho? Como Vem Mudando?” Dados, vol 60, n. 4, pp. 977–1023.:985).

Não foi apenas no nível de renda, contudo, que os mais pobres obtiveram ganhos relativos. Souza e Carvalhaes (2014)SOUZA, Pedro H. G. F.; CARVALHAES, Flávio. (2014), “Estrutura de Classes, Educação e Queda da Desiguladade de Renda (2002-2011)”. DADOS - Revista de Ciências Sociais, vol. 57, n. 1, pp. 101–128. apontam que, entre 2002 e 2011, houve uma expressiva redução da população com menos anos de estudo e um aumento daqueles que atingiram níveis mais elevados de escolaridade. Por outro lado, a maior homogeneização da força de trabalho em termos de tempo de estudo provocou uma queda no rendimento médio dos mais escolarizados. Complementarmente, Ribeiro (2014)RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2014), “Mobilidade e Estrutura de Classes no Brasil Contemporâneo”. Sociologias, vol. 16, n. 37, pp. 178–217. destaca a permanência de uma “barreira” para a entrada de pessoas vindas de famílias mais pobres nas profissões de maior prestígio e maiores salários, isto é, aquelas classificadas como “profissionais e administradores” nos esquemas de estratificação social. Ou seja, o aumento da escolaridade dos mais pobres não necessariamente se refletiu de forma direta em melhores salários ou acesso a ocupações mais prestigiadas socialmente.

Uma primeira lacuna na bibliografia até aqui mobilizada está no fato de esses autores, com exceção de Ribeiro (2014)RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2014), “Mobilidade e Estrutura de Classes no Brasil Contemporâneo”. Sociologias, vol. 16, n. 37, pp. 178–217., abordarem mudanças estruturais em termos de composição dos grupos e categorias sócio-ocupacionais que conformam a sociedade brasileira. Os textos não tratam, portanto, dos níveis de mobilidade social propriamente observados, uma vez que não trabalham com dados que lhes permitam identificar a origem e o destino de classe dos indivíduos ou de seus familiares mais imediatos (Ribeiro, 2007RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2007), Estrutura de classe e mobilidade social no Brasil. São Paulo, Edusc.). Além disso, a literatura que se dedicou ao tema, teve como foco apenas as mudanças no padrão de vida daqueles trabalhadores que tiveram algum nível de mobilidade social nas últimas décadas. Há, portanto, uma segunda lacuna no que se refere a dados relativos ao modo de vida desses sujeitos bem como aos projetos que articulam ao longo de suas vidas em torno dos processos até aqui descritos.

O sujeito de qualquer projeto de mobilidade social é o indivíduo. Contudo, esse projeto está também relacionado com os círculos sociais em que o sujeito participa, fazendo referência, portanto, a um ethos , um estilo de vida e uma organização das emoções e não apenas à “visão de mundo”, uma vez que “os projetos são elaborados e construídos em função de experiências socioculturais, de um código, de vivências e interações interpretadas” (Velho, 1997VELHO, Gilberto (1997), Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.:28). Desse modo, o projeto não é puramente interno, subjetivo, mas elaborado dentro de um “campo de possibilidades”, que é constituído a partir e de circunstâncias históricas e culturais.

As periferias de São Paulo foram majoritariamente formadas ao longo da segunda metade do século XX principalmente por migrantes vindos de áreas pobres e rurais do Brasil que buscavam “melhorar de vida” na capital paulista. Nesse contexto de migração rural-urbana, a família foi reforçada como lugar por excelência de elaboração dos modos de vida, condicionados pelos padrões de vida, e se configurava como contraponto “às tendências individualizadoras dominantes na vida urbana” e como “sede de uma experiência coletiva” (Sader, 1988SADER, Eder. (1988), Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro, Paz e Terra.:121; Durham, 1978DURHAM, Eunice Ribeiro. (1978), A caminho da cidade. São Paulo, Perspectiva.).

Desse modo, o projeto de mobilidade social que emergia era essencialmente familiar e, portanto, coletivo. O caminho sonhado para os filhos passava pela escolarização de nível médio ou superior e a passagem para o trabalho não manual ou manual de alta qualificação, ou ainda pela abertura de um “negócio” (Durham, 1988DURHAM, Eunice Ribeiro. (1988), A sociedade vista da periferia. In L. KOWARICK (ed.), As lutas sociais e a cidade: São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro, Paz e Terra.). Esse projeto de mobilidade tinha na casa própria, em geral autoconstruída, seu símbolo maior de segurança e prosperidade. Complementarmente, a face social da melhoria de vida concretizada na casa se dava pelo acesso aos benefícios urbanos por meio da urbanização do bairro e da conquista de direitos em áreas como saúde, educação, transporte coletivo e benfeitorias como iluminação e pavimentação (Durham, 1988DURHAM, Eunice Ribeiro. (1988), A sociedade vista da periferia. In L. KOWARICK (ed.), As lutas sociais e a cidade: São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro, Paz e Terra.:197). Assim, para realizar esse projeto, havia a expectativa de que o modo de vida condensado na dinâmica familiar e vicinal fosse o alicerce a ser permanentemente reforçado.

Feita essa análise da literatura pertinente que abordou os temas aqui tratados, cumpre realizar alguns apontamentos de caráter metodológico. O material que embasa as análises aqui expostas foi colhido por meio de uma pesquisa de campo na periferia de São Paulo, mais especificamente nos distritos de Jardim Ângela, na zona sul, e Brasilândia, na zona norte 3 3 . Os distritos foram escolhidos para a pesquisa a partir de uma comparação de nível de renda dos microdados dos Censos de 2000 e 2010. Ambos os distritos apresentaram uma entrada relativamente alta de famílias no extrato intermediário de renda conforme critérios estabelecidos pelo governo federal (SAE, 2012). De acordo com o critério adotado, esse setor intermediário teria uma renda familiar per capita entre R$ 291 e R$ 1019 em valores da época. Para mais detalhes ver Fontes (2018b). . Nessas regiões realizo, desde 2015, uma pesquisa que combina uma estratégia etnográfica – observação participante, conversas informais e entrevistas em profundidade – com dados quantitativos.

Na coleta de dados quantitativos, foram realizadas entrevistas em 391 residências, no primeiro semestre de 2015, divididas entre os dois distritos mencionados 4 4 . Agradeço a Mário Monteiro, pelo auxílio estatístico no recorte e seleção da amostra, bem como a Antonia Malta Campos, Juliana Borre Souza, David da Silva Junior e Fabiano Santos que contribuíram na aplicação dos questionários. Pessoalmente apliquei cerca de metade dos questionários e a outra metade foi aplicada pelos pesquisadores citados. Agradeço também a Alba Zaluar ( in memoriam) e ao CNPq e à FAPERJ que, por meio do projeto “Sociabilidade, civilidade e cidadania em três cidades brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre”, financiou a realização desse survey . . A escolha dos locais de aplicação do questionário foi feita com base nos dados dos Censos de 2000 e 2010, que permitiram localizar com mais precisão os setores censitários onde ocorreu, na média, um incremento no número de pessoas na faixa intermediária de renda. Dentro desses setores, foram selecionadas ruas aleatoriamente e nessas ruas foram entrevistadas uma pessoa de uma a cada dez residências.

A combinação de métodos quantitativos e qualitativos tem o objetivo de integrá-los de forma que cada método possa trazer suas contribuições às questões propostas em ciclos contínuos de descoberta e refinamento (Seawright, 2016SEAWRIGHT, Jason. (2016), Multi-Method Social Science: Combining Qualitative and Quantitative Tools. UK: Cambridge University Press.). Uma vez que o foco da pesquisa está na experiência dos sujeitos, a prevalência da análise será dos dados qualitativos. Os dados quantitativos servirão ou para apresentar um quadro descritivo ou para complementar as informações qualitativas expostas. Não se pretende, portanto, “confirmar” as hipóteses qualitativas por meio de técnicas de correlação ou regressão estatística (Paranhos et al., 2016PARANHOS, Ranulfo; FIGUEIREDO FILHO, Dalson Britto; ROCHA, Enivaldo Carvalho da; SILVA JÚNIOR, José Alexandre da; FREITAS, Diego. (2016), “Uma introdução aos métodos mistos”. Sociologias, vol. 18, n. 42, pp. 384–411.). A combinação de métodos permite desenvolver com mais propriedade o que Burawoy (1998)BURAWOY, Michael. (1998), “The extended case method”. Sociological Theory. Vol. 16, Issue 1, pp. 4–33. chama de “método do caso estendido”, que busca aplicar a ciência reflexiva à etnografia a fim de extrair o geral do particular e conectar o presente com o passado em antecipação do futuro a partir da teoria existente.

O artigo se divide em mais quatro seções para além desta introdução. Na segunda parte são apresentados os dados quantitativos, com destaque para os processos de mobilidade intergeracionais. Na terceira, a análise qualitativa é desenvolvida, apresentando-se alguns casos encontrados ao longo da pesquisa de campo, amparados nos dados do survey e que permitirão também realizar uma análise da dinâmica dos processos de mobilidade intrageracionais. Na quarta seção, são acrescentados elementos relativos ao modo de vida dos sujeitos pesquisados, analisando possíveis contradições que o processo de mobilidade social recente ensejou nas periferias urbanas no Brasil. A última seção está reservada para as considerações finais.

MUDANÇAS NO PADRÃO DE VIDA DAS CLASSES POPULARES NAS PERIFERIAS DE SÃO PAULO

Os dados que serão apresentados a seguir foram extraídos do survey mencionado acima, aplicado no primeiro semestre de 2015 5 5 . Nesta seção, para cada tabela apresentada trarei o número de respondentes considerado (N), uma vez que este pode variar a depender do número de respostas válidas àquela determinada questão. . Seguindo a literatura sobre o tema e o projeto de mobilidade social exposto acima, serão explorados os indicadores de ocupação, escolaridade e renda. Com isso, pretende-se analisar as hipóteses a respeito da melhoria do padrão de vida e analisar em que medida houve mobilidade social intergeracional do ponto de vista das ocupações e do nível de escolaridade nas periferias de São Paulo. Os dados serão apresentados de forma agregada e não por região, pois as diferenças entre os bairros são marginais e a agregação nos permite ampliar o tamanho da amostra selecionada.

Antes, no entanto, para efeitos de caracterização da amostra, é preciso apontar que ela foi respondida por 42,9% de homens e 56,9% de mulheres. Desses, 39,5% declararam-se como brancos, 19,9% como pretos e 37,5% como pardos, os demais se declararam como amarelos, indígenas ou preferiram não se identificar. Com relação à religião, 52% de disseram católicos, 24% evangélicos pentecostais, 7% evangélicos não pentecostais, 8% se declararam ateus ou sem religião, outras religiões somam 9,5% da amostra.

Apenas para ilustrar a expansão da capacidade de consumo que ocorreu nas últimas décadas nas periferias urbanas, o survey apontou que os bens de consumo duráveis, como rádio, geladeira, televisão, forno elétrico ou de micro-ondas, máquinas de lavar roupa, telefones fixos e telefones celulares, já estavam presentes em mais de 80% dos domicílios pesquisados. Por outro lado, pouco mais da metade dos entrevistados afirmou ter um automóvel na família; em mais de 70% das residências havia pelo menos um computador; a TV a cabo, por sua vez, estava presente em pouco menos de 50% das casas e a internet de banda larga estava em pouco mais de 60% das residências.

No momento em que as entrevistas foram realizadas, 63,2% dos entrevistados disseram estar exercendo algum tipo de atividade remunerada. Pouco mais de 15% eram aposentados ou pensionistas, 2,6% estavam apenas estudando, 1,5% estavam afastados por motivos de saúde e 5,6% eram responsáveis apenas pelos afazeres domésticos. Os que estavam sem trabalho eram 11% – apesar disso, apenas 8,5% disseram ter procurado emprego nos últimos 30 dias, medida oficial de desemprego 6 6 . Importante lembrar que, no momento da pesquisa – primeiro semestre de 2015 –, a crise econômica estava se iniciando, o que traz implicações específicas que serão aprofundadas mais adiante. .

Com relação ao perfil sócio-ocupacional dos moradores dessas regiões, diversos métodos de estratificação social podem ser adotados, quase todos com bons argumentos para defendê-los ou criticá-los perante os demais 7 7 . Para uma análise da evolução históricas das teorias sobre classe e estratificação social ver Crompton (1998). . O método que será adotado neste texto foi desenvolvido por Erikson, Goldthorpe e Portocarero (1979) e refinado em estudos posteriores (Erickson e Goldthorpe, 1992ERICKSON, Robert; GOLDTHORPE, John. (1992), “The CASMIN Project and the American Dream”. European Sociological Review, vol. 8, pp. 283–306.), comumente conhecido como EGP, iniciais dos nomes dos autores 8 8 . Esse método também é conhecido como esquema CASMIN, sigla para Comparative Analysis of Social Mobility in Industrial Nations (Erickson e Goldthorpe, 1992). . O esquema EGP, de inspiração weberiana, separa os indivíduos em 11 categorias ocupacionais a partir de informações não apenas da ocupação do indivíduo, mas também do tipo de relação de trabalho a que ele está submetido. Para facilitar a análise dos dados, as 11 categorias serão reagrupadas em 6, conforme apresentado na Tabela 1 . A escolha do método EGP deve-se principalmente ao fato de que se trata de um modelo largamente utilizado em pesquisas nacionais e internacionais, o que possibilita a comparação dos resultados encontrados. Ainda que apresente alguns limites para analisarmos a realidade brasileira, o método EGP tem como vantagens apresentar menos categorias e, portanto, ser mais flexível para amostras de tamanhos menores, e ter sua operacionalização simplificada (Carvalhaes, 2015CARVALHAES, Flávio. (2015), “A tipologia ocupacional Erikson-Goldthorpe-Portocarero (EGP): uma avaliação analítica e empírica”. Revista Sociedade e Estado, vol. 30, n. 3, pp. 673–703.).

Tabela 1
: Esquema de classes EGP

A Tabela 2 foi obtida a partir do cruzamento dos dados relativos à ocupação dos entrevistados, no momento da pesquisa, com a de seus pais 9 9 . Optei por utilizar a ocupação do pai do entrevistado e não da mãe pelo fato de haver uma grande quantidade de mães que não exerciam atividades remuneradas – 42% dos respondentes –, o que reduziria significativamente a quantidade de casos que seriam analisados. e, com isso, trata do sentido e do alcance da mobilidade intergeracional nas regiões pesquisadas. Por mobilidade intergeracional entende-se a mudança de categoria sócio-ocupacional entre pais e filhos, podendo ser ascendente ou descendente.

Tabela 2
: Mobilidade social intergeracional

Entre os entrevistados, é possível notar uma clara preponderância dos trabalhadores na categoria “não manuais de rotina”, totalizando 45% dos que estavam trabalhando no momento da entrevista, o que reflete o crescimento do setor terciário da economia de São Paulo e a redução da importância do setor industrial, em especial para os trabalhadores das periferias. Há que se ressaltar, ainda, a permanência de uma parcela significativa de “trabalhadores manuais não qualificados” (27,1%), composto principalmente por trabalhadores domésticos, ou que desempenham atividades em áreas como limpeza ou ocupam funções elementares no ramo da construção civil. Além da já esperada ausência de trabalhadores rurais pela característica das regiões, destaca-se a quase inexistência de trabalhadores que se enquadrem na categoria de “profissionais e administradores 10 10 . Entre todos os entrevistados, apenas uma pessoa se enquadrava nessa categoria de “profissionais e administradores”. Trata-se de um dentista de 35 anos, mas ainda em início de carreira, com ganhos mensais de apenas R$ 1500,00. Esse caso será excluído das análises a seguir por não ser suficientemente representativo. . Esse dado reforça a hipótese da permanência de “barreiras” para a entrada nessa camada social, ainda que o acesso à educação de nível superior tenha aumentado (Ribeiro, 2014RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2014), “Mobilidade e Estrutura de Classes no Brasil Contemporâneo”. Sociologias, vol. 16, n. 37, pp. 178–217.).

Com relação à ocupação dos pais, é preciso destacar a existência de uma grande parcela de trabalhadores rurais, que somam 27,5% do total de respondentes, explicado pelo passado rural de muitos moradores das periferias de São Paulo. Em seguida, destacam-se os “trabalhadores manuais qualificados”, com 25,8% do total e que traduzem o passado de trabalho industrial de boa parte dos moradores dessas regiões. Do mesmo modo, 24% dos pais exerceriam profissões enquadradas como “não manuais de rotina”. Cerca de 10,5% eram “trabalhadores manuais não qualificados” e 12,2% “pequenos proprietários”

As células destacadas na diagonal da Tabela 2 sinalizam o percentual de indivíduos que permaneceu na mesma categoria sócio-ocupacional que seu pai, ou seja, aqueles que não experimentaram nenhum tipo de mobilidade social intergeracional. Os percentuais que estão acima e à direita desta diagonal demarcada representam os indivíduos que ascenderam e os que estão abaixo e à esquerda tiveram uma mobilidade social descendente. Grosso modo, é possível notar que o sentido geral da mobilidade social intergeracional é fortemente ascendente: 59% dos entrevistados tiveram uma mobilidade ascendente, 21,4% tiveram uma queda na escala e 19,7% mantiveram-se na mesma categoria profissional dos pais. Esse último grupo concentra-se sobretudo na camada dos “trabalhadores não manuais de rotina”, cuja única possibilidade de ascensão em termos profissionais seria a categoria dos “profissionais e administradores”, e onde há uma tendência maior a “imobilidade social” (Ribeiro, 2014RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2014), “Mobilidade e Estrutura de Classes no Brasil Contemporâneo”. Sociologias, vol. 16, n. 37, pp. 178–217.).

Como venho argumentando em diversos outros trabalhos (Fontes, 2018aFONTES, Leonardo. (2018a), “Do direito à cidade ao direito à periferia: transformações na luta pela cidadania nas margens da cidade”. Plural: Revista de Ciências Sociais, vol. 25, n. 2, pp. 63-89.; 2018bFONTES, Leonardo. (2018b), “O direito à periferia: experiências de mobilidade social e luta por cidadania entre trabalhadores periféricos de São Paulo”. Tese (doutorado em Sociologia). Instituto de Estudo Sociais de Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; 2020aFONTES, Leonardo. (2020a), “Beyond the Institutional Order: Culture and the Formation of New Political Subjects in the Peripheries of São Paulo”. Latin American Perspectives, vol. 47, n. 5, pp. 79-93.), uma variável relevante para estudarmos as mudanças pelas quais passaram as periferias urbanas nas últimas décadas está na geração a que os sujeitos pertencem, uma vez que isso traz implicações com relação às condições estruturais a que eles estão submetidos. O número de anos que duraria uma geração ou em que momento uma pessoa deixa de pertencer a uma geração para ser parte de outra é bastante arbitrário. Por isso, para evitar confusões e ambiguidades, quando estiver abordando dados quantitativos, trabalharei com a noção coortes de idade e não com a ideia de geração, que será usada quando a abordagem for qualitativa 11 11 . Ao analisar os dados qualitativos, filio-me ao entendimento de Mannheim (1952) que propõe considerar a contemporaneidade um dado não apenas cronológico, mas definido principalmente a partir da existência de influências similares que afetam as experiências dos sujeitos. Desse modo, o “fenômeno sociológico das gerações” se fundamenta no ritmo biológico de nascimento e morte, mas de modo algum é dedutível ou está totalmente implicado nele. . Optei por dividir os grupos em três coortes que abrangem as faixas de “até 30 anos” (nascido após 1985), “entre 30 e 50 anos” (nascidos entre 1965 e 1985), e “mais de 50 anos” (nascidos antes de 1965), devido a minha própria percepção das conexões geracionais que encontrei durante a pesquisa de campo.

Para os membros da primeira geração de moradores das periferias de São Paulo, a experiência da migração é mais frequente. Entre eles, apenas 23,4% nasceram em São Paulo, taxa que sobe para 54,1% entre os que têm entre 30 e 50 anos e para 63,2% entre quem tem menos de 30.

Com relação à ocupação, é possível notar que, entre os mais velhos, é mais comum o exercício de trabalhos ligados à atividade manual e, especialmente, ter um negócio próprio. Entres os que têm mais de 50 anos, 18,5% possuíam negócio próprio, entre os que têm entre 30 e 50 anos, 8,6% e, entre os mais jovens, com menos de 30 anos, 2,4%. Por outro lado, entre os mais jovens, cresce progressivamente o número de pessoas em ocupações não manuais de rotina. Enquanto entre os que têm mais de 50 anos e seguiam trabalhando 37% atuam neste tipo de ocupação, entre os que têm entre 30 e 50 anos a taxa sobe para 43,8% e entre os que têm menos de 30, para 64,3%. Os dados estão detalhados na Tabela 3 .

Tabela 3
: Categoriais ocupacionais dos entrevistados X categoria ocupacional do pai dos entrevistados por coorte de idade

A Tabela 3 também nos permite comparar por coorte de idade o nível de mobilidade social. A mobilidade social é mais intensa entre os mais velhos, nessa coorte, 72,8% das pessoas realizaram um movimento de mobilidade ascendente quando se compara a ocupação atual com a de seu pai e apenas 14,8% tiveram uma mobilidade descendente. Isso se deve sobretudo ao processo de migração rural-urbana vivenciada por este grupo uma vez que, entre eles, 44,4% dos pais eram trabalhadores rurais. Entre as outras coortes também há um movimento ascendente, mas de menor intensidade. Na coorte intermediária, 54,3% tiveram uma mobilidade social ascendente, 21,9% mantiveram-se na mesma categoria que seus pais e 23,8% tiveram uma queda na escala de estratificação social. Já na coorte mais jovem, o percentual dos que ascenderam é de 45,2%, os que se mantiveram na mesma categoria ocupacional que os pais foram de 28,6% e os que tiveram uma queda foram de 26,2%.

É preciso, no entanto, relativizar o que significa mobilidade social nesse contexto uma vez que o esquema EGP não se propõem a hierarquizar as categorias profissionais. Contudo, as classes apresentam-se significativamente hierarquizadas conforme as escalas de status ocupacional quando analisado o valor médio das profissões de cada grupo (Machado, 2015MACHADO, Weverton. (2015), “Status como distância social: uma análise empírica para o Brasil popular”. 39º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG.). Além disso, no que se refere especificamente à mobilidade social, há uma polêmica a respeito do tipo de padrão de mobilidade social observado em sociedades industriais. De um lado, autores como Erickson e Golthorpe (1992)ERICKSON, Robert; GOLDTHORPE, John. (1992), “The CASMIN Project and the American Dream”. European Sociological Review, vol. 8, pp. 283–306. argumentam em favor de um padrão topológico de associação, marcado por três tipos de barreiras à mobilidade social: a) a hierarquia entre alguns grupos de classe, b) a propensão a imobilidade e c) divisão entre setores rural e urbano e a propriedade ou não dos meios de produção. De outro lado, autores como Ganzeboom, Luijkx e Treiman (1989), Hout (1988)HOUT, Michael. (1988), “More Universalism, Less Structural Mobility: The American Occupational Structure in the 1980s”. American Journal of Sociology, vol. 93, n. 6, pp. 1358–1400., Szelényi (1998)SZELÉNYI, Szonja. (1998), Equality by Design: The Great Experiment in Destratification in Socialist. Stanford: Stanford University Press. e Torche (2005)TORCHE, Florencia (2005), “Unequal But Fluid: Social Mobility in Chile in Comparative Perspective”. American Sociological Review, vol. 70, n. 3, pp. 422–450. argumentam em favor de um modelo que explore as possíveis hierarquias entre todas as classes.

Para o caso concreto brasileiro, Ribeiro (2014)RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2014), “Mobilidade e Estrutura de Classes no Brasil Contemporâneo”. Sociologias, vol. 16, n. 37, pp. 178–217. aponta, por meio de diversos testes estatísticos, que um padrão hierárquico seria mais adequado do que um padrão topológico. Dessa forma, a hierarquia entre todas as classes utilizadas no padrão EGP explicaria melhor o padrão de mobilidade intergeracional no Brasil. Além disso, do ponto de vista normativo dos sujeitos analisados, a busca de ocupações não-manuais ou a possibilidade de ter um negócio próprio eram centrais para o projeto de mobilidade social desenvolvido pela primeira geração de moradores das periferias urbanas apresentado na seção anterior, justificando, assim, o uso dessa hierarquização para o caso concreto em análise.

O cruzamento da categoria profissional com o nível de renda e escolaridade complexifica o quadro. Ao analisarmos a dispersão da renda bruta declarada das pessoas pelas categorias profissionais, apresentada no Gráfico 1 , é possível observar que, na média, a renda dos trabalhadores manuais qualificados (R$ 1.829,19) é maior do que a dos pequenos proprietários (R$ 1.734,78) e do que a dos trabalhadores não manuais de rotina (R$ 1.615,80).

Gráfico 1
: Dispersão Renda x Categoria Profissional

Por outro lado, os pequenos proprietários são os que apresentam maior dispersão em termos de rendimento, isso porque se trata de uma categoria essencialmente heterogênea, podendo abranger desde trabalhadores autônomos como, por exemplo, vendedores ambulantes, até proprietários de pequenos empreendimentos comerciais de relativo sucesso. Os “trabalhadores não manuais de rotina”, ainda que apresentem seus quartis pouco dispersos, destacam-se pela existência de diversos casos discrepantes, com renda bastante acima da média. O grupo de “trabalhadores manuais não qualificados” é a categoria mais homogênea entre todas, apresentando menor nível médio de renda e menor dispersão da renda. Assim, para esse conjunto de dados, é possível afirmar que não há necessariamente uma correlação direta entre as hierarquias ocupacionais estabelecidas pelo padrão EGP e o nível de renda, o que aponta uma possível contradição no projeto de mobilidade social da primeira geração, uma vez que ocupar uma profissão não-manual não significa necessariamente conseguir melhores salários e, portanto, um melhor padrão de vida.

Com relação à escolaridade, para facilitar uma comparação mais imediata com o que foi apresentado até aqui, a Tabela 4 apresenta o cruzamento das profissões com a escolaridade do entrevistado. Para a divisão por escolaridade foi utilizado o ciclo escolar iniciado e não o concluído. Essa divisão irá facilitar a comparação com a escolaridade dos pais, devido à forma como os dados foram coletados e tabulados. Excluí das tabelas os indivíduos sem escolaridade alguma bem como o único caso já mencionado de “profissional e administrador”, por serem pouco representativos dentro da amostra.

Tabela 4
: Profissões x Escolaridade

Entre aqueles que cursaram apenas o ensino fundamental, o acesso a profissões de maior prestígio social tende a ser mais difícil. Cerca de 40% dos que possuem apenas ensino fundamental e 26,5% dos que possuem ensino médio trabalham em ocupações classificadas como “manuais não qualificados”. No entanto, ingressar no ensino médio ou até mesmo no ensino superior não significa um acesso automático aos postos de trabalho considerados mais altos, como era almejado pelos trabalhadores da primeira geração. Ainda que cerca de metade dos que possuem ensino médio e mais de 65% dos que ao menos iniciaram o ensino superior concentram-se em ocupações “não manuais de rotina”, ainda encontramos 42% dos que ingressaram no ensino médio e 22,6% dos que ao menos iniciaram o ensino superior trabalhando em profissões “manuais”. Desse modo, ainda que algumas associações possam ser feitas e a escolarização desempenhe um papel crucial no processo de mobilidade social, não é possível apontar uma relação unidirecional de causa e efeito entre escolaridade e ocupação no caso em análise.

Por outro lado, há uma relação bem mais clara entre nível de escolaridade e de renda, conforme mostra o Gráfico 2 , que apresenta a dispersão dos rendimentos por níveis de escolaridade. No entanto, o bônus de escolaridade sobre a renda vem diminuindo nos últimos anos no Brasil (Souza e Carvalhaes, 2014SOUZA, Pedro H. G. F.; CARVALHAES, Flávio. (2014), “Estrutura de Classes, Educação e Queda da Desiguladade de Renda (2002-2011)”. DADOS - Revista de Ciências Sociais, vol. 57, n. 1, pp. 101–128.). Com isso, mesmo os que atingiram o nível superior de educação ainda apresentam uma renda relativamente baixa se comparada à renda das classes médias tradicionais no Brasil.

Gráfico 2
: Dispersão da renda por níveis de escolaridade

Além disso, é possível notar que a maior dispersão encontra-se justamente entre aqueles que possuem ensino superior, indicando grande desigualdade dentro deste grupo, o que reforça as hipóteses de diferenciação horizontal entre os que cursaram ensino superior em diferentes instituições de ensino ou em diferentes cursos. Nesse aspecto, Carvalhaes e Ribeiro (2019)CARVALHAES, Flavio; RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2019), “Estratificação horizontal da educação superior no Brasil: desigualdades de classe, gênero e raça em um contexto de expansão educacional”. Tempo Social, vol. 31, n. 1, pp. 195–233. apontam que pessoas com origem nos estratos superiores – medido pelo nível educacional dos pais – tendem a ocupar com mais frequência os cursos de maior prestígio e retornos no mercado de trabalho – como é o caso de medicina, odontologia, engenharias – e em instituições públicas, do que pessoas com origem nas classes mais baixas. Em suma, o acesso à educação formal e à universidade, embora condição importante para possibilitar uma mobilidade social mais efetiva em termos de ocupação e renda, está longe de ser suficiente para isso.

O nível de escolaridade é, aliás, uma das principais características que diferenciam pais e filhos bem como grupos de idade nas periferias de São Paulo, conforme apontam o Gráfico 3 e a Tabela 5 , o que é explicado pelo aumento das oportunidades educacionais em anos recentes no Brasil.

Gráfico 3
: Nível de escolaridade do entrevistado e de seus pais nas regiões pesquisadas

Tabela 5
: Nível de escolaridade do pai X Nível de escolaridade do entrevistado separados por coorte de idade

O cruzamento do nível de escolaridade entre pais e filhos mostra que há uma clara tendência de aumento do nível de escolaridade intergeracional, uma vez que menos de 3% dos entrevistados possuem nível de escolaridade inferior ao de seus pais. Entre os pais e mães predominam os que possuíam apenas ensino fundamental – 56,2% para os pais, 54,7 para as mães – e um percentual relativamente alto de pessoas que sequer frequentou a escola – 27,1% no caso dos pais e 34,4% no caso das mães. Além disso, pouquíssimos foram os que conseguiram atingir o nível superior de ensino na geração dos pais dos entrevistados – cerca de 2,5% tanto no caso de pais quanto de mães. Por outro lado, entre os entrevistados, já há um claro predomínio de pessoas com ensino médio – 45,5% dos respondentes – seguido de pessoas com ensino fundamental – cerca de 35% – e depois por pessoas com ensino superior, que já representam 16,4% nesse universo.

Ao cruzarmos o nível de escolaridade do entrevistado com o nível de escolaridade do pai e separarmos os dados pela coortes de idade apresentadas acima – Tabela 5 –, notamos que tal como acontece com o tipo de ocupação, há uma clara tendência de aumento da escolaridade quanto mais jovem o grupo. O grupo mais velho – acima de 50 anos – apresenta escolaridade relativamente menor, com 30,5% de seus membros tendo iniciado o ensino médio e apenas 12,2% tendo ingressado no ensino superior. Na coorte intermediária, o percentual de pessoas que iniciaram o ensino médio chega a 57,1% e os que ao menos começaram o ensino superior atingem 21,8%. Finalmente, entre o grupo mais jovem – com menos de 30 anos – 62,1% iniciaram pelo menos o ensino médio e 27,3% haviam entrado em um curso de nível superior.

A diferença de nível educacional entre pais e filhos é mais intensa para a coorte intermediária, o que é explicado, sobretudo, pelo baixo nível educacional de seus pais e pelo aproveitamento das oportunidades educacionais oferecidas nas últimas décadas. Esse grupo pode, em grande medida, se beneficiar da universalização do ensino fundamental no Brasil na década 1990, do avanço da oferta de ensino médio e da ampliação de vagas, bolsas e financiamento no ensino superior a partir os anos 2000. O grupo mais jovem é o mais escolarizado, mas a diferença para seus pais é relativamente menor uma vez que seus pais já partiram de um nível de escolaridade relativamente mais alto.

Diante dessa ampla gama de dados apresentados até aqui, algumas conclusões e hipóteses preliminares devem ser sumarizadas para efeito de organização do argumento. O primeiro ponto de destaque diz respeito ao aumento da heterogeneidade nas periferias de São Paulo em termos de nível de renda, escolaridade e categorias profissionais. Ainda que neste último aspecto prevaleça uma tendência de aumento dos “trabalhadores não manuais de rotina”, há ainda uma grande quantidade de “trabalhadores manuais não qualificados”. Além disso, os cruzamentos entre os diferentes dados mostram que, embora escolaridade e renda pareçam guardar alguma relação, a escolaridade e a categoria ocupacional assim como a categoria ocupacional e a renda não apresentam a mesma relação linear que se poderia esperar. Por outro lado, é forte a tendência à diferenciação horizontal entre os que cursaram ensino superior, apontado pela alta dispersão dos níveis de renda entre as pessoas que alcançaram este nível de ensino.

Olhando por uma perspectiva de longo prazo, é possível levantar a hipótese de que, para parte desses trabalhadores, teria realizado, ainda que com grande atraso, o projeto de mobilidade social familiar construído no imaginário dos trabalhadores da primeira geração das periferias urbanas, discutido na introdução deste texto. Isso porque, de um lado, houve uma bem-sucedida fuga do trabalho manual e, de outro, ocorreu um aumento relativo da renda e da escolaridade, ambos tidos como importantes critérios de sucesso no projeto ascensional daquela geração. Finalmente, o sonho da casa própria, tido como um dos principais símbolos de ascensão social nas periferias, se realizou para cerca de 63% das pessoas de ambos os distritos, conforme constatado no survey aplicado, trazendo certo nível de consolidação e estabilidade para essa mobilidade socioeconômica.

Por outro lado, é possível apontar existência de um limite para a ascensão social dos habitantes das periferias paulistanas em termos de categorias sócio-ocupacionais, que acaba por dificultar a entrada de membros das classes populares nas profissões de maior renda e prestígio, aquelas classificadas como “administradores e profissionais”. Essa barreira de acesso à elite ocupacional não pode ser atribuída apenas à falta de educação formal, mas pode estar relacionada à diferenciação horizontal entre os que acessaram o ensino superior. Além disso, como os dados apresentados acima assinalam, sair de um trabalho manual qualificado para uma ocupação não-manual não necessariamente significa melhorar seu nível de renda, como era esperado no projeto idealizado pela primeira geração de trabalhadores das periferias de São Paulo.

Com isso, as perspectivas ascensionais passam necessariamente por transformações no período recente: não basta estudar mais para conquistar um trabalho em uma ocupação de prestígio social e com maiores níveis de renda e estabilidade, nem o acesso a um trabalho “não manual” assegura imediatamente melhores salários. Condições antes tidas como um passaporte para a mobilidade social seguem necessárias, mas agora são insuficientes por si só.

Nesse aspecto, a questão geracional ganha destaque. Como foi apontado, há diferenças marcantes em termos de categoria ocupacional e nível de escolaridade entre as diferentes coortes de idade. Para os mais velhos, com mais de 50 anos de idade, em sua maioria imigrantes de outros estados, a simples mudança para a cidade representou a possibilidade de acessar níveis de educação e profissões que antes lhes estavam estruturalmente vetadas. O grupo com idade intermediária, entre 30 e 50 anos, foi quem mais se beneficiou em termos relativos dessa nova realidade e das oportunidades de educação e trabalho oferecidas nas últimas décadas. Para os mais jovens, com menos de 30 anos, apesar de serem os mais escolarizados e ocuparem com mais frequência profissões de maior prestígio, quando comparados a seus pais sua mobilidade social perde intensidade. Para aprofundar essas questões, serão examinadas a seguir algumas experiências concretas de moradores das periferias urbanas em torno dos processos estruturais descritos até aqui de modo a analisar como promessas, projetos e processos se cruzam nas narrativas e vivências dessas pessoas.

DO PADRÃO DE VIDA AO MODO DE VIDA: A EXPERIÊNCIA CONCRETA DA MOBILIDADE SOCIAL NAS PERIFERIAS

A “dimensão experiencial” deve ser entendida como “indissociavelmente afetiva, cognitiva e normativa” (Cefaï, 2009CEFAÏ, Daniel. (2009), “Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 2, n. 4, pp. 11–48.:26). Desse modo, um primeiro ponto a ser ressaltado, ainda com relação aos dados quantitativos colhidos para esta pesquisa, se refere à percepção dos moradores das regiões pesquisadas com relação às mudanças que haviam vivenciado nos últimos anos. No questionário aplicado, foi perguntado se, nos últimos 10 anos, as condições econômicas da família do entrevistado haviam melhorado, permanecido iguais ou piorado. 46,8% dos respondentes afirmaram que suas condições de vida haviam melhorado, 25,1% que haviam permanecido iguais e 27,1% disseram que as condições de vida de suas famílias haviam piorado naquele período. Ainda que a maior parte das pessoas afirme ter melhorado de vida nos anos recentes, chama atenção o fato de parcela majoritária alegar não ter sentido melhora alguma em suas vidas ou ter dito que suas condições econômicas pioraram na última década.

É preciso ressaltar novamente que o survey foi aplicado no início de 2015, antes, portanto, do agravamento da crise econômica iniciada em 2014. Desse modo, é pouco provável que a crise seja o principal fator responsável por essa sensação de piora. Da mesma forma, o sentimento de piora ou estabilidade não pode ser atribuído à possível queda na escala ocupacional de parte dos entrevistados. Ainda que 21,4% dos entrevistados tenha tido uma queda em termos de categoria ocupacional comparativamente a seus pais, como mostrado na seção anterior, a pergunta aqui não se refere ao mesmo tema. Naquele caso, a comparação se deu entre gerações diferentes, aqui, a comparação pedida ao entrevistado era referente à própria situação no momento da entrevista e 10 anos antes.

Para compreender este aparente paradoxo, nesta seção, serão apresentadas algumas experiências concretas de mobilidade social dentro de uma infinidade de possibilidades. Os casos apresentados foram selecionados por serem representativos de algumas questões relevantes para os objetivos deste texto. Esses casos buscam travar um diálogo com a literatura e com os dados quantitativos até aqui apresentados. Assim, a questão das mudanças de ocupação ao longo da trajetória profissional (casos de José, Cilene e Ricardo), a procura da autonomia por meio de um negócio próprio (caso de Maurício) e a busca pelo aumento da escolaridade como forma de melhoria no nível de renda e de status profissional (casos de Rita e Jussara) serão destacadas buscando dar concretude experiencial a alguns padrões apresentados na seção anterior. Com isso, espera-se explorar também o impacto de alguns processos estruturais sobre a vida desses sujeitos, em especial: a reestruturação produtiva e a flexibilização das relações trabalhistas, o aumento das oportunidades educacionais, o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho e as mudanças no discurso a respeito da lógica da informalidade e empreendedorismo.

A REINSERÇÃO ECONÔMICA PÓS-CRISE DO TRABALHO OU A ASCENSÃO PELA RENDA E PELA FORMALIZAÇÃO

José 12 12 . Os nomes foram alterados para preservar a privacidade dos entrevistados. As idades dos entrevistados se referem ao momento em que a entrevista foi realizada, ou seja, entre 2015 e 2016. é um homem negro de 60 anos. Ele mora no Jardim Ângela com sua esposa, sua enteada de 23 anos e seu filho de 18. Trata-se de um típico morador que fez parte do processo de ocupação e autoconstrução das periferias de São Paulo. Nascido na Bahia, está em São Paulo desde 1973. José foi metalúrgico ao longo da década de 1980 e seguiu nessa profissão até meados dos anos 1990 quando a empresa em que trabalhava fechou, seguindo o caminho de vários outros empreendimentos industriais da capital paulista, e ele foi demitido.

A perda do emprego fabril foi bastante traumática para José. Apesar de não se lembrar de quanto exatamente foi sua perda salarial, ele afirma que, em 1997, quando foi obrigado a trocar de emprego devido ao fechamento da empresa onde trabalhava, o valor de seu novo salário era o equivalente ao que ganhava de vale-refeição em seu último trabalho na indústria. Ao longo dos anos seguintes, José foi obrigado a trocar a perspectiva de uma carreira assalariada de longo prazo por um desenvolvimento individualizado por meio da venda de sua força de trabalho em uma série de atividades contingentes (Machado da Silva, 2002MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2002), “Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho)”. Cadernos CRH, vol. 15, n. 37, pp. 81–109.). Assim, ele teve que “se virar” fazendo bicos, horas-extras e passando por vários empregos, primeiro como segurança e depois como porteiro. Período em que, segundo sua própria narrativa, teve os piores salários e precisava trabalhar por até 12 horas diárias e nos fins de semana para conseguir algum ganho adicional e garantir o sustento da família.

Em 2006, ele entrou para a construção civil e conseguiu uma pequena melhora salarial, mas ainda muito modesta perto do que já havia recebido quando trabalhava como operador de máquinas. Como ele mesmo me disse: “de 97 pra cá, eu não sei o que foi ganhar um salário digno, só merreca.” Ele reconhece uma melhora em suas condições econômicas nos últimos anos, mas apressa-se em apontar os seus limites: “No período do Lula eu consegui fazer alguma coisa. Não consegui fazer muita coisa, sabe? Mas consegui viver bem, comi bem”.

Nos últimos anos, José vinha recebendo salários na casa de 1.000 a 1.200 reais, a depender do número de horas extras que cumpria como ajudante de pedreiro. Depois de ter sido demitido do último emprego, por conta da crise econômica atual, ele está tentando se aposentar, mas têm enfrentado dificuldades por questões burocráticas junto ao INSS.

Apesar dessas pequenas melhoras materiais que conquistou ao longo das últimas décadas, como seu “barraquinho”, que conseguiu “debaixo de luta e garra” e, por isso, hoje se orgulha de viver em “uma casa digna” onde “dá pra passar uma chuva”, José é consciente do quão limitados são esses avanços e refuta qualquer possibilidade de se considerar uma pessoa de classe média 13 13 . Formulei a questão sobre pertencer ou não à “classe média” de forma mais explícita na maioria das entrevistas dentro do contexto da conversa sobre a história de vida dos entrevistados e como forma de estimular a reflexão a respeito dos momentos de melhora ou piora de suas condições materiais. , principalmente por não ter uma “boa renda”, demonstrando como a melhora relativa em seu padrão de vida é entendida por ele mesmo como insuficiente e limitada a alguns aspectos pontuais. Da mesma forma, ele é bastante cético com qualquer possibilidade de ascensão social mais contundente no futuro.

Pode-se dizer, portanto, que a relativa mobilidade social de José nos anos recentes se deveu principalmente a uma pequena melhora em termos salariais – quando comparado com sua situação nos anos 1990 – e a uma maior oferta de postos de trabalhos formais que lhe garantiu alguma estabilidade no emprego.

A trajetória profissional de José ilustra uma interessante contradição ao situá-la dentro da estrutura de estratificação social apresentada na seção anterior. Ao deixar de ser um operário industrial em uma indústria moderna, José trocou uma posição de “trabalhador manual qualificado” por outra de “trabalhador não manual de rotina”, quando foi porteiro e segurança, e viu seu salário cair. Depois, já em meados dos anos 2000, ele entrou para a construção civil como ajudante de pedreiro, exercendo uma função de “trabalhador manual não qualificado”, mas com um salário um pouco maior. O status ocupacional e o nível de renda parecem caminhar em direções opostas nesse caso concreto. Isso sem alterar seu nível educacional, posto que concluiu apenas o quarto ano do ensino fundamental.

Esse fato aponta para a importância de outros fatores de ordem econômica que ocorreram ao longo dos anos 2000, como os aumentos reais do salário mínimo, a geração de novos postos de trabalho e o consequente aumento da renda média dos trabalhadores. De todo modo, a pequena ascensão social relativa e exclusivamente monetária que José experimentou nos anos recentes mostrou-se bastante frágil, diante da crise econômica que teve início no Brasil em 2014 14 14 . Para uma análise dos efeitos da crise econômica sobre a desigualdade e o nível de renda dos trabalhadores ver Barbosa (2019), Neri (2018) e Duque (2019). Em Fontes (2021) trabalho alguns dos impactos da pandemia de Covid-19 na desigualdade e o nível de renda dos mais pobres. . Quando conversamos pela última vez, no fim de 2015, ele me disse que naquele ano não tinha conseguido “nem bico”, algo incomum, pois antigamente quando havia ficado desempregado, sempre conseguia algum serviço para ganhar 200 ou 300 reais por semana. Naquele momento, sua enteada, que era auxiliar administrativo, havia acabado de ser demitida. Dessa forma, a crise econômica, aliada a sua dificuldade em se aposentar, pode colocar a perder parte das conquistas que sua família obteve nos últimos anos.

Outro caso de mobilidade social baseada na formalização do emprego e melhoria da renda é o da família de Cilene e Ricardo. Brancos e mais jovens, ambos na casa dos 35 anos de idade, eles não vivenciaram a possibilidade do trabalho industrial. O casal também vive no Jardim Ângela e tem dois filhos. Ela, como muitas outras moradoras da periferia, ganhava a vida como diarista, trabalhando “em casa de família”, como costumam se referir ao trabalho doméstico. Como é comum em sua profissão, ela se dividia entre diversos trabalhos diferentes ao longo da semana sem nenhuma garantia de que teria trabalho no dia, na semana ou no mês seguinte. Viúva do primeiro casamento, ela cuidava de seu filho mais velho sozinha até se casar com Ricardo e ter uma menina, há 6 anos.

Nos últimos anos, o casal viu sua renda aumentar um pouco e ganhar alguma estabilidade. Ela conseguiu que uma de suas patroas lhe contratasse com carteira assinada 15 15 . É provável que Cilene tenha sido beneficiada pela aprovação da Emenda Constitucional nº 72, de abril de 2013, a chamada “PEC das domésticas” que estendeu aos trabalhadores domésticos diversos direitos trabalhistas a que antes não tinham acesso. . Ele tem uma trajetória profissional bastante fragmentada, já trabalhou como auxiliar de estoque, servente de pedreiro, ajudante de gesseiro, ajudante de eletricista, mecânico de automóveis e sempre conviveu com uma grande instabilidade em seus rendimentos, uma vez que seus ganhos dependiam da demanda por seus trabalhos. No momento da entrevista, Ricardo também havia conquistado alguma estabilidade com um emprego como porteiro. Quando conversamos pela primeira vez, o salário dele era de R$ 1250,00 e o dela R$ 1300,00.

Com o aumento da renda do casal eles conseguiram construir a casa onde moram no terreno da mãe de Ricardo. Depois disso, trocaram os móveis e compraram um carro. Diante das dificuldades em se conseguirem terrenos a preços acessíveis nas periferias já densamente povoadas, é bastante comum que os filhos aproveitem pedaços do terreno já ocupado pelos pais para construírem suas próprias casas. Como apontado anteriormente, a casa própria, em geral autoconstruída, é o principal símbolo de ascensão social entre os moradores das periferias urbanas. Quase sempre em que perguntei se as pessoas haviam melhorado de vida nos últimos anos, a construção, reforma da casa ou a compra de móveis ou objetos de decoração apareciam como elementos que simbolizavam as conquistas e/ou frustrações em termos de mobilidade social, como no caso de José, que se orgulhava de ter feito seu “barraquinho”.

Cilene afirma que “não tem do que reclamar”, pois sua “vida melhorou e bem”. Ricardo compartilha com a esposa a sensação de melhora em suas condições econômicas, mas já se mostra mais frustrado por não conseguir atingir as expectativas de melhora que tinha para a família. Se, para ela, sair do aluguel, construir a casa própria, ainda que no terreno cedido pela sogra, e trocar os móveis são os principais exemplos de melhoria de vida; para ele, o fato de não ter conseguido concluir as reformas que gostaria é justamente o exemplo de frustração das expectativas. Ricardo conta que sua vida “melhorou um pouquinho, mas não muito”, pois tinha a meta de concluir a construção da casa, o que significa “ter batido a laje” e “construído os quartos pra cima”, mas que seu baixo salário não permitiu que seu plano fosse concretizado.

A frustração de Ricardo em não conseguir concluir a reforma de sua casa é, em parte, explicada pela perda do emprego fixo que Cilene tinha. A patroa dela, após sofrer um assalto, mudou-se da casa onde morava para um apartamento menor e a dispensou. Tal como José e como muitos casos que encontrei ao longo da pesquisa, o agravamento da crise fez com que perdessem o emprego registrado que haviam conquistado e agora voltavam a procurar “bicos” para ter alguma fonte de renda, apontando o alto grau de instabilidade da ascensão dessas pessoas que conseguiram alguma mobilidade social baseada apenas na renda e no emprego formal.

A diferença geracional se mostra relevante quando comparamos a trajetória de José com a de Ricardo e Cilene e, sobretudo, suas expectativas e projetos ascensionais. Os dois últimos não tiveram a oportunidade de trabalhar na indústria e já entraram no mercado de trabalho em uma situação de maior instabilidade. Por isso, quando avaliam suas próprias trajetórias diferem consideravelmente de José. A referência dele de boas condições de vida está no período em que foi operário fabril, quando, além de um bom salário, contava com benefícios trabalhistas e estabilidade contratual. Ele reconhece a melhora recente, medida sobretudo pela renda, mas afirma que essa melhora não foi suficiente para recuperar aquele padrão de vida de décadas passadas. Já Cilene e Ricardo avaliam suas trajetórias como mais bem sucedidas sobretudo porque suas referências de sucesso são ainda mais monetárias e menos em termos de estabilidade ou direitos trabalhistas.

DA INFORMALIDADE AO EMPREENDEDORISMO: AUTONOMIA E CRISE

Maurício, 53 anos, morador do Jardim Ângela, é um caso de empreendedorismo que teve sua luta individual por melhorias materiais compensadas nos anos 2000. Ele nasceu na Paraíba, se declara “pardo” e chegou em São Paulo em 1982, quando trabalhou na construção civil em Embu-Guaçu, município da região metropolitana de São Paulo. Em meados dos anos 1990 decidiu construir sua própria oficina mecânica e autoelétrica. Apesar de estar há mais de 20 anos no setor, foi nos últimos tempos que viu seu negócio se expandir. Ele ainda paga aluguel pelo terreno onde está instalado, mas é dono de toda a estrutura física e dos equipamentos que compõem sua oficina, comprados em 2012 por cerca de 80 mil reais e parcelados em 48 vezes. Como “o negócio tava bom”, conseguiu quitar seu débito na metade do tempo previsto. Além disso, ele comprou equipamentos novos para sua oficina, como painéis, elevadores e aparelhos para fazer alinhamento e balanceamento que permitiram a expansão do negócio.

O empreendedorismo ou ter um “negócio próprio” é destacado por muitos com quem conversei como fonte de independência e autonomia, colocando em si próprio a responsabilidade pelo eventual êxito econômico. Assim, Maurício valoriza seu esforço individual como parte fundamental para seu sucesso e faz questão de destacar que trabalha “de domingo a domingo, de 7h às 19h40” e que conquistou tudo com base em seu empenho e dedicação.

Além do “trabalho duro”, ele também gosta de ressaltar que leva uma vida simples, sem luxo e que não gosta de frequentar botecos “nem pra tomar um cafezinho”. Maximizar o tempo de trabalho e reduzir ao mínimo o tempo de lazer com amigos ou fazendo atividades “improdutivas” é tido como essencial por aqueles que valorizam o trabalho e o esforço pessoal como forma de ascensão social. Como já apontava Machado da Silva (1971)MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (1971), Mercados metropolitanos de trabalho manual e marginalidade. Dissertação (mestrado em Sociologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., no início dos anos 1970, para muitos trabalhadores, o lazer é tido como sinônimo de “folga” ou “ausência de compromisso”.

Além da valorização da autonomia e da responsabilidade no “trabalho por conta própria”, ele justifica seus esforços tendo em vista mais a “ética do provedor” do que a “ética do trabalho” (Zaluar, 2000ZALUAR, Alba (2000), A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo, Brasiliense (2 a edição).), afinal é sua responsabilidade “pagar perua, aluguel, água, luz, telefone, despesa de casa” e complementa, “se seu filho quer uma coisinha, você não vai falar que não, né?”.

Ainda que seu sucesso pessoal seja quase sempre atribuído ao esforço individual, a falta dele é justificada nos problemas de ordem mais geral, que fogem de seu controle. Maurício e tantos outros reclamam dos problemas enfrentados diante da crise econômica que se iniciava naquele momento. Assim, a corrupção na política acaba sendo alvo preferencial das insatisfações de parte dos moradores das periferias, não necessariamente pelos aspectos morais por trás dos atos praticados, mas principalmente por seus efeitos na vida cotidiana dessas pessoas, como o desemprego e a queda da renda. Em sua fala, a descoberta da “roubalheira na Petrobras” “afundou tudo” e, se antes “dava pra comer um filé de frango”, “depois que descobriram essa ladroagem”, “o cara não come nem o pé [de frango]”.

Até o fim de 2014, cinco pessoas trabalhavam com Maurício em um regime em que ele fornece os equipamentos e a alimentação dos funcionários e estes dividem com ele os ganhos que obtêm referente à mão-de-obra dos serviços que executam. Quando conversamos, ele estava endividado em cerca de 12 mil reais, que utilizou em compras de material para sua oficina. A queda na demanda por serviços, que já havia feito com que reduzisse de cinco para três o número de funcionários, ameaçava a continuidade de seu negócio no médio prazo. Para evitar esse fim, ele afirma aceitar trabalhos mesmo que por uma margem mínima de lucro: “se sobra alguma coisa pra você, você tem que fazer”.

O caso de Maurício, assim como o de José narrado acima, apontam para um importante transformação pela qual passou o mercado de trabalho no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, na qual a reestruturação produtiva, a flexibilização e desregulamentação do trabalho foram centrais. Ao longo dos anos 1990, a categoria crítica da informalidade – que se opõe ao trabalho “fichado”, como muitos se referem ao trabalho com carteira assinada e, portanto, formalizado e com os direitos trabalhistas assegurados – foi sendo substituída pelo par empregabilidade/empreendedorismo no debate público e acadêmico, no qual a responsabilidade pelo sucesso profissional é jogada quase que exclusivamente no empenho e dedicação do próprio trabalhador (Machado da Silva, 2002MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2002), “Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho)”. Cadernos CRH, vol. 15, n. 37, pp. 81–109.).

Esse discurso ganhou adesão progressiva de muitos trabalhadores e o crescimento econômico recente, que conferiu certo grau de verossimilhança a essa narrativa, ampliando ainda mais sua penetração entre as classes populares. É preciso ressaltar, no entanto, que o desejo por autonomia no trabalho já estava presente no discurso de moradores das periferias pelo menos desde a década de 1970. A escolha pela formalidade ou informalidade dependia de fatores estruturais, mas também das possibilidades de ganho concreto dos trabalhadores em termos salariais e de autonomia (Machado da Silva, 1971MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (1971), Mercados metropolitanos de trabalho manual e marginalidade. Dissertação (mestrado em Sociologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Cardoso, Camargo e Kowarick, 1973CARDOSO, Fernando Henrique; CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de; KOWARICK, Lucio. (1973), “Considerações sobre o desenvolvimento de São Paulo: cultura e participação”. Cadernos Cebrap. n. 14.). Não se trata, portanto, de uma simples adesão ao discurso neoliberal ou à lógica empreendedora difundida mais contemporaneamente (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. (2008), Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo, Martins Fontes.; Dardot e Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christin. (2016), A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo.), mas de uma adaptação desse discurso a anseios e desejos já presentes há muito entre os pobres urbanos.

De todo modo, a fala de Maurício é significativa da atribuição do sucesso econômico de si e o fracasso do outro ao esforço próprio, ainda que a eventual falta de sucesso em suas próprias empreitadas possa ser atribuída à conjuntura econômica ou a problemas de ordem estrutural. Ao longo da pesquisa, anotei algumas expressões de interlocutores diversos que retratam essa leitura que atribui majoritariamente ao próprio trabalhador a responsabilidade por seu sucesso ou fracasso profissional: “Tem muito emprego, só não trabalha quem não quer”, “As condições pra encontrar trabalho em São Paulo são ótimas, para quem quer”, “As condição de trabalho são ótimas para quem se esforça”, “Deu uma piorada [devido à crise econômica atual], mas quem procura [trabalho] acha”.

Com isso, a histórica valorização do trabalho autônomo entre trabalhadores das periferias urbanas, seja por questões de independência e autonomia seja por vantagens em termos de nível de rendimentos, acabou por encontrar certa afinidade com esse discurso da valorização da competitividade, autonomia profissional e independência pessoal advinda da lógica do empreendedorismo. Mais do que isso, ao longo dos anos 2000, o aumento da renda média da população nas regiões periféricas da cidade possibilitou que diversos empreendimentos prosperassem com mais intensidade nos anos recentes à medida que a demanda por seus produtos e serviços foi incrementada, criando uma base material para a justificação desse discurso.

A PERSPECTIVA E A FRUSTRAÇÃO DE UMA ASCENSÃO MAIS ESTÁVEL PELO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR

Ao lado do “trabalho duro” e da adoção de uma lógica de ação “empreendedora”, o investimento no “capital humano”, ou seja, na formação escolar e profissional, é o outro lado do discurso que busca justificativas para o sucesso ou fracasso profissional contemporaneamente. A disposição para o trabalho duro, demonstrada por meio de atitudes, e a capacitação, provada por meio de títulos, diplomas e experiências prévias, seriam necessárias para tornar-se empregável dentro da realidade posta aos moradores das periferias de São Paulo. Assim, a valorização da educação formal, que em outros tempos poderia ser preterida pela necessidade de começar a trabalhar ainda na adolescência, foi ganhando ainda mais importância diante do aumento da concorrência por escassos postos de trabalho.

Diante do aumento das oportunidades educacionais nos últimos anos, concluir o ensino médio tornou-se um pré-requisito básico para os que buscam emprego em um mercado cada vez mais competitivo. Os cursos de nível superior aparecem, então, como diferencial que possibilitam a abertura de um leque maior de oportunidades, o que é muitas vezes motivo de orgulho para os que conseguem concluir essa etapa, mas também de frustração diante da tímida ascensão que conquistam, como mostram os dados relativos à remuneração média dos trabalhadores de nível superior apresentados acima.

A visão de que a qualificação profissional é uma demanda permanente e uma exigência do mercado de trabalho parece disseminada nas periferias. Ao longo da pesquisa, colhi diversas falas que apontam nessa direção e complementam a questão do esforço como fórmula para o sucesso profissional: “Falta qualificação, mas oportunidade de trabalho tem”; “[as empresas] oferecem [emprego], mas precisa de gente atualizada”; “hoje [as empresas] fazem mais exigências”; “as condições [pra conseguir emprego] são ótimas, basta ter qualificação”; “As condições são regulares e piorou, pois agora exige muito estudo”; “Para quem tem formação, as condições são boas”; “Pra quem tem estudo, são boas”.

Para os mais velhos, contudo, ainda que sejam conscientes dessa necessidade de formação permanente para o trabalho, não é tão simples retornar ao banco da escola. Concluir a educação básica, muitas vezes interrompida por falta de oportunidades ou por necessidade de ajudar no sustento da família e ainda ingressar e concluir um curso de nível superior parece algo completamente fora do alcance deles. É o caso de José, que se resigna ao afirmar que “hoje, pra mim exercer a profissão que eu exercia, eu teria de ter o terceiro colegial e uns 2 anos de Senai”. Por outro lado, é possível encontrar casos de moradores das periferias que conseguiram uma melhor inserção no mercado de trabalho graças ao aumento de sua escolaridade, conquistando algo relativamente raro que é uma mobilidade social intrageracional.

Rita possui uma trajetória bastante expressiva da importância das oportunidades educacionais para a mobilidade social recente. Moradora do Parque do Lago, um dos bairros mais afastados do Jardim Ângela, ela tem 44 anos, é separada e vive com as três filhas em uma casa construída no andar de cima da casa dos pais. Ela tem dificuldade de se classificar racialmente, pois afirma que, apesar do tom de pele branco, tem os cabelos enrolados. Na falta de uma categoria melhor, ela relutantemente se define como “parda”.

O início da trajetória de Rita é bastante comum em sua geração na periferia de São Paulo. Filha de um pai operário e de uma mãe dona de casa, ela se casou ainda adolescente, logo engravidou e teve as primeiras filhas, gêmeas. A necessidade de sustentar as filhas fez com que ela tivesse que trabalhar como empregada doméstica. Naquele tempo, a falta de acesso à educação pública não permitiu que ela continuasse seus estudos, que foram interrompidos quando concluiu o ensino fundamental. Rita ainda viria a ter outra filha e, quando se separou do marido, se viu em situação ainda mais crítica, tendo que sustentar as três filhas pequenas praticamente sozinha.

Quase vinte anos depois, em meados dos anos 2000, com as filhas já um pouco mais crescidas e não tão dependentes de sua atenção diária, Rita viu a oportunidade de retomar os estudos. Foi atrás de um curso supletivo para jovens e adultos para concluir o ensino médio. Posteriormente, graças a um programa de bolsas de estudo oferecidas para pessoas de baixa renda pela Educafro – que adotava o mesmo modelo do que depois viria a ser o PROUNI (Programa Universidade para Todos), do governo federal, isto é, oferecimento de bolsas parciais e integrais em vagas remanescentes de universidades privadas –, conseguiu ingressar no bacharelado de serviço social.

Durante o curso, Rita seguiu trabalhando como empregada doméstica e lembra da dificuldade que tinha em uma jornada que, em alguns momentos, chegou a ser tripla: trabalho como empregada doméstica durante o dia, estudo à noite e o estágio obrigatório nos finais de semana – uma vez que não podia fazê-lo durante a semana para não abrir mão de seu emprego –, o que significava sair de casa às 6h30 da manhã e retornar depois da meia-noite todos os dias, além do cuidado com as filhas e os afazeres domésticos.

Após concluir a graduação, Rita começou a procurar outras oportunidades de inserção no mercado e em seis meses conseguiu um trabalho em uma ONG próxima de sua casa para gerenciar um serviço de convivência de idosos. Paralelamente, ela estava estudando para prestar um concurso público e, alguns meses depois, conseguiu ser aprovada para trabalhar na prefeitura de Taboão da Serra, município da região metropolitana de São Paulo. Atualmente ela é coordenadora de um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), da prefeitura, onde já trabalha há mais de 4 anos.

Apesar de ainda se considerar “pobre” e morar no andar de cima da casa da mãe, que ela se orgulha de ter construído com seus próprios recursos, Rita teve uma expressiva ascensão econômica e profissional que por vezes a surpreendeu enquanto me contava sua trajetória e refletia sobre ela. Seu salário passou de cerca de 900 reais, quando trabalhava como empregada doméstica, para mais de 3500 reais, além de ter conquistado a estabilidade do serviço público.

A ascensão social de Rita, no entanto, está longe de ser a regra nas periferias de São Paulo, tanto em termos de intensidade quanto pela estabilidade que adquiriu. Sua mobilidade social é consideravelmente mais estável do que os casos apresentados acima, entre tantos outros que encontrei ao longo da pesquisa e que tiveram sua mobilidade social baseada principalmente, quando não exclusivamente, na melhoria do seu nível de renda e, eventualmente, na estabilidade temporária oferecida pela carteira assinada, como no caso de Cilene e Ricardo. Rita, além de ter mudado sua situação de classe em termos ocupacionais ao ter conseguido concluir o ensino superior e passar de empregada doméstica à servidora pública, garantiu sua estabilidade e conseguiu que suas filhas também ingressassem na universidade.

Do outro lado da cidade, na Brasilândia, conheci Jussara, parda, 53 anos que, apesar de uma trajetória inicial similar à de Rita, acabou tendo um destino um pouco diferente. Jussara retrata bem as contradições desse processo de mobilidade social recente ao conquistar uma expressiva mobilidade social em termos de status ocupacional e melhorar consideravelmente seu nível de escolaridade, mas não avançar tanto em termos de rendimentos. Até o início dos anos 2000, Jussara trabalhava como faxineira para uma empresa terceirizada, quando ganhava o que chama de um “vale-coxinha” no valor de R$ 4,50 para sua alimentação. Nesse período ela passou por dificuldades financeiras e fazia “bicos” em eventos nos fins de semana para complementar sua renda.

Jussara vivia naquela situação bastante comum de quem tem um pé na formalidade precária da terceirização e outro nos “bicos”, necessários para completar sua renda e garantir o sustento da casa (Braga, 2012BRAGA, Ruy. (2012), A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo, Boitempo.; 2014). Diante disso, ela buscou um caminho parecido com o de Rita. Concluiu o ensino médio por meio de um curso supletivo voltado para jovens e adultos e ingressou na faculdade de ciências contábeis, que concluiu em 2014. Com isso, ela pôde trocar de emprego e atualmente trabalha em um escritório como auxiliar contábil. Seu salário, contudo, não aumentou tanto quanto ela esperava e, quando conversamos, ela recebia cerca de R$ 1200 mensais. Sua casa, como muitas outras que conheci, foi construída no terreno dos pais, onde ela mora com o marido e a filha de 22 anos, mas seu baixo rendimento não permitiu que ela fizesse as reformas que planejava. Quando a visitei pela última vez, ela se queixava dos sacos de areia e cimento que estavam em seu quintal ainda fechados por não ter condições de contratar um pedreiro que pudesse fazer o serviço. Para piorar a situação, seu marido, que trabalhava como cobrador de ônibus, perdera o emprego. Com isso, o casal, que já acumulava dívidas, mas tentava se livrar delas por meio de uma renegociação com o banco, teve que suspender os pagamentos que vinha fazendo e está com o “nome sujo”.

Os casos de Rita e Jussara ilustram os dados apresentados no Gráfico 2 a respeito da grande amplitude de rendimentos entre as pessoas que acessaram o ensino superior. Além disso, a situação de Rita reforça o argumento da redução do bônus de rendimentos assegurado pelo acesso ao ensino superior (Souza e Carvalhaes, 2014SOUZA, Pedro H. G. F.; CARVALHAES, Flávio. (2014), “Estrutura de Classes, Educação e Queda da Desiguladade de Renda (2002-2011)”. DADOS - Revista de Ciências Sociais, vol. 57, n. 1, pp. 101–128.). Embora fazer uma faculdade signifique deixar para trás a necessidade de aceitar trabalhos vistos como inferiores ou degradantes, como o trabalho de limpeza ou os “bicos” em festas e eventos, e opere como sinal de status social, o acesso a profissões de maior prestígio e a maiores rendimentos está longe de ser algo automaticamente garantido pelo diploma. Assim, romper com o ciclo de pobreza e exclusão educacional foi um passo importante para as gerações mais jovens das periferias urbanas, mas diversas barreiras sociais seguem operando e limitando o acesso desses sujeitos a determinadas posições no mercado de trabalho.

Por fim, mas não menos importante, cumpre ressaltar a questão de gênero ilustrada pelas histórias de Cilene, Rita e Jussara. Pertencentes a uma segunda geração de moradoras das periferias urbanas, elas tiveram um papel crucial na mobilidade social de suas famílias e no aumento da renda familiar ao romperem com o lugar reservado às mulheres na geração de seus pais – quando, conforme exposto acima, 42% das mães não tinham um trabalho remunerado. Além desse papel decisivo na melhoria dos níveis de renda das famílias, ao assegurarem uma presença mais contundente no mercado de trabalho e no sistema educacional, essas mulheres conquistaram importantes ganhos em termos de autonomia comparativamente a suas mães.

“QUE CLASSE MÉDIA É ESSA?”: FRUSTRAÇÃO, INSTABILIDADE NO PADRÃO DE VIDA E PERTURBAÇÕES NO MODO DE VIDA

Conforme exposto, o projeto de ascensão social gestado ao longo da primeira geração tinha como principal elemento medidor de seu sucesso a renda e a capacidade de consumo das famílias, em geral, consolidado na casa. Além disso, ao lado de uma desvalorização do trabalho braçal, em oposição ao não-manual, havia uma busca de princípios, por vezes contraditórios, como o desejo por um trabalho onde fosse possível obter, ao mesmo tempo, estabilidade e segurança financeira, de um lado, e independência e autonomia, de outro (Durham, 1978DURHAM, Eunice Ribeiro. (1978), A caminho da cidade. São Paulo, Perspectiva.).

Nesse aspecto, é possível dizer que uma parcela dos trabalhadores das periferias realizou, em boa medida, aquele projeto, uma vez que a transição do trabalho manual para o não manual foi relativamente bem-sucedida, ampliou-se significativamente o acesso ao ensino superior e a renda e a capacidade de consumo cresceram, mesmo para os que não conquistaram mudanças em termos de inserção profissional.

Diversos elementos, contudo, limitaram o alcance da realização daquele projeto. Esses elementos de ordem estrutural e cultural também contribuíram para a transformação daquele projeto de mobilidade social na perspectiva das novas gerações. Em primeiro lugar, a crise e a reestruturação produtiva dos anos 1980 e 1990 e a progressiva desregulamentação no mercado de trabalho desestabilizaram aquele projeto, além da já mencionada crise econômica iniciada em 2014. Essa crise no “mundo do trabalho” explica, ao menos em parte, a falta de estabilidade financeira e a ausência de uma maior correlação entre aumento da escolaridade e dos níveis de renda ou prestígio profissional.

É preciso lembrar, além disso, que se tratava de um projeto de mobilidade social familiar e, portanto, coletivo. O que observei, contudo, foi uma erosão progressiva da função da família como “unidade de cooperação econômica” (Durham, 1978DURHAM, Eunice Ribeiro. (1978), A caminho da cidade. São Paulo, Perspectiva.) na medida em que a pressão por individuação foi aumentando, primeiro pela redução das perspectivas positivas comparativamente à primeira geração (Feltran, 2011FELTRAN, Gabriel. (2011), Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo, Unesp.) e, posteriormente, com o próprio processo de aumento da renda em que a contribuição dos filhos para o sustento da casa foi deixando de ser necessária. Nesse sentido, ouvi de muitos pais que sequer sabiam quanto os filhos ganhavam ou que diziam não contar com a ajuda deles. Em outras tantas famílias, o sucesso relativo de um filho ou uma filha implicava a saída da casa dos pais e muitas vezes do bairro 16 16 . Para um aprofundamento da relação entre mobilidade social e o desejo de sair da periferia ver Fontes (2018b, em especial, cap. 9). e não necessariamente em uma melhoria para todo o grupo familiar. Assim, até mesmo no interior das famílias, a individualidade passou a se sobrepor com relação à cooperação e ao consumo coletivo. Esse período de crise econômica, aumento da violência e “expansão do mundo do crime” (Feltran, 2011FELTRAN, Gabriel. (2011), Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo, Unesp.) pode ser entendido como um “contexto individualizador”, “em que se focaliza o indivíduo biológico como a unidade significativa e em torno do qual se desenvolve um sistema de relevâncias” (Velho, 1997VELHO, Gilberto (1997), Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.:86).

É no médio e longo prazo, contudo, que esse processo de mobilidade social recente mostra suas principais fissuras e produz uma série de frustrações. Apesar da heterogeneidade de experiências nas modalidades de inserções econômica recente, a frustração com os limites da mobilidade social parece ser um traço comum em quase todos os relatos que colhi desde que iniciei minha pesquisa de campo em 2015, além da instabilidade demonstrada na maior parte dos casos diante da crise econômica.

As formas como essa frustração se apresentam são bastante diversas, mas a sensação de uma promessa que não foi cumprida ou de uma miragem que nunca será alcançada, a tal “classe média”, é presente em quase todos os casos. Assim, mesmo diante de significativas melhoras no padrão de vida , o discurso ufanista adotado em determinados momentos pelo governo federal e por parte dos meios de comunicação de que estaria surgindo no Brasil uma “nova classe média”, ou que o país estaria se tornando majoritariamente de “classe média”, não encontrou verossimilhança – no sentido apresentado por Magnani (2003)MAGNANI, José Guilherme. (2003), Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo, Hucitec, Unesp. – na realidade concreta dos moradores das periferias de São Paulo.

É marcante a resistência da maioria das pessoas em se enquadrarem como “classe média”, em especial para aquelas que tiveram uma melhora de renda tímida e mais recente e não conseguem ainda perceber seu padrão de vida como estabilizado no novo patamar que se encontram, como é o caso de José. Assim, se o discurso da necessidade de mais esforço e mais qualificação foi em grande parte assimilado pelos moradores das periferias urbanas, o mesmo não ocorreu com a ideia de que estes passariam a integrar uma “nova classe média”, por absoluta falta de base material para isso 17 17 . Reforço que o intuito aqui não é discutir a adequação da categoria “nova classe média”, mas apenas apontar que esse discurso não encontrou ressonância entres os sujeitos pesquisados no âmbito deste trabalho. .

Como demonstrou Salata (2015)SALATA, André. (2015), “Quem é Classe Média no Brasil? Um Estudo sobre Identidades de Classe”. DADOS - Revista de Ciências Sociais, vol. 58, n. 1, pp. 111–149., a noção de “classe média” difundida na sociedade brasileira tem como referência o padrão europeu e estadunidense de classe média, que, por aqui, foi incorporado pelas camadas médio-superiores urbanas, traduzindo-se em um padrão de vida ao qual apenas as frações mais abastadas da população brasileira poderiam corresponder. Desse modo, ao vender a ideia de que milhões de pessoas estariam sendo alçadas à classe média, a propaganda oficial e parte do discurso público e acadêmico transmitiam a imagem de que essas pessoas passariam a ter acesso a elementos que nunca estiveram ao alcance das camadas mais pobres das periferias urbanas.

Além disso, diversos interlocutores apontam para elementos de seu modo de vida para rejeitar o rótulo de “classe média”. Durante as entrevistas e conversas informais perguntei explicitamente se as pessoas se sentiam parte da “classe média”, em especial quando relatavam melhorias materiais que haviam alcançado como a reforma da casa ou a compra de um carro. Frequentemente a resposta vinha por meio de uma gargalhada ou de uma frase irônica que me devolvia a pergunta diante do que eu havia observado em suas casas ou em sua vizinhança. Ser de “classe média” e viver nas precárias periferias de São Paulo é algo absolutamente impensável para essas pessoas. É o caso de Rita que, mesmo ciente da significativa melhora em seu padrão de vida , reclama de outros problemas que seguem presentes em seu cotidiano como o transporte público, a educação, a saúde, a segurança e a zeladoria urbana.

Essas queixas se repetem em diversos depoimentos. Apesar da inegável melhora na infraestrutura urbana das regiões periféricas de São Paulo ao longo das últimas décadas e da conquista de importantes serviços públicos para as periferias 18 18 . Para uma leitura mais aprofundada a respeito da mobilização política nas periferias e a conquista de direitos sociais nessas regiões nas últimas décadas ver Fontes (2018a; 2018b; 2020a; 2020b). , são bastante comuns as reclamações nesse aspecto ou em torno da questão da violência em suas regiões para dizerem que não poderiam ser consideradas de classe média e que sua vida não melhorou de forma tão contundente como poderia parecer em um primeiro momento.

Nesse sentido, diversos interlocutores contrapõem a possibilidade de aquisição de bens aos quais não tinham acesso anteriormente nas periferias, como TVs e celulares modernos, com a situação de violência a que estão submetidos os moradores dessas regiões para demonstrar as contradições que seguem operando nas periferias urbanas. Murilo é negro, tem 18 anos e estudava serviço social, curso que abandonou em nome do sonho de construir uma carreira na área artística. Ele não tem dúvidas em afirmar que as condições econômicas da sua família melhoraram nos últimos anos, constatada por pequenos exemplos de seu cotidiano: “Hoje eu tenho um boot [tênis], teve época que eu ia de chinelo pra escola”. Contudo, quando analisa questões que estão além do acesso a bens de consumo não tem dúvidas em questionar sua mobilidade social.

Olha pra sua volta, eu vou ser classe média? Olha pro seu vizinho, a sua casa às vezes não tem azulejo, seu bairro não tem um asfalto. Que classe média é essa? Beleza, hoje você teve uma evolução de consumo muito grande dentro da periferia que é aquele negócio, você não tem uma escola de qualidade, não tem um hospital de qualidade, mas dentro da sua casa tem um smartphone, um notebook de última geração, uma TV de não sei quantas polegadas e seu carro é bom, mas olha tua realidade. O moleque vende droga do seu lado! Isso é classe média? Não é classe média. (Murilo, 18 anos, Brasilândia, depoimento ao autor, 2016).

Em suma, violência, repressão policial, falta de infraestrutura, de serviços públicos de qualidade ou falta de acesso a alguns bens que vão além dos bens de consumo que se popularizam recentemente como celulares, TVs e computadores são alguns dos elementos que são apontados por boa parte dos moradores das periferias como provas de que suas vidas não melhoraram como poderia parecer ao olharmos apenas para indicadores do seu padrão de vida .

Por fim, é preciso salientar que a permanência da violência urbana e o aumento do poder aquisitivo por parte dos moradores das periferias produziram importantes abalos no modo de vida dessas regiões e nas dinâmicas de sociabilidade. Em lugar da vida mais comunitária, na qual se ouvia muito mais o “barulho de gente” do que o “barulho da cidade”, particularmente favorecido pelas “cercas precárias e ruas estreitas” que geravam proximidade entre os moradores (Caldeira, 1984CALDEIRA, Teresa. (1984), A política dos outros: o cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo, Editora Brasiliense.:119-120), passou a prevalecer uma lógica de autoenclausuramento. Essa nova lógica, expressa em uma “estética da segurança” (Caldeira, 2000CALDEIRA, Teresa. (2000), Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34.), tem na “fortificação” das residências sua expressão mais visível (Cavalcanti, 2009CAVALCANTI, Mariana. (2009), “Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 24, n. 69, pp. 69–80.).

Uma interlocutora da Brasilândia traduziu esse sentimento ao se resignar diante da necessidade de garantir proteção a seus familiares. Quando conversávamos, na porta de sua residência, ela apontou para os muros e portões altos de sua própria casa e que ela define como “antissocial”, que a impediria de conhecer os vizinhos, mas que os tem por questão de “segurança”.

Reginaldo, 42 anos, morador do Jardim Ângela têm uma queixa semelhante. Sua casa é uma das poucas em sua rua que não têm muros altos nem portões cerrados. No entanto, teria ocorrido, em sua perspectiva, uma perda progressiva da solidariedade entre os vizinhos ou, em outros termos, uma reestruturação da sociabilidade nas periferias da cidade, sintetizada por esse fechamento das pessoas em seus espaços privados e pela perda da rua enquanto espaço de convívio e construção de laços sociais. Ao comparar a relação de vizinhança que tem hoje com a que observava no tempo de seus pais, ele diz que, naquele tempo “você poderia bater na porta da vizinha que a vizinha te dava um quilo de açúcar”, mas hoje “falta mais amor ao próximo”. Por isso, ele afirma que “hoje a gente fala que a gente não tem vizinho, a gente tem inimigos, porque se fosse vizinho não levantava esse muro dessa altura, [não] fechava por fora pra você não ver o que tem lá dentro”. Reginaldo conclui afirmando que seus vizinhos “não querem nem saber do contato que tem na rua. Entrou pra dentro de casa, fechou o portão da sua garagem, o seu portão social, acabou. Não existe aquela parte da rua”.

O desenvolvimento dessa estética da segurança ao mesmo tempo que funciona como símbolo demarcador da distinção social entre vizinhos é também reflexo desse mesmo processo de diferenciação e aumento da heterogeneidade social nas periferias urbanas. Além disso, ele aponta também para a reestruturação dos projetos de mobilidade social formulados pela primeira geração de moradores das periferias urbanas. O projeto coletivo familiar de ascensão e que tinha na melhoria do bairro sua face pública deu lugar a projetos mais individuais no qual a sociabilidade no bairro perde espaço. Com o aumento das possibilidades de ascensão social nos últimos anos, mais pessoas têm conseguido adquirir bens como TVs, celulares, videogames, computadores e, por isso, têm investido mais em equipamentos de segurança para suas residências com o intuito de proteger seus bens. Assim, as melhorias conquistadas no padrão de vida significaram também, consideráveis abalos no modo de vida mais comunitário que era valorizado por muitos moradores dessas regiões. Em grande parte, o sucesso do projeto individual frustrou as expectativas em torno do projeto coletivo que foi progressivamente abandonado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que foi exposto até aqui podemos retornar às questões colocadas neste texto em torno das contradições e complementariedades entre o padrão e o modo de vida dos moradores das periferias urbanas e a respeito da realização e transformação dos projetos de mobilidade social almejados por essas pessoas.

Os dados quantitativos apresentados mostraram que, em termos intergeracionais, houve uma importante mobilidade social nas periferias de São Paulo. Quase 60% das famílias entrevistadas tiveram uma melhoria em termos ocupacionais quando se compara a ocupação atual dos entrevistados com a de seus pais. Além disso, em consonância com a literatura a respeito do tema, foi possível observar um aumento expressivo dos níveis de escolaridade na comparação entre pais e filhos, o que não significou um acesso imediato às profissões de maior prestígio nem a melhores salários.

A parte qualitativa da pesquisa foi pensada de modo a abordar a experiência dos moradores das periferias em torno dessas mudanças em termos ocupacionais, de escolaridade e de nível de renda. Nesse sentido, foi possível notar uma heterogeneidade das experiências em torno de três grandes grupos: a) aqueles que obtiveram ganhos de renda que, embora significativos quando comparados à década de 1990, não chegam a alcançar os padrões e expectativas fordistas de décadas anteriores; b) os que conquistaram melhorias, quase sempre instáveis, nos rendimentos, tanto para aqueles que conseguiram empregos formais quanto para os que são proprietários de pequenos negócios; c) os que apostaram na educação formal como caminho para um mobilidade social mais intensa, mas se frustraram diante de salários que não alcançavam suas expectativas e de barreiras que permaneciam em termos de acesso a profissões de maior prestígio.

Ao analisarmos os elementos que compõem o modo de vida dos moradores das periferias de São Paulo e que dialoga diretamente com aspectos coletivos, há também diversas frustrações. Em primeiro lugar, há um sentimento generalizado de frustração pelos limites que essa mobilidade social representou, especialmente diante da promessa de ascensão à “classe média” e da instabilidade na inserção profissional dessas pessoas, o que as impossibilitou de avançar para além do acesso a alguns bens de consumo. Segundo, questões relacionadas à precariedade dos serviços públicos como a qualidade do transporte, da moradia, da educação, da saúde são apontados como ausência de contrapartida pública nas melhorias individuais. Finalmente, o contexto individualizador acentuado nos anos recentes provocou perdas de laços significativos no âmbito familiar e vicinal e fez com que muitos vivenciassem esse processo de mobilidade social de forma traumática. Como já alertava Thompson (1966)THOMPSON, Edward P. (1966), The making of the English working class. New York, Vintage Book., é perfeitamente possível que as médias estatísticas e as experiências humanas corram em direções opostas.

A reestruturação da sociabilidade local e dos novos arranjos familiares, além de outros elementos individualizadores vindos do próprio mundo do trabalho e da vizinhança, atuaram no sentido de reduzir a importância da vida coletiva nos projetos de mobilidade social. Para as novas gerações, não se trata mais necessariamente de almejar uma melhoria de vida coletiva que envolva a família e o bairro onde moram. Paradoxalmente, para os mais jovens, melhorar de vida do ponto de vista individual, mas seguir em um contexto de precariedade é sinônimo de frustração. Essa frustração se expressa, de um lado, no desejo de uma mobilidade geográfica para o mais longe possível das periferias ou, de outro, numa crítica ao que enxergam como perda de solidariedade entre os vizinhos. De comum, os projetos novos e antigos de ascensão têm como principal medida de sucesso o nível de renda alcançado, além do crescente desejo de ampliar os níveis de escolaridade e autonomia pessoal. A busca da qualificação e da autonomia como receitas para o sucesso podem ser lidas, em parte, como uma adesão a alguns temas do discurso neoliberal em torno do capital humano e de uma disposição empreendedora. No entanto, ao analisarmos o histórico de projetos de vida de moradores das periferias urbanas, seria mais adequado falarmos em uma adaptação e uma ressignificação desse discurso a anseios e desejos já presentes há muito entre os pobres urbanos.

Agradecimentos

O autor agradece os comentários feitos pelos colegas do International Post-doc Program do Cebrap, coordenado pela professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, a Jonas Medeiros, Alba Zaluar ( in memoriam ), Carlos Antônio da Costa Ribeiro, Mariana Cavalcanti, Edmond Préteceille, Gabriel Feltran e a seu grupo de orientados a versões anteriores do texto. O autor agradece também as valiosas contribuições que foram dadas pelos pareceristas anônimos deste artigo. Erros e omissões são evidentemente de minha inteira responsabilidade. O autor é bolsista FAPESP, processo: 2019/13125-2.

REFERÊNCIAS

  • BARBOSA, Rogério Jerônimo. (2019), “Estagnação desigual: desemprego, desalento, informalidade e a distribuição da renda do trabalho no período recente (2012-2019)”. Mercado de trabalho, n. 67, pp. 59–70.
  • BRAGA, Ruy. (2012), A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo, Boitempo.
  • BRAGA, Ruy. (2014), “Precariado e sindicalismo no Brasil contemporâneo: Um olhar a partir da indústria do call center”. Revista Crítica de Ciências Sociais, vol. 103, Maio, pp. 25–52.
  • BURAWOY, Michael. (1998), “The extended case method”. Sociological Theory. Vol. 16, Issue 1, pp. 4–33.
  • CALDEIRA, Teresa. (1984), A política dos outros: o cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo, Editora Brasiliense.
  • CALDEIRA, Teresa. (2000), Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34.
  • CARDOSO, Adalberto; PRÉTECEILLE, Edmond. (2017), “Classes Médias no Brasil: Do que se Trata? Qual seu Tamanho? Como Vem Mudando?” Dados, vol 60, n. 4, pp. 977–1023.
  • CARDOSO, Fernando Henrique; CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de; KOWARICK, Lucio. (1973), “Considerações sobre o desenvolvimento de São Paulo: cultura e participação”. Cadernos Cebrap. n. 14.
  • CARVALHAES, Flávio. (2015), “A tipologia ocupacional Erikson-Goldthorpe-Portocarero (EGP): uma avaliação analítica e empírica”. Revista Sociedade e Estado, vol. 30, n. 3, pp. 673–703.
  • CARVALHAES, Flavio; RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2019), “Estratificação horizontal da educação superior no Brasil: desigualdades de classe, gênero e raça em um contexto de expansão educacional”. Tempo Social, vol. 31, n. 1, pp. 195–233.
  • CAVALCANTI, Mariana. (2009), “Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 24, n. 69, pp. 69–80.
  • CEFAÏ, Daniel. (2009), “Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 2, n. 4, pp. 11–48.
  • CROMPTON, Rosemary. (1998), Class and stratification: an introduction to current debates. Cambridge, UK, Polity Press.
  • DARDOT, Pierre; LAVAL, Christin. (2016), A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo.
  • DUQUE, Daniel. (2019), “Levantamento do FGV IBRE aponta desigualdade recorde na renda do trabalho”. Blog do IBRE. Disponível em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/levantamento-do-fgv-ibre-aponta-desigualdade-recorde-na-renda-do-trabalho .
    » https://blogdoibre.fgv.br/posts/levantamento-do-fgv-ibre-aponta-desigualdade-recorde-na-renda-do-trabalho
  • DURHAM, Eunice Ribeiro. (1978), A caminho da cidade. São Paulo, Perspectiva.
  • DURHAM, Eunice Ribeiro. (1988), A sociedade vista da periferia. In L. KOWARICK (ed.), As lutas sociais e a cidade: São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • ERICKSON, Robert; GOLDTHORPE, John. (1992), “The CASMIN Project and the American Dream”. European Sociological Review, vol. 8, pp. 283–306.
  • ERICKSON, Robert; GOLDTHORPE, John H.; PORTOCARRERO, Luciene. (1979), “Intergenerational Class Mobility in Three Western European Societies”. British Journal of Sociology, vol. 30.
  • FELTRAN, Gabriel. (2011), Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo, Unesp.
  • FONTES, Leonardo. (2018a), “Do direito à cidade ao direito à periferia: transformações na luta pela cidadania nas margens da cidade”. Plural: Revista de Ciências Sociais, vol. 25, n. 2, pp. 63-89.
  • FONTES, Leonardo. (2018b), “O direito à periferia: experiências de mobilidade social e luta por cidadania entre trabalhadores periféricos de São Paulo”. Tese (doutorado em Sociologia). Instituto de Estudo Sociais de Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  • FONTES, Leonardo. (2020a), “Beyond the Institutional Order: Culture and the Formation of New Political Subjects in the Peripheries of São Paulo”. Latin American Perspectives, vol. 47, n. 5, pp. 79-93.
  • FONTES, Leonardo. (2020b), “Da formação cultural à mobilização social: espaços de formação e mobilização ao longo de três gerações nas periferias de São Paulo”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n o 109 (abril), pp. 51–101.
  • FONTES, Leonardo. (2021). “Pandemia, periferias e as formas elementares da vida social”. Revista Desigualdade e Diversidade, n. 20, pp. 25-50.
  • FOUCAULT, Michel. (2008), Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo, Martins Fontes.
  • GANZEBOOM, Harry B. G.; LUIJKX, Ruud; TREIMAN, Donald J. (1984), “Integrational Class Mobility in Comparative Perspective”. Research in Social Stratification and Mobility, vol. 8, pp. 3–84.
  • HALL, Stuart. (2003), “Estudos culturais: dois paradigmas”, in Dá diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG.
  • HOUT, Michael. (1988), “More Universalism, Less Structural Mobility: The American Occupational Structure in the 1980s”. American Journal of Sociology, vol. 93, n. 6, pp. 1358–1400.
  • MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (1971), Mercados metropolitanos de trabalho manual e marginalidade. Dissertação (mestrado em Sociologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  • MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2002), “Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho)”. Cadernos CRH, vol. 15, n. 37, pp. 81–109.
  • MACHADO, Weverton. (2015), “Status como distância social: uma análise empírica para o Brasil popular”. 39º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG.
  • MAGNANI, José Guilherme. (2003), Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo, Hucitec, Unesp.
  • MANNHEIM, Karl. (1952), “The problem of generations”, Essays on the Sociology of Knowledge. London, Routledge.
  • MEDEIROS, Marcelo; GALVÃO, Juliana de Castro; NAZARENO, Luisa. (2015), “A Composição da Desigualdade no Brasil, Conciliando o Censo 2010 e os Dados do Imposto de Renda”. Texto para Discussão, n. 2147.
  • MEDEIROS, Marcelo; SOUZA, Pedro H. G. F.; CASTRO, Fábio Ávila de. (2015a), “O Topo da Distribuição de Renda no Brasil: Primeiras Estimativas com Dados Tributários e Comparação com Pesquisas Domiciliares (2006-2012)”. Dados, vol. 58, n. 1, pp. 7–36.
  • MEDEIROS, Marcelo; SOUZA, Pedro H. G. F.; CASTRO, Fábio Ávila de. (2015b), “The stability of income inequality in Brazil, 2006-2012: an estimate using income tax data and household surveys”. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 20, n. 4, pp. 971–986.
  • NERI, Marcelo. (2008), A nova classe média. Rio de Janeiro, FGV/IBRE/CPS.
  • NERI, Marcelo. (2010), A nova classe média: o lado brilhante dos pobres. Rio de Janeiro, FGV/CPS.
  • NERI, Marcelo. (2018), “Qual foi o impacto da crise sobre a pobreza e a distribuição de renda?” FGV Social, Setembro. Disponível em: https://cps.fgv.br/Pobreza_Desigualdade .
    » https://cps.fgv.br/Pobreza_Desigualdade
  • PARANHOS, Ranulfo; FIGUEIREDO FILHO, Dalson Britto; ROCHA, Enivaldo Carvalho da; SILVA JÚNIOR, José Alexandre da; FREITAS, Diego. (2016), “Uma introdução aos métodos mistos”. Sociologias, vol. 18, n. 42, pp. 384–411.
  • PAULA, Marilene de. (2013), “A Nova Classe Trabalhadora e o Neopentecostalismo”. In BARTELT, Dawid (ed.), A ‘nova classe média’ no Brasil como conceito e projeto político. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll.
  • POCHMANN, Márcio. (2012), Nova Classe Média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo, Boitempo.
  • RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2007), Estrutura de classe e mobilidade social no Brasil. São Paulo, Edusc.
  • RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (2014), “Mobilidade e Estrutura de Classes no Brasil Contemporâneo”. Sociologias, vol. 16, n. 37, pp. 178–217.
  • SADER, Eder. (1988), Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • SALATA, André. (2015), “Quem é Classe Média no Brasil? Um Estudo sobre Identidades de Classe”. DADOS - Revista de Ciências Sociais, vol. 58, n. 1, pp. 111–149.
  • SCALON, Celi; SALATA, André. (2012), “Uma nova classe média no Brasil da última década? O debate a partir da perspectiva sociológica”. Revista Sociedade e Estado, vol. 27, n. 2, pp. 387–407.
  • SEAWRIGHT, Jason. (2016), Multi-Method Social Science: Combining Qualitative and Quantitative Tools. UK: Cambridge University Press.
  • SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS (SAE). (2012), Grupo de Trabalho para Definição da Nova Classe Média. Brasília, Secretaria de Assuntos Estratégicos.
  • SOUZA, Jesse. (2012), Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte, UFMG.
  • SOUZA, Pedro H. G. F.; CARVALHAES, Flávio. (2014), “Estrutura de Classes, Educação e Queda da Desiguladade de Renda (2002-2011)”. DADOS - Revista de Ciências Sociais, vol. 57, n. 1, pp. 101–128.
  • SZELÉNYI, Szonja. (1998), Equality by Design: The Great Experiment in Destratification in Socialist. Stanford: Stanford University Press.
  • THOMPSON, Edward P. (1966), The making of the English working class. New York, Vintage Book.
  • TORCHE, Florencia (2005), “Unequal But Fluid: Social Mobility in Chile in Comparative Perspective”. American Sociological Review, vol. 70, n. 3, pp. 422–450.
  • VELHO, Gilberto (1997), Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
  • ZALUAR, Alba (2000), A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo, Brasiliense (2 a edição).

NOTAS

  • 1
    . Cumpre ressaltar que essa redução relativa da desigualdade social ocorreu apenas entre os setores mais baixos e intermediário da distribuição de renda, mas teria permanecido em patamares relativamente estáveis quando se incluem dados das camadas mais altas da sociedade brasileira (Medeiros, Souza e Castro, 2015aMEDEIROS, Marcelo; SOUZA, Pedro H. G. F.; CASTRO, Fábio Ávila de. (2015a), “O Topo da Distribuição de Renda no Brasil: Primeiras Estimativas com Dados Tributários e Comparação com Pesquisas Domiciliares (2006-2012)”. Dados, vol. 58, n. 1, pp. 7–36. e 2015bMEDEIROS, Marcelo; SOUZA, Pedro H. G. F.; CASTRO, Fábio Ávila de. (2015b), “The stability of income inequality in Brazil, 2006-2012: an estimate using income tax data and household surveys”. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 20, n. 4, pp. 971–986.; Medeiros, Galvão e Nazareno, 2015MEDEIROS, Marcelo; GALVÃO, Juliana de Castro; NAZARENO, Luisa. (2015), “A Composição da Desigualdade no Brasil, Conciliando o Censo 2010 e os Dados do Imposto de Renda”. Texto para Discussão, n. 2147.).
  • 2
    . Além dos autores citados, cumpre destacar análises de cunho qualitativos como os realizados por Souza (2012)SOUZA, Jesse. (2012), Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte, UFMG. e Braga (2012BRAGA, Ruy. (2012), A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo, Boitempo., 2014BRAGA, Ruy. (2014), “Precariado e sindicalismo no Brasil contemporâneo: Um olhar a partir da indústria do call center”. Revista Crítica de Ciências Sociais, vol. 103, Maio, pp. 25–52.) que também se contrapõem à ideia de “nova classe média”. Esses autores defendem, respectivamente, as categorias de “batalhadores” e “precariado” como forma de classificar esse setor ascendente da sociedade brasileira. Para uma análise sistemática dessa bibliografia ver Fontes (2018b)FONTES, Leonardo. (2018b), “O direito à periferia: experiências de mobilidade social e luta por cidadania entre trabalhadores periféricos de São Paulo”. Tese (doutorado em Sociologia). Instituto de Estudo Sociais de Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro..
  • 3
    . Os distritos foram escolhidos para a pesquisa a partir de uma comparação de nível de renda dos microdados dos Censos de 2000 e 2010. Ambos os distritos apresentaram uma entrada relativamente alta de famílias no extrato intermediário de renda conforme critérios estabelecidos pelo governo federal (SAE, 2012SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS (SAE). (2012), Grupo de Trabalho para Definição da Nova Classe Média. Brasília, Secretaria de Assuntos Estratégicos.). De acordo com o critério adotado, esse setor intermediário teria uma renda familiar per capita entre R$ 291 e R$ 1019 em valores da época. Para mais detalhes ver Fontes (2018b)FONTES, Leonardo. (2018b), “O direito à periferia: experiências de mobilidade social e luta por cidadania entre trabalhadores periféricos de São Paulo”. Tese (doutorado em Sociologia). Instituto de Estudo Sociais de Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro..
  • 4
    . Agradeço a Mário Monteiro, pelo auxílio estatístico no recorte e seleção da amostra, bem como a Antonia Malta Campos, Juliana Borre Souza, David da Silva Junior e Fabiano Santos que contribuíram na aplicação dos questionários. Pessoalmente apliquei cerca de metade dos questionários e a outra metade foi aplicada pelos pesquisadores citados. Agradeço também a Alba Zaluar ( in memoriam) e ao CNPq e à FAPERJ que, por meio do projeto “Sociabilidade, civilidade e cidadania em três cidades brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre”, financiou a realização desse survey .
  • 5
    . Nesta seção, para cada tabela apresentada trarei o número de respondentes considerado (N), uma vez que este pode variar a depender do número de respostas válidas àquela determinada questão.
  • 6
    . Importante lembrar que, no momento da pesquisa – primeiro semestre de 2015 –, a crise econômica estava se iniciando, o que traz implicações específicas que serão aprofundadas mais adiante.
  • 7
    . Para uma análise da evolução históricas das teorias sobre classe e estratificação social ver Crompton (1998)CROMPTON, Rosemary. (1998), Class and stratification: an introduction to current debates. Cambridge, UK, Polity Press..
  • 8
    . Esse método também é conhecido como esquema CASMIN, sigla para Comparative Analysis of Social Mobility in Industrial Nations (Erickson e Goldthorpe, 1992ERICKSON, Robert; GOLDTHORPE, John. (1992), “The CASMIN Project and the American Dream”. European Sociological Review, vol. 8, pp. 283–306.).
  • 9
    . Optei por utilizar a ocupação do pai do entrevistado e não da mãe pelo fato de haver uma grande quantidade de mães que não exerciam atividades remuneradas – 42% dos respondentes –, o que reduziria significativamente a quantidade de casos que seriam analisados.
  • 10
    . Entre todos os entrevistados, apenas uma pessoa se enquadrava nessa categoria de “profissionais e administradores”. Trata-se de um dentista de 35 anos, mas ainda em início de carreira, com ganhos mensais de apenas R$ 1500,00. Esse caso será excluído das análises a seguir por não ser suficientemente representativo.
  • 11
    . Ao analisar os dados qualitativos, filio-me ao entendimento de Mannheim (1952)MANNHEIM, Karl. (1952), “The problem of generations”, Essays on the Sociology of Knowledge. London, Routledge. que propõe considerar a contemporaneidade um dado não apenas cronológico, mas definido principalmente a partir da existência de influências similares que afetam as experiências dos sujeitos. Desse modo, o “fenômeno sociológico das gerações” se fundamenta no ritmo biológico de nascimento e morte, mas de modo algum é dedutível ou está totalmente implicado nele.
  • 12
    . Os nomes foram alterados para preservar a privacidade dos entrevistados. As idades dos entrevistados se referem ao momento em que a entrevista foi realizada, ou seja, entre 2015 e 2016.
  • 13
    . Formulei a questão sobre pertencer ou não à “classe média” de forma mais explícita na maioria das entrevistas dentro do contexto da conversa sobre a história de vida dos entrevistados e como forma de estimular a reflexão a respeito dos momentos de melhora ou piora de suas condições materiais.
  • 14
    . Para uma análise dos efeitos da crise econômica sobre a desigualdade e o nível de renda dos trabalhadores ver Barbosa (2019)BARBOSA, Rogério Jerônimo. (2019), “Estagnação desigual: desemprego, desalento, informalidade e a distribuição da renda do trabalho no período recente (2012-2019)”. Mercado de trabalho, n. 67, pp. 59–70., Neri (2018)NERI, Marcelo. (2018), “Qual foi o impacto da crise sobre a pobreza e a distribuição de renda?” FGV Social, Setembro. Disponível em: https://cps.fgv.br/Pobreza_Desigualdade .
    https://cps.fgv.br/Pobreza_Desigualdade...
    e Duque (2019)DUQUE, Daniel. (2019), “Levantamento do FGV IBRE aponta desigualdade recorde na renda do trabalho”. Blog do IBRE. Disponível em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/levantamento-do-fgv-ibre-aponta-desigualdade-recorde-na-renda-do-trabalho .
    https://blogdoibre.fgv.br/posts/levantam...
    . Em Fontes (2021)FONTES, Leonardo. (2021). “Pandemia, periferias e as formas elementares da vida social”. Revista Desigualdade e Diversidade, n. 20, pp. 25-50. trabalho alguns dos impactos da pandemia de Covid-19 na desigualdade e o nível de renda dos mais pobres.
  • 15
    . É provável que Cilene tenha sido beneficiada pela aprovação da Emenda Constitucional nº 72, de abril de 2013, a chamada “PEC das domésticas” que estendeu aos trabalhadores domésticos diversos direitos trabalhistas a que antes não tinham acesso.
  • 16
    . Para um aprofundamento da relação entre mobilidade social e o desejo de sair da periferia ver Fontes (2018bFONTES, Leonardo. (2018b), “O direito à periferia: experiências de mobilidade social e luta por cidadania entre trabalhadores periféricos de São Paulo”. Tese (doutorado em Sociologia). Instituto de Estudo Sociais de Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., em especial, cap. 9).
  • 17
    . Reforço que o intuito aqui não é discutir a adequação da categoria “nova classe média”, mas apenas apontar que esse discurso não encontrou ressonância entres os sujeitos pesquisados no âmbito deste trabalho.
  • 18
    . Para uma leitura mais aprofundada a respeito da mobilização política nas periferias e a conquista de direitos sociais nessas regiões nas últimas décadas ver Fontes (2018aFONTES, Leonardo. (2018a), “Do direito à cidade ao direito à periferia: transformações na luta pela cidadania nas margens da cidade”. Plural: Revista de Ciências Sociais, vol. 25, n. 2, pp. 63-89.; 2018bFONTES, Leonardo. (2018b), “O direito à periferia: experiências de mobilidade social e luta por cidadania entre trabalhadores periféricos de São Paulo”. Tese (doutorado em Sociologia). Instituto de Estudo Sociais de Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; 2020aFONTES, Leonardo. (2020a), “Beyond the Institutional Order: Culture and the Formation of New Political Subjects in the Peripheries of São Paulo”. Latin American Perspectives, vol. 47, n. 5, pp. 79-93.; 2020bFONTES, Leonardo. (2020b), “Da formação cultural à mobilização social: espaços de formação e mobilização ao longo de três gerações nas periferias de São Paulo”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n o 109 (abril), pp. 51–101.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2020
  • Revisado
    1 Jun 2021
  • Aceito
    26 Jul 2021
Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) R. da Matriz, 82, Botafogo, 22260-100 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel. (55 21) 2266-8300, Fax: (55 21) 2266-8345 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: dados@iesp.uerj.br