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Debate sobre o artigo de Melo-Filho

Debate on the paper by Melo-Filho

Debate sobre o Artigo de Melo-Filho

Debate on the Paper by Melo-Filho

Luiz Fernando D. Duarte

Departamento de Antropologia

Museu Nacional

Dos Sonhos do Ocidente: Considerações Críticas a Propósito do Texto

Acredito que ainda se considere muito generalizante como sendo a espinhosa tarefa da Antropologia conhecer e compreender as outras sociedades em que se organizou a espécie humana: mormente aquelas que chamamos de “primitivas”. Sem sombra de dúvida, no entanto, a tarefa verdadeiramente espinhosa que temos de enfrentar é a de conhecer e compreender estas nossas sociedades (e sua cultura). E já não mais apenas porque temos consciência de que é somente através de nossos quadros analíticos que podemos interpelar a alteridade (e constituí-Ia mesmo), mas sobretudo porque – após um longo exercício de comparações antropológicas – não podemos nos eximir de tentar relativizar nossos valores, de observá-los estrategicamente como se outros fossem, distantes da espessura em que a crença social os entranha.

Uma crescente atenção tem sido dada, nesse sentido, à busca e análise do que mais radicalmente qualificaria nossa experiência histórica, de um ponto de vista comparado. Boa parte dos esforços tem se visto assim às voltas com o estatuto da Pessoa na cultura ocidental moderna, já porque esse é um nódulo esclarecedor dos valores estruturantes em toda cultura, já porque a cosmologia ocidental o investe de uma particular importância, de uma condição verdadeiramente axial. O tema do “individualismo” herdado da crítica ideológica do século XIX, tem ganho novos foros de legitimidade, por exemplo, na releitura empreendida por L. Dumont das indicações da história social de M. Weber a propósito da constituição do ideário da “liberdade” a da “igualdade” no Ocidente modemo. Ele está presente também ainda que sob outros nomes – na definição da “sociedade disciplinar” de M. Foucault, no “processo civilisatório” de N. Elias ou na revisão do “mundo psicologizado” de Ch. Lasch, de R. Sennett ou de M. Gauchet. A Antropologia não pode se queixar assim de estar sozinha nessa dura tarefa de dessacralizar (ao dessubstancializar) os nossos mais profundos valores: também da História, da Psicologia Social e de algumas das Psicanálises emergem significativas contribuições à compreensão da radical singularidade de nossa concepção de Pessoa: o indivíduo portador de uma “liberdade”, “igualdade” e “singularidade”.

Um esforço particularmente dedicado se impõe nessa espinhosa tarefa: o de fazer ver que o empreendimento crítico dessa comparação dessacralizante não significa em si uma desqualificação” desses valores. Não se trata de paralisar a cultura ocidental moderna no que tem de mais autêntico ou dinâmico porque ela acredita nisto ou naquilo. Toda cultura tem que fazer com que seus membros acreditem em algo, tem que se propor um objetivo por mais utópico ou fantástico que possa parecer. Mas esta nossa cultura tem ao lado de seus valores por assim dizer mais “substantivos” (como os da “liberdade” e da “igualdade”), outros mais “instrumentais” aos quais ela não pode deixar de estar subordinada. Um deles é o da “verdade” – na medida em que se entenda nessa categoria um mandamento de permanente inquietude, de insatisfação que não se contenta nem em si mesma, mas que sempre mais além demanda e inquire.

Não é à toa assim que D. A. de Melo Filho invoca a imagem do Fausto para expressar a dimensão mais abrangente do ideal de “indivíduo” de que está tratando. Spengler já o havia feito ao chamar de faustiana a esta civilização: a que sempre anseia, a que se redime mesmo no final da peça de Goethe – após tantos erros e horrores – por ter sempre desejado.

O autor sugere porém – e só isso explica que invoque também como pólo subordinado de sua equação o mito de Ulisses – que esse valor específico de nossa cultura seja uma espécie de coroamento de um processo de evolução universal, em que se passaria sucessivamente da natureza à cultura e da opacidade à luz (“consciência”). A versão do mito do indivíduo que nos apresenta assim é uma das muitas que compõem a cosmologia ociental. Não se trata apenas da versão a que G. Simmel chamou de “quantitativa” (e que se associa normalmente ao “liberalismo” clássico dos empiristas e dos iluministas): o indivíduo-cidadão e o indivíduo-calculador de seus meios e fins. Não se trata tampouco apenas do individualismo a que G. Simmel chamou de “qualitativo” e que associa à tradição romântica de ênfase na sigularidade, no desenvolvimento de cada indivíduo particular (sobretudo na linha da Bildung alemã, de que goethe é um epígono).

Trata-se de uma versão compósita, como são tão freqüentemente as grandes construções ideológicas do Ocidente desde o começo do século XIX. Ela herda o universalismo triunfalista do “liberalismo” e a ênfase singularizante do “romantismo”, construindo uma espécie de evolucionismo culturalizante: essa caracterização do marxismo como versão alternativa da ideologia do “individualismo” não é, aliás, novidade. Outras análises já haviam avançado como o marxismo que privilegia do binômio original o pólo da “igualdade” – por oposição ao “liberalismo” que privilegiaria literalmente a “liberdade”.

O apagamento da especificidade dos sonhos de cada cultura humana face aos nossos (e faustianos) é o primeiro preço a pagar nesse processo. Todos os outros humanos passam a constituir obtusas prefigurações da nossa forma de ser humano: outros tantos macacos de cuja anatomia é a nossa chave. A própria cultura grega, com sua identidade ambígua de mesma e outra, era figura no texto de Melo Filho como a aurora luminosa do Ocidente (na imagem romântica do “dia em que caíram as escaras dos olhos do Homem”), ora figura como o lugar da opacidade de um Ulisses que não soube ser Fausto, que se ateve à “conservação da vida” e não percebeu que seria necessário “sempre desejar”, “passar por cima de, saltando”.

O segundo preço a pagar é o de voltar a virar de cabeça para baixo a pobre história, transformando o desejado materialismo em uma metafísica – que era aliás, por motivos diferentes, o cerne da crítica de Goethe e dos demais românticos ao racionalismo iluminista: uma história que é a lenta a progressiva afirmação de um único homem, pleno de si mesmo, da autonomia do indivíduo pela razão consciente face aos constrangimentos da necessidade (natural e social). Vontade, verdade e interioridade – uma tríade que tenho proposto como chave da especificidade concreta dos valores da cultura ocidental voltam a ser figuras transcendentes a se afirmarem rumo à apoteose final.

O terceiro preço a pagar – e esse é mais lamentável, porque é mais concreto e imediato – é a insubsistência da análise, que nos apresenta o autor, do importante texto do Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde. O que poderia ser uma esclarecedora interpretação da complexa negociação social que resultou nessa curiosa e vital peça histórica a ideológica – cheia de sonhos (valores) e contradições entre os sonhos (valores) –, acaba sendo uma simples e frustrante mensuração pelo cânone metafísico de um sonho específico: o de Fausto, relido em Budapeste na segunda metade do século XX.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2003
  • Data do Fascículo
    Mar 1995
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