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Alimentos e brinquedos

Alimentos y juguetes

PERSPECTIVAS PERSPECTIVES

Alimentos e brinquedos

Alimentos y juguetes

Malaquias Batista FilhoI; Mariana Navarro Tavares de MeloI,II

IInstituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira, Recife, Brasil

IISuperintendência das Ações de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado de Pernambuco, Recife, Brasil

Correspondência Correspondência: M. Batista Filho Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira. Rua dos Coelhos 300, Recife, PE 50070-550, Brasil. malaquias.imip@gmail.com

Com aprovação preliminar da Comissão de Meio Ambiente e Defesa do Consumidor, está tramitando no Senado um projeto de lei que, por seu alcance próprio e, sobretudo, por suas implicações pedagógicas, políticas e éticas, pode exercer um papel importante no sentido de consolidar princípios, normas e instrumentos de ação que devem figurar no processo de segurança alimentar e nutricional da população brasileira. Trata-se da proibição da chamada "operação casada" alimentos/brinquedos, dirigida ao público infantil como um recurso de marketing. Ou seja, como brinde à compra de determinados produtos alimentares, as crianças são presenteadas com brinquedos, de tal forma que o lúdico muitas vezes substitui o instinto e sua expressão fisiológica, a fome, o apetite, por uma representação mercadológica: os brinquedos, como gratificações, como brindes, como souvenirs ligados à compra de chocolates, de doces, de salgados, de bebidas. Às vezes, a própria comida é a brincadeira, como iniciação ou desfecho de uma diversão infantil, na qual irmãos, outras crianças e os próprios pais fazem o papel de atores figurantes num jogo de cartas marcadas. Ou seja, já se sabe quem ganha e quem perde: ganha a esperteza da indústria e do comércio. Perdem os que entram no seu jogo.

E essa, convém notificar, é apenas a parte mais visível do problema. As formas dissimuladas ou mesmo ostensivas de marketing se insinuam por toda a parte: no visual das embalagens, no rádio e na televisão, nas prateleiras dos supermercados, nas lanchonetes de muitas escolas, nos joguinhos aparentemente inocentes de clubes infantis. Em 2011, uma tese de doutorado 1 apresentada na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, chamava a atenção para o efeito da propaganda num aglomerado de famílias de baixa renda (na verdade, uma favela, meio urbana, meio rural) num bairro de Garanhuns, Agreste de Pernambuco. É um estudo etnográfico, demonstrando o comando mercadológico dos desejos e práticas de consumo alimentar das crianças, forçando suas mães e avós, contra seus hábitos tradicionais, a comprar o que aparecia na televisão local. E, o mais maquiavélico, o jogo de figuras escondidas nas embalagens, estimulando a formação de coleções completas para se chegar a um prêmio. Estimuladas nas regras do jogo, na busca dessas coleções, mais compras, mais trocas de figurinhas, mais parcerias, mais elos na cadeia de coparticipantes. No final de tudo, mais consumo, numa rede de compra, troca e venda onde o que menos vale é a alimentação e a saúde. Comer, que é uma questão séria, está virando brincadeira de mau gosto e maus resultados para crianças e, por desfechos secundários, para as famílias, suas comunidades, para os serviços públicos, para os interesses de um ambiente saudável.

De fato, os maus hábitos alimentares das crianças começam ainda na vida intrauterina. O feto, além de sua dependência metabólica direta, mediada pela placenta, "saboreia" o que sua mãe come, familiarizando-se com o gosto dos alimentos e preparações culinárias. Dessa forma, os hábitos alimentares das crianças já começam a ser formados passivamente. Assim, antes mesmo da experiência no campo visível do "prato à mesa", pode começar, de forma subliminar, a conquista do mercado futuro dos alimentos. Mas, evidentemente, essa conquista de novos consumidores para novos produtos, criados e explorados pela concorrência aberta da indústria e do comércio, as estratégias mais ostensivas de mobilizar consumidores se faz pelo investimento direto junto às crianças que vão às praças de alimentação, às lanchonetes, aos refeitórios, aos balcões de escolas públicas e privadas, aos anúncios de televisão que, no Brasil, faturam somas fabulosas, propagando guloseimas prejudiciais, os doces, os salgados, as gorduras naturais ou artificiais, os excessos calóricos, os aditivos de toda ordem ou de qualquer desordem que as práticas mercantilistas concebem e aplicam com toda desenvoltura.

Consequências comprovadas ou potenciais? Dezenas e dezenas de efeitos, comprometendo a saúde e até levando à morte dezenas e dezenas de milhões de pessoas. Não é o caso de lembrar, mas a oportunidade de invocar como o mais crucial de todos os exemplos – a substituição massiva do leite materno pelo leite comercializado na alimentação das crianças. Durante décadas, obstetras, pediatras e nutricionistas foram mobilizados pela propaganda do leite em pó apresentado, como a forma mais prática, mais completa, mais "rica" em nutrientes e mais segura, sob o aspecto de contaminantes bacterianos e, portanto, mais recomendável para a alimentação das crianças. Sem meias palavras, Mike Muller sentenciou intelectualmente esse comportamento no clássico The Baby Killer 2 (O Matador de Bebês), tendo a mamadeira e a chupeta como instrumentos de mortes. Não menos contundente foi o manifesto de Michael Latham, no Conselho Mundial das Igrejas, denunciando, com dados epidemiológicos inquestionáveis, a complacência de instituições filantrópicas com o milk bussines que espalhou pelo mundo pobre a praga do leite em pó, em prejuízo da saudável e milenar amamentação. Embora numa linguagem mais contida, o estudo de coorte de Cesar Victora e colaboradores em Pelotas, Brasil 3, vale como um manifesto, ao evidenciar que o fato de mamar ou não mamar representa um risco 14 vezes maior de morrer por doenças diarreicas nos primeiros meses de vida. O problema se converte numa hecatombe epidemiológica. Isso em termos de mortalidade, que é o pior dos desfechos. Se se considerar outras consequências mais difusas, puxadas principalmente pelo sobrepeso/obesidade, uma espécie de "patologia basal" dos tempos mais modernos, acumulam-se as doenças ateroscleróticas, o diabetes mellitus, afecções osteoarticulares, vários tipos de neoplasias, transtornos imunológicos, algumas colagenoses e muitas outras doenças que poderiam ser evitadas ou atenuadas pela promoção de práticas alimentares e estilos de vida saudáveis 4.

Fica claro que o aleitamento materno é o melhor começo de tudo em termos de alimentação, mas não é tudo. A vigilância alimentar e nutricional é um processo contínuo e infinito enquanto dura a vida. E até mesmo depois da morte, porque as boas práticas de promoção e proteção à saúde são transgeracionais, passando de avós para pais, filhos e seus descendentes. Nessa cadeia, a fase crítica dos hábitos alimentares das crianças pré-escolares e escolares é decisiva, não pela transitoriedade destas fases da vida, mas pela extensão de seus benefícios ou malefícios para todo o ciclo vital que continua e que se reproduz para outras vidas e gerações.

Em termos conceituais, institucionais e políticos, já se ganhou a batalha do aleitamento materno. Necessita-se consolidar na prática essa vitória. Mas a guerra continua, como se comprova com as propagandas subliminares de práticas alimentares num mercado global que movimenta anualmente trilhões de dólares. O caso de se usar brinquedos para comprar comidas para as crianças é o exemplo mais atual de práticas de marketing que, aproveitando a imaturidade das crianças e a boa fé de muitos dos seus pais, violam princípios éticos e os fins saudáveis da alimentação correta. Enfim, a interdição legal da compra casada alimentos versus brinquedos deve mobilizar correntes de ideias e movimentos profissionais e chegar ao grande público, como uma causa de interesse coletivo e de zelo pela ética.

Referências

1. Gallo SKAM. Comportamento alimentar e mídia: a influência da televisão no consumo alimentar de crianças do Agreste Meridional Pernambucano, Brasil [Tese de Doutorado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2011.

2. Muller M. The baby killer: a War on Want investigation into the promotion and sale of powdered baby milks in the Third World. London: War on Want; 1974.

3. Victora CG, Smith PG, Vaughan JP, Nobre LC, Lombardi C, Teixeira AM, et al. Evidence for protection by breast-feeding against infant deaths from infections diseases in Brazil. Lancet 1987; 2:319-22.

4. Gaziano JM. Fifth phase of the epidemiologic transition: the age of obesity and inactivity. JAMA 2010; 303:275-6.

Recebido em 16/Out/2012

Aprovado em 24/Out/2012

  • 2
    Muller M. The baby killer: a War on Want investigation into the promotion and sale of powdered baby milks in the Third World. London: War on Want; 1974.
  • 3
    Victora CG, Smith PG, Vaughan JP, Nobre LC, Lombardi C, Teixeira AM, et al. Evidence for protection by breast-feeding against infant deaths from infections diseases in Brazil. Lancet 1987; 2:319-22.
  • 4
    Gaziano JM. Fifth phase of the epidemiologic transition: the age of obesity and inactivity. JAMA 2010; 303:275-6.
  • Correspondência:

    M. Batista Filho
    Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira.
    Rua dos Coelhos 300, Recife, PE 50070-550, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Jan 2013
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