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A negação da felicidade no mundo do trabalho capitalista

The denial of happiness in the capitalist world of work

Com o olhar nos contextos que interagem para formar o perfil epidemiológico relativo à saúde coletiva e à saúde do trabalhador, Domenico De Masi, no seu livro A felicidade negada11 De Masi D. A felicidade negada. São Paulo: Edições 70; 2022., apresentou um valioso instrumento para a compreensão dos processos de proteção e degeneração da saúde dos trabalhadores para esses campos de pesquisa e ação. De Masi é um dos mais renomados estudiosos da sociedade pós-industrial, da sociologia do trabalho, bem como da criatividade, do ócio e da filosofia. Professor emérito de Sociologia do Trabalho da Universidade de La Sapienza, de Roma, é muito conhecido no Brasil, assim como o conhece.

Perfazendo 153 páginas, a obra A felicidade negada nos motiva não somente a lê-la, mas a estudá-la. O livro expõe as poderosíssimas forças econômicas, políticas e ideológicas que disputam a hegemonia do poder em escala mundial. Em suas páginas, o autor, com argúcia e clareza histórica, desvela o processo trágico vivido pelos trabalhadores na precarização das relações trabalhistas e na quase extinção do trabalho, como fruto da vitória da Escola de Viena (EV) sobre a Escola de Frankfurt (EF), cujas concepções de mundo, sociedade e formas de ação são antagônicas.

O livro traz uma curta e densa introdução intitulada de “A infelicidade como desígnio”. Nela está a tese fundamental e peremptória do autor de que “não existe progresso sem felicidade e não se consegue ser feliz num mundo marcado pela distribuição desigual da riqueza, do trabalho, do poder, do conhecimento, das oportunidades e das proteções” (p. 12). A exposição, feita em duas partes, intituladas “Duas teorias” e “Duas práticas”, revela ao leitor a perspectiva crítica e engajada de De Masi. Na primeira, o autor reconstrói a história e o pensamento das duas escolas. Na segunda, mais analítica, nos expõe o desfecho com a vitória do neoliberalismo como um projeto de política econômica de infelicidade. Logo, danoso, pois é baseado no egoísmo, tendo a concorrência como método e favorecendo um processo depressivo em escala planetária (p. 116).

Ao apresentar a EF, De Masi recobra o discurso inaugural de seu primeiro diretor, Carl Grünberg, proferido em 1923, no qual afirma que “o marxismo iria ser o princípio dominante” (p. 26) do Instituto para Investigação Social. E explicita o objetivo que percorreu suas três fases: realizar uma análise escrupulosa e objetiva da estrutura social, cuja prática, pensada e organizada, tenha por base as situações reais. Essa escola multidisciplinar de notáveis intelectuais denuncia o quanto o sistema capitalista manipula a superestrutura social: ideologia, família, estética, informação e cultura de massa (p. 27). Com sua teoria crítica, ela aponta os mecanismos que promovem as desigualdades estruturais, as inequidades, às quais a epidemiologia crítica se atenta. Com Max Horheimer, Theodor Adorno e Erick Fromm, ao aliar a sociologia, o comunismo e a psicanálise, a EF reescreveu o marxismo frente às mudanças do século XX. Assim, desmascarou a civilização de repressão, através da análise socioeconômica centrada na superestrutura, ao tematizar a cultura de massa e a indústria cultural.

Nas fases seguintes, quando a humanidade padecia os horrores da Segunda Guerra Mundial, a EF problematizou a mudança da pretensão do domínio humano sobre a natureza para a lógica do domínio do homem sobre o próprio homem e o fracasso da promessa iluminista de felicidade, metamorfoseada, pelo próprio iluminismo, num ser humano escravo e massificado na sociedade. Denuncia-se o desaparecimento da liberdade do indivíduo com as mudanças das formas de servidão e são propostos a solidariedade e o amor como elementos essenciais do humanismo. E já no tempo da guerra fria, a EF tentou identificar qual classe poderia levar a cabo o processo de libertação, visto que a classe proletária se encontrava esfacelada.

No sentido oposto, a EV era formada pela elite do pensamento conservador ocidental, intelectual e economicamente liberal (p. 62-63). De Masi ironiza a EV por ser uma escola de “Vons” (p. 52). Von Mises foi um dos mais notáveis representantes dessa escola e afirmava que a EV se punha ao lado da burguesia culta e da aristocracia cultíssima na defesa dos seus interesses na decisiva luta de classes (p. 60). Distante dos liberais clássicos, que eram pedagógicos, atentos aos sentimentos humanos, por isso defensores da liberdade e da felicidade, o neoliberalismo é pragmático e estratégico. Troca-se a felicidade pela riqueza como valor central. Ao desenvolver teorias e ações objetivas no campo político, social, filosófico e jurídico, através da EV o neoliberalismo galgou posições decisivas para sua implantação, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Entrou em universidades e arregimentou discípulos como os Chicago Boys, ocupando, inescrupulosamente, lugares em governos nos mais diversos países. São paradigmáticos: Draghi na Itália e os Chicago Boys no Chile de Pinochet. Com um projeto que valoriza o mundo das coisas e desvaloriza o mundo dos homens, impôs com mecanismos autoritários e dogmaticamente seu projeto, no qual prepondera o individualismo, o subjetivismo, o mercado livre, a flexibilização das taxas de câmbio, a desregulamentação do Estado e do trabalho, trazendo ainda mais infelicidade, adoecimento e esgotamento da classe trabalhadora (p. 64).

As consequências em escala mundial da vitória neoliberal da EV são tratadas na segunda parte do livro: concentração de riqueza, empobrecimento da classe trabalhadora e sua redução a subclasse, trabalho individualizado, repetitivo, precarizado e até mesmo seu desaparecimento frente ao avanço da inteligência artificial em alguns setores produtivos e de serviços. Detalhada pelo autor em outra obra recente22 De Masi D. O trabalho no século XXI. Rio de Janeiro: Sextante; 2022., tais marcas aprofundaram-se no período da pandemia de COVID-19.

Nesse contexto, no capítulo “Trabalho”, De Masi discute o adiamento da felicidade com o repetitivo estribilho: “em suma, infelicidade”. Infelicidade provocada por pelo menos seis processos identificáveis: 1) a exploração crescente da massa trabalhadora e a consciência de que a pobreza é definitiva; 2) a demissão em massa de trabalhadores substituídos pela inteligência artificial, com o Estado reduzido e assediado pelos capitalistas em busca de subsídios; 3) uma concentração maior da riqueza; 4) a precarização dos vínculos trabalhistas, sendo as mulheres as maiores vítimas; 5) as possíveis perdas de consciência enquanto classe trabalhadora; 6) as intensas tentativas para desfigurar, alienar e aniquilar as classes trabalhadoras. Um cenário de luta e resistência para os trabalhadores.

Por fim, De Masi resgata a previsão de Keynes de que chegaríamos a uma sociedade do ócio, tema do último capítulo da obra analisada. A reflexão sobre o futuro do trabalho, sobre uma outra forma de trabalhar ou mesmo de uma sociedade que não é baseada no trabalho, é trazida pelo autor de forma provocante. De Masi retorna à questão da felicidade e cita o conhecido “paradoxo de Richard Easterlin, que diz que, se a escassez de riqueza traz infelicidade, o excesso também traz infelicidade. Será que os mega ricos e mega pobres concordam com o mesmo? Como indaga o autor, será que, se resolvendo a questão econômica, se resolve a questão da felicidade, também levantada por Keynes? A despeito de ser defensor de uma sociedade do ócio, De Masi aponta algumas possibilidades para a diminuição do sofrimento no trabalho. O autor desenvolve uma via de cinco possibilidades e soluções para se viver o momento presente: trabalho voluntariado e no terceiro setor; multi-atividade e cultura; trabalho de compromisso civil; decrescimento e jogo; e por fim o ócio criativo mediante atividades criativas.

De leitura deleitosa e instigante, A felicidade negada nos coloca diante de realidades complexas que precisam ser pensadas de maneira distinta do sonho iluminista e do método cartesiano, como estimula Edgar Morin33 Morin E. É hora de mudarmos de via: lições do coronavírus. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2021. de forma complexa e realista, nos envolvendo numa esperança amorosa e solidária. Por possuir muitos matizes europeus, podemos completá-la e contextualizá-la com a recente obra de Ricardo Antunes, que denuncia o quanto as mudanças pós pandêmicas são ainda mais sentidas no Brasil e na América Latina, onde se destacam a miscelânea do espaço de trabalho com o familiar e os desempregados das plataformas digitais44 Antunes R. Capitalismo pandêmico. São Paulo: Boitempo Editorial; 2022.. Nesse contexto, as mulheres, sobretudo as não brancas e empobrecidas, como sempre destaca Breilh55 Breilh P, Miño J. El género entrefuegos: inequidad y esperanza. Quito: Ed. CEAS; 1996., são as que mais lutam pela felicidade esquecida pelo neoliberalismo periférico. É salutar incluir a necessidade premente de proteger as conquistas protetivas universais da saúde66 Stotz EM. Saúde coletiva: conhecimento, identidade e poder. Cien Saude Colet 2001; 6(1):20-44., da assistência social e da cultura de justiça e paz, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), pois a classe trabalhadora ainda tem dificuldade em acessá-las.

A fim de que não sejamos todos reduzidos à infelicidade adoecida numa sociedade de mercado, unamo-nos na luta contra hegemônica levada a cabo pelos trabalhadores em busca da felicidade!

Este livro será de grande utilidade e estímulo para pesquisadores, profissionais de saúde, graduandos e pós-graduandos que militam na área da saúde coletiva, sobretudo nas subáreas de ciências sociais em saúde e saúde do trabalhador.

Referências

  • 1
    De Masi D. A felicidade negada. São Paulo: Edições 70; 2022.
  • 2
    De Masi D. O trabalho no século XXI. Rio de Janeiro: Sextante; 2022.
  • 3
    Morin E. É hora de mudarmos de via: lições do coronavírus. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2021.
  • 4
    Antunes R. Capitalismo pandêmico. São Paulo: Boitempo Editorial; 2022.
  • 5
    Breilh P, Miño J. El género entrefuegos: inequidad y esperanza. Quito: Ed. CEAS; 1996.
  • 6
    Stotz EM. Saúde coletiva: conhecimento, identidade e poder. Cien Saude Colet 2001; 6(1):20-44.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024
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