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Tica nasceu de papo para cima: enunciados performativos na rainha do Reisado Santa Helena*

Tica Was Born to Come Up: Performative Statements on The Queen of The Reisado Santa Helena

Resumo

Este artigo objetiva analisar a performatividade de Francisca da Silva, rainha do Reisado Santa Helena, em Juazeiro do Norte, interior do Ceará. Para tanto, pretende-se discutir como as dissidências sexuais atuam nos sentidos de agência e de resistência diante do contexto regional a partir da teoria sociológica em uma perspectiva decolonial de gênero. O percurso etnográfico considera a performance de Tica um ponto-chave para perceber os atravessamentos no rito religioso e na forma como ela pode fazer um corte no núcleo duro da heteronorma, forçando a permeabilidade ao não binarismo na poética da tradição.

Corpo; Religiosidade Popular; Transexualidade

Abstract

This article analyzes the performativity of Francisca da Silva, queen of the festival of the Reisado Santa Helena (associated to Three Kings Day), in Juazeiro do Norte, Ceará State. It discusses the role of sexual dissidence in agency and resistance to the regional context, based on sociological theory from a decolonial gender perspective. The ethnographic course considers Tica's performance as a key point to understand crossings in the religious rite and how they can influence heteronormativity, forcing a permeability to non binaryism in the poetics of the tradition.

Body; Popular Religiosity; Transsexuality

Introdução

Durante um ano e três meses, de outubro de 2016 a janeiro de 2018, realizei uma pesquisa sobre a vivência da brincante Francisca da Silva, mais conhecida como Tica, rainha do Reisado Santa Helena em Juazeiro do Norte, interior do Ceará. O objetivo inicial era analisar a performatividade de gênero de Tica e estudar a performance de Reisado, com ênfase na derivação do tipo Congo, em que o grupo da brincante se encaixa. No decorrer do trabalho, percebi que a pesquisa caminhou no sentido de perceber a forma como Tica tece uma micropolítica nos quilombos1 1 Formato de apresentação que se refere ao cortejo dançado na rua, geralmente, percorrido da casa do Mestre para o local da apresentação. de Reisado pelas ações do desejo e pela escuta do saber-do-corpo (Rolnik, 2016Rolnik, Suely. A hora da micropolítica. São Paulo, N-1 edições, 2016.).

Dessa forma, foi possível considerar a subversão da corporeidade de Tica e a produção de subjetividade na dança frente às dissidências sexuais e de gênero, principalmente, no que diz respeito ao deslocamento identitário no rígido arranjo religioso. O Reisado, inserido em um recorte regional da cidade de Juazeiro do Norte — conhecida como a terra do Padre Cícero Romão Batista2 2 Sacerdote católico brasileiro que na devoção popular é considerado santo responsável pelas romarias no Nordeste. , é uma dança popularmente católica e representa um rito religioso de passagem do menino Jesus. Portanto, este estudo considera a posição ocupada por Tica um ponto-chave para entender os atravessamentos no rito religioso e na forma como a brincante faz um corte no núcleo duro da heteronorma, forçando a permeabilidade ao não binarismo através da tradição. O figural de rainha se apresenta como dispositivo ao mesmo tempo de resistência como também de agência, uma vez que atua de forma estratégica, combativamente à dinâmica em que os discursos dominantes o encaixa nas hierarquias e nos marcadores sociais.

Esta pesquisa, que surgiu na apuração de pauta da 3ª edição do Jornal Sertão Transviado3 3 Leitura digital disponível em <https://issuu.com/sertaotransviado> , projeto apoiado pelas pró-reitorias de Extensão e de Cultura da Universidade Federal do Cariri (UFCA) no período de 2016 a 2017, visou perceber os efeitos e contextos específicos em que a teoria de gênero decolonial, em uma perspectiva de análise sociológica, se desdobra na produção cultural e regional do Reisado. Ao analisar a potência e a rasura que a transgressão na tradição apresenta, este texto tomou como principal reflexão o processo de aprendizagem com o saber tradicional, o que demarcou um desprendimento da matriz epistemológica dominante pelo sismo que Tica pode fazer na concepção de tradição com linhas de fuga.

Ao observar as relações da cultura e do gênero, captadas pelo percurso etnográfico do olhar (Oliveira, 1988Oliveira, R. C. de. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. In: Oliveira, R. C. de. O trabalho do antropólogo. São Paulo, Paralelo 15/UNESP, 1988.), este estudo levou em consideração a reinvenção dos espaços e das posições de poder em que se localizam e demarcam os corpos na sociedade. A vivência de Tica atravessada pelo discurso da tradição, distante do modo hegemônico de se pensar epistemologias, abre o campo de possibilidade entre o trânsito do corpo e da manifestação cultural. Assim, Tica chega a tecer uma hibridização dentre as noções teóricas sobre gênero e sexualidade, propondo uma reflexão a partir do saber tradicional sobre performatividade, o que pode produzir de-formações no território da ciência através do que Takeuti (2017)Takeuti, N. (De)Colonialidades e Conhecimentos: interstícios nas Ciências Sociais. Revista Cronos, 17(1), Natal-RN, 2017, pp.09-24. considera como micropolíticas do saber no interior do complexo de produção de conhecimento social.

Como destaca Barroso (2013)Barroso, Oswald. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza, Armazém da Cultura, 2013. nos Reis de Congo, tanto as figuras quanto os brincantes, historica e culturalmente estão posicionadas no âmbito masculino, sendo a grande maioria homens, embora a participação das mulheres tenha crescido nos últimos tempos e, em muitos espaços, visivelmente sempre tenha existido. Portanto, uma reflexão teórica da performance no contexto da cultura popular partiu para a investigação da possibilidade de se fazer Reisado com as ferramentas tradicionais na perspectiva do Outro, lido pelo discurso dominante da heteronorma como abjeto. O que no pensamento de Preciado (2014)PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo, N-1 Edições, 2014., seria contraproduzir o Reisado pelo viés tradicional.

O trabalho propôs a investigação das dinâmicas e práticas sociais no campo da Sociologia, principalmente no que diz respeito a abordagem de gênero e sexualidade na produção artística dos saberes populares. Ao focar na infiltração de conhecimentos artísticos expostos na performance, esta pesquisa articulou por meio do estudo da performatividade da brincante, uma reflexão sobre o sismo tencionado pela dissidência no campo da Sociologia, sobretudo na emergência de teorias queer localizadas que atuam “como um desdobramento de um movimento epistêmico rizomático, em ritmos rebeldes” (Takeuti, 2017Takeuti, N. (De)Colonialidades e Conhecimentos: interstícios nas Ciências Sociais. Revista Cronos, 17(1), Natal-RN, 2017, pp.09-24.:18). A análise partiu de perceber outros modos de coabitação de híbridos (no corpo e na tradição/nas práticas e nos saberes) a partir do eixo de descolamento epistemológico em contraponto a uma matriz universalizante que constitui a operação dominante de oposições binárias. Assim, a pesquisa possuiu caráter fronteiriço nas práticas dos saberes populares, tratando com o que Takeuti (2017)Takeuti, N. (De)Colonialidades e Conhecimentos: interstícios nas Ciências Sociais. Revista Cronos, 17(1), Natal-RN, 2017, pp.09-24. considera ser uma questão ético-política na arte tradicional para além de uma questão exclusivamente epistemológica no campo da Sociologia.

Logo, pensar o corpo político em emergência de uma epistemologia rebelde (Takeuti, 2017Takeuti, N. (De)Colonialidades e Conhecimentos: interstícios nas Ciências Sociais. Revista Cronos, 17(1), Natal-RN, 2017, pp.09-24.) enviesada no sismo do arranjo identitário e da arte tradicional do Reisado, fez-se necessário para tecer uma consideração sobre os eixos de mediação técnica na produção artística da brincante no contexto da cultura popular. Em uma abordagem latouriana do ator social, este texto sugere conexões através de uma associação entre atores humanos e não humanos, nesse contexto, entre Tica e o vestido usado no figural de rainha Reisado do Santa Helena. Desse modo, este texto procura analisar no campo sociológico por meio da pesquisa etnográfica com observação direta e caráter exploratório, como os sistemas sociais híbridos, compostos por humanos e por artefatos técnicos se organizam em processo de coalização (Lugones, 2014Lugones, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, vol. 22, no3, Florianópolis, SC, UFSC, 2014, pp.935-952.) nas cenas em rede (Latour, 2012Latour, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador; Bauru, EDUFBA; EDUSC, 2012.) do cortejo de Reis do grupo Santa Helena. O Reisado de Congo é caracterizado por Barroso (2013)Barroso, Oswald. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza, Armazém da Cultura, 2013. como o tipo da dança que usa espada, e no contexto da performance, em que a arma entra protegendo a rainha, se pode dizer pelo pensamento de Deleuze (1992)Deleuze, Gilles. Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992, pp.219-226. Tradução de Peter Pál Pelbart., que para Tica, não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas e repensar enunciados.

Da parteira, a invenção

A primeira vez que Francisca da Silva brincou Reisado, foi no grupo da alagoana Mestra Margarida Guerreira, mais conhecida como mãe dos mestres4 4 Mais informações em <https://bit.ly/2x4a3vn >. Acesso em 27 de outubro de 2017. , em Juazeiro do Norte, Ceará. Tica ocupava o figural de embaixador, mas não queria. A brincante tinha 12 anos e pediu a Mestra Margarida para ser a rainha5 5 Geralmente, como explica Barroso (2013), na narrativa tradicional do folguedo, o figural da Rainha é caracterizado por crianças do sexo feminino. do grupo, mas não conseguiu. Em seguida, continuou a brincar, dessa vez nos grupos da Mestra Lúcia, do Mestre Pedro, falecido, e de Mestre Mané Cordeiro, ainda como embaixador, mas que Tica chama de “embaixadora”. Foi no grupo de Dedé, em 2015, que pela primeira vez a brincante assumiu o papel de rainha.

“Meu nome é Francisco João da Silva, mas meu nome de guerra é Tica”6 6 Os depoimentos foram dados por Francisca da Silva, Josefa Alves e José Amaro da Silva em entrevistas concedidas a este pesquisador através de encontros que foram de dezembro de 2016 a janeiro de 2018 em Juazeiro do Norte-CE. , disse. Filha de Tereza e João, Francisca da Silva nasceu em Juazeiro do Norte no ano de 1963 em casa pelas mãos da parteira Zefa. Tica considera que é “mais feminina do que masculino”, pois de acordo com a visão da parteira, antes da leitura do discurso médico, o bebê que nasce de papo para cima tradicionalmente é mulher e o bebê que nasce de papo para baixo ou emborcado, é tradicionalmente homem. Francisca, na leitura da parteira, ao ser puxada do útero de Tereza de papo para cima, como a maioria das pessoas que possuem vagina nascem e por ter vindo ao mundo com um pênis, fissurou com base no discurso tradicional as categorias binárias de gênero.

Batizada na Igreja do São Miguel, pela unção do Padre Onofre, Tica é católica praticante. Devota de São Francisco, nome do santo em que Tereza homenageou a filha, e Padre Cícero. Hoje com 55 anos, ela contou que desde muito nova, sente dores no “espinhaço” e no “pé da barriga”, como se fossem no colo do útero, que geralmente mulheres cisgênero ou homens trans sentem próximo ao período menstrual. “Quando aperta muito eu tomo chá de gengibre com boldo e cebola branca, assim como mãe me ensinou e fazia para mim”, explicou. Aos 13 anos, já possuía cabelos longos e gostava de atividades consideradas de mulheres, como por exemplo, cuidar dos afazeres domésticos, dos irmãos mais novos e das refeições diurnas e noturnas da família. O pai, segundo Tica, já percebia trejeitos tidos como femininos e com o objetivo de corrigir as ações, comprava brinquedos vendidos como produtos para meninos para ela.

De acordo com Tica, quando o pai a via com uma boneca na mão, o resultado era violento, chegando a agressões verbais e físicas. Quando ele saía para roça ficava a mãe, os irmãos e Tica, todos dentro de casa e as mulheres agindo como deveriam agir. No começo da adolescência, Tica não sentiu necessidade de assumir algo para alguém. Fez amigas, conheceu as meninas, que ela chama de “monas”.7 7 Mona é um termo geralmente usado pela comunidade LGBTT+ para se referir aos membros da comunidade. Noites adentro, Tica passou a se conhecer enxergando a performatividade de travestis juazeirenses. Aos 15 anos, debaixo dos pés de Juá na Praça Padre Cícero, a notícia de que o filho de Tereza estava com os “entendidos” em praça pública chegava rápido aos ouvidos da família.

Na rotina, saía de casa com roupas consideradas masculinas para não irritar o pai, e na casa das amigas travestis, das colegas transexuais e de outras pessoas não binárias, a brincante montava a roupa que achava caber no seu corpo. Após uma das noites, Tica retornou para casa na garupa da motocicleta de um namorado. A mãe, ao ver a cena, se perguntou quando ela casaria com uma mulher e, pela primeira vez, Tica assumiu o posicionamento político e social sobre sua orientação sexual. “Eu disse pela primeira vez que era homossexual. Por um momento, quase fui colocada para fora de casa, pelo desejo de meu pai e meus irmãos”. A regra era ficar em casa usando a roupa que o pai queria que se usasse. A mãe aceitou aos poucos a filha se vestindo como queria. Só era inadmissível namorado na porta da casa. Que os homens que ela arrumasse “ficassem por lá”, dizia o pai. A mãe tentando convencer o pai de que a filha não estava errada, dizia: “Ele não é o primeiro do mundo, ele não nasceu porque eu pedi, foi um eclipse que Deus me deu, não imaginava que ficaria rapaz com essa sina”, lembrou Tica. Não demorou muito até Tica fazer o que chama de “se depravar”, ou seja, fazer o que queria ou ser quem era.

Com 18 anos, Francisca teve vontade de transicionar de sexo. Mas hoje não quer mais, e ter um pênis no meio das pernas, segundo ela, não a faz ser menos mulher e não a incomoda.

Se na época tivesse a possibilidade de fazer a cirurgia eu fazia, mas hoje não quero mais. Minha idade não permite mais. Muitas amigas minhas fizeram. Roberta Close8 8 Amiga de Tica, conhecida pelo nome colocado em referência à modelo Roberta Close, na época da Praça Padre Cícero. era homossexual, mas foi pra Espanha se operar e hoje é mulher perfeitamente. Ficou de verdade como mulher, mas eu me considero mulher, pontuou.

Com o passar do tempo, os pais aceitaram que ela se vestisse como quisesse no dia-a-dia. O momento passou, Tica se apaixonou por alguns homens e o amor surgiu, começou e terminou. Foi em um dos términos que Tica desacreditou de vez na paixão dos homens e pensou em ir embora. Bebeu, saiu na rua de malas prontas e decidiu ir para longe. Josefa Alves, mais conhecida como Zefinha, mãe do Mestre Dedé, ao ver o que Tica estava prestes a fazer, interveio e pediu para que ela ficasse. “Eu, como mulher, tive dó dela, que é mulher também”, contou a matriarca do grupo.

Zefinha chamou Tica para dentro de casa, pediu para ela se acalmar e tomar um banho. “Eu disse assim: Vamos aqui tomar um banho, se ajeitar, chega já um homem aí muito bom. Você vai gostar dele e ele vai gostar de você, vai ver”, relembrou a brincante mais velha do grupo. Algum tempo depois, surgiu o rapaz Cícero dos Santos que ocupava o figural de mateu no grupo Santa Helena do Mestre Dedé. “Ó Ciço, essa mulher aqui vai ser sua noiva e vocês vão casar”, disse Zefa. Tica conheceu Cícero na dança, por meio de Zefinha. Cícero começou a dançar por influência do pai, que quando vivo, era brincante.

No grupo de Reisado Santa Helena, Tica começou como embaixador, mas ela não se sentia feliz, como nos outros grupos. Falou com o Mestre Dedé para brincar como rainha, pois as meninas que brincavam não aguentavam o “rojão” nem para ensaiarem e nem para se apresentarem nos quilombos. Era 2015, e Dedé aceitou a proposta de Tica.

O Mestre Dedé, concordando com a ideia e percebendo o temor dela em sair de vestido pelas ruas juazeirenses, disse que ninguém ia “mangar”9 9 Termo popularmente usado no vocabulário cearense para se referir a gozar, rir ou caçoar de alguém. ou anarquizar. Francisca contou que naquele dia, saiu de vestido branco similar a um vestido de noiva, com luvas três quartos, maquiagem, unhas pintadas e cabelos enrolados. Na rua, muita gente ficou sem saber se Tica era mulher ou homem dentro do vestido branco de noiva. Não eram as mulheres que olhavam para ela, eram os homens. Do meio para o final da apresentação, as pessoas bateram palmas para a rainha.

Eu ficava com vergonha, baixava a cabeça. E o mestre dizia, “levanta a cabeça”. Alguns diziam “isso não é uma mulher não, é uma “bicha”, já outros diziam que eu era uma mulher certíssima. O povo ficava olhando para mim quando eu entrava nas casas na frente do grupo, para cantar o divino do Sagrado Coração de Jesus, e muita gente ficava sem saber o que eu era, mas eu só queria brincar.

No mesmo ano, o Reisado Santa Helena foi convidado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), ao lado de outros grupos de diversas manifestações culturais de todo o Brasil, para um evento sediado no Rio de Janeiro. Tica contou que foi vestida com uma camisa, calça jeans e sapato. Chegando lá, o espanto, segundo Francisca, foi deparar-se com a quantidade de pessoas “como ela”.

Eu ia com um vestido longo, maquiada, sabe? Porque é assim que eu me visto, é assim que eu me sinto bem. Mas aí eu fui com roupa de homem mesmo, porque sei lá, tava com medo de alguém dizer alguma coisa, me criticar.

No dia 11 de julho de 2017, Tica comemorou oito anos ao lado de Cícero. Tocava Aldair Playboy em um som improvisado na sala de estar da casa temporária de Francisca. Parentes, vizinhos e amigos dançavam, bebiam e fumavam. O sol alto de meio dia anunciava o almoço de comemoração da união dos dois. No fogo, o carvão queimava na lata e cozinhava um caldeirão de mungunzá e outra panela de feijoada. No meio da sala, uma mesa apresentava um bolo, trazido por um dos convidados. Nas paredes, fotos dos anos passados consecutivos em que o casal de brincantes saiu nas ruas para tirar os quilombos. Ele no figural de mateu, ela no figural de rainha.

Durante o festejo, ela não parava. Ele bebia. Ela chorava. Ele bebia. Ela partia o bolo. Ele entregava as lembrancinhas, que eram pirulitos com os nomes do casal escritos na embalagem de caneta esferográfica azul em grafia torta — comum a quem aprendeu apenas a assinar o nome nos documentos — e bebia. De esmalte vermelho nas unhas, Francisca falou que vivia junto com Cícero havia oito meses, quando em maio de 2011, decidiu realizar comunhão de bens no Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) do bairro Mutirão. Porém, a mãe de Cícero não emprestou os documentos para oficializar a união do casal. A sogra colocou Tica para fora de casa, no dia anterior à festa, chamando-a de “viado sem vergonha”. A comunhão então foi feita por palavra por um seminarista que realizava renovações nas casas populares. “O padre não faria a união de uma mulher que não era como as outras”, ressaltou Tica. Na comemoração dos oito anos de casamento, ela disse: “Estou me sentindo como me sinto na rua, de rainha”.

“Cada um é cada um, eu era junto e tenho duas filhas, mas nenhuma tem preconceito”, contou Cícero sobre o antigo casamento com outra mulher e a reação das filhas diante da companheira Francisca. Apesar dos problemas enfrentados com a família, Francisca nunca teve vontade de mudar seu nome de batismo. Tica fala que quer morrer com o nome que nasceu, pois seu nome é masculino, assim como é o nome do santo, São Francisco.

Eu vou morrer com a sina que Deus me deu. Porque eu nasci de papo para cima, e é por isso, que eu tenho feições de mulheres, nasci mais mulher do que homem. Eu nasci com os dois sexos. Eu era mais feliz, se tivesse nascido mulher, mas era para Deus ter me feito mais feminina do que masculina. Mas eu me sinto bem, não vou desfazer o que Deus me fez, se tivesse me feito mulher tudo bem, mas me faz mais feminina do que masculina. Eu quero usar sempre meu nome, eu não vou desfazer uma coisa que Deus não fez, eu vou morrer com o nome que mãe botou.

No nosso encontro do dia 26 de outubro de 2017, Tica estava angustiada. Falou que esse ano seria o último em que brinca Reisado. O motivo era a idade que avançava. Tica contou que esteve cansada dos problemas recentemente enfrentados pela condição financeira e ressaltou a posição de mulher trans como um agravante. Mas apesar disso, demonstrou-se com coragem para trabalhar nos finais de semana pastorando10 10 Expressão utilizada pela brincante para explicar a atividade de cuidar de carros estacionados na rua. carros nas vagas do bairro Pirajá. Lamentou o fato de sua carroça ter sido roubada na semana em que preparava a renovação de São Francisco. Durante a entrevista, falou que em alguns dias lavaria as roupas do grupo Santa Helena a pedido do Mestre e prepararia o figurino de cada brincante, dentre eles, o vestido a ser usado por ela na performance. Na casa dela, mais um integrante, o cachorro Doby. No momento que o animal se aproxima da sala, ela o pega nos braços, olha para o órgão genital do bicho e diz: “Tá vendo? Este é macho”.

Da espada, os cortes na heteronorma

Ao elaborar uma complexa relação entre práticas artísticas tradicionais e discussões de gênero e sexualidade, o percurso etnográfico teve como objetivo descrever e analisar o processo criativo em que está inserida a performatividade de Tica em uma perspectiva transfronteiriça de análise do gênero. O que permitiu pensar a potência da brincante a partir de dizibilidades preexistentes sobre cultura popular como campo da tradição, sendo a tradição um campo marcado pela heterossexualidade. Para tanto, pelo viés do corpo colocado em cena na linguagem artística tradicional do Reisado de Congo, foram observados os processos que estruturam a singularidade da prática e o tensionamento dos lugares identitários demarcados pela heteronormatividade e cisgeneridade. No que se refere aos enunciados performativos, coube a reflexão do que pode o corpo para além da identificação diante das estratégias de renegociação da identidade que apareceu na reapropriação dos discursos de produção do poder e das micropolíticas do saber (Takeuti, 2017Takeuti, N. (De)Colonialidades e Conhecimentos: interstícios nas Ciências Sociais. Revista Cronos, 17(1), Natal-RN, 2017, pp.09-24.).

Para Bento (2017)Bento, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. EDUFBA, Salvador, 2017., a Sociologia da abjeção surge com o objetivo de compreender o porquê da proliferação dos que estão de fora, logo, os invisibilizados. A autora propõe “uma relação entre as condições de vida desumanizadoras das pessoas trans e o silêncio da Sociologia em torno de suas existências” (Bento, 2017Bento, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. EDUFBA, Salvador, 2017.:50). Os conceitos de abjeção e de sujeitos abjetos partem de uma reformulação da categoria de gênero ao apresentarem críticas às concepções estruturalistas e estáticas de identidade. “As pessoas só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade de gênero” (Butler, 2003Butler, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990].:37). Butler reforça que as noções de coerência e de continuidade produzem efeitos diante das normas sociais instruídas e mantidas, portanto, enfatiza que

o gênero não decorre natural e incontestavelmente de nosso aparato genital, mas sim de regras histórica e discursivamente produzidas que instituem como o corpo-sexuado deve ser generificado (Butler, 2003Butler, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990]., apudBorba, 2014Borba, Rodrigo. A linguagem importa? Sobre performance, performatividade e peregrinações conceituais. cadernos pagu(43), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2014, pp.441-473.:446).

Assim, as performances de gênero não acontecem livremente, pois as ações cotidianas estão inseridas em uma estrutura rígida (heterossexualidade compulsória e os discursos que a sustentam) que delimitam suas possibilidades. Performatividade não se restringe apenas ao campo da performance; pode ser vista como o que possibilita e potencializa a performance. Como explica Borba (2014)Borba, Rodrigo. A linguagem importa? Sobre performance, performatividade e peregrinações conceituais. cadernos pagu(43), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2014, pp.441-473., entender o gênero como meramente performativo não é lê-lo como uma performance, mas sim entender como ele é produzido durante a performance. Portanto, para Butler (2003)Butler, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990]. não existe identidade de gênero antes da interpelação linguística. “Entender a identidade como uma prática (...) significante é compreender sujeitos culturalmente inteligíveis como efeitos resultantes de um discurso” (Butler, 2003Butler, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990].:208).

Desse modo, “discutir gênero é transitar por um conjunto de teorias e de concepções e explicações sobre o que é ser masculino e feminino” (Bento, 2017Bento, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. EDUFBA, Salvador, 2017.:107). É nesse trânsito que reside o cruzamento de performatividades transfronteiriças em Tica: a primeira começou quando a parteira fez a leitura do corpo da brincante pela ordem do discurso tradicional e condicionou a construção sobre a percepção da transexualidade que foge do que seja considerado masculino e feminino; e a segunda se iniciou quando Tica aprendeu a brincar Reisado nas primeiras apresentações através da observação e da repetição dos atos do mestre do grupo. Os dois processos permitiram Tica incorporar a rainha no rito de performance religiosa.

Quando a parteira colocou o corpo de Tica nos braços, fez uma invocação performativa na expressão descrita de que ela é um menino, só que com a errata de que ela será mais feminina, pois nasceu de papo para cima, assim como nascem as meninas, no discurso da parteira.

Esses performativos do gênero são fragmentos de linguagem carregados historicamente do poder de investir um corpo como masculino ou como feminino, bem como de sancionar os corpos que ameaçam a coerência do sistema sexo/gênero (Preciado, 2014PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo, N-1 Edições, 2014.:28).

O discurso da parteira, apesar de inserido na máquina heterossexual, reestruturou a noção de feminino e antes de reinscrever práticas de gênero no corpo de Tica, acabou por deixar uma frecha no binarismo que corrige corpos. Como explica Bento (2017)Bento, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. EDUFBA, Salvador, 2017. ao discutir o corpo cirurgiado na leitura do discurso médico:

Quando essa criança nasce, ela não é um corpo, uma natureza, um conjunto de células, mas sim um corpo generificado, cirurgiado no sentido de que já há uma cultura de expectativas por aquele corpo; ele não está livre dos imperativos (Bento, 2017Bento, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. EDUFBA, Salvador, 2017.:109).

Essa frecha fez com que Tica compreendesse sua vivência atravessada pelo feminino. De acordo com Butler (2001)Butler, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: Louro, Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. 2.ed. Belo Horizonte, Autêntica, 2001, pp.152-172. a performatividade é compreendida não como “ato”, mas como uma prática nomeada e produzida pelo discurso, logo, “as normas regulatórias do sexo trabalham de uma forma performativa para construir a materialidade dos corpos, e mais especificadamente, para materializar o sexo do corpo” (Butler, 2001Butler, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: Louro, Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. 2.ed. Belo Horizonte, Autêntica, 2001, pp.152-172.:154). As práticas regulatórias podem ser lidas pelas violências cometidas pela família de Tica, a começar pela imposição do uso dos brinquedos tidos como de menino até o uso das roupas tidas como masculinas. No figural de rainha, Tica imita o gênero feminino e relembra as noções de drag queen destacadas pela autora:

Ao imitar o gênero, a drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência. Aliás, parte do prazer, da vertigem da performance, está no reconhecimento da contingência radial da relação entre sexo e gênero diante das configurações culturais de unidades causais que normalmente são supostas naturais e necessárias (Butler, 2003Butler, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990].:196).

É interessante perceber como o vestido branco de rainha faz com que o pensamento de Lorde (1984)Lorde, Audre. The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House]. In: Lorde, Audre. Sister outsider: essays and speeches. New York, The Crossing Press Feminist Series, 1984, pp.110-113., cujo trabalho trouxe experiências conflitivas no campo da teoria feminista multicultural sobre gênero nos Estados Unidos durante anos 80, seja revisitado sobre a produção de intersecções no recorte de gênero. Ao ser perguntada se saiu como mulher nas apresentações, assim como se identifica, Tica contou, ao se ver no espelho, que saiu como rainha. Assim, os papeis que os figurais do Reisado desempenham ao inscreverem no corpo dos brincantes a narrativa da performance fazem com que Tica vá além do corpo-mulher e entenda o cortejo na rua como um espaço possível e legítimo. Ao colocar colchetes entre os marcadores sociais de homem e de mulher, as análises dos dados etnográficos permitiram centrar o olhar pela dissidência sexual e de gênero que foi produzida a partir das contribuições de Lugones (2014)Lugones, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, vol. 22, no3, Florianópolis, SC, UFSC, 2014, pp.935-952. sobre o lócus fraturado, marcado pela presença de subjetividade ativa.

Portanto, no campo da teoria sociológica para esta pesquisa foi considerada a Sociologia das Associações, como pontua Latour (2012)Latour, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador; Bauru, EDUFBA; EDUSC, 2012., à medida que o pensamento desse autor complementou a cosmologia de Tica na noção tradicional de gênero através da Teoria Ator-Rede, em que ele busca redefinir a sociologia não como ciência do social, mas como uma busca de associações entre elementos heterogêneos. A crítica de Latour destaca as limitações do domínio da Sociologia e aponta a capacidade da pesquisa em dar aos atores um espaço para se exprimirem e para que sejam eles mesmos os autores das teorias, dos conceitos, das categorias e dos marcos. Nesse sentido, este texto não pretende explicar, mas sim descrever o que Tica faz para expandir, relacionar, comparar e organizar as dinâmicas sociais do grupo de Reisado.

Em performance, Tica sai de um espaço em que seu corpo é abjeto para outro em que seu corpo é legítimo. O corpo aparece endossado na performatividade enviesada dentro do vestido branco na hora em que os quilombos são puxados nas apresentações. Nesse sentido, foi trazido o que Lugones (2014)Lugones, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, vol. 22, no3, Florianópolis, SC, UFSC, 2014, pp.935-952. chama de lócus fraturado, como ponto de partida para marcar territorialidade e temporalidade na narrativa da brincante frente ao reposicionamento dos sujeitos na ordem discursiva. O pensamento da autora fez-se imprescindível para se pensar sobre a colonialidade do gênero, principalmente, nas noções tecidas por ela sobre colonização das memórias e da relação intersubjetiva da noção de si. Entendeu-se a fratura como um entrelugar possível para se pensar sujeitos, cenas e contrações identitárias, capazes de desbloquearem pensamentos centrados e se abrirem perspectivas subalternas dos usos do corpo e dos desejos nas narrativas populares.

A Sociologia das Associações em Latour (2012)Latour, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador; Bauru, EDUFBA; EDUSC, 2012., ao destacar o espaço em que os atores detêm autonomia dos relatos de si, assemelha-se ao processo de coalizão no giro decolonial de Lugones (2014)Lugones, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, vol. 22, no3, Florianópolis, SC, UFSC, 2014, pp.935-952., quando a autora destaca a necessidade de se mover contra uma análise sociocientífica objetificada, para assim compreender sujeitos e enfatizar “a subjetividade ativa na medida em que busca o lócus fraturado que resiste à colonialidade de gênero no ponto de partida de coalizão” (Lugones, 2014Lugones, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, vol. 22, no3, Florianópolis, SC, UFSC, 2014, pp.935-952.:948). Logo, a atividade criativa de ser-sendo e a inventividade do social, em que o brincante existe e resiste, produz ele mesmo. Tica, na análise sociológica a partir da Teoria Ator-Rede, habitou a resistência performada por um sujeito ativo (Rolnik, 2016Rolnik, Suely. A hora da micropolítica. São Paulo, N-1 edições, 2016.) em cena no cortejo de Reis. Foi ainda possível associar por meio da Sociologia proposta por Latour (2012)Latour, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador; Bauru, EDUFBA; EDUSC, 2012., a agência do vestido de rainha na dança como um “mediador” capaz de modificar as relações de forças e gerar significados.

O que Lugones (2014)Lugones, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, vol. 22, no3, Florianópolis, SC, UFSC, 2014, pp.935-952. explica por ética de coalização-em-processo complementa-se no campo da produção artística a partir da margem subjetiva, lida por Takeuti (2010)Takeuti, N. M. Refazendo a margem pela arte e política. Nómadas, 32, Colômbia, 2010, pp.13-26. como uma reflexão no interior dos estratos de agenciamentos sociais complexos com a intervenção artística política. Tanto o discurso da parteira quanto o vestido do figural de rainha se aproximam do conceito de linhas de fuga (Deleuze; Guattari, 1997Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs. vol. 4. São Paulo, Editora, vol. 34, 1997.). Em paralelo, o arranjo dos brincantes através do agir coletivo do Reisado em cena se aproxima das relações de força (Deleuze, 1998Deleuze, Gilles. Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998 [1977].) diante das paisagens cotidianas da inventividade da dança nas ações de atuação social.

Dos quilombos, estratégias performativas

José Amaro da Silva é o Mestre do Reisado Santa Helena em Juazeiro do Norte. Localizada no bairro Frei Damião, a sede grupo atua na cultura popular há mais de 30 anos. No último encontro, o Mestre Dedé, como é conhecido entre os brincantes e na comunidade, contou que dos 28 grupos de Reisado da cidade, apenas três saem na rua para batalhas de espadas. Ao relembrar as apresentações do Santa Helena, Mestre Dedé ressaltou que o Reisado é profissão. “Para trabalhar como nós, tirar quilombo o dia todo como nós, Dia de Natal, ano novo e Dia de Reis, só dá nós”, disse.

Quando falou sobre o grupo, ele explicou o desejo de ter um grande boi como entremeio11 11 Termo explanado por Barroso (2013) para exemplificar a posição dos bichos na dança de Reisado. no Santa Helena, assim como o que viu em uma apresentação em Bacabal do Maranhão, considerado por ele bonito e parecido com o da tradição, usado no Bumba-Meu-Boi. O mestre explicou todo o processo de feitura do bicho, chamado o Boi de Costelas, ensinado pela Mestra Dona Augusta, falecida esposa do Mestre Pedro, mãe de leite e criação de Dedé. Pelo que Dedé ensinou, coloca-se primeiro a cabeça do boi — a cabeça de um animal morto — em cima de um pau e em seguida, solicita-se um brincante para entrar debaixo do bicho e “se transformar” no boi.

Dentro do entremeio, as costelas são feitas de cipó e servem para dar volume ao bicho. Coberto por um tecido branco tingido pela cor preta de quiboa12 12 Material utilizado pelos brincantes para pintar o rosto antes da encenação. , em que são feitos detalhes desenhados de estrelas com cola e lantejoulas de cor amarela e azul. O rabo precisa ser costurado às avessas, “assim como tiramos o fato13 13 Vísceras do animal morto. do boi mesmo”. Retalhos de panos são enfiados dentro do rabo costurado, que necessita ter na ponta fitas azuis, brancas e vermelhas. Perto da cabeça, costura-se um forro com tecido de véu de noiva para o brincante, de dentro do boi, enxergar o caminho a ser visto. Na cabeça, a carcaça do boi fica de fora com duas bolas de bilhar na cor azul ou preta nos olhos. Antes do procedimento, a cabeça do animal, de acordo com Dedé, precisa ser enterrada para a terra comer a carne até que reste apenas o couro cru. “O chão quente come tudo por dentro”, disse ele.

Quando perguntado sobre a quantidade de brincantes, o Mestre destacou aqueles figurais que brincam de graça e aqueles outros que brincam com cachê. De acordo com ele, cerca de dez brincantes ainda se apresentam sem custo, o restante desiste quando descobre que não irá receber pela apresentação. Os figurais que não podem faltar são o mateu e a catirina. Na última apresentação, na Festa de Nossa Senhora das Dores, ele contou ter ido pela santa, não pelo cachê. Na ocasião, muitos brincantes desistiram. As posições em performance dispõem de seis figurais de um lado e seis de outro, a princesa e a rainha ficam na frente com o príncipe e o rei. Dedé contou que o figural ocupado por Tica é uma invenção dele, “Tinha só a princesa, aí inventei de botar rainha”.Ao todo são quase 20 brincantes. Um Embaixador fica no lado esquerdo e outro no lado direito, no meio a rainha, a princesa, o mestre e os reis. Antigamente, tinha até o contracoice ou contramestre, que tomava o posto do mestre quando este se cansava, nas apresentações. Os respectivos figurais entregavam o apito para um segundo brincante e em seguida para um terceiro, até o mestre recuperar o fôlego. Assim, fazem-se os dois cordões dos quilombos, ou seja, o cordão completo da performance cênica.

Antes também havia a bandeirinha que revelava a intenção do grupo de Reisado em desafiar o outro na batalha de rua. Havia a branca e a vermelha, a primeira simbolizava a paz, uma vez levantada anunciava que o grupo não queria competir, e a segunda simbolizava guerra, ou seja, um grupo teria que tomar a rainha do outro até o apito soar pela redenção. Na apresentação de batalha, o embaixador entra com um cordão dentro do outro e vai dançando batendo os pés no chão, fazendo o trupé.14 14 Nome dado por Dedé ao que ele chama de sistema de pés, em que a brincante dança com fortes pisadas no chão, emitindo um som que se confunde com a zabumba, caixa e pife, além da voz na cantoria. A rainha vai à mão do rei, o mestre e o mateu são responsáveis por todo grupo, mas a principal diferença é que o mestre manda e o mateu obedece. Nas apresentações em renovação, o mateu abre a porta após o mestre pelejar e pedir para ele começar a reza.

O cortejo dura aproximadamente 60 minutos. Uma das peças retiradas na performance é do jaraguá. O bicho pega a espada da mão do mestre, ajoelha-se aos pés da dona da casa, em caso do espetáculo ocorrer em uma cerimônia de renovação, e depois nos pés de quem está assistindo. Na cena, ele corre atrás do mateu entre a plateia. Mas, para a sequência correta de atos acontecerem, Dedé primeiro procura saber qual será o primeiro bicho a sair. Isso depende de quantos deles a pessoa da casa — homenageada — quer que o mestre apresente, assim como também quantas horas de apresentação durará o cortejo e quanto será pago pela performance. Mas dinheiro nem sempre importa. Para ele tendo no almoço carne de porco, galinha caipirinha e “cana escondida para tomar sem ninguém ver, a dança fica mais alegre”. “Reisado é como uma galinha quando vê espanta e fica alegre. Tem que ter tira gosto, jantar, café e bolo. Com tudo isso, eu quero mais o que?”, refletiu Dedé.

Na renovação não tem batalha, apenas nas apresentações em datas comemorativas e nos festivais. Após chamar o primeiro bicho na renovação, Dedé saúda a pessoa que detém a propriedade da casa com mais uma cantoria. Na ocasião, o mateu reza o rosário — fazendo piadas — para abrir e fechar a porta. O mestre precisa dizer: “Reza o rosário direito!”, ameaçando o mateu com a espada. Na cena, ele pode se defender, falando, por exemplo: “O que é isso mestre, você vai me matar com a espada?”.

Dedé recordou que uma vez a Mestra Margarida lhe disse: “Se você quiser ser um mestre, seja um mestre”. A frase complementa um pouco sobre o que o mestre falou diante da intimidação e da afirmação do grupo de Reisado em determinada localidade. Dedé explicou que não se pode desviar de uma batalha, “se você cortar caminho, cortar com medo não pode, tem que se encontrar, do jeito que for”, disse. O mestre articulou que antes de entrar em cena há toda uma preparação, que começa do banho e vai até a entrega do corpo a Deus, terminando na refeição após a apresentação. A batalha representa um episódio importante na performance cênica do Reisado, mas antigamente, representava uma brincadeira séria. Para Dedé, o jogo de espadas além de disputa territorial, simboliza a honra do mestre frente aos brincantes do grupo e da comunidade.

Considerações finais

É possível perceber nas mediações da cultura popular da região do Cariri cearense a presença subversiva da performance na produção de sentido de cultura. Como rainha, Tica alcança uma poética que afirma um novo olhar sobre o que seja considerado tradicional através de uma complexa relação entre a prática do Reisado e a dissidência sexual e de gênero. Ao deslocar o corpo com sua percepção sobre a transexualidade, Tica contraproduz o saber popular e territorializa um enunciado performativo, em que ela é criadora da arte e do seu corpo que, localizado no enredo da cena, aparece como um elemento problematizador de uma linguagem tradicional.

Meu último encontro com Tica, datado no dia 5 de fevereiro de 2018, foi na Praça do Socorro, em dia de Procissão de Candeias do Padre Cícero. De longe, ela observava algumas crianças meninas rainhas ensaiando em conjunto antes de adentrarem a multidão de fiéis. Ao lado de Cícero, Tica falou que no ano de 2018 faria 55 anos, logo, não poderia mais ser rainha. Disse que pretende parar um pouco e até pensa em brincar, mas em outro figural. Como rainha, ela já encerrou um ciclo.

Durante toda a pesquisa, procurei enxergar o que Barroso (2013)Barroso, Oswald. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza, Armazém da Cultura, 2013. chamou de encantamento e desencantamento do brincante no Reisado. E o encantamento se dá em Tica, quando na frente do espelho ela se olha e sempre se surpreende com a rainha ou princesa que ela vê ali na frente. “Eu fico muito diferente, olha!”. Além disso, reparei no emaranhado de vínculos que esta pesquisa estabeleceu, alcançando o desencantamento. Um dos momentos mais marcantes foi quando Tica, após receber o repórter Demitri Túlio em entrevista para o almanaque Rotas do Semiárido, do jornal O Povo, no dia 9 de julho de 2017, me chamou para ajudá-la a fechar o zíper nas costas do vestido branco do figural.

Em um dos últimos momentos, vestida com o traje de rainha que estava dobrado na sacola em cima do guarda-roupa, Tica contou que, quando morrer, quer ser enterrada assim como a travesti Pâmela Pamaneck,15 15 Ler mais em: <http://blogs.diariodonordeste.com.br/cariri/policia/travesti-e-encontrada-morta-em-moreilandia-pe-a-vitima-morava-em-juazeiro/> sepultada no cemitério de Barbalha, no dia 27 de setembro de 2017 após ser assinada em Moreilândia, Pernambuco. Nem de calças, nem de vestido, mas de roupão, em uma roupa que sirva para ela na hora de partir. Na reta final desta pesquisa, percebi pausas frequentes nas falas de Tica durante os encontros. Mas, assim como destaca Lopes (2006)Lopes, Denilson. Da estética da comunicação a uma poética do cotidiano. Comunicação e experiência estética. UFMG, Belo Horizonte, 2006., as pausas também falam. Talvez, a pesquisa tenha começado mesmo, agora.

Referências bibliográficas

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  • Túlio, Demitri. A rainha Tica. Jornal O Povo: Almanaque Rotas para o Semiárido, Caderno Especial, Fortaleza-CE, 2017, pp.2-3.
  • 1
    Formato de apresentação que se refere ao cortejo dançado na rua, geralmente, percorrido da casa do Mestre para o local da apresentação.
  • 2
    Sacerdote católico brasileiro que na devoção popular é considerado santo responsável pelas romarias no Nordeste.
  • 3
    Leitura digital disponível em <https://issuu.com/sertaotransviado>
  • 4
    Mais informações em <https://bit.ly/2x4a3vn >. Acesso em 27 de outubro de 2017.
  • 5
    Geralmente, como explica Barroso (2013)Barroso, Oswald. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza, Armazém da Cultura, 2013., na narrativa tradicional do folguedo, o figural da Rainha é caracterizado por crianças do sexo feminino.
  • 6
    Os depoimentos foram dados por Francisca da Silva, Josefa Alves e José Amaro da Silva em entrevistas concedidas a este pesquisador através de encontros que foram de dezembro de 2016 a janeiro de 2018 em Juazeiro do Norte-CE.
  • 7
    Mona é um termo geralmente usado pela comunidade LGBTT+ para se referir aos membros da comunidade.
  • 8
    Amiga de Tica, conhecida pelo nome colocado em referência à modelo Roberta Close, na época da Praça Padre Cícero.
  • 9
    Termo popularmente usado no vocabulário cearense para se referir a gozar, rir ou caçoar de alguém.
  • 10
    Expressão utilizada pela brincante para explicar a atividade de cuidar de carros estacionados na rua.
  • 11
    Termo explanado por Barroso (2013)Barroso, Oswald. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza, Armazém da Cultura, 2013. para exemplificar a posição dos bichos na dança de Reisado.
  • 12
    Material utilizado pelos brincantes para pintar o rosto antes da encenação.
  • 13
    Vísceras do animal morto.
  • 14
    Nome dado por Dedé ao que ele chama de sistema de pés, em que a brincante dança com fortes pisadas no chão, emitindo um som que se confunde com a zabumba, caixa e pife, além da voz na cantoria.
  • 15

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2017
  • Aceito
    11 Set 2018
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