Acessibilidade / Reportar erro

"Olly e nós": Entrevista com Adriana Nunes Souza, autora da obra selecionada para a capa da 68ª edição da revista cadernos pagu - segunda edição comemorativa dos 30 anos do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e da revista cadernos pagu

Gabriela, Julian e Natália: Conte um pouco para nós sobre sua trajetória artística. Como você começou a desenhar? Você também atua com outras vertentes das artes visuais?

Adriana: Desenhar foi uma paixão acidental. Bem no início da pandemia, Patrícia Reinheimer, que foi minha orientadora na graduação, propôs a atividade on-line "oficina de desenho para quem não sabe desenhar". Eu me encaixava nesses termos, entrei! Após esse primeiro contato com papéis, tintas, ideias, me deparei com este exercício artístico do corpo: mentes e mãos a postos para se embrenhar em uma tarefa cheia de experimentações. Essas vivências evidenciaram pra mim uma nova forma de pensar e produzir conhecimento. Uma nova forma de me conectar com o mundo, até então pandêmico e distante. Nós, antropólogos, estudamos a cultura e seu significado relacional com o entorno (coisas, pessoas, encadeamentos), porém, por vezes, não percebemos como o desenho, assim como a escrita, é uma forma de linguagem na qual a intenção e a realização se desafiam em um processo constante de mediação das simbolizações. Laçada por essa bela oportunidade da conjuntura, já aproveitei a reaproximação com a Patrícia para realizar meu projeto de mestrado. Aliei o desenho às minhas elucubrações sobre a concepção histórica do corpo e como ela se modifica engendrando saberes. Ao invés de fazer apenas anotações, os desenhos surgiram como práxis. Um ensaio vivido e contado que pode invadir os sentidos do ilustrador e do leitor de forma múltipla e, assim, duradoura. O corpo é, cada vez mais, percebido como lugar de experiências únicas e produtor, através dos sentidos, de formas de conhecer e, assim, o desenho é uma técnica que emerge como ferramenta epistemológica, como forma de acessar os sujeitos pesquisados e como prática de memorização. Antes de me aventurar no desenho em meus trabalhos, eu já pensava sobre a patologização de existências subalternas e como a arte está presente exemplificando discursos e/ou apresentando possibilidades de ressignificações. Mas essa posição de "produtora da arte" é nova. Me considero uma antropóloga desenhista. Não assumi a carapuça de artista. Atualmente curso mestrado em Ciências Sociais pela UFRRJ e pesquiso, a partir do recorte de gênero, a diferença nas estratégias de visibilidade das artistas e dos artistas surrealistas no Instagram. Minhas ilustrações recentemente participaram da VI Muestra Internacional de la Mujer 2021 realizada na Argentina; fiz a capa de uma coletânea de artigos produzida na oficina de escrita ministrada por Patricia Reinheimer (UFRRJ); a subcapa dos Anais das Jornadas John Monteiro 2021; e minha etnografia ilustrada de dois eventos online, 32ª Reunião Brasileira de Antropologia (2020) e as Jornadas de Antropologia John Monteiro de 2021, receberam menção honrosa do Prêmio Pierre Verger edição 2022.

G.J.N.: Como você considera que sua trajetória se relaciona com os feminismos? Particularmente, teorias feministas e os estudos de gênero te inspiram de alguma maneira?

Adriana: Meu primeiro trabalho acadêmico tinha como personagem principal Estamira, do documentário homônimo de Marcos Prado. Ela tinha sua vida em muitos aspectos pautada pela repressão, afinal, era mulher, periférica, negra, colonizada, louca, sobrevivia do lixão. O feminismo esteve muito presente justamente na discussão de que se há presença da vulnerabilidade há uma consonante perda da liberdade, pois as condições que conduzem à vulnerabilidade diminuem as possibilidades de escolha. Episódios de violência psicológica e sexual fizeram parte da vida de Estamira e de todas nós, mulheres, nos mais variados graus. A violência contra a mulher tem natureza e arquétipos que a distinguem de outras violências porque as mulheres na maioria das vezes são vítimas de pessoas do convívio familiar, sejam marido, pai, padrasto, tios, primos e outros. Percebemos que a personagem sofre violência social pelo preconceito e estigmatização; violência intrafamiliar que se exemplificou na forma de abuso sexual, abuso psicológico e negligência, e violência institucional sofrida pelo atendimento das instituições de saúde que não ofereceram em sua vida um amparo para proporcionar de forma efetiva a produção de seu bem-estar. Essa desapropriação da própria vontade, a desapropriação do seu corpo e a submissão a situações psicológicas limítrofes podem ser caracterizadas, enfim, como uma violência ampla, uma violência estrutural. Dessa forma, a interseccionalidade desbravada por Lelia Gonzalez, a compreensão da mulher negra por Sueli Carneiro, a condição da colonização da memória e das subjetividades evidenciada por Lugones e o silêncio medular intentando pela condição de ser mulher, visto em Spivak, foram cruciais para minha trajetória de vida e estudo. Neste momento, fazendo uma etnografia das redes, com dados de postagens no Instagram nas hashtags #surrealism, #surrealismo, #surréalisme, #超现实主义, #シュールレアリズム, #초현실주의, revelo diferenças nas estratégias de visibilidade utilizadas pelAS artistas surrealistas em comparação com OS artistas surrealistas no Instagram. Esse aplicativo, por si, favorece as imagens, mas, observa-se que as artistas se exibem mais. Muitas vezes, aparecem junto de suas telas, valorizando sua beleza além de sua produção, enquanto os homens tendem a postar apenas suas obras. O corpo da mulher, historicamente, possui a condição de ser publicizado mais facilmente. Logo, é possível analisar essa condição pela objetificação do corpo da mulher ou como uma estratégia de existência, afinal, a representação feminina sempre foi abundante na arte, mas não na posição de produtora. Essa combinação entre artista/musa e seu servilismo ou insurreição é o tema central dessa minha pesquisa atual. Ou seja, as discussões de gênero embasam meu olhar e configuram esse campo de disputas no qual indivíduos desenvolvem estratégias para se desviar/encaixar nas normas.

G.J.N.: Você conhecia a cadernos pagu? Conhecia a revista e as capas da revista em suas edições impressas? Conte um pouco sobre a sua relação com a revista?

Adriana: Desde 2009 acompanho as publicações da cadernos pagu. A revista tem destaque na construção de minhas discussões tanto em momentos "à paisana" coroados pelos debates acalorados em volta da mesa, quanto dentro da academia. O periódico articula narrativas, memórias, faz e interpreta a história do meu lado da trincheira. Dessa forma, é animador estar no meio disso! A curadoria relevante e facilidade de acesso da cadernos pagu são pontos vitais de sua construção e a colocam como atuante na constituição do pensamento sobre gênero no Brasil. Agora, não dá pra negar que as capas fazem diferença nesse imaginário gostoso que é ver algo novo, se afetar, querer saber mais. A consonância simbólica entre capa, título e textos é um conjunto que soma muito na experiência final. Tanto que uma das capas que mais me interessa é a da edição n. 14, Corporificando Gênero (2000) e nela estão artigos que eu amo. Essa simbiose transforma a experiência do periódico em algo mais memorável. Trazer o desenho para ajudar a ver esses diálogos possíveis sobre o real.

G.J.N.: Agora, gostaríamos de saber um pouco mais sobre a imagem "Olly e nós", desenho sobre papel, Adriana Nunes de Souza, 2022, que ilustra o nº 68 da cadernos pagu de 2023, reinaugurando as capas da revista no ano em que o periódico celebra 30 anos de existência.

Adriana: Esse desenho faz parte de uma série de imagens que produzi para um livro comemorativo das conquistas dos primeiros dez anos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Nele, há um capítulo que produzimos coletivamente, eu, três colegas e minha orientadora Patrícia Reinheimer. No desenho em questão está representada Olly, que é avó e tema central da atual pesquisa de Patrícia. Olly, artista, imigrante alemã, refugiada da Segunda Guerra no Brasil, aparece no desenho fazendo essa estampa que somos nós. Foi a partir dessa pesquisa sobre a trajetória artística de sua avó que Patrícia voltou a desenhar, em 2016 e, a partir disso, durante a pandemia, ofereceu a oficina que me fez ingressar no desenho e me aproximar até o ponto de compor esse mundo e regressar à academia 8 anos depois da defesa da minha monografia. A intenção no desenho foi demonstrar como essa malha de afetos e saberes vai sendo construída de forma dinâmica com elos inesperados, pois, se a ciência se diferencia da arte pelo método, compartilha com ela a dimensão criativa e de construção conjunta. Afinal, a pesquisa, apesar da retórica de objetividade, também segue um caminho de experimentações. Enquanto, na arte, o papel, o material utilizado, desenvolvem vínculos, afastamentos, dificuldades, na ciência, o pesquisador precisa lidar com expectativas - fruto de seus encadeamentos mentais - para "se deixar afetar" (Favret-Saada, 2005) e desenvolver olhares válidos sobre parâmetros sociais. Entrar em relação com o outro é uma forma de sabermos mais sobre nós mesmos. Assim, ter a liberdade de me conectar com alguma memória que a Olly construiu, me fez reconhecer novos potenciais em mim e nas coisas. Afinal, como são construídas nossas subjetividades?

G.J.N.: A gente gostaria de te convidar para trazer para a revista mais três desenhos teus que você considere relevantes e em diálogo com a história da cadernos pagu. Gostaríamos que você nos contasse um pouco sobre essas ilustrações também.


Fiando estruturas, 2021.

Adriana: Desenho feito ao assistir a mesa "Experimentações etnográficas: desafios ao trabalho de campo antropológico" nas Jornadas de Antropologia John Monteiro de 2021. As professoras Aina Azevedo (UFPB), Letícia Ferreira (UFRJ) e Magda Ribeiro (UFMG) foram falando sobre seus métodos e pesquisas e me inspirei a produzir esse desenho que demonstra que as técnicas utilizadas em campo estão dadas, porém, emaranhadas. Nosso papel é desenredar essas metodologias para organizar o olhar aos aspectos sociais.


Legalismo Mágico, 2022.

Adriana: Desenho inspirado em Paola Bergallo - professora, jurista e feminista - que planeja um "legalismo mágico" utilizando a justiça não do possível, mas da utopia para propor pautas progressistas juridicamente. Segundo a professora, o movimento feminista do qual faz parte tenciona causas que sabe que irá perder em um primeiro momento, a fim de praticar o exercício da voz focando em uma "futuridade política".


O fio da Meada, 2022.

Adriana: Esse desenho eu fiz na aula Etnografias, trabalho de campo e intersubjetividades, ministrada pela Carly Machado na UFFRJ. Em um momento ela afirmou que a relação com a pesquisa é ampla e contingente. Devemos registrar tudo o que nos inspira etnograficamente, não há uma fronteira que defina o "entrar e sair" do campo. Mas em outro momento do processo de pesquisa, que é o "escrever", esses aspectos podem ficar de fora para selecionarmos outras observações, também ricas. Como Clifford (2016) afirma, o processo de escrita não é neutro. A dimensão ética da etnografia e a produção dela estão entranhadas nesse processo "após o campo" também. Inserir as vozes dos sujeitos pesquisados, construir a dialogia, a polifonia de uma pesquisa, é uma dimensão muito pessoal e processual. Ainda sobre o ato de selecionar, podemos fazer uma analogia entre o desenho e a etnografia, pois nas duas produções há um processo de recorte. Ao produzir um conceito, um estudo transformamos aquela ideia em símbolos majoritários. Na pesquisa, selecionamos tanto com o nosso olhar em campo, quanto em nossa mesa ao escrever. Sempre há uma escolha sobre qual ângulo apontar. Percebemos que além dos sujeitos pesquisados serem "elementos surpresa", como mencionado por Biehl (2020)BIEHL, João. Do incerto ao inacabado: Uma aproximação com a criação etnográfica. Revista Mana, 26 (3), Rio de Janeiro, 2020, pp.01-33., a própria produção da etnografia também o é, já que a pesquisa é feita sem sabermos o que ela virá a ser/dizer.

Obrigada

Referências bibliográficas

  • BIEHL, João. Do incerto ao inacabado: Uma aproximação com a criação etnográfica. Revista Mana, 26 (3), Rio de Janeiro, 2020, pp.01-33.
  • CLIFFORD, James; MARCUS, George. A escrita da cultura: poética e política da etnografia. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens/edUFRJ, 2016. Tradução de Maria Claudia Coelho.
  • SIQUEIRA, P.; FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Revista Cadernos de Campo, 13 (13), São Paulo, 2005, pp.155-161. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v13i13p155-161
    » https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v13i13p155-161

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023
Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br