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Entre o sexo como transgressão e a gestão dos riscos: Néstor Perlongher e o dispositivo da aids *

Between Sex as Transgression and Risk Management: Néstor Perlongher and The Deployment of Aids

Resumo

O artigo trata das ideias formuladas pelo antropólogo Néstor Perlongher sobre a epidemia de hiv/aids, cuja produção textual (artigos jornalísticos e publicações acadêmicas) adiciona outros modos de entendimento de sua pesquisa etnográfica da prostituição viril em São Paulo. Assim, abordo as principais questões levantadas pelo autor, considerando, em especial, sua reflexão sobre o “dispositivo da aids”, categoria analítica empregada em diversos momentos e textos. Recupero como suas preocupações sobre a epidemia se articulam às suas práticas como um mediador intelectual crítico diante da normalização social e cultural da homossexualidade.

Aids; Dispositivo; Homossexualidade; Perlongher

Abstract

The article deals with the ideas formulated by the anthropologist Néstor Perlongher about the hiv/aids epidemic, whose textual production (journalistic articles and academic publications), adds other ways of understanding his ethnographic research on masculine prostitution in São Paulo. Thus, I address the main issues raised by the author, especially considering his reflection on the “deployment of aids”, an analytical category he uses at different times and texts. I recover how his concerns about the epidemic are linked to his practices as a critical intellectual mediator in relation to the social and cultural normalization of homosexuality.

Aids; Deployment; Homosexuality; Perlongher

Este artigo se propõe a refletir sobre as ideias e questões problematizadas por Néstor Perlongher a respeito do impacto da epidemia de hiv/aids1 1 Acrônimos para virus (hiv) e síndrome da imunodeficiência adquirida (aids). Não modifiquei a grafia empregada por autores em seus textos. em termos da diversidade sexual masculina. Como Perlongher faleceu devido à síndrome, pretendo recuperar sua produção intelectual sobre as relações entre homossexualidade masculina e a epidemia. Mais conhecido por sua dissertação e livro sobre prostituição viril na cidade de São Paulo ( Perlongher, 1986PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1986. ; 1987cPERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987c. ), gostaria de me ater à uma produção textual sobre aids que foi elaborada em paralelo à sua etnografia da deriva e do negócio dos michês. À primeira vista, é uma produção intelectual, acadêmica ou não, que tem finalidade técnico-pedagógica, mas é também dissidente em termos da visão da sexualidade e da dimensão moral que a epidemia suscitava. Além disso, esse conjunto de textos tem uma elaboração narrativa, estilística e poética muito singular que, em certos momentos, afirma posições e ideias que contrastam bastante com a de outros atores sociais daquele período trágico da epidemia, quando não havia práticas terapêuticas e tecnologias biomédicas disponíveis contra hiv/aids. Em alguns textos, a leitura produz, de algum modo, uma apreensão melancólica e até sombria da homossexualidade, o que parece ser uma torção indigesta de uma história a se acabar. Um livro didático como O que é AIDS? ( Perlongher, 1987aPERLONGHER, Néstor. O que é AIDS. Coleção Primeiros Passos, n. 197. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987a. ), publicado pela editora Brasiliense, deve ser lido e tomado como foco de reflexão junto do artigo “O desaparecimento da homossexualidade”, publicado seja em uma coletânea como em boletim de uma organização não governamental (ong) voltada à epidemia ( Perlongher, 1991PERLONGHER, Néstor. O desaparecimento da homossexualidade. Saudeloucura, n. 3, Editora Hucitec, 1991. , 1992PERLONGHER, Néstor. O desaparecimento da homossexualidade. Boletim ABIA, 16, Rio de Janeiro, Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, 1992. ). Outros textos do autor contribuíram com minha análise ( Perlongher, 1985bPERLONGHER, Néstor. Disciplinar os poros e as paixões. Lua Nova. Revista de cultura e política, v. 2, n.3, São Paulo, CEDEC, 1985b. ; 1989PERLONGHER, Néstor. Territórios marginais. Papéis Avulsos, n. 6, CIEC/ECO/UFRJ, 1989. ; 1993PERLONGHER, Néstor. Antropologia das sociedades complexas: identidade e territorialidade, ou como estava vestida Margaret Mead. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 22. São Paulo, ANPOCS. 1993. ). É possível também cartografar os passos de Perlongher nos primeiros anos de impacto social e mobilização política em torno do hiv/aids no Brasil a partir de artigos de jornal ( Perlongher, 1985aPERLONGHER, Néstor. AIDS, Primeira Leitura. Caderno Ilustrada. Folha de S. Paulo, ano 65, n.20.562, 1985a, pp.34-35. , 1987bPERLONGHER, Néstor. A ordem dos corpos. Folha de S. Paulo, ano 67, n. 21.143, 21 de fevereiro, 1987b. , 1987dPERLONGHER, Néstor. Microfascismo e violência institucional. Folha de S. Paulo, ano 67, n. 21.422, 27 de novembro, 1987d. )2 2 Ao pesquisar o acervo digital do jornal A Folha de S. Paulo encontrei 45 referências a Néstor Perlongher nas décadas de 1980 e 1990. e publicações que vêm sendo feitas sobre a “história” da epidemia no país ( Teoduresco; Teixeira, 2015TEODORESCU, Lindinalva L.; TEIXEIRA, Paulo Roberto. Histórias da Aids no Brasil, 1983-2003. Vol. 2: A sociedade civil se organiza pela luta contra a Aids. Brasília, Ministério da Saúde/SVS/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, 2015. ), embora considere esta documentação muito fragmentária e parcial, tanto a jornalística como a historiográfica “oficial”. Foi um processo complicado e importante de articulação das fontes a fim de compreender os movimentos de Perlongher em relação às instituições relevantes do mercado editorial e de comunicações na época, sobretudo de São Paulo (Editora Brasiliense, Folha de São Paulo, revista Lua Nova, revistas semanais Veja e Istoé, etc). Além disso, gostaria de traçar breves considerações e relações entre essa produção textual de Perlongher e a discussão sobre drogas/êxtase que o autor faz nos anos finais de vida, pois, ao que me parece, respondem de modo complementar às ideias e questões anteriormente refletidas pelo autor sobre a aids em meados dos 1980 ( Perlongher, 1994PERLONGHER, Néstor. Droga e êxtase. Religião e sociedade, 16, n. 3. Rio de Janeiro, ISER, 1994. ).

Posicionar um autor em termos de seu tempo presente não significa dizer que ele responde de modo automático, diretamente, ao seu “contexto” social/cultural, mas trata-se muito mais de uma preocupação com os textos que produz enquanto mediação de questões subjetivas, simbólico-culturais e sócio-históricas. De fato, se discuto obras e textos considerados “menores” academicamente de Perlongher, esse escopo engana por sua pequena quantidade devido à densidade das ideias que trazem, além das múltiplas direções que sua leitura permite. Em especial, deve-se ressaltar que Perlongher como antropólogo nos oferece uma camada digamos aditiva, poética, o que torna acanhada a “análise” à qual este artigo se propõe. Comparado à copiosa etnografia dos encontros libidinais, do nomadismo nas ruas paulistanas e da interrelação dos planos do macrocódigo binário/molar e dos microcódigos infinitesimais/moleculares, da vivência e teoria do negócio do michê ( Perlongher, 1987cPERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987c. , 1989PERLONGHER, Néstor. Territórios marginais. Papéis Avulsos, n. 6, CIEC/ECO/UFRJ, 1989. ), o conjunto específico que compôe a textualização sobre a aids se orienta para direções críticas inesperadas (na época) e me levou a pensar sobre o “desaparecimento” de Perlongher nas pesquisas e reflexões sobre hiv e aids até bem recentemente, excetuando o artigo de Pelúcio e Miskolci (2009)PELÚCIO, Larissa; MISKOLCI, Richard. A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sexualidad, salud y sociedad. Revista Latinoamericana, n. 1, Rio de Janeiro, CLAM/IMS/UERJ, 2009. 3 3 Seria interessante entender como se deu a recepção dos trabalhos acadêmicos e da obra poética de Perlongher no Brasil, apontando para leituras e incorporações mais recentes. .

Busquei, porém, reconstituir o pensamento de Perlongher ao descentrá-lo na narrativa a partir do mundo social em que vivia ou estava envolvido, discutindo e também contrastando suas ideias e argumentação frente a outras vozes e posições que podem ser associadas ao período que transcorre entre meados da década de 1980, quando ele defende sua dissertação e publica seu livro do negócio do michê , até 1992, ano em que falece. Antes de continuar, é preciso salientar que o artigo não pretende fazer qualquer suposição a respeito da experiência do adoecimento de Perlongher. Deve-se dizer que há livros e artigos que tem buscado se aprofundar nas trajetórias e experiências de pessoas vivendo com HIV, inclusive nos seus anos finais de luta contra a Aids, tal como faz um livro sobre Michael Callen e Essex Hemphill, os dois mobilizados na luta contra a doença e politicamente enfrentando a epidemia nos Estados Unidos ( Duberman, 2014DUBERMAN, Martin. Hold tight gently: Michael Calllen, Essex Hemphill and the battefield of AIDS. New York, the New Press, 2014. ). Contudo, meu propósito é outro, pois procuro entender como o antropólogo reflete sobre a aids, a homossexualidade e como, ao falar das duas, Perlongher pensa sobre o gozo, o desejo e sua relação com o binômio vida/morte.

O contexto: de frescos, “aberturas” e exílios

A fim de entender como se inscreve a obra de Perlongher na tradição antropológica brasileira, recupero uma polêmica intelectual-acadêmica (igualmente moral), pois talvez ela insinue de um bom jeito o contexto do qual estou tratando: da “reabertura democrática” no final da década de 1970 ao começo dos 1990. Em 1979, o etnólogo e político Darcy Ribeiro, que retornara do exílio, deu uma longa entrevista em que discorria sobre povos indígenas e o indigenismo no país, mas, em certo momento, passou a caracterizar a antropologia brasileira4 4 Ribeiro se referia, sobretudo, à antropologia que se fazia no programa de pós-graduação em antropologia social no Museu Nacional/UFRJ. . Jocosamente, criticou os antropólogos formados nos novos programas de pós-graduação por imitarem teorias estrangeiras na moda, deixando de lado os problemas indígenas e a “cultura brasileira” em favor de “temas aleatórios” ( Ribeiro, 1979aRIBEIRO, Darcy. Antropologia ou a teoria do bombardeio de Berlim. Encontros com a Civilização Brasileira, 12. Rio de Janeiro, 1979a, pp.81-100. ). Essa entrevista mereceu resposta do antropólogo Roberto da Matta (1979)DA MATTA, Roberto. Carta aberta a Darcy Ribeiro. Encontros com a Civilização Brasileira, 15. Rio de Janeiro, 1979, pp.81-92. em um número posterior da mesma revista, ilustrando a abrangência de pesquisas recentes na área, voltada também aos temas “operários, camponeses, rituais, homossexuais, classe média”, orientados por uma “busca intelectual séria”. Em uma querela intelectual que fala muito das moralidades dominantes da época, Darcy Ribeiro treplica por “uma antropologia melhor e mais nossa”, estudando o que se quisesse, “inclusive como você pede, os frescos, as putas e os marginais; mesmo porque todos são gente e, como tal, caem em nosso campo de interesse, além do que eu tenho por eles a maior simpatia” ( Ribeiro, 1979bRIBEIRO, Darcy. Por uma Antropologia melhor e mais nossa. Encontros com a Civilização Brasileira, 15. Rio de Janeiro, 1979b, pp.93-96.: 94). Independente das simpatias e seriedades de Darcy Ribeiro ou Da Matta, foi neste período de redemocratização que houve a emergência social e política dos chamados novos movimentos sociais, inclusive da “militância homossexual” brasileira nos últimos anos da década de 1970 ( Fry e MacRae, 1983FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. Coleção Primeiros Passos, n. 81. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983. ; Simões e Facchini, 2009SIMÕES, Júlio A.; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris. Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. ; Green et al., 2018GREEN, James N.; QUINALHA, R.; CAETANO, M.; FERNANDES, M. História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo, Alameda, 2018. ). Frescos, homossexuais, entendidos, bichas loucas, machos, etc., são apenas parte da miríade de categorias, identidades e expressões que podemos reconstituir do campo semântico em torno da (homo)sexualidade na época. Elas nos ajudam muito a pensar sobre o contexto em que Néstor Perlongher passou a viver, estudar, trabalhar e a se posicionar como intelectual público.

Em artigo, Carrara e Simões (2007)CARRARA, Sérgio; SIMÕES, Júlio A. Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007. refletiram sobre o surgimento de uma produção antropológica específica e muito possante que tomava a sério criticamente as experiências, práticas e mobilizações sociais específicas em torno do que categorizamos atualmente de diversidade sexual e de gênero, além da multiplicidade de estilos de vida que os caracterizam. Pesquisas pioneiras como as de Fry (1982)FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. , Guimarães (1977), Lobert (2010)LOBERT, Rosemary. A palavra mágica: a vida cotidiana dos Dzi Croquettes. Campinas, Editora da Unicamp, 2010 [1979]. , MacRae (1990)MACRAE, Edward. A construção da igualdade. Identidade sexual e política no Brasil da “Abertura”. Campinas, Editora da Unicamp, 1990. e Perlongher (1986PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1986. , 1987aPERLONGHER, Néstor. O que é AIDS. Coleção Primeiros Passos, n. 197. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987a. ) são alguns exemplos de uma produção restrita, mas vigorosa, que foi elaborada entre 1974 a 1994, fossem artigos, fossem dissertações ou teses, que, de modo original, desestabilizaram visões do senso comum, formaram uma área de discussões sobre gênero e sexualidade, muito inspiradas, por sua vez, nas variadas questões trazidas pela confluência entre antropologia urbana e a sociologia do desvio ( Velho, 1985VELHO, Gilberto (org.). Desvio e divergência. Uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985. ). Por outro lado, verificamos que essa produção antropológica dialogava em ampla medida com debates correntes então, sobretudo nas universidades paulistas, sobre os movimentos sociais urbanos ( Cardoso, 2011CARDOSO, Ruth. Movimentos sociais urbanos: balanço crítico. In: CALDEIRA, Tereza P. do R. (org.). Ruth Cardoso, obra reunida. São Paulo, Mameluco, 2011. ). Essa rede de pessoas e instituições garantiram espaços realmente produtivos e instigantes de novas iniciativas de pesquisas que confrontavam uma certa predominância de estudos e pesquisas de temas mais consagrados. Voltando à polêmica intelectual descrita antes, pode-se afirmar que Darcy Ribeiro expunha publicamente uma faceta específica das visões moralmente dominantes da época e a Universidade brasileira não estava à parte do mundo social. Evidenciando-se tanto pelo senso comum como pela imaginação cultural, mas também por visões religiosas e por aquelas acadêmico-científicas, essas perspectivas aludem a um longo histórico de estigmatizações, violências e acusações morais aos frescos e sua sexualidade.

Se a antropologia urbana tensionava as áreas de pesquisa mais tradicionais da disciplina nas décadas de 1970-80, o que dizer das pesquisas sobre gênero e sexualidade? Embora houvesse interesse, sobretudo, em relação aos “estudos da mulher”, equivalente na época a falar de gênero ( Heilborn; Sorj, 1999HEILBORN, Maria L.; SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In: MICELI, Sérgio (org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), 2. Sociologia. São Paulo/Brasília, Editora Sumaré/CAPES, 1999. ), algum debate se fazia sobre corpo e sexualidade nas universidades, em parte suscitado pela publicação dos livros de Michel Foucault, já bastante conhecido no país desde meados de 1970 ( Carrara; Simões, 2007CARRARA, Sérgio; SIMÕES, Júlio A. Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007. ). Contudo, havia razoável marginalidade (ou marginalização?) na condução de pesquisas sobre (homo)sexualidade. Era, aliás, bastante incomum que houvesse disciplinas sobre a temática do gênero, sexualidade e corpo nos cursos de graduação em Ciências Sociais, o que me parece apenas ter mudado em meados da década de 1990, embora de modo ainda tímido, restrito a certas universidades com histórico de discussão e pesquisa sobre estas temáticas, motivado, sobretudo, a partir da vinculação de novos docentes com esses interesses nas instituições de ensino superior5 5 Não recordo de nenhuma disciplina ofertada sobre estes temas durante a graduação em Ciências Sociais (UFRJ) entre 1983 e 1987. Se tinha discussão, ela era transversal em disciplinas como Antropologia Urbana. Na verdade, corpo e sexualidade eram muito mais foco ou assunto de corredores e bastidores entre os próprios alunos, mas apoiadas em leituras autodidatas e compartilhadas sobre política sexual e política do corpo, onde imperava Foucault. Lembro bem de conversas sobre sua morte por consequência da Aids em 1984, o que já gerava apreensão entre os estudantes. Por outro lado, deve-se atentar que, desde 1982, estávamos retomando as práticas eleitorais diretamente e a agenda politica de alguns candidatos era mais “libertária” e conjugava tanto o tema do corpo e da sexualidade como o do meio ambiente e das drogas. .

Foi exatamente nesta época, quando os exilados brasileiros voltavam do exterior, que Néstor Perlongher chega ao país em 1981, alguns anos depois de ter se graduado em sociologia pela Universidade de Buenos Aires. Seus estudos foram acompanhados por uma intensa atuação política, primeiro em grupos marxistas/trotskistas e, desde março de 1972, na pioneira Frente de Liberación Homosexual onde se destacou como liderança interna ( Bazán, 2004BAZÁN, Osvaldo. Historia de la homosexualidad en la Argentina. De la conquista de América al siglo XXI. Buenos Aires, Marea Editorial, 2004. ; Baigorria, 2006BAIGORRIA, Osvaldo. Néstor Perlongher, un barroco de trinchera. Buenos Aires: Mansalva, 2006. ) até o grupo se dissolver após a forte repressão política que abateu a Argentina com o golpe militar de 1976. Segundo Bazán: “Pero la estrella del Frente , rápidamente, fue el poeta y sociólogo Néstor Perlongher, aunque en ese momento todavia no era más que un estudiante del sur con muchas inquietudes y una voluntad inquebrantable” ( Bazán, 2004BAZÁN, Osvaldo. Historia de la homosexualidad en la Argentina. De la conquista de América al siglo XXI. Buenos Aires, Marea Editorial, 2004.: 341). Desse modo, Perlongher migra para o Brasil com uma longa e agitada trajetória de atuação política na esquerda argentina e também de participação na “liberação homossexual”, o que lhe dava uma experiência, expertise e maturidade intelectual construídos por mais de uma década em seu país de origem. No período, viveu a instabilidade social acarretada pelas mudanças abruptas, autoritárias e repressivas da ordem política, enquanto os clamores da chamada “revolução sexual”6 6 Emprego a categoria porque ela é frequentemente usada por Perlongher. ainda estouravam e eram sentidos numa profusão de lugares e países.

No Brasil, Perlongher se depara com uma etapa avançada da chamada “abertura” e da redemocratização política, além do fortalecimento e consolidação dos novos movimentos sociais como o feminista, o movimento negro e a militância homossexual brasileira, cuja emergência, no final da década de 1970, suscitou uma consolidação frágil e ambivante em razão dos conflitos, disputas e processos faccionais que “racharam” boa parte dos grupos criados ( MacRae, 1990MACRAE, Edward. A construção da igualdade. Identidade sexual e política no Brasil da “Abertura”. Campinas, Editora da Unicamp, 1990. ; Fry; MacRae, 1983FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. Coleção Primeiros Passos, n. 81. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983. ; Simões; Facchini, 2009SIMÕES, Júlio A.; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris. Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. ). É preciso acrescentar que o surgimento da militância homossexual ocorreu devido a um processo social e histórico mais amplo que envolve criação de espaços de sociabilidade, produção cultural específica e o lançamento do primeiro veículo de “imprensa alternativa” com ampla circulação e difusão efetiva, o jornal “Lampião da Esquina”(1978- 1981) que possibilitou a criação de um debate público orientado por um sentido comunitário e identitário “homossexual” na época, que fosse abrangente o suficiente para reunir, agregar e articular pessoas com a mesma orientação sexual. Devido à sua distribuição capilarizada, ao menos nas capitais e grandes cidades brasileiras, pode-se imaginar que o jornal produziu efeitos na visão pública de uma comunidade sexual específica, embora bem segmentada, cuja materialidade se fazia por meio da circulação de jornais impressos e a repercussão progressiva de modos de comunicação a partir dos assuntos e temas apresentados ou discutidos no jornal, que ajudou a identificar uma rede de nomes e figuras públicas como “porta-vozes” da “comunidade homossexual”: José Silvério Trevisan, Darcy Penteado, José Antonio Mascarenhas, Aguinaldo Silva, etc. Mas se havia uma visão uniformizante e socialmente ordenadora da “comunidade” e do “movimento”, os dois podiam ser questionados por outras figuras públicas, tal como o escritor Herbert Daniel (1983)DANIEL, Herbert. Entrevista. O gueto desmistificado. Preconceito e machismo entre os homossexuais. ISTOÉ, n. 344, São Paulo, Editora Três, 27 de julho de 1983. , que fazia, sobretudo, uma crítica ao chamado “gueto gay”, exatamente por sua ênfase em um modelo hegemônico e privilegiado de masculinidade e de identidade homossexual, pautado em valores de camadas médias e altas. Contudo, tais valores não eram compartilhados pela maioria das pessoas, cuja lógica de classificação sexual se dava por parâmetros hierárquicos de gênero e de sexualidade ( Fry, 1982FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. ; Fry; MacRae, 1983FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. Coleção Primeiros Passos, n. 81. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983. ; Parker, 1991PARKER, Richard G. Bodies, pleasures and passions. Sexual culture in contemporary Brazil. Boston, Beacon Press, 1991. ).

É importante destacar dos efeitos culturais da imprensa, seja ela específica, tal como foi o Lampião , mas também a imprensa e os meios de comunicação hegemônicos (jornais, revistas, televisão, etc), pois serão eles que divulgarão sobre a epidemia. Embora o Lampião tenha parado de circular em 1981, muitos de seus articulistas e organizadores passaram as ser chamados a se posicionar sobre a “peste rosa”, o “câncer gay”, etc., na grande imprensa, fossem os jornais diários impressos, fossem as revistas semanais de ampla circulação. Pode-se dizer que eles eram mediadores intelectuais. Dentre eles, estava também Néstor Perlongher, já no país, quando eclodiu a epidemia de hiv/aids. Se tomarmos 1983 como ano de referência em que a epidemida da aids “chega” por aqui, quando foi noticiada a morte do estilista Markito em junho daquele ano, era criado, assim, um “marco” fatídico, o antes e depois da chegada da aids ( A primeira..., 1983A PRIMEIRA vítima. AIDS mata o costureiro Markito ISTOÉ, n. 338, São Paulo, Editora Três, 15 de junho de 1983. ). A partir daí, a imprensa em geral passa a ter posição privilegiada de divulgação de informações e também desinformações, criando e constituindo uma imaginação própria da aids e assim será até hoje, configurando uma das esferas culturais produtoras de significados e ideias sobre a epidemia, inclusive diferenciando pessoas como “vítimas” ou “culpadas”. Desse modo, a identificação inicial da aids como “peste” ou “câncer gay” explica as razões da preocupação das muitas lideranças homossexuais de se contrapor publicamente às mensagens e discursos divulgados pelos meios de comunicação da época. Em especial, a imprensa difundia uma visão que associava “promiscuidade” e aids, tomada como uma verdade científica e médica, o que contribuía para a criação de um pânico moral em relação às práticas homossexuais, tema que trato mais adiante. Muitos médicos afirmavam esse ponto de vista reproduzido pela imprensa da época.

Quando Teoduresco e Teixeira (2015)TEODORESCU, Lindinalva L.; TEIXEIRA, Paulo Roberto. Histórias da Aids no Brasil, 1983-2003. Vol. 2: A sociedade civil se organiza pela luta contra a Aids. Brasília, Ministério da Saúde/SVS/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, 2015. reconstroem (a seu modo)7 7 Como projeto editorial e publicação do Ministério da Saúde, trata-se da “história oficial da epidemia” e, por isso, há um enquadramento legitimador da política pública de Aids, sobretudo destacando a positividade do ‘modelo brasileiro’ de enfrentamento, prevenção e tratamento do hiv/aids e da epidemia em geral. São certamente histórias particulares que os autores trazem, selecionando aspectos dos processos sociais e políticos já passados. Há diversos equívocos aliás, alguns bem gritantes, em especial no que se refere à mobilização social e política diante da epidemia. a história do impacto e a mobilização social/política diante da epidemia, é possível recuperar e acompanhar as posições de diversas pessoas e instituições que atuaram diretamente na primeira década de enfrentamento da aids em São Paulo. Pode ser feito algumas aproximações entre o que o texto apresenta e as informações que se encontram no noticiário da imprensa na época, seja a local, mais notadamente a Folha de S. Paulo , sejam as revistas semanais, tais como a Veja e a Istoé , que tinham alcance nacional e reportaram intensamente sobre a aids nas duas primeiras décadas da epidemia. Assim, eram sistemáticas, complementares, mas também tensionadas, as relações entre os diferentes veículos da imprensa e os atores sociais mais proeminentes que atuaram seja nos grupos de militância homossexual, seja porque eram pessoas de maior visibilidade pública. Em São Paulo, as primeiras discussões e medidas feitas pelos agentes e gestores públicos de saúde envolveram lideranças políticas e participantes da “comunidade homossexual”. Pela documentação e os textos publicados, é possível reconhecer a presença marcante de Néstor Perlongher em eventos públicos sobre a epidemia. Segundo Teoduresco & Teixeira (2015TEODORESCU, Lindinalva L.; TEIXEIRA, Paulo Roberto. Histórias da Aids no Brasil, 1983-2003. Vol. 2: A sociedade civil se organiza pela luta contra a Aids. Brasília, Ministério da Saúde/SVS/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, 2015.: 23), o antropólogo teria dito em uma das reuniões promovidas pela secretaria estadual de saúde em 1984: “[...] os médicos não têm um discurso do desejo. Não podem considerar o desejo como uma coisa bela. Não se aceitaria que alguém possa jogar a vida por uma transa”.

Além das atividades públicas, Perlongher passou a ser entrevistado também em reportagens sobre a aids de revistas semanais tal como a Veja , que conseguiu reunir em uma mesma matéria os depoimentos de pessoas doentes, do estilista Clodovil, do jornalista Celso Curi, identificado como o “porta voz da comunidade gay de São Paulo”, o antropólogo portenho e também Cazuza, um dos destaques da reportagem, pois havia certo “ti-ti-ti envolvendo personalidades do mundo das artes e espetáculos” ( Um nó..., 1985UM NÓ nos costumes. O medo do vírus começa a alterar comportamentos e a contaminar a sociedade como um todo. VEJA, n. 884, São Paulo, editora Abril, 14 de agosto de 1985. ). A partir de 1985, Perlongher passa a escrever de modo bem regular sobre a tema da aids para o jornal A Folha de São Paulo - FSP ( Perlongher, 1985aPERLONGHER, Néstor. AIDS, Primeira Leitura. Caderno Ilustrada. Folha de S. Paulo, ano 65, n.20.562, 1985a, pp.34-35. , 1987bPERLONGHER, Néstor. A ordem dos corpos. Folha de S. Paulo, ano 67, n. 21.143, 21 de fevereiro, 1987b. , 1987dPERLONGHER, Néstor. Microfascismo e violência institucional. Folha de S. Paulo, ano 67, n. 21.422, 27 de novembro, 1987d. ), embora seus artigos e resenhas tratassem também de outros assuntos, igualmente importantes para ele, em especial a literatura argentina e latino-americana, o neobarroco poético, igualmente critica de filmes como o Beijo da Mulher Aranha8 8 Filme de Héctor Babenco, estrelado por William Hurt, Raul Julia e Sonia Braga, lançado em 1986 no Brasil. , baseado no livro de seu colega na FLH, Manuel Puig. Talvez a matéria na Coluna Primeira Leitura (Ilustrada, FSP) precise ser destacada, pois fora inicialmente uma apresentação de Perlongher, intitulada “O fantasma da aids”, no Colóquio Foucault , promovido pelo Departamento de História da Unicamp em junho de 1985, que tornou-se um artigo jornalístico ( Perlongher, 1985aPERLONGHER, Néstor. AIDS, Primeira Leitura. Caderno Ilustrada. Folha de S. Paulo, ano 65, n.20.562, 1985a, pp.34-35. ) e, a meu ver, se assemelha muito ao conteúdo que encontramos no livro O que é AIDS? , que tratarei agora junto de outros textos do autor. Pude constatar, então, que Perlongher passou a ter razoável visibilidade pública ao ponto de ser até entrevistado, em 1987, no programa Mulher , apresentado por Martha Suplicy na TV Manchete. Os temas foram aids, prostituição masculina e a mudança nos “costumes sexuais”.

O fantasma da aids: terrorismos, mucosas e espasmos de gozo

No entanto, temos uma visão otimista do futuro, porque realmente a vida dos que são chamados e dos que se proclamam homossexuais nesta década de 80 é seguramente menos penosa do que foi aquela dos que vieram antes, graças em grande parte aos movimentos homossexuais no mundo todo ( Fry; MacRae, 1983FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. Coleção Primeiros Passos, n. 81. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983.: 119).

Embora mostrassem que violências e estigmatizações ainda persistiam no início da década de 1980, os antropólogos Peter Fry e Edward MacRae anteviam condições sociais mais favoráveis para as experiências, estilos e modos de vida homossexuais quando lançaram o livro O que é homossexualidade , da coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense no ano de 1983. Ele trazia um importante balanço intelectual e acadêmico de seu tempo, teoricamente instigante como a produção antropológica da época. Mas apenas quatros anos separam este livro auspicioso de um outro da mesma coleção da Brasiliense , O que é AIDS? (OQEA9 9 Compreendo que é um acrônimo infeliz, mas passo a usar OQEA daqui em diante para facilitar a leitura do artigo, pois estarei me referindo ao livro muitas vezes. ) de Néstor Perlongher (1987a)PERLONGHER, Néstor. O que é AIDS. Coleção Primeiros Passos, n. 197. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987a. . Com a força incontrolável do acaso ou talvez do não esperado, o livro de Perlongher tratava de mais outro problema para os homossexuais, talvez mais terrível e estarrecedor, mas, certamente, viria a se ajuntar e compelir a um longo histórico de acusações morais, violências, criminalizações e vulnerabilidades que afetaram pessoas que se relacionavam sexual-afetivamente com “pessoas do mesmo sexo”10 10 Uso do “mesmo sexo” apenas para facilitar a leitura, pois questiono totalmente a biologização da sexualidade e compreendo a complexidade que envolve a corporeidade generificada dos atributos físicos de caráter “sexual”. .

Foi ao longo dos quatro anos que separam o livro pioneiro de Fry e MacRae (1983)FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. Coleção Primeiros Passos, n. 81. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983. e da publicação de OQEA de Perlongher, que tivemos, logo em seguida, a publicação de O negócio do michê ( Perlongher, 1987cPERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987c. ), que foi, tal como cheguei a dizer na introdução, tão fortificante e oxigenador para muitos leitores jovens, inclusive aqueles como eu que desejavam se tornar pesquisadores em Ciências Sociais11 11 Um testemunho pessoal pode dar a significação exata do que foi ler O negócio do michê em 1987/88. Sem ter uma discussão acadêmica mínima sobre sexualidade na graduação de Ciências Sociais (UFRJ), outras ocasiões e espaços podiam ser momentos de troca, não exatamente acadêmica, sobre a etnografia de Perlongher e a deriva homossexual. Lembro que a primeira vez que conversei sobre o livro foi quando tive um encontro casual com outro rapaz da minha idade. Ao dizer que fazia Ciências Sociais, ele me mostra o livro de Perlongher, que eu já possuía. Curiosamente, foi nesse momento que dois homens jovens trazem à tona o livro de Perlongher e criam um vínculo em que o próprio texto antropológico é o aguilhão de nossa conversa e daquilo que Foucault chamou de “amizade como um modo de vida” (Foucault, 1996). . Incrivelmente, talvez alguns meses separem a publicação de O que é Aids e O negócio do michê , medonho paradoxo esse o dos tempos de publicação, que são também os tempos da vida, realmente como um jogo de cartas, em que ela se constitui, embaralha e se aposta, mas também é destinada a ordenamentos disciplinares e modos variados e sutis de controle12 12 Não consigo deixar de fazer essa associação com o titulo do livro do antropólogo e urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos, A cidade como um jogo de cartas . Perlongher chega a citar um texto mimeografado de Carlos Nelson em O negócio do michê , que foi um trabalho de disciplina para o curso de mestrado em antropologia do Museu Nacional: “Bichas e entendidos: a sauna como lugar de confronto”. Provavelmente, se perdeu para sempre com o incêndio do prédio. .

Esse momento grave pode ser descrito por meio de um condensamento de pânico moral e sexual, associado a práticas sociais de evitação, estigmatização e, muitas vezes, de violência físico-corporal, senão simbólica. Foi certamente um fenômeno de escala global, “no mundo todo”, tal como Fry e MacRae se referem ao tratarem da mobilização social e política homossexual (1983), mas que no caso da aids, ao contrário do que disseram, desestruturou, esvaziou e desorganizou “movimentos”, frentes, coletivos e associações em prol dos direitos sexuais e da diversidade sexual na década de 1980.

Em OQEA, composto por uma introdução e quatro capítulos, Perlongher reconhece a provisoriedade do que diz, afirma ou explica, assim como é a vida, suas teorias e as explicações de um mal. Por isso, seu principal objetivo foi esclarecer ao leitor sobre aids e isso aparece muito bem no capítulo “A doença” ou a “doença na doença” ( Perlongher, 1985aPERLONGHER, Néstor. AIDS, Primeira Leitura. Caderno Ilustrada. Folha de S. Paulo, ano 65, n.20.562, 1985a, pp.34-35. ), quando ele explica termos científicos e médicos. Tratou bastante da “querela das nomenclaturas” em relação ao vírus, pois transcorreu de fato um bom tempo até o agente patogênico da aids ser identificado.

É bem interessante, porém, como Perlongher reflete sobre os modos de “transmissão”13 13 O termo correto atual é infecção do hiv. do vírus. Ao falar especificamente de “uma espécie de hierarquia de riscos”, considerou exemplos mais diferentes de contato. Por um lado, traz as controvérsias em torno do contato e infecção por via de fluidos corporais como a lágrima, o suor ou a saliva, ponderando que os franceses seriam mais tolerantes aos “beijos prolongados”, enquanto os norte-americanos seriam taxativos a favor de sua evitação. Era sim uma hierarquização de riscos que apontava para concepções de perigo em que o corpo político da nacionalidade era invocado. Contudo, fica claro que Perlongher tinha especial interesse na especificidade corporal e simbólica das mucosas, das “feridinhas” causadas por “fricções” e “penetrações” que podem ser “perigosas”, mas produzem “espasmos do gozo”. Afirma: “A ‘analidade’ entra em jogo. Os olhos da ciência voltados ao ânus !” ( Perlongher, 1987aPERLONGHER, Néstor. O que é AIDS. Coleção Primeiros Passos, n. 197. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987a.: 75; grifos do autor). Também os “contatos buco anais” merecem cuidado, apesar de sua “potencialidade contagiante” ( Perlongher, 1987aPERLONGHER, Néstor. O que é AIDS. Coleção Primeiros Passos, n. 197. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987a.: 26). Essa recorrência de termos evocativos, às vezes de duplo sentido, me parece importante aqui para entender seu texto e os modos de reflexão do autor sobre a aids. Tanto havia uma preocupação em tratar da maior ou menor fragilidade de órgãos sexuais, seja das mucosas do reto/anus, da vagina e do pênis, tal como havia uma retomada da hierarquização binária da atividade e passividade sexual, o que retoma, em uma direção curiosa, a discussão que Peter Fry fez entre as concepções culturais brasileiras de masculinidade e feminilidade a partir de modelos entendidos como tradicionais ou modernos, publicadas em artigos seminais de poucos anos antes ( Fry, 1982FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. ). Seria por meio das práticas sexuais ativas e passivas com suas “fricções” particulares, dependendo de qual orifício se penetra que a maior ou menor potencialização de risco é assumida ou descartada. Isso aparece também nos artigos jornalísticos do autor ( Perlongher, 1985aPERLONGHER, Néstor. AIDS, Primeira Leitura. Caderno Ilustrada. Folha de S. Paulo, ano 65, n.20.562, 1985a, pp.34-35. , 1987bPERLONGHER, Néstor. A ordem dos corpos. Folha de S. Paulo, ano 67, n. 21.143, 21 de fevereiro, 1987b. ).

Destacam-se muito as reflexões que Perlongher fez sobre as “coordenadas libidinais” que operam na prática e interações dos michês com seus clientes, uma verdadeira “distribuição social das perversões” ( Perlongher, 1987cPERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987c.: 202). Ao fim e ao cabo, prazeres perigosos estão à vista e se exercitam em seus limites muito porosos ( Gregori, 2016GREGORI, Maria F. Prazeres perigosos. Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2016. ). Será por esse caminho tortuoso e, digamos propositalmente, arriscado que Perlongher abordará em outro texto de uma disciplinarização dos “poros e das paixões” que a ordenação e controle da aids provoca ( Perlongher, 1985bPERLONGHER, Néstor. Disciplinar os poros e as paixões. Lua Nova. Revista de cultura e política, v. 2, n.3, São Paulo, CEDEC, 1985b. ). Ou seja, uma coisa seria apontar claramente sobre as informações objetivas sobre a infecção do hiv, mas outra coisa seria apontar e refletir das disposições libidinais e as hierarquias potencializadas por meio de encontros sexuais. Os artigos e textos de Perlongher balançam entre estas duas orientações: informar de modo correto, sabendo das incertezas do saber científico no período, e igualmente sustentar de modo vigoroso e crítico sobre as tendências conservadoras de controle e negação da expressão dos desejos homossexuais e dos dispositivos libidinais.

Perlongher desenvolve também um pouco sobre a testagem anti-hiv, por ele chamada de “testes serológicos”. É claro que estamos bem distantes de toda panóplia de exames e tecnologias biomédicas que se tornaram comuns a partir da década de 1990, caracterizando uma crescente molecularização da aids, cuja gestão se faz por meio de exames, testes e também remédios antiretrovirais ( Valle, 2010VALLE, Carlos Guilherme. Corpo, doença e biomedicina: uma análise antropológica de práticas corporais e de tratamento entre pessoas com HIV e AIDS. Vivencia, v. 35, 2010, pp.33-51. ). No contexto vivido por Perlongher, se movia realmente por terra incógnita . Pouco se sabia e se oferecia de tecnologias biomédicas de tratamento. O que se presenciava muito mesmo era, de fato, a situação inesperada e brutal de pessoas ficando doentes e morrendo – tempo esse que durou, no mínimo, 12 anos.

Perlongher foi um crítico feroz da tendência da medicina em pender para a espetacularização mórbida da aids. Em um artigo, questionou o “bombardeio de imagens, discursos que convocam o pânico”, os “espetáculos de horror” e os “martírios de hospital” ( Perlongher, 1985bPERLONGHER, Néstor. Disciplinar os poros e as paixões. Lua Nova. Revista de cultura e política, v. 2, n.3, São Paulo, CEDEC, 1985b. ) ou a referência à “imagética terrorista dos corpos maculados”, em um artigo jornalístico da FSP, “A ordem dos corpos” ( Perlongher, 1987bPERLONGHER, Néstor. A ordem dos corpos. Folha de S. Paulo, ano 67, n. 21.143, 21 de fevereiro, 1987b. ). Sua linguagem pendula, porém, entre a crítica, a indignação e a aversão, tema esse notado por Leo Bersani (1991)BERSANI, Leo. Is the rectum a grave? In: CRIMP, Douglas. (ed.) AIDS, Cultural analysis, cultural activism. Cambridge, Ma, The MIT Press, 1991. . Os dois autores se apoiam em Bataille que, em conjunção a Sade e Genet, são centrais para a obra de Perlongher, tal como discutirei no próximo tópico.

Os termos que foram usados inicialmente para identificar a “doença” podem ser facilmente sintetizados: “peste rosa”, “câncer gay”14 14 Câncer gay é uma categoria insidiosa usada para designar genericamente alguém que tivesse aids e sofresse de sarcoma de Kaposi, uma neoplasia rara. , GRID ( Gay related immune deficiency ), o que evidencia a associação direta pela medicina da doença com a sexualidade, em suma, “o mal dos homossexuais” devido à sua promiscuidade sexual, generalizando práticas para toda um universo englobante de gente muito variada e heterogênea. A correlação entre homossexualidade, promiscuidade sexual e aids configurou-se como um sistema de significação cultural e moral do qual inúmeras outras ideias e práticas orbitavam. Da sensação brutal do “amor que não se atreve a dizer seu nome”15 15 Tradução livre da frase dita por Oscar Wilde em seu julgamento, parte de um poema que escreveu. “The Love that dare not speak its name”. à sua explosão discursiva e prática pelo dispositivo da sexualidade, tivemos também em pouco tempo uma epidemia de significação, quando a aids se constitui um problema social, cultural, epidemiológico global, uma pandemia, tal como está sendo a de coronavírus, quando a produção de pânico moral reatualiza antigos fantasmas, “véus de mistérios”, às vezes em “projeções apocalípticas”, mas tal como Perlongher sintetiza: “Cabe salientar que, pelo fato de a Aids ser uma doença nova, toda uma massa de informações, às vezes conflitantes, é colocada em circulação crescente dia a dia. Nessas condições, poucas verdades absolutas podem ser afirmadas…” ( Perlongher, 1987bPERLONGHER, Néstor. A ordem dos corpos. Folha de S. Paulo, ano 67, n. 21.143, 21 de fevereiro, 1987b.: 7). Em muitos de seus textos, Perlongher constata a incerteza presente: “O que se sabe da doença ainda é confuso” ( Perlongher, 1985aPERLONGHER, Néstor. AIDS, Primeira Leitura. Caderno Ilustrada. Folha de S. Paulo, ano 65, n.20.562, 1985a, pp.34-35.: 34). Contudo, foi esse o paradoxo da despatologização da homossexualidade pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 1985, concomitante à eclosão da epidemia da aids, o que leva Perlongher a falar da “doença na doença” como um “poderoso dispositivo de normalização, derivado das ondas de pânico” ( Perlongher, 1985aPERLONGHER, Néstor. AIDS, Primeira Leitura. Caderno Ilustrada. Folha de S. Paulo, ano 65, n.20.562, 1985a, pp.34-35.: 34) em que a “promiscuidade” dos homossexuais masculinos é vista como característica central da expansão da epidemia:

Alguns casos de homossexuais descomunalmente insaciáveis – que teimariam em continuar transando indiscriminadamente mesmo contaminados – reforçam a aura de periculosidade que ronda convencionalmente o “sexo anônimo” (Perlongher, 1985:34).

A metáfora do “fantasma da aids” seria usada por Perlongher em diversos textos e traz com ela, como disse antes, uma profusão de imagens fortemente simbólicas, que, ao mesmo tempo, recuperam uma imaginação cultural própria, cujas significações têm apelo tanto literário como fílmico-visual, mas ainda de uma estética camp que pode ser identificado por quem lê seus textos: “Um fantasma percorre os leitos, as paqueras, os flertes” ( Perlongher, 1987aPERLONGHER, Néstor. O que é AIDS. Coleção Primeiros Passos, n. 197. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987a. ). Aliás, foi nessa direção que se produziu uma vasta e densa produção intelectual sobre a aids em sua dimensão cultural e midiática, tal como Treichler (1991) de modo expressivo caracterizou, uma “epidemia de significação” e de sentidos variados, ou seja, de linguagem que se prolifera, se difunde e se recria, embora tivesse essa base elementar de concepções estigmatizadoras das práticas homossexuais, cujo efeito crucial é a culpabilização direta do “homossexual”. Perlongher se apoia no livro A doença e suas metáforas da ensaísta Susan Sontag (1984)SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Rio de Janeiro, Graal, 1984. , publicado na mesma época, para tratar da aids e seus modos de metaforização. Sontag escreveria poucos anos depois um livro com o título Aids e suas metáforas (1989). Mas se o antropólogo chega a citar publicações pioneiras, tal como Moraes e Carrara (1985)MORAES, Claudia; CARRARA, Sérgio. Um mal de folhetim. Comunicações do ISER, ano 4, n. 17, 1985. , seu livro e artigos trazem luz para o pânico moral criado em relação à epidemia, que, a meu ver, é sintetizado pela ideia de “fantasma da aids”. Para ele, a medicina, a imprensa e os media produziram narrativas, explicações e teorias (fantasiosas ou não) da aids que, ao fim e ao cabo, estimulava o pânico moral em relação à homossexualidade e buscava, portanto, controlar as manifestações de desejo que não fossem heteronormativas. Segundo Perlongher, são os “efeitos morais da aids” (1985a:34) que passam a atingir as relações homossexuais, seja com um esvaziamento das saunas ou a redução do número de parceiros, mas acrescenta que esse “processo de conjugalização”, a “nostalgia do casal” e um “retorno ao lar” têm a ver também com o “refluxo” da “revolução sexual”, que já estaria sendo percebido socialmente. Por sua vez, isso também era refletido por Herbert Daniel, escritor e político que passou a atuar de modo destacado em ongs aids16 16 Ong aids é uma “organização não governamental” que atua em relação à epidemia. e foi fundador do Grupo Pela Vidda (1989), a primeira ong brasileira voltada às demandas sociais e mobilização política de pessas vivendo com hiv/aids ( Valle, 2015VALLE, Carlos Guilherme. Biosocial Activism, Identities and Citizenship: Making up 'people living with HIV and AIDS' in Brazil. Vibrant, v. 12, 2015, pp.27-70. ). Para Daniel, a epidemia era apropriada de modo moral e ideológico para o controle da sexualidade: “Pode-se dizer sem nenhum recurso a nenhuma metáfora, que a nossa sociedade está doente de Aids. Doente de pânico, de desinformação, de preconceitos, de imobilismo diante da doença real. Medidas eficazes contra a epidemia de HIV passam por medidas concretas no combate ao vírus ideológico” ( Daniel, 1989DANIEL, Herbert. Antes, a vida. In: DANIEL, Herbert. Vida antes da morte. Rio de Janeiro, ABIA, 1989.: 21).

Há evidentemente um tom cético na discussão de Perlongher sobre “a esperança da cura” em QQEA, pois ao trazer a estimativa de menos 15% de chances de sobrevida após a deflagração da aids, o que realmente Perlongher teria a dizer mais sobre terapêutica contra a síndrome? Em 1987, as condições efetivas de tratamento eram reduzidas. No máximo, em seu compromisso sério com a publicação, acredito que Perlongher tentava informar sobre alguns remédios que estavam sendo pesquisados, tal como azt/zidovudina, mas ele foi mais direto: “Na verdade, a medicina não tem progredido muito no escorregadio campo da luta contra o virus” ( Perlongher, 1987aPERLONGHER, Néstor. O que é AIDS. Coleção Primeiros Passos, n. 197. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987a.: 34). Essa afirmação talvez indique certas escolhas e caminhos feitos por Perlongher nos próximos cinco anos de vida, escolhas essas não necessariamente biomédicas e isso fala muito de uma época e da experiência de uma doença sem tratamento ou cura. Na falta de terapêutica biomédica, o que esperar da medicina? Talvez modos ritualísticos de caráter sagrado indiquem mais o caminho da “esperança”, talvez…

Do mesmo modo, Perlongher explica que os testes para definição do status sorológico foram a primeira etapa para uma melhor administração da doença, só que ainda falhos, produzindo os famosos “falsos positivos” e os “falsos negativos”, o que levou Perlongher a ter cautela na indicação da testagem anti-hiv. Em minha pesquisa doutoral, os casos de pessoas que ficavam (soro)positivas e depois se reconvertiam em (soro)negativas ou vice versa foi muito presente, exatamente pela precariedade da tecnologia biomédica de testagem ( Valle, 2002VALLE. Carlos Guilherme. Identidades, doença e organização social: um estudo das ‘Pessoas Vivendo com HIV e AIDS’. Horizontes Antropológicos, v. 8, 2002, pp.179-210. ). Ou seja, havia uma desconfiança concreta e uma insegurança extrema recorrente em fazer os testes anti-hiv. Por um lado, fazer exame anti-hiv não garantia que o resultado chegasse rápido, pois, às vezes, demoravam 3 a 6 meses. E a suspeita que o teste Elisa poderia dar um resultado falso tornava a experiência de testagem uma prática social emocionalmente difícil, vivida, muitas vezes, de modo solitário ou de comunicação restrita. Por isso, Perlongher me pareceu cético em relação à necessidade premente de testar, muito ao contrário dos discursos atuais do Ministério da Saúde, com seu refrão “testar e tratar”. Obviamente, os tempos mudaram e também os significados da testagem, inclusive, em muitos casos, suscitando uma busca exagerada, repetida, de práticas de identificação sorológica. Perlongher chegou a dizer que “os integrantes do grupo homossexual carioca Triângulo Rosa recusaram se submeter ao teste graciosamente oferecido por uma equipe clínica, duvidando dos benefícios que sua realização pudesse lhes trazer” (1987a:33). Sua desconfiança era característica da época, quando se temia a possibilidade de internação compulsória de pessoas HIV+ e, para ele, os testes significavam, aliás, “um fabuloso empreendimento comercial. Não é alucinação perceber, por trás de muitos apóstolos do alarmismo, desmesurados interesses em explorar o vasto negócio da AIDS” ( Perlongher, 1987aPERLONGHER, Néstor. O que é AIDS. Coleção Primeiros Passos, n. 197. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987a.: 33). Como alguém com uma trajetória militante na esquerda argentina, é compreensível sua visão crítica do mercado lucrativo que se formava com a epidemia e o fantasma da aids (como expliquei, estávamos muitos anos antes da criação do SUS). Em paralelo à discussão da testagem anti-hiv, Perlongher apontava para os casos de pessoas “assintomáticas” e de “portadores sadios”. Atualmente, estas categorias não são mais usadas, mas o foram até meados da década de 1990. Tudo isso alude para a emergência histórica de um mundo social de dinâmicas e categorizações identitárias que Perlongher não poderia prever e talvez até desgostasse ( Valle, 2002VALLE. Carlos Guilherme. Identidades, doença e organização social: um estudo das ‘Pessoas Vivendo com HIV e AIDS’. Horizontes Antropológicos, v. 8, 2002, pp.179-210. , 2015VALLE, Carlos Guilherme. Biosocial Activism, Identities and Citizenship: Making up 'people living with HIV and AIDS' in Brazil. Vibrant, v. 12, 2015, pp.27-70. ).

Mas antes de tomarmos as complexas reflexões de Perlongher sobre o dispositivo da Aids e também do que ele quer dizer com o vaticínio contundente do “desaparecimento da homossexualidade”, gostaria de fazer um exercício comparativo como indiquei na introdução. Em confronto, tomo o segundo O que é AIDS? (OQEA2), escrito a quatro mãos por uma psiquiatra e uma assistente social ( Pinel; Inglesi, 1996PINEL, Arletty C; INGLESI, Elisabete. O que é AIDS. Coleção Primeiros Passos, n. 300. São Paulo, Editora Brasiliense, 1996. ), também publicado na Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense, definido como uma “2a visão” sobre o tema. Em seus perfis bibliográficos, as duas autoras salientam seu contato direto e atuação clínica com doentes de Aids desde 1982/1984, portanto profissionais legitimadas no tratamento e cuidado na área. O que nos coloca a seguinte questão: o que levou à essa segunda visão? De fato, múltiplas visões da aids coexistiram e foram publicadas antes e depois do OQEA de Perlongher. Mas o que mais me intrigou foi nenhuma menção no livro sobre a produção textual de Perlongher sobre aids, sem contar nenhuma alusão à publicação da mesma série com o mesmo título. O que isso indica? Que apagamento foi esse? Teria sido uma estratégia editorial? Ou seria uma decisão “pedagógica” das autoras, considerando o caráter singular do livro de Perlongher, pois os escritos do antropólogo sobre aids explicitam claramente seu descontentamento e mal estar com a produção discursiva da medicina e da saúde pública sobre a epidemia, a homossexualidade e seus doentes17 17 A Editora Brasiliense aventava a possibilidade de um volume da Coleção Primeiros Passos tivesse uma “segunda visão”. Foi isso que aconteceu com O que é Aids? . .

De fato, O que é Aids? de Pinel e Inglesi é também um livro voltado para leigos, mas o livro homônimo de Perlongher também o era. Assim, OQEA2 traz informações e fatos que estão também apresentados na primeira visão do OQEA. Mas é preciso ressaltar que as autoras trazem atualizações sobre a epidemia da aids, em especial elas recuperam como a Aids passou a ser também entendida pela infecção crescente de mulheres e, assim, gerou uma feminização grassante, o que contrariava a visão da aids como uma enfermidade exclusiva de homossexuais “promíscuos”, o que é uma questão e recorte diferente que Perlongher não chegou a explorar. Como fato novo, as autoras indicam que a aids poderia estar se tornando uma “doença crônica” devido ao maior conhecimento científico e, em razão disso, a definição de novos protocolos médicos e terapêuticos. O livro foi publicado em um momento que já havia uma variedade de alternativas terapêuticas efetivas para a pessoa vivendo com hiv, quando se chegou a um consenso científico e médico a respeito da eficácia concreta da terapia combinada de remédios antirretrovirais em 1996. Fica evidente que as autoras, inclusive por sua formação profissional, priorizam uma perspectiva biomédica e epidemiológica da aids. Pretendiam, assim, oferecer uma abordagem técnica de divulgação científica sobre a epidemia, cujo ponto de vista destacava um tom moderado, embora comprometido socialmente, que contrastava muito com a visão e estilo de Perlongher em seu OQEA.

As autoras enfocam também a questão da identidade social e da estigmatização de pessoas vivendo com hiv/aids: “Em função da sorologia, uma pessoa infectada pelo HIV também é chamada de soropositiva ou portadora. No Brasil, cunhou-se o termo aidético , que é profundamente discriminatório e nunca deveria ser usado”. ( Pinel; Inglesi, 1996PINEL, Arletty C; INGLESI, Elisabete. O que é AIDS. Coleção Primeiros Passos, n. 300. São Paulo, Editora Brasiliense, 1996.: 17). Ainda que Perlongher tratasse do fantasma da aids que ronda a vida das pessoas, o aidético como figura identitária e moral não é referido em seu texto, embora a categoria já fosse usada em 1987.

O dispositivo da aids

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política (Foucault, 1979: 80).

Perlongher elabora grande parte de suas ideias a partir de leituras de diversos autores, dentre eles Michel Foucault, embora sua articulação teórica envolva ainda Bataille, Sade e Genet, combinado a inspirações literárias próximas, além de toda uma releitura da sociologia do desvio, sem contar uma forte coloração e influência teórica de Gilles Deleuze e Félix Guattari, esse último, aliás, esteve presente diretamente em situações concretas junto de Perlongher em que a crise da Aids em São Paulo chegou a ser falada. De algum modo, era digamos o contexto intelectual da época, evidentemente para certas redes e segmentos dos mundos universitários, e tem relação com as visitas de Foucault no Brasil na década anterior. Essas influências teóricas se percebem em outros autores, sejam eles ligados à política sexual, tal como claramente Herbert Daniel (1989DANIEL, Herbert. Antes, a vida. In: DANIEL, Herbert. Vida antes da morte. Rio de Janeiro, ABIA, 1989. ; 1983DANIEL, Herbert. Entrevista. O gueto desmistificado. Preconceito e machismo entre os homossexuais. ISTOÉ, n. 344, São Paulo, Editora Três, 27 de julho de 1983. ), mas também em boa parte da literatura antropológica da época, já citada aqui, tal como as bibliografias comprovam.

Foram, sobretudo, as leituras de Foucault que tiveram influência determinante para o olhar crítico, desconfiado e até hostil de Perlongher à medicina, em geral, mas deve-se dizer também à saúde coletiva como área que respalda políticas públicas de saúde, intervenções diretas e práticas no cotidiano erótico-sexual das pessoas, o que seria inadmissível para o antropólogo. Isso aparece nítido praticamente em todos os textos dele sobre aids, raras vezes matizado com uma leve condescendência. Se já havia a crítica à espetacularização do horror da aids pelo olhar médico e científico que, em sinistra combinação de forças culturais e sociais com a imprensa e os media , produziram o “fantasma”, o pânico da epidemia, Perlongher deplora o que ele percebe como a criação de um “dispositivo de moralização sexual” (1985a, 1985b), chamado também de “poderoso dispositivo de normalização, derivado das ondas de pânico” (1985a:34), e que é sintetizado, talvez de modo mais significativo, pelo uso da categoria dispositivo da aids , presente de modo destacado no OQEA (Perlongher, 1987a). Nos dois seguintes trechos do primeiro artigo de Perlongher sobre a epidemia da aids, podemos perceber como o autor já tinha elaborado anteriormente sua ideia de dispositivo e entende a articulação biopolítica entre o saber médico, os valores religiosos mais tradicionais, sobretudo cristãos, e as práticas de intervenção próprias das políticas públicas de saúde em prol e favor da “vida”:

Sob a desculpa de “combater” a AIDS desenvolve-se uma estratégia destinada a disciplinar os corpos perversos, no sentido de diminuir a frequência, a diversidade e a ubiquidade dos contatos. O poder médico, falando em nome da vida, articula um dispositivo de moralização sexual; assim, a normalização da sexualidade implica na renúncia à promiscuidade e ao “sexo anônimo” (Perlongher, 1985a:34).

É nesse entrecruzamento estratégico que se pode entender a irrupção do dispositivo da Aids: a capilaridade das transformações – “branqueada” a figura clássica da bicha louca escandalosa e transgressiva – vai possibilitar a reciclagem da velha moral cristã, sob a moderna forma de controle clínico: o médico assume, em nome da ciência, os discursos do sacerdote e da família (Perlongher, 1985a:35).

Se Perlongher apoia-se em Susan Sontag (1984)SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Rio de Janeiro, Graal, 1984. , quando a autora mostra a relação entre algumas doenças (tuberculose, sífilis e câncer) e sua imaginação cultural, amparada por uma linguagem metafórica, o antropólogo não deixa de empregar também metáforas variadas como uma crítica antropológica das visões morais e médicas dominantes que produzem a higienização dos “sexos” e “corpos perversos˜, seja daqueles afeminados, seja daqueles dos michês machos , ambos regidos por parâmetros culturais populares e tradicionais, hierarquizantes, que vêm sofrendo um embranquecimento a partir da lógica racional prevencionista. É interessante que ele metaforize a domesticação dos corpos e paixões (homos)sexuais por meio de metáforas de hierarquização de cor/raça, trazendo elementos etnográficos de sua pesquisa (Perlongher, 1987b).

Pensadas e incentivadas como estratégias de prevenção, a redução de parceiros sexuais, o fechamento dos espaços de sexo anônimo, sobretudo as saunas, o uso de preservativos, etc., são encarados por Perlongher como “conselhos (que) não são inocentes, mas partem de certo modelo médico de prática corporal que tem uma relação conflitiva com os usos concretos e históricos do corpo” (Perlongher, 1987a:37). Essa afirmação se associa também à pesquisa sobre a prostituição masculina, pois, tal como ele próprio diz em seu livro, “essa área das relações sexuais contemporâneas está em processo de mutação vertiginosa (complicada agora pela irrupção da AIDS” (Perlongher, 1987b:199). Salvo engano, essa foi a única menção à epidemia em sua etnografia publicada, embora ele estivesse abordando intensamente sobre o tema nos artigos jornalísticos e no OQEA na mesma época. De qualquer modo, Perlongher encara o dispositivo da aids como um processo abrangente de disciplinarização da homossexualidade, sobretudo do cerceamento da promiscuidade sexual em prol de uma “razão sanitária” em que a sexualidade “deixaria de estar centrada no esfíncter (ou seja na penetração anal) e passaria a se centrar na masturbação, no melhor dos casos, mútua” (Perlongher, 1987a:77). Nesse sentido, a crítica mais dura de Perlongher e de outros, por exemplo Herbert Daniel (1983)DANIEL, Herbert. Entrevista. O gueto desmistificado. Preconceito e machismo entre os homossexuais. ISTOÉ, n. 344, São Paulo, Editora Três, 27 de julho de 1983. , seria o policiamento do desejo, o controle sistemático das perversidades sexuais em vista de uma sexualidade domesticada, limpa, proposta por uma “histeria higienista”:

O dispositivo da AIDS não parece dirigir-se (pelo menos da ótica progressista) tanto à extirpação dos atos homossexuais, mas à redistribuição e controle dos corpos perversos, fazendo do homossexual uma figura asséptica e estatutária, uma espécie de estátua perversa na reserva florestal. Seria interessante perguntar-se: por que justamente o homossexual constitui o alvo dessa programática? (Perlongher, 1987a:76).

Para Perlongher, é evidente a intensificação da “medicalização da vida” e da homossexualidade com a aids, a “doença na doença”, aglutinada especialmente pela ideia de “grupo de risco”. Seria nesse espaço social de controle intensivo da vida pela medicina e a “máquina médica” que esse regime de verdade e de práticas também “confisca e se apropria da morte”. Aqui, o antropólogo estabelece uma correlação complexa entre vida e morte que se associam e articulam, para ele, através da sexualidade, do desejo e do gozo, o que foi igualmente tematizado em seu livro sobre a prostituição viril. Para ele, se a medicina moderna se impõe por meio de seu regime de verdade sobre a vida, do imperativo da saúde e do afastamento da morte como experiência a ser evitada, ela acaba por se impor também como modelo das políticas públicas de prevenção:

Nas políticas de combate à AIDS, o discurso médico parece considerar os órgãos e os corpos como coisas perfeitamente reguláveis. No entanto, enfrenta uma incontornável resistência: o desejo. A medicina não pode lidar com o desejo, pois escapa às prescrições segundo um impulso que não é racional nem formalizável. Entretanto, as normas higiênicas não partem do que é prazeroso e agradável, mas da frieza da análise técnica. [...]. Não podendo regulamentar os avatares do desejo, a medicina o exclui – Isto é, ele fica fora do campo do ‘real’ - , supondo que os percursos existenciais possam ser regidos segundo convenções profiláticas, em detrimento dos fluxos das paixões, dos tesões, das intensidades (Perlongher, 1987a:81-82).

Segundo o autor, a promiscuidade dos homossexuais consistia em um problema difícil de lidar para a medicina e para a saúde coletiva, afinal por ela, embora não só por ela, se apresente a força e, digamos, o impulso do desejo, “que não é racional, nem formalizável”, ele mesmo vivido por sua fruição descontrolada, libidinal. Ao contrário, a “máquina médica” estimulava a eficácia das camisinhas contra a infecção do hiv: “Seja como for, a introdução de uma fina película de látex entre os lascivos órgãos pode talvez adquirir, para além do terapêutico, algum valor simbólico – a maneira de uma inscrição que marcasse, no turbilhão dos fluxos, a presença transparente da lei” (Perlongher, 1987a:76). De fato, a crítica do controle da sexualidade e dos desejos homossexuais que era suscitado pelos discursos da medicina, centrado na aversão à promiscuidade gay , era, tal como expus, um elemento consensual rechaçado por grande parte da literatura das ciências humanas e sociais que passou a ser produzida sobre a epidemia de aids a partir de meados dos 1980. Mas esse foi também o contexto em que se apresentou as primeiras iniciativas e modos de mobilização social e comunitária de enfrentamento da crise da aids. Evidente em países como os Estados Unidos, essas iniciativas oriundas da “comunidade gay” podem ser exemplificadas pela publicação de um conhecido panfleto, intitulado Como ter sexo em uma epidemia ? ( Callen; Berkowitz, 1983CALLEN, Michael; BERKOWITZ, Richard. How to have sex in an epidemic. Nova Iorque, News from the front publications, 1983. ), que incentivava uma pedagogia da prevenção ao hiv, centrada no uso de preservativos, além de sugerir técnicas, instruções e recomendações, tal como a redução de parceiros. Embora Perlongher afirmasse que esse era o “ modelo gay americano”, higienizado e cauteloso do sexo seguro ( safe sex ), as recomendações contra a promiscuidade não eram bem vistas, nem eram aceitas com unanimidade no contexto norte-americano de Nova Iorque, aliás eram alvo de críticas por seu moralismo, tal como Duberman (2014)DUBERMAN, Martin. Hold tight gently: Michael Calllen, Essex Hemphill and the battefield of AIDS. New York, the New Press, 2014. explica em seu livro sobre a vida do cantor e ativista hiv+ Michael Callen. Nos Estados Unidos, as tensões aconteciam até mesmo dentro de organizações criadas para lidar com a epidemia, tal como o GMFC ( Gay Men Health Crisis ). A crítica à promiscuidade gerou questionamentos e dividiu posições entre homossexuais tanto nos Estados Unidos como no Brasil. Ao ser criado o programa de aids da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo (1983), embora contasse com a liderança de Paulo Roberto Teixeira, antigo membro do grupo Somos, as primeiras intervenções feitas em parceria com as entidades homossexuais da época foram criticadas duramente por Perlongher, que as viam como “aparelhos paraestatais” ou “agrupamentos paramédicos de saúde pública” que como gays “tentariam ‘limpar sua imagem’ ao ponto de se constituírem em paródias de baluartes de uma pacata e mimética normalidade” (Perlongher, 1987a:91). Para o antropólogo: “aqueles que estavam ‘fora’ da sociedade são hoje instruídos pelo aparelho médico e paramédico no sentido de disciplinar os poros e as paixões” (Perlongher, 1985b:37). Foi incisivo em criticar ironicamente o grupo Outra Coisa por divulgar materiais informativos de prevenção ao hiv/aids produzidos pelo programa estadual de aids por incentivarem a “redução de parceiros” e alertar dos “perigos do coito indiscriminado”, pois, segundo Perlongher, “a eficácia alopática da medida é por demais duvidosa” (1985a:35). Do mesmo modo, passou a criticar a atuação do GAPA/São Paulo por organizar reuniões de informação sobre a epidemia e por seu “porta-voz”, Paulo César Bonfim, declarar em público no ano de criação da ONG: “Entre transar e viver, minha opção é viver” (Perlongher, 1987a:54).

De fato, a visão favorável ou positiva de Perlongher em relação à promiscuidade e ao sexo anônimo causava estranhamento entre lideranças homossexuais que passaram a atuar nos poucos grupos de militância sexual que existiam ou que estavam próximas do recém criado programa estadual de aids de São Paulo e, ainda mais, das primeiras ongs aids de São Paulo. Para Teodorescu & Teixeira (2015)TEODORESCU, Lindinalva L.; TEIXEIRA, Paulo Roberto. Histórias da Aids no Brasil, 1983-2003. Vol. 2: A sociedade civil se organiza pela luta contra a Aids. Brasília, Ministério da Saúde/SVS/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, 2015. , havia “desconfiança”, em geral, das ongs e dos homossexuais, mas para Perlongher haveria uma complementaridade político-ideológica entre os “aparelhos médicos” e “paramédicos” (ongs) no objetivo de prevenção ao hiv/aids:

No caso do Brasil, os conselhos preventivos dirigidos aos homossexuais integraram-se numa estratégia progressista – que visaria salvaguardar, mesmo ao preço do autocontrole, alguns tênues direitos humanos conquistados pelas minorias eróticas. Enquanto o “progressismo” médico advoga certa reforma das práticas corporais, diminuindo assim as probabilidades matemáticas de transmissão do vírus, outros setores, menos compreensivos, propugnam métodos mais ríspidos (do tipo ‘acabar com o doente para acabar com o doente com a doença’). (Perlongher, 1987:57; grifos do autor).

Pode parecer exagerada a aproximação que faz Perlongher dos setores chamados progressistas , sejam aqueles ligados às políticas governamentais e à administração pública, sejam aqueles vinculados aos movimentos sociais e ao que será, a partir do final da década de 1980, entendido como sociedade civil organizada, dos setores “menos compreensivos”, quais sejam, os grupos mais conservadores, religiosos ou não, que estimulavam a “caça aos veados” (Perlongher, 1985b). Em outro momento, ele chega a afirmar que as “estratégias de combate a Aids” (médicas e de saúde publica) em favor da “política do sexo sadio” podem seguir um modo mais respeitoso “dos direitos adquiridos pelos gays (que através dos Grupos de Apoio e Prevenção, colaboram com ela), passa por intensificar os cuidados no próprio plano das relações sexuais”, ou seja, é a “política do sexo sadio” (Perlongher, 1985b:36). Por um lado, acredito que o impacto pessoal da trajetória de Perlongher nos grupos de esquerda e de “liberação homossexual”, no contexto da ditadura argentina, depois reconfigurados em suas inserções institucionais (por meio da Universidade) durante os anos da “abertura” política brasileira, tenham contribuído para reforçar essa visão crítica seja da “máquina médica”, seja das capilaridades dos poderes estatais, que eram incorporados e norteavam as entidades “paramédicas” da sociedade civil. Nesse caso, havia uma crítica incisiva ao saber médico (que repatologizava a homossexualidade), ao Estado (em suas intervenções autoritárias) e às “militâncias” sexuais e civis que “pasteurizavam” de modo disciplinador e normalizador o desejo e a sexualidade. Essa conjunção de forças institucionais criava, para Perlongher, um espaço, digamos, “marginal” de ação social e política, certamente transgressivo (“micropolítico”, em seus termos), mas, ao mesmo tempo e gradativamente, encapsulador. De algum modo, a lógica e as dinâmicas de conflito social e interpessoal, produzindo diferenciação e contraste, estavam lá na Argentina ( Bazán, 2004BAZÁN, Osvaldo. Historia de la homosexualidad en la Argentina. De la conquista de América al siglo XXI. Buenos Aires, Marea Editorial, 2004. ) como apareceram seja na mobilização social e política da “militância homossexual” no Brasil ( MacRae, 1990MACRAE, Edward. A construção da igualdade. Identidade sexual e política no Brasil da “Abertura”. Campinas, Editora da Unicamp, 1990. ) e, anos depois, no ativismo de hiv/aids brasileiro (Valle, 2002). É preciso salientar que a posição cooptada ou mais crítica do movimento social seria uma linha tênue ou mais acentuada, considerando a trajetória, posição ideológica e atuação das ongs aids brasileiras. Mas esse movimento de distanciamento político-institucional e crítica intelectual se associa de modo muito próximo da convergência que Perlongher faz da relação entre vida, morte e desejo, que aparece em todos os seus textos, mais enfaticamente ou não, a depender do texto, mas se expressa nitidamente em OQEA:

Envolvidos numa rede de encontros sociais, os corpos produzem intensidades. Por sinal, os afetos e repulsões entre os corpos, suas sensações, são eles próprios intensivos, Isto é, modulam-se segundo limiares de intensidade, cuja produção transtorna e atravessa os próprios corpos, extremando ou subvertendo até a organização fisiológica do organismo. Daí que procuras muito fortes de intensidade, de êxtase nas sensações, possam tencionar o corpo até o limite de sua resistência, até as portas da morte e da desagregação. […] O desejo tenderia ao excesso, à desmesura, à fuga. Os caminhos são variáveis. A busca extremada de intensidade pode percorrer as vias da orgia, da perversão radical e sistemática, até a extenuação e a repetição apática dos gestos. Linha de fuga sempre fronteiriça, ela pode beirar os abismos da destruição ou da autodestruição, desencadeando uma paixão de abolição (Perlongher, 1987a:87-88).

Segundo Perlongher, deve-se considerar a importância da dimensão do desejo em sua direta correspondência com a “ordem da morte”, que não poderia jamais ser eliminada ou abolida a partir da “medicalização da vida”, pois a sexualidade é vivida de modo complexo, que pode envolver práticas e situações de “risco” que não conseguem ser compreendidas plenamente por meio dos discursos e estratégias racionais de prevenção ao hiv/aids, pautadas em um modelo comportamental de restrição. Levando em consideração a relação do desejo com morte, excesso, desagregação e destruição da vida pela intensidade flexível do gozo e êxtase, a antropologia de Perlongher, cujas balizas intelectuais nesse ponto são Sade e Bataille, não se mostrava muito assimilável pela perspectiva do saber médico e da saúde coletiva. É certo que sua visão criava um impasse objetivo para as políticas públicas de saúde e, de fato, as pesquisas sociais e psicológicas de enfoque comportamental expunham aí seus próprios limites, afinal estavam pautadas na lógica racionalista de risco: “A perspectiva médica não costuma levar em conta esses labirintos do desejo; baseia-se, pelo contrário, num esquema mais linear. A vida não seria tomada, do ponto de vista da ‘medicalização’, no seu sentido intensivo, mas apenas no seu sentido extensivo” (Perlongher, 1987a:89). Assim, para ele, a morte seria esconjurada pelo saber médico a partir da ênfase na ideia de “sobrevida” no caso da aids. Perlongher encarava isso como um problema e até uma preocupação absurda18 18 De modo curioso e questionável, Félix Guattari teria dito em um debate público sobre a aids, que contava com a presença de Perlongher: “A Aids não é tão temível” (...) “A gente tem tanta probabilidade de morrer quanto de ganhar na loteria” (Psicodrama..., 1985). Em Guattari, o questionamento do sistema bipolar vida/morte se opera pelo “desejo como pura positividade intensiva (que) contorna os sujeitos e os objetos; ele é fluxo e intensidade” (Guattari, 1985:31). :

Num país onde os pobres morrem das afecções mais ordinárias (fome, tuberculose, lepra), mesmo a criação de sofisticados centros de atenção para tratar uma doença minoritária, ainda que rapidamente letal, pode soar um pouco elitista (1985a:35).

Tendo em vista o estado e condições precárias da saúde pública brasileira na época, é compreensível a posição de Perlongher, pois ele escrevia um pouco antes do ano da Constituinte, o que possibilitou a criação do Sistema Único de Saúde, o que terá efeito direto no enfrentamento da aids ( Parker, 1997PARKER, Richard G. (org.). Políticas, instituições e AIDS. Enfrentando a epidemia no Brasil. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor/ABIA, 1997. ). Mas aquilo que Perlongher destaca como sendo efeito do dispositivo da aids deveria ser entendido de outro modo, anos depois, por Herbert Daniel (1989)DANIEL, Herbert. Antes, a vida. In: DANIEL, Herbert. Vida antes da morte. Rio de Janeiro, ABIA, 1989. . Talvez seja aí que o texto de Perlongher precisa ser contextualizado, pois sua visão negativa da “saúde pública” pode ser entendida como uma contestação “negacionista” dos modelos de prevenção da época (ou seria da visão moral de contenção sexual que era pregada – e era alertada por muitos como Treichler, Bersani, etc).19 19 Recentemente, no caso do coronavírus, Giorgio Agamben parece ter se defrontado com isso. Mas a posição pragmática e de uma razão prática em uma situação de urgência era evidente na reformulação das ideias e concepções de Daniel, quando ele passou a atuar na ABIA e depois o levou a criar o Grupo Pela Vidda, enquanto o nível de vinculação institucional de Perlongher, ao que me parece, era limitado, se havia até, e no mais foi se distanciando a favor de um caminho do êxtase da droga, quando se volta ao uso da ayahuasca e da vinculação ao Santo Daime (Perlongher, 1994). Caberia ainda indagar se a ideia de desejo como “impulso” naturaliza, de algum modo, o que seria efetivamente uma linguagem cultural específica, não universal, do erotismo, que parece rondar a argumentação de Perlongher. No entanto, ele chega à uma proposta densa e inovadora para a época, que não minimizava a sexualidade em sua expressão plural e variada sob o vetor da intensidade do desejo:

Seria preciso, talvez, conceber uma política sexual diferente , que não desconhecesse a multiplicidade dos desejos eróticos nem tentasse disciplinar pedagogicamente os perversos e prazeres. Trata-se de oferecer a melhor informação possível , mas afirmando simultaneamente o direito de dispor do próprio corpo e da própria vida, …. […]. A vida não se mede apenas, como quer a instituição médica, em termos de prolongação da sobrevida (ou da agonia), mas também em intensidade de gozo . A dimensão do desejo não deveria ser negligenciada, se é que se trata de salvar a vida (Perlongher, 1987a:91-92).

A meu ver, houve uma mudança de tom ou de perspectiva nos textos de Perlongher, notado por Teoduresco e Teixeira (2015), mas também de foco ou interesse a partir de 1988 quando, aos poucos, ele parece se afastar mais do debate público sobre Aids e verificamos uma produção mais frequente nos seus artigos jornalísticos sobre a escritura neobarroca e em geral, sobre a literatura argentina e a latino-americana. Por um lado, transparece digamos a visão melancólica presente no artigo do “desaparecimento da homossexualidade”, publicado também pelo Boletim da ABIA, ong que Daniel trabalhara, no mesmo número em que esse é homenageado. Esta coincidência é tocante, pois se Daniel falece em março de 1992, Perlongher morre em novembro do mesmo ano.

Após uma década tão dura, todo esse tempo devastador de vidas da epidemia da aids foi drasticamente interrompido com a grande (nova) promessa da terapia combinada de diferentes remédios antiretrovirais, em especial os inibidores de protease (1995/96). Isso permitiu o acesso a novos protocolos médicos para o tratamento da infecção do hiv/aids. Caberia saber, porém, o que Perlongher pensaria disso. Em suma, o OQEA de Perlongher gera um efeito inusitado ao leitor, ao menos a mim. Claro, é um texto idiossincrático, singular, quase incômodo, pois orienta desorientando por meio de uma visão crítica dos modelos de prevenção anti-hiv/aids mais legitimados, embora seja também um texto infomativo, mas que explica muito de uma determinada época da epidemia de aids. Além disso, os textos sobre hiv/aids de Perlongher expõem um maneirismo poético, neobarroco, que nos obriga ler várias vezes o livro retomando as camadas “iridescentes” que a vertigem discursiva do autor nos conduz. Mas é, em larga medida, melancólico e sombrio, o que aponta para uma escritura complementar do autor portenho, que se fecha, creio eu, no artigo “O desaparecimento da sexualidade” (Perlongher, 1991; 1992).

Concluir/Desaparecer: Aids, melancolia e êxtase.

“Abandonamos o corpo pessoal. Trata-se agora de sair de si” (Perlongher, 1992).

Com a frase anterior, Perlongher encerra seu artigo “O desaparecimento da homossexualidade”. Não conseguiria precisar o ano em que Perlongher o escreveu efetivamente, mas o que se pode afirmar é que sua publicação em três veículos distintos, antes do falecimento do autor, indica o amplo interesse que teve na época (Perlongher 1991, 1992)20 20 Além dos dois textos assinalados, ele também teria sido publicado no jornal “Nós por exemplo”, editado por Sylvio de Oliveira e Paulo Longo, a partir do Núcleo de Orientação em Saúde Social (NOSS), ong aids do Rio de Janeiro. . De algum modo, o antropólogo repete nele os mesmos argumentos dos textos de 1985 a 1987, mas traz, talvez, outra camada de significação da aids, que não era tão evidente antes em termos pessoais, o dos limites da vida e a relação direta com a presença da doença e da morte, quando ele já conhecia seu status sorológico de HIV.

Em uma época trágica da história da epidemia, quando não havia terapêutica eficaz ou viável contra o hiv/aids, sem contar a postura condenatória de boa parte dos médicos em relação às práticas homossexuais, não é de se admirar a desconfiança, o rancor e o descontentamento de Néstor Perlongher, Herbert Daniel e muitos outros diante da medicina, que não oferecia respostas mínimas à experiência da doença, apenas tratamentos paliativos, e ao sofrimento do viver com Aids. Nesse sentido, as ideias e reflexões de Perlongher nos dizem muito sobre o pensamento de homossexuais de um certo tempo inicial da epidemia, mas creio que o “fantasma da aids” pode ainda perdurar em novas feições, essa é a característica do fantasma, ele ronda e se transforma. Em pesquisa que realizei (Valle, 2002), alguns interlocutores eram bastante céticos em relação aos tratamentos, mesmo entre 1993 a 1998, quando já havia mais remédios disponíveis contra a evolução do quadro clínico de aids. Em uma entrevista, um interlocutor chegou a me dizer que não usava nenhum antiretroviral, embora tivesse acesso a eles, mas preferia tratamento alternativo com uma conhecida curandeira do Rio de Janeiro: “… eu estou muito mais para Lauro Corona do que para Cazuza. Quer dizer, eu se eu tiver, eu quero que a coisa venha e acabe rápido”. Ele faleceu infelizmente um ano depois dessa entrevista. Ou podia acontecer de algum interlocutor, homem ou mulher, independente de sua orientação sexual e de sua identidade de gênero, começar o tratamento de modo regular e, depois, largar o uso dos remédios anti-retrovirais. Conheci alguns interlocutores que faleceram abruptamente, atingidos por uma doença oportunista. Foram casos que aconteceram já depois do ano 2000, quando havia distribuição gratuita de remédios e tratamento acessível pelo SUS. Na época, eles passaram a temer os efeitos adversos dos remédios, sobretudo lipodistrofia que no caso das mulheres pode ser bem acentuado e provoca dilemas de autopercepção da imagem corporal e o risco de estigmatização. Evidentemente, nenhuma experiência pessoal explica a outra, muito menos pretendo fazer cogitações sobre a experiência da aids vivida por Perlongher. Interessa mais entender os discursos de desconfiança e ceticismo em relação ao uso de remédios no caso da experiência da aids, pois já é sabido que muitas pessoas (e não todas) sofrem muito com efeitos colaterais e adversos variados. Aliás, segundo Baigorrea, Perlongher não se aproximou do Santo Daime como consequência de sua doença:

Creo que sua espiritualidad fue ante todo el éxtasis sin cilicios de la experiencia poética en alianza con la percepción alterada por las libaciones rituales. El contágio intelectual del cuerpo místico y el cuerpo sin organos. El anhelo de una experiencia intensiva de transustanciación donde se rompen las barreras corporales e identitarias (Baigorrea, 2006:22).

Embora seja incerto afirmar de maneira definitiva sobre a experiência corporal de uma pessoa, pois o relato do adoecimento de alguém é sempre uma interpretação, inclusive do próprio doente, afetado por situações e momentos que vive, o que torna as interpretações também cambiantes e múltiplas, não é possível assumir que o enfraquecimento físico, as dores e o mal-estar, ou seja, o sofrimento no corpo causado pela Aids seja apenas uma construção cultural, mas o que podemos alcançar da experiência da doença em Perlongher se extrai de seus textos sobre o daime. Como ele destacava, o daime tem uma dimensão sagrada: “trata-se da experimentação coletiva de plantas de poder como um meio de acesso direto ao sagrado” (1994). Mas a bebida é terapêutica também, embora compreendido por seus seguidores por sua atribuição sagrada, tal como MacRae indica: “Assim, toda vez que uma pessoa o toma teria a oportunidade de entrar em contato direto com Deus e, se tiver merecimento, poderá, até, receber a cura de uma doença mortal, como diversos adeptos dizem ter recebido” (2009:28).

Para finalizar, gostaria de ressaltar que, no artigo final de Perlongher também transparece a melancolia de uma experiência de vida que se esvai e também a compreensão de um tempo vivido pelo autor, cujo texto ou obra se torna o testemunho de um passado da “revolução sexual”, da “festa do apogeu, o interminável festejo da emergência à luz do dia, no que foi considerado o maior acontecimento do século XX: a saída da homossexualidade à luz resplandecente da cena pública, os clamores esplêndidos do – diriam na época do Wilde – amor que não se atreve a dizer seu nome” (Perlongher, 1992). Essa melancolia pode ser também captada, de modos singulares sempre, em trabalhos de intelectuais, escritores e artistas que viveram e faleceram na mesma época, tais como Caio Fernando Abreu, Leonilson, Félix Gonzalez Torres, Derek Jarman e muitos outros. Era uma reviravolta seca e brutal ao mundo prometido, tão ansiado, dos desejos “livres”, refletido, então, em redes de amizade, afeto e desejo rompidas por adoecimentos e mortes. É o choque que causa a vivacidade da leitura de O negócio do michê que, tal como bem diz o antropólogo, “apaga-se como a esfumação de um pincelinho em torno da pestana rígida, melada” ( Perlongher, 1992PERLONGHER, Néstor. O desaparecimento da homossexualidade. Boletim ABIA, 16, Rio de Janeiro, Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, 1992.: 4). A ver… Pouco tempo após seu falecimento, vozes dissidentes recobram aquilo que Perlongher chamava de “sexo perverso”, a contrapelo da higienização do sexo seguro.

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  • VELHO, Gilberto (org.). Desvio e divergência. Uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.
  • 1
    Acrônimos para virus (hiv) e síndrome da imunodeficiência adquirida (aids). Não modifiquei a grafia empregada por autores em seus textos.
  • 2
    Ao pesquisar o acervo digital do jornal A Folha de S. Paulo encontrei 45 referências a Néstor Perlongher nas décadas de 1980 e 1990.
  • 3
    Seria interessante entender como se deu a recepção dos trabalhos acadêmicos e da obra poética de Perlongher no Brasil, apontando para leituras e incorporações mais recentes.
  • 4
    Ribeiro se referia, sobretudo, à antropologia que se fazia no programa de pós-graduação em antropologia social no Museu Nacional/UFRJ.
  • 5
    Não recordo de nenhuma disciplina ofertada sobre estes temas durante a graduação em Ciências Sociais (UFRJ) entre 1983 e 1987. Se tinha discussão, ela era transversal em disciplinas como Antropologia Urbana. Na verdade, corpo e sexualidade eram muito mais foco ou assunto de corredores e bastidores entre os próprios alunos, mas apoiadas em leituras autodidatas e compartilhadas sobre política sexual e política do corpo, onde imperava Foucault. Lembro bem de conversas sobre sua morte por consequência da Aids em 1984, o que já gerava apreensão entre os estudantes. Por outro lado, deve-se atentar que, desde 1982, estávamos retomando as práticas eleitorais diretamente e a agenda politica de alguns candidatos era mais “libertária” e conjugava tanto o tema do corpo e da sexualidade como o do meio ambiente e das drogas.
  • 6
    Emprego a categoria porque ela é frequentemente usada por Perlongher.
  • 7
    Como projeto editorial e publicação do Ministério da Saúde, trata-se da “história oficial da epidemia” e, por isso, há um enquadramento legitimador da política pública de Aids, sobretudo destacando a positividade do ‘modelo brasileiro’ de enfrentamento, prevenção e tratamento do hiv/aids e da epidemia em geral. São certamente histórias particulares que os autores trazem, selecionando aspectos dos processos sociais e políticos já passados. Há diversos equívocos aliás, alguns bem gritantes, em especial no que se refere à mobilização social e política diante da epidemia.
  • 8
    Filme de Héctor Babenco, estrelado por William Hurt, Raul Julia e Sonia Braga, lançado em 1986 no Brasil.
  • 9
    Compreendo que é um acrônimo infeliz, mas passo a usar OQEA daqui em diante para facilitar a leitura do artigo, pois estarei me referindo ao livro muitas vezes.
  • 10
    Uso do “mesmo sexo” apenas para facilitar a leitura, pois questiono totalmente a biologização da sexualidade e compreendo a complexidade que envolve a corporeidade generificada dos atributos físicos de caráter “sexual”.
  • 11
    Um testemunho pessoal pode dar a significação exata do que foi ler O negócio do michê em 1987/88. Sem ter uma discussão acadêmica mínima sobre sexualidade na graduação de Ciências Sociais (UFRJ), outras ocasiões e espaços podiam ser momentos de troca, não exatamente acadêmica, sobre a etnografia de Perlongher e a deriva homossexual. Lembro que a primeira vez que conversei sobre o livro foi quando tive um encontro casual com outro rapaz da minha idade. Ao dizer que fazia Ciências Sociais, ele me mostra o livro de Perlongher, que eu já possuía. Curiosamente, foi nesse momento que dois homens jovens trazem à tona o livro de Perlongher e criam um vínculo em que o próprio texto antropológico é o aguilhão de nossa conversa e daquilo que Foucault chamou de “amizade como um modo de vida” (Foucault, 1996).
  • 12
    Não consigo deixar de fazer essa associação com o titulo do livro do antropólogo e urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos, A cidade como um jogo de cartas . Perlongher chega a citar um texto mimeografado de Carlos Nelson em O negócio do michê , que foi um trabalho de disciplina para o curso de mestrado em antropologia do Museu Nacional: “Bichas e entendidos: a sauna como lugar de confronto”. Provavelmente, se perdeu para sempre com o incêndio do prédio.
  • 13
    O termo correto atual é infecção do hiv.
  • 14
    Câncer gay é uma categoria insidiosa usada para designar genericamente alguém que tivesse aids e sofresse de sarcoma de Kaposi, uma neoplasia rara.
  • 15
    Tradução livre da frase dita por Oscar Wilde em seu julgamento, parte de um poema que escreveu. “The Love that dare not speak its name”.
  • 16
    Ong aids é uma “organização não governamental” que atua em relação à epidemia.
  • 17
    A Editora Brasiliense aventava a possibilidade de um volume da Coleção Primeiros Passos tivesse uma “segunda visão”. Foi isso que aconteceu com O que é Aids? .
  • 18
    De modo curioso e questionável, Félix Guattari teria dito em um debate público sobre a aids, que contava com a presença de Perlongher: “A Aids não é tão temível” (...) “A gente tem tanta probabilidade de morrer quanto de ganhar na loteria” (Psicodrama..., 1985). Em Guattari, o questionamento do sistema bipolar vida/morte se opera pelo “desejo como pura positividade intensiva (que) contorna os sujeitos e os objetos; ele é fluxo e intensidade” (Guattari, 1985:31).
  • 19
    Recentemente, no caso do coronavírus, Giorgio Agamben parece ter se defrontado com isso.
  • 20
    Além dos dois textos assinalados, ele também teria sido publicado no jornal “Nós por exemplo”, editado por Sylvio de Oliveira e Paulo Longo, a partir do Núcleo de Orientação em Saúde Social (NOSS), ong aids do Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
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