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Pés-de-lótus: considerações sobre a mulher chinesa em Passaporte para a China, de Lygia Fagundes Telles

Lotus Feet: Considerations on the Chinese Woman in the book "Passaporte para a China", by Lygia Fagundes Telles

Resumo

Em 1960, Lygia Fagundes Telles partiu para uma viagem à China a convite do regime comunista. Suas impressões foram registradas nas crônicas publicadas à época no jornal Última Hora e posteriormente reunidas no livro Passaporte para a China (2011). O presente artigo analisa as impressões que Lygia tece sobre a China a partir do encontro com duas mulheres no regime maoísta. Além disso, o trabalho discorre sobre como suas crônicas dialogam com a tradição da narrativa de viagem, especificamente em relação aos relatos sobre o Oriente. Como resultado, observa-se que as crônicas sinalizam aspectos relativos à constituição de uma identidade da cronista ao mesmo tempo que permitem observar tensões nas relações de gênero e classe na China maoísta, além de, a partir do caso chinês, viabilizarem uma reconfiguração do olhar do seu leitor a respeito das questões de gênero em nosso país.

Lygia Fagundes Telles; China; Relato de viagem; Representação da mulher

Abstract

In 1960 Lygia Fagundes Telles traveled to China at the invitation of the communist regime. Her impressions were published at the time in the newspaper Última Hora and later gathered in the book Passporte para a China (2011). This article analyzes Lygia's impressions about China based on her contact with two women in the Maoist regime. The work also examines how her chronicles dialog with the tradition of the travel narrative, specifically in relation to reports about the East. As a result, the articles present aspects related to the constitution of a chronicler's identity and at the same time unveil tensions in gender and class relations in Maoist China. Moreover, based on the Chinese case, the chronicles enable Brazilian readers to formulate new perspectives regarding gender issues in their own country.

Lygia Fagundes Telles; China; Travel report; Representation of women

Em setembro de 1960, após convite do Estado chinês para uma visita à China, Lygia Fagundes Telles ia apressada pela rua Marconi, em São Paulo, a fim de fazer seu passaporte, quando encontrou Samuel Wainer, diretor do jornal Última Hora. Samuel, curioso para saber o que movia a autora com tanta rapidez, ofereceu-lhe um café, momento em que oportunamente propôs a Lygia que escrevesse sobre sua viagem para o jornal. Foi assim que nasceu o conjunto de crônicas em Passaporte para a China, transformado em livro apenas em 2011. Considerando o teor das referidas crônicas, o objetivo deste artigo é o de verificar qual é a leitura de Lygia Fagundes Telles sobre o território chinês. O ponto central da análise é a descrição que a escritora faz das mulheres que encontra em sua viagem. A metodologia utilizada foi a pesquisa documental histórica, ou seja: a análise das crônicas, do jornal Última hora e de alguns relatos ocidentais sobre a China, sobretudo aqueles em que há caracterização textual dos diferentes grupos de mulheres locais. Além disso, foi feita uma aprofundada pesquisa bibliográfica tendo por base alguns eixos teóricos: vida e obra de Lygia Fagundes Telles; literatura de viagem escrita por mulheres e por escritoras latino-americanas; feminismo, identidade e gênero; história do maoísmo e história das mulheres no regime maoísta; história dos relatos ocidentais sobre "a mulher tradicional chinesa"; e o Oriente enquanto mito na tradição lusófona. Nem todos os textos estudados foram aproveitados no presente artigo, todavia, os mais importantes para o resultado obtido são comentados no presente estudo.

Mulheres e literatura de viagem

Sónia Serrano, em seu livro Mulheres viajantes1 1 O livro de Sónia Serrano presta um favor imenso à crítica ao resgatar e organizar relatos de viagem relevantes de várias culturas ocidentais; todavia, o texto feito pela autora revela outro sintoma da crítica em língua portuguesa referente aos estudos da narrativa de viagem feita por mulheres: a maior parte dos trabalhos publicados se concentra no comentário e análise de obras de autoras estrangeiras (inglesas, norte-americanas, alemãs, francesas e austríacas, na sua maior parte. Há também alguns estudos sobre as narrativas sul-americanas, onde geralmente o número de brasileiras estudadas é sempre menor ao de escritoras argentinas e mexicanas, por exemplo). Talvez isso se justifique pela dificuldade em encontrar os relatos das mulheres lusófonas, o que alça aos olhos, ainda que de modo velado, os problemas mais sutis das relações de gênero das culturas lusófonas e o constante sentimento de "periferismo cultural" que atinge, em especial, os estudos literários no Brasil. , cita alguns fatos que exemplificam crenças dos séculos XVIII e XIX sobre a escrita de viagem feminina. Segundo a autora, a viagem feminina tem sido considerada como de natureza mais íntima e confessional que a viagem masculina. Ainda que mulheres tenham feito relatos e viagens com fins de mapeamento e descrição territorial, esse ar intimista se dá, segundo Serrano, no modo como a história é contada e recebida pelo público (Serrano, 2014). A autora prossegue explicando que, até boa parte do século XX, uma mulher que viajasse causava espanto, estranheza que se reproduzia há séculos, desde livros de conduta sobre mulheres em que se recomenda que estas, ao contrário dos homens, tomem conta da casa e falem pouco. A aprovação social da viagem da mulher estava condicionada à presença do marido, uma vez que, explica Serrano, a viagem autêntica, representando conquista e domínio, é comparada ao sexo, pelo que "a tradição histórica da viagem remete para uma visão do território enquanto entidade feminina, conquistada pelo homem". Portanto, mesmo nos textos ficcionais em que a viagem é mote central, as mulheres aparecem mais como objeto de desejo - não como companheira e menos ainda como protagonista da aventura da viagem (Serrano, 2014:28).

A posição secundária face ao homem e a crença de que o único lugar que cabe à mulher é o ambiente doméstico foi reproduzida pelas próprias viajantes. Em muitos casos, essas escritoras inferiorizam o seu trabalho, justificando-se pela "incapacidade" de se aventurarem em uma atividade "digna apenas dos homens", Serrano cita o exemplo daquele que é considerado o primeiro relato de viagem feito por uma mulher inglesa:

Não só é necessário que eu faça um pedido de desculpa por aparecer desta forma pública, mas também pela minha presunção de tentar empreender um trabalho que exige uma mão mais elegante e superior, que nenhuma capacidade feminina pode pretender alcançar (Kempe apudSerrano, 2017SERRANO, Sónia. Mulheres Viajantes. Lisboa, Tinta-da-China, 2017.:39).

O relato revela, de certo modo, uma construção de identidade que não se pauta na individualidade. Não ocorre à autora do relato que ela pudesse ser provida da mesma capacidade que outra pessoa do sexo oposto, outra individualidade. Ela se identifica como mulher, de modo coletivo, organizando o universo da escrita em feminino e masculino e definindo a sua capacidade de ação de acordo com a ideia que a sua sociedade reproduz sobre as mulheres - o que limita a imagem que faz sobre si mesma e se projeta sobre a sua atividade escrita.

Ludmila de Souza Maia, em sua tese Viajantes De Saias: Gênero, Literatura e Viagem em Adèle Toussaint-Samson e Nísia Floresta, salienta que "ao longo do século XIX, a modéstia retórica de autores dava a tônica de muitos prefácios do gênero literatura de viagem" (2016:273), no caso dos relatos de mulheres analisados por Ludmila, essa modéstia aparece ainda atrelada a um apelo a "um escritor ilustre e do sexo masculino" a fim de seduzir ou convencer o leitor sobre a qualidade de sua obra ou mesmo justificar a leitura.

O uso dessa e de outras estratégias em que escritoras recorrem a um apoio masculino revela o quanto o espaço da escrita não era acessível para elas. Muitos desses relatos são quase que um pedido de desculpas pela "ousadia" de entrarem em um campo que não seria de sua expertise. Apesar de a modéstia dos prefácios ser uma prática comum na literatura daquele período, Maia (2016:275) explica que, no caso de livros escritos por mulheres, "as apresentações e introduções poderiam reproduzir essa retórica de uma maneira a enfatizar as particularidades do gênero feminino das autoras".

Desse modo, os prefácios enfatizavam características que reforçavam a moral prevalente. Portanto, as escritoras aparecem ligadas aos papeis de guardiãs da família e do lar e a sua escrita estaria atada à correspondência doméstica ou outros modelos tipicamente "do lar". Mulheres que escreviam e colocavam sua escrita à disposição de um público amplo - fora do círculo familiar, sobretudo no caso de relatarem experiências biográficas -, faziam-no como quem pede desculpas por avançar sobre um espaço que não era o seu. Além disso, à sua escrita eram atribuídos valores "considerados pelos contemporâneos como 'femininos'" (Maia, 2016:276) vinculados à ideia de sentimentalismo, sutileza, poesia e graciosidade. Com o passar dos anos, esse viés muda e as mulheres já não precisam mais pedir desculpas por apresentarem suas reflexões sobre o mundo; todavia, conforme aponta Miseres, em Mujeres en tránsito: viaje, identidad y escritura en Sudamérica (1830-1910), 2017, a viagem pressupõe o deslocamento de um corpo pelo espaço, e, no caso das mulheres, questões geográficas/sociais são marcadas e lidas a partir de ideologias de gênero patriarcais que, tanto no século XIX quanto no XX, questionam o direito das mulheres de transitar por determinados espaços.

A ida de Lygia ao Oriente teria ocorrido por indicação de Jorge Amado, segundo a própria autora supõe no prefácio de Passaporte para a China, 2011, livro em que as crônicas estão reunidas. No jornal Última Hora2 2 Fundado em 1951, o Última Hora foi responsável pela renovação do jornalismo no Brasil ao inserir limite para o tamanho dos textos e publicar várias edições diárias. Esteve diretamente ligado ao nome de Getúlio Vargas, idealizador do periódico em 1949 e permaneceu fiel à causa trabalhista inclusive na era Goulart, além de manifestar apoio a esse presidente. Por esse motivo, enfrentou diversos problemas e perseguição durante a ditadura militar. O público alvo do jornal era "a classe proletária e largas faixas da classe média urbana, desassistidas quanto a algumas necessidades básicas - faltava água, faltava luz, faltava leite, faltava carne - e à espera de um veículo que as compreendesse e abrisse espaço às suas aflições do dia a dia" (Medeiros, 2009:14). , foi publicada uma notícia em 26 de setembro de 1960 afirmando que o convite teria sido feito pela Associação Chinesa de Relações Culturais com o Estrangeiro; Lygia desconfiava que Jorge Amado tivesse indicado a eles os nomes de intelectuais que, como ela, ainda são estavam totalmente inclinados ao comunismo: "sou assim subversiva mas não comunista" (Telles, 2011TELLES, Lygia F. Passaporte para a China: crônicas de viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.:16).

Nesse sentido, seu deslocamento está circunscrito em um cenário que tem o Estado chinês como curador de sua experiência, que é pautada pelas escolhas que não pode fazer, seguindo um itinerário predeterminado. Diante da impossibilidade de transitar livremente, Lygia ainda assim consegue nos presentear com uma aprofundada reflexão sociológica sobre os contrastes e movimentações que observa no regime maoísta, afastando-se do estereótipo de escrita intimista atribuído às viajantes. Ao se deparar com um modo diferente de "ser mulher", a autora lê a identidade de gênero configurada no Brasil por meio de outra lógica.3 3 Os estudos de gênero são consequência dos processos de luta que se deram na segunda metade da década de 1960, como as revoltas estudantis de Paris, a Primavera de Praga e o movimento dos Black Panters. No Brasil, essas ideias começam a circular em meio à ditadura militar e ao processo de emancipação da mulher, que vinha desde o século XIX e intensifica-se com o suporte da imprensa local. A vida das mulheres passaria por imensas mudanças nos anos seguintes à publicação das crônicas de Lygia Fagundes Telles, e algumas dessas mudanças incluem a liberação do uso da pílula anticoncepcional. É por essa mesma lógica que passa a observar o novo regime chinês de tal modo que o deslocamento leva a uma dupla reflexão: a partir do trânsito e do contato com o outro, ela olha e escreve para um Brasil questionando seus estandartes, depois, usa o que foi aprendido na viagem a fim de (re)ler e (re)escrever esse mesmo outro com o qual aprende novas perspectivas.

Lygia Fagundes Telles e o mito do oriente

É na paisagem do século XX, do pós-guerra e da Guerra Fria (nos anos de 1960) que se situa o relato de viagem estudado aqui: Passaporte para a China: crônicas de viagem, de Lygia Fagundes Telles. Além de ser um relato feito por uma mulher latino-americana, também se encaixa no panorama geral da narrativa de viagem de tradição lusófona (no mesmo ano da ida à China, a escritora brasileira foi recebida com entusiasmo em terras lusitanas). Assim, sua escrita tem também uma importância no processo de (re)construção ou desconstrução de diferentes ideias estereotipadas que por séculos se arraigaram no imaginário dos falantes de língua portuguesa a respeito do que seriam as localidades situadas a Oriente.

A sublimação da experiência histórica do Oriente em mito na literatura de língua portuguesa abarca dimensões dificilmente comparáveis às de outros países e literaturas nacionais. No livro O mito do Oriente na literatura portuguesa, 1983, o estudioso Álvaro Manuel Machado escreveu que "seria inimaginável que um ensaio sobre história da literatura em França pudesse fazer do tema do Oriente (...) um tema tão obsessivamente recorrente, tão enraizado na cultura francesa que pudesse torná-lo mito" (Machado, 1983:11). Ainda que, especialmente no século XIX, o Oriente tenha renascido para a literatura ocidental, notadamente na Inglaterra e na França, a presença das figurações do Leste (médio e extremo Oriente) na literatura portuguesa data desde antes da épica camoniana e alcança seu auge quando recriada sob o signo do mito dos Descobrimentos reforçado em Os Lusíadas. Tal força histórica desenhou-se com diferentes contornos ao longo dos séculos, constituindo o que se pode chamar de mito. Segundo Isabel Pires de Lima, se por um lado Portugal participa da apropriação imaginária que o Ocidente foi fazendo do Oriente, por outro a vive de um modo próprio: "O Oriente tornou-se num mito histórico, e naturalmente também literário" (Lima,2003:131).4 4 Tanto Oriente quanto Ocidente não são localidades estáticas, inclusive, suas demarcações geográficas oscilam ao longo dos séculos. Os povos que habitam os espaços que no mapa localizamos como Leste e Oeste são igualmente plurais, móveis e diversificados. Tendo isso em mente, quando uso os termos Ocidente e Oriente neste artigo, faço-o com o intuito de facilitar a comunicação. O termo Ocidente, sobretudo, refere-se a um conjunto de sujeitos que por séculos dominaram as narrativas literárias, históricas e mesmo artísticas (artes visuais) compondo um quadro estereotipado dos povos orientais ao tratá-los como uma massa amorfa e monolítica. Nesse sentido, entenda-se por Ocidente os diferentes grupos hegemônicos que perpetraram o senso comum que ainda hoje tentamos desfazer sobre as diferentes localidades do leste do globo. Vale ressaltar que há grupos e povos inseridos em espaço Ocidental que sofreram o mesmo roubo de suas imagens e histórias por parte disso que genericamente compreendemos como Ocidente.

Dessa maneira, as incursões portuguesas no Oriente, ao longo de séculos, culminam em uma herança que, aos olhos de Isabel Pires de Lima, determinará a presença distinta do orientalismo na moderna literatura portuguesa e que, de certo modo, o Brasil absorveu durante o período colonial e passou a reconfigurar na sua própria literatura já emancipada no decorrer dos séculos XIX e XX. No que concerne ao fato de o Oriente servir de eixo norteador para um ato de autoconhecimento e fundação de uma sociedade, recordemo-nos o que elucidou Edward Said em Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, livro lançado em 1978, sobre o Oriente como parte da Europa:

(...) O Oriente não está apenas adjacente à Europa: também é onde estão localizadas as maiores e mais antigas e ricas colônias europeias, a fonte das suas civilizações e línguas, seu concorrente cultural e uma das suas mais profundas recorrentes imagens do Outro. Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente), como sua imagem, ideia, personalidade e experiência de contraste. Contudo, nada desse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é parte integrante da civilização e da cultura material da Europa. O Oriente expressa e representa esse papel, cultural e até mesmo ideologicamente, como um modo de discurso, com apoio de instituições, vocabulário, erudição, imagística, doutrina e até burocracias e estilos coloniais (Said, 1996SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.:13).

A "orientalização" do Oriente e a formulação deste enquanto mito na literatura portuguesa aprofunda suas raízes históricas no período dos Descobrimentos. Aos poucos e especialmente por meio das recorrentes trocas com as terras chinesas, indianas, japonesas, entre tantas outras, é que o outrora estranho e misterioso Leste foi ganhando forma literária, fosse por meio de relatos de viajantes, fosse por meio da forma poética. A esfumatura que o tema adquiriu com o tempo não significou que em algum momento os relatos estivessem estreitamente conectados com alguma "verdade" acerca da realidade dos povos orientais. Conforme Edward Said explica, é improvável que qualquer relato ou obra literária venha a alcançar o "sentido interior daquilo que o Oriente é":

(...) Não se pode dar razão dos fracassos metodológicos do orientalismo dizendo que o Oriente real é diferente dos retratos que dele fazem os orientalistas, ou dizendo que, posto que a maioria dos orientalistas é composta de ocidentais, não se pode esperar que eles tenham um sentido interior daquilo que o Oriente realmente é. Ambas as proposições são falsas. Não é a tese deste livro sugerir que existe algo como um Oriente real ou verdadeiro (islã, árabe ou seja lá o que for); nem é fazer uma afirmação do necessário privilégio de urna perspectiva "interna" sobre uma "externa", para usar a útil distinção de Robert K. Merton. Ao contrário, venho argumentando que "o Oriente" é em si uma entidade constituída, e que a noção de que há espaços geográficos com habitantes indígenas radicalmente "diferentes" que podem ser definidos com base em uma religião, cultura ou essência racial próprias desse espaço geográfico é igualmente uma ideia altamente discutível. Eu certamente não acredito na proposição limitada segundo a qual apenas um negro pode escrever sobre negros, um muçulmano sobre muçulmanos, e assim por diante (Said, 1996SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.:326).

No caso português, as delineações do Oriente serviram especialmente para completar a situação de falta. A identidade portuguesa utilizou-se de sua própria configuração de Oriente para se construir e se afirmar. Pode-se notar, com o passar dos séculos, que a mudança nos relatos e na utilização do Oriente enquanto imagem literária reflete também as nuanças e mudanças do pensamento lusitano. O que se revela nos relatos de viagem ao longo de cerca de 400 anos é uma visão pautada, primeiramente, pelo cristianismo, o que fez com que os múltiplos povos e culturas das localidades da América, da África, médio e extremo Oriente fossem vistos apenas como bárbaros a serem convertidos. Aos poucos, um ou outro escritor passou a se desvincular das amarras cristãs e começou a trazer novas perspectivas sobre essas culturas.

Herdeira também da língua portuguesa, a experiência local se dá de modo ambíguo. O indígena, tratado pelo português do mesmo modo que este tratava os povos orientais, traz para o centro da experiência brasileira certos aspectos do orientalismo, de modo que a classe intelectual local, (luso)eurocentrada, convive com as dicotomias do colonialismo, idealizando o próprio país como outrora fizera com as terras orientais - povos escravizados e povos indígenas figuram como sujeitos a serem conquistados, catequizados, convertidos, "civilizados".

A cultura letrada brasileira derivou, de certo modo, da tradição jesuíta ibérica e foi por esse viés que formulou suas primeiras manifestações literárias e críticas. Com o tempo, o Brasil se emancipa, mas os resquícios do orientalismo lusitano permanecem no modo de imaginar países longínquos como a China, que chegavam às terras sul-americanas por meio de suas especiarias.

Com o advento do cinema, o relato do Oriente vem pelas imagens capturadas por diretores franceses e estadunidenses. Nesse ponto, a imaginação literária é sobreposta e reconstruída pela aparência realística do cinema. Na primeira metade do século XX, uma ideia de China chega ao nosso país também pelas telas do cinema. A China cinematográfica daquele período infelizmente ficou marcada pelo viés anglo-saxão e francófono, centralizados na experiência da Guerra do Ópio. O comércio ilegal de ópio da China, feito pelos ingleses por meio do porto de Cantão, deu ao mundo uma ideia de que toda a população do país era pobre e viciada, e o cinema certamente corroborou isso.

É também por esse meio cinematográfico que Lygia Fagundes Telles criou suas primeiras impressões sobre uma cidade como Xangai. Em filmes como O Expresso de Xangai (1932), Charlie Chan em Xangai (1935) e A Dama de Xangai (1948), a cidade aparece como um local inóspito, antro de homens criminosos e de cortesãs. O que Lygia tinha em mente sobre a China se relacionava com a visão passada pelo cinema.5 5 Entretanto, em crônicas seguintes, Lygia deixaria claro que sua ideia de China não ficou presa às narrativas fílmicas: a autora demonstra ter conhecimento aprofundado da obra de Lao She, natural de Beijing (1899-1966), conhecida por expressar as vidas e memórias nativas de Pequim com uma abordagem realista.

(...) ruas repletas de gente miserável indo assustada de um lugar para outro assim como as formigas de um formigueiro no qual alguém afundou o pé, ah! tanta intriga naqueles flagrantes da massa a borbulhar pelas ruas como a água suja transbordando de uma pia. E na tela sempre um riquixá apático a transportar a loura heroína com seu vestido transparente e sombrinha de rendas, fugindo da rede de espiões que tramavam matar o oficial americano (Telles, 2011TELLES, Lygia F. Passaporte para a China: crônicas de viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.:47).

Na crônica "Iskutsk, 29 de setembro de 1960", prestes a chegar em Pequim, Lygia faz um resumo sobre como uma ideia de China se formou no seu imaginário, rememorando a laranja-da-china de sua infância, as aulas de geografia, o cinema (já na adolescência) e, finalmente, os romances de Vicki Baum, nos quais "os brancos chegando tão dignos e bem intencionados" (p. 47) acabavam por ceder aos encantos do ópio, recuperando-se ao final. Esses relatos, tal como veremos adiante, relacionam-se a uma tradição que se arraiga no século XIX. Ao distorcer a realidade chinesa para fazê-la caber em um "quadro, distorceram principalmente a imagem da mulher oriental, tradada como exótica, extremamente sexualizada e vinculada à prostituição. O próprio Oriente passou a ser textualizado como espaço feminino no sentido em que a retórica das potências colonizadoras europeias, que se assumem como marcadamente masculinas, projeta e concentra na ideia de colônia as características mais negativas associadas ao sexo feminino: o silêncio, a falta de autonomia, de iniciativa e de espírito crítico.

Os filmes citados relacionam de modo indireto a figura da mulher promíscua ou sedutora à cidade de Xangai, criando uma projeção da cidade como geografia feminina e ligando ao feminino aspectos nocivos da humanidade. Enquanto corporificação da diferença espaço-cultural, a mulher simbolizaria o exotismo do país estrangeiro e pareceria assim encerrar os mistérios que o viajante (homem branco) desejaria desvendar e conhecer.6 6 Elizabeth A. Bohls, em Woman Travel Writers and the Language of Aesthetics, 1716-1818, descreve que, no relato ocidental, "o Oriente é discursivamente feminizado e erotizado; colocado em uma relação de dominação protocolonial que assume um caráter sexual aparentemente inevitável" (1995:28, tradução minha). Elizabeth prossegue afirmando que, nesse discurso, as mulheres orientais carregam uma carga simbólica desproporcional e que seus apetites sexuais supostamente insaciáveis oferecem uma desculpa para a dominação sexualizada que esses diários de viagem subscrevem.

Nesse sentido da feminilização do Oriente, Meyda Yeğenoğlu pontua:

(...) Seja masculino ou feminino, o desejo do sujeito Ocidental por seu outro Oriental é sempre mediado por um desejo de ter acesso ao espaço de suas mulheres, ao corpo de suas mulheres e à verdade de suas mulheres. O que explica tal obsessão pela mulher orientalista é a associação metonímica estabelecida entre o Oriente e suas mulheres. O Oriente, visto como a encarnação da sensualidade, é sempre entendido em termos femininos e, portanto, seu lugar no imaginário ocidental foi construído através do gesto simultâneo de racialização e feminização (1998:73, tradução minha).7 7 "( ) whether male or female, the Western subject's desire for its Oriental other is always mediated by a desire to have access to the space of its women, to the body of its women and to the truth of its women. What explains such an obsession with the Oriental woman is the metonymic association established between the Orient and its women. The Orient, seen as the embodiment of sensuality, is always understood in feminine terms and accordingly its place in Western imagery has been constructed through the simultaneous gesture of racialization and feminization. As Mary Harper notes, 'the Orient is its women for many of these travellers'. In this imagery, the inquiry into the Orient always implies a need to investigate its women. It is through the simultaneous mobilization of these two lines of inquiry, which are brought together and bear and reflect upon each other, that the Orient is comprehended in feminine terms. The process of Orientalization of the Orient is one that intermingles with its feminization".

A discussão iniciada por Said e os estudos de Mohja Kahf (1999), Reina Lewis (1996), Lisa Lowe (1991)LOWE, LISA. Critical Terrains - French and British Orientalisms. Ithaca e Londres, Cornell University Press, 1991. e Meyda Yeğenoğlu (1998)YEĞENOĞLU, Meyda. Colonial Fantasies - Towards a Feminist Reading of Orientalism. Cambridge, Cambridge University Press, 1998. sobre um orientalismo de gênero levantaram uma questão importante nos estudos feministas, sobretudo observada por Lila Abu-Lughod em Do muslims women need saving? (2013). Nesse trabalho, a antropóloga desenvolve uma questão que, de certo modo, já havia sido tocada por Spivak em Can the Subaltern Speak? (1985). Abu-Lughod chama a atenção para um olhar enviesado da cultura ocidental sobre a mulher oriental. A ideia comum de que existe uma opressão da mulher oriental poderia contribuir para a legitimação de práticas políticas danosas. Spivak já apontava para o modo como o colonizador passa a ler práticas culturais a partir da sua ótica sem, em nenhum momento, buscar saber como a mulher subalterna percebe a sua própria condição. Spivak resume tal situação na seguinte frase "white men saving brown women from brown men". Tanto para Spivak quando para Abu-Lughod, a formulação da ideia de que a mulher oriental precisa ser salva é simplória e mascara um sistema de forças sociais e políticas globais que são as reais responsáveis pela pobreza que leva a situações degradantes nos países subalternos; tais situações (das mulheres inclusive) seria resultante de uma divisão internacional do trabalho injusta, e resolvê-las passaria por uma tomada de consciência global, não apenas pelo julgamento de aspectos da cultura local.

Ao ser herdeira de uma língua que se instaura no Brasil devido à colonização, Lygia Fagundes Telles também herda uma estrutura de mito do Oriente atrelada a um viés que usa um Oriente estático como modelo para criação da sua identidade. Na Europa, ao lado da Inglaterra, Portugal é o país que mais se aprofunda no processo de estereotipação das localidades do leste do mundo. Entretanto, sendo brasileira, Lygia também se relaciona com a subalternidade e com mulheres da América Latina que, em alguma medida, precisam conhecer e elaborar para si uma identidade separada daquela ditada pelo colonizador. O processo de deslocamento, o trânsito, é vivido por Lygia como mulher e como brasileira, latino-americana, portanto. É com esse olhar que irá relatar a China que observa.

No momento em que Lygia vai para a China, em 1960, a literatura de viagem feita por mulheres brasileiras já abrangia um corpus considerável com escritoras como Nísia Floresta, Julia Lopes de Almeida e Cecília Meireles. Sendo assim, a autora passa a fazer parte desse cânone. Ademais, já havia publicado o romance Ciranda de Pedra, 1945, e os seguintes livros de contos: Porão e Sobrado, 1938, Praia Viva, 1944, O Cacto Vermelho, 1949 e Histórias do Desencontro, 1958.

Lygia não se considerava comunista; subversiva, talvez; socialista, certamente, mas não comunista, conforme esclarece em uma das crônicas em que relata uma conversa com Samuel Wiener:

Eu ia apressada pela rua Marconi quando ele me fez parar, 'Aonde vai com tanta pressa?'. Vou tirar meu passaporte para a China!, respondi. Ele ficou me olhando meio perplexo, 'Mas você é comunista?'. Achei melhor rir, não, não sou comunista, sou assim subversiva mas não comunista, nem eu nem os meus companheiros de viagem, é uma delegação de escritores convidados para as festas de outubro, desconfio que foi o Jorge Amado que indicou os nomes e daí lá vai a delegação e eu no meio (Telles, 2011TELLES, Lygia F. Passaporte para a China: crônicas de viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.:16).

Cerca de quatorze anos depois, Lygia publicaria o livro As Meninas, em que denunciaria as mazelas da ditadura militar a partir da elaboração de três personagens centrais, Lorena, Lião e Ana Clara. Já no conto "Seminário dos ratos" (publicado em livro homônimo no ano de 1977), a autora prenuncia o fim da ditadura e o levante da democracia, mais uma vez revelando sua veia subversiva e socialmente engajada, mesmo ao fazer uso de elementos fantásticos.

As personagens femininas da ficção de Lygia ganharam um espaço central na literatura brasileira, sua força e caráter são traços marcantes do modelo composicional adotado por Lygia e a atenção a esses traços específicos aparece de modo interessante em suas crônicas sobre a China. Até a data em que vai para o país oriental, a personagem feminina mais marcante criada por Lygia havia sido Virgínia, a protagonista de Ciranda de Pedra, um romance de formação. A força dessa personagem está, acima de tudo, no fato de não permanecer no ciclo da ciranda. Contrariando as expectativas sociais a seu respeito, Virgínia rompe com as estruturas vigentes: nega o casamento e filhos e parte em busca de sua liberdade intelectual. A personagem representa a independência e a busca por liberdade financeira e sexual depois de ser excluída de seu contexto social por ser fruto de uma traição e por defender a mãe adúltera. Sendo assim, podemos afirmar que quando Lygia parte para a China, as suas concepções a respeito do papel da mulher na sociedade não reproduzem o status quo, uma vez que em Ciranda de Pedra já apresentara o esfacelamento de um lar patriarcal e religioso.

A China de Lygia Fagundes Telles

A escritora partiu do Rio de Janeiro em 24 de setembro de 1960 e chegou a Pequim em 29 de setembro, após passar por Dacar, Paris, Praga, Moscou, Omsk e Irkutsk. Em Pequim, as primeiras impressões que havia criado em sua mente a partir da sua bagagem cultural e intelectual são recobradas para que ela as possa comparar com a China que observa e diz:

É preciso repetir que a imagem que eu tinha da China era a de uma população demasiado densa para um país demasiado pobre. Afinal, o burguês não gosta de ficar em contato com uma realidade muito real, ele ama o povo, mas é preciso que esse povo fique distante, ninguém quer ouvir as descrições que o escritor Lao Shech fez daquela gente faminta e viciada, comprimida nos bairros sem esgotos e água corrente (Telles, 2011TELLES, Lygia F. Passaporte para a China: crônicas de viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.:47).

Lao Shech (Lao She), que ficou conhecido como um dos mais expressivos escritores chineses do século XX, em suas obras relata uma vivência similar à sua própria nas ruas e becos de uma Beijing pobre. O escritor descreve a luta diária da classe trabalhadora, que tentava melhorar aos poucos as suas condições de vida. O que Lygia não poderia imaginar é que, poucos anos após sua visita ao país, Lao She seria preso e torturado pelo regime comunista, suicidando-se pouco depois. A China descrita por Lao She não era a China que fora vista pela escritora em 1960.

Nesse primeiro momento, Lygia demonstra ter um conhecimento mais aprofundado sobre o local que visitava, ou seja, ela também havia criado uma imagem a partir da experiência com a leitura de escritores chineses; todavia, coloca-se de modo irônico no lugar do cidadão brasileiro burguês, buscando um distanciamento de uma China que não quer conhecer, mas que habita seu imaginário: um local pobre, sujo e desorganizado.

A primeira impressão é de contraste, uma vez que, no aeroporto, é recebida por "um chinês jovem sério de cabelo repartido de lado. No cocuruto da cabeça alguns fios rebeldes abriam-se num leque formando um espanador em miniatura" (Telles, 2011TELLES, Lygia F. Passaporte para a China: crônicas de viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.:48). Ou seja, alguém que parece o oposto da confusão e pobreza imaginadas pelo burguês ideal de Lygia. O resto do parágrafo revela a veia ficcional da autora e os nomes chineses aparecem de modo cômico, suscitando estranhamento no leitor, que fica a se perguntar se seria mesmo esse o nome do sujeito ou se seria assim que a autora o entendeu: "Mister Hon Tim-Tim". Para os chineses, Lygia Fagundes Telles era agora "Madame Telezê".

Ao estudar relatos de viagens escritos por mulheres, Vanesa Miseres, no já citado livro, contribui enormemente para a corrente crítica da literatura viagem feita por mulheres, pois revela "o trânsito" em suas vastas possibilidades: de um registro a outro (escrita-experiência) e como trânsito coletivo sobre mulheres que experimentam maior mobilidade e possibilidades discursivas. Ao abordar o relato de Juana Manuela Gorriti, Miseres salienta que os incursos de viagem intervêm no cânone fundador da ideia de nação, uma vez que, pela viagem, desdobra-se um olhar transnacional por meio do qual transbordam as fronteiras geopolíticas. Daí, abre-se uma a possibilidade de se auto definir a partir de outros parâmetros. É o que se passa com Lygia. Ao virar Madame Telezê, a autora passa a assumir também certa perspectiva do olhar estrangeiro. O confronto com o outro faz com que Lygia perceba aspectos que estão além das barreiras da sua nacionalidade.

No dia seguinte, em 30 de setembro, o que se evidencia para a escritora e que se torna central na sua experiência é a constatação, por meio do discurso do tradutor chinês Mister Wang, de que há duas Chinas que se sobrepõem: uma Antiga e outra Nova. A cidade de Pequim, portanto, revelava essa coexistência simbolizada no encontro do passado com o presente. Havia ainda os traços imponentes dos palácios de antigos imperadores e sábios e, finalmente, Lygia (2011:49) se pergunta sobre as mulheres chinesas: "ah! as mulheres..." exclama "Deviam ter os pés pequenos e assim desde a infância tinham que usar sapatos menores e tão apertados que já adultas os pés tinham que ser do tamanho dos pés de uma criança...". O passado aparece simbolicamente retratado por Lygia por meio da figura da mulher cujos pés eram quebrados em um ritual que foi lido pelo ocidente como de "beleza" e submissão (pés-de-lótus). A nova China se apresenta também por meio do simbolismo da mulher que trabalha como agente de trânsito: essa tem pés grandes, está fardada e ajuda uma senhora, idosa, a atravessar a rua. De mãos dadas, nova e velha China caminham pelas ruas da Pequim vista, escrita e recriada por Lygia.

A figura da mulher segue central nesse relato. Ao evocar a chinesa de pés pequenos, a escritora não está apenas recobrando uma possível noção sua a respeito da China, simbolizada por essas mulheres, mas retoma toda a tradição do imaginário que possivelmente faz parte da ideia de China que o seu leitor contemporâneo tem. Além disso, ao metaforizar a senhora idosa de mãos dadas com a jovem "de pés grandes", associa a China às mulheres como símbolos do passado e do presente daquela civilização.

Lisa Lowe, ao teorizar sobre a visão Ocidente = homem e Oriente = mulher, explica:

A projeção do Outro oriental como feminino é uma figuração das crises sociais e políticas do século XIX na linguagem e na retórica sexuais (...). Todos são figurados nas preocupações com a centralidade e coerência do individualismo masculino sobre e contra um Outro feminino. (...) A sexualidade torna-se o campo de referência privilegiado no século XIX; o Outro cultural do Oriente do século XVIII torna-se o Outro sexual do século XIX (Lowe, 1986LOWE, LISA. The Orient as Woman in Flaubert's Salammbô and Voyage en Orient. Comparative Literature Studies, 23 (1), 1986, pp.44-58.:45, tradução minha).8 8 The projection of the oriental Other as female is a figuration of 19th-century social and political crises in sexual language and rhetoric - the crisis of authority in the instability of monarchy, the crisis of class hierarchy in a bourgeois age, the crises of family, gender, and social structure in an age of rapid industrialization, urbanization, emigration and immigration, and social change. All are figured in the concerns with the centrality and coherence of masculine individualism over and against a feminine Other. The problematic tensions within the French identity are rhetorically condensed into the topos of sexual difference between male and female. In other words, sexuality becomes the privileged field of reference in the 19th century; the 18th century's cultural Other of the Orient becomes the 19th century's sexual Other".

A retórica que coloca o Oriente como geografia feminina acaba por inferioriza-lo e é mais uma forma de representação colonial. Sendo assim, Lygia retoma uma figuração feminina do século anterior para criar no leitor um parâmetro de comparação a fim de, nos relatos seguintes, descrever a China que se lhe apresenta: nova. E mais uma vez a figura da mulher surge como o centro da representação simbólica, desta vez do comunismo. Ao usar a mulher como símbolo para a China que vê, a escritora joga com as representações anteriores, provocando estranhamento. Ao assistir, na Praça do Povo, ao desfile comemorativo do décimo primeiro aniversário da República Popular da Nova China, descreve:

Uma chinesinha debruça-se num balcão ao meu lado. Observo-a (...). Volto minha máquina fotográfica na direção da jovem. Ela inclina a cabeça para o lado, segura delicadamente a ponta da trancinha negra e abre um tímido sorriso claro como a manhã outonal. Diz em seguida um Merci beaucup! (Telles, 2011TELLES, Lygia F. Passaporte para a China: crônicas de viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.:55).

Nesse parágrafo, o uso do termo "chinesinha" e a referência às trancinhas criam uma expectativa de que autora descreverá uma imagem que corresponde ao imaginário estereotipado ocidental do século XIX sobre as mulheres chinesas. Apesar de a vida na China ser diversificada e, portanto, de as roupas e adornos variarem de acordo com os grupos sociais, idade e fatores culturais, ficou muito marcado no imaginário de parte dos povos ocidentais uma figura de mulher chinesa como a da foto abaixo, em que se pode observar a prática da tradição dos pés-de-lótus.9 9 Conforme já explicado em nota anterior, claro está que o "Ocidente" não é algo estático, desse modo, nesse parágrafo em específico, emprego o termo a fim de me referir à tradição lusófona que, com suas recorrentes incursões a diferentes localidades do Oriente Médio e da Ásia criou, ao longo de séculos, uma ideia, esta sim estática, do que seriam as culturas e povos locais (conforme Álvaro Manuel Machado explica em seu livro O mito do Oriente na Literatura Portuguesa, 1983; entretanto, note-se que esse "mito" se construiu também pelas artes visuais e relatos orais, chegando ao Brasil através do processo de colonização e aqui ganhando vida própria). Assome-se a isso o senso comum reforçado pelo cinema americano e inglês da primeira metade do século XX.


Uma garota que cantava - final do século XIX.

Segundo Jinhua Emma Teng em seu artigo "The Construction of the 'Traditional Chinese Woman' in the Western Academy: A Critical Review", 1996, o tópico "mulher tradicional chinesa" é uma constante na academia ocidental desde o século XIX e precisa, portanto, ser compreendido enquanto temática. Segundo a estudiosa, os primeiros relatos sobre as mulheres locais teriam sido feitos por missionários interessados na vida doméstica, ainda no século XIX.10 10 Acrescento à reflexão de Emma Teng que, no caso da tradição de língua portuguesa, os relatos dos viajantes dos séculos XVI e XVII já eram ricos em descrições (dentre esses textos estão os dos missionários, como o católico São Francisco Xavier, bem como o famoso texto de Fernão Mendes Pinto). Influenciados por teóricos como Herbert Spencer, segundo Emma Teng (1996TENG, Jinhua Emma. The Construction of the “Traditional Chinese Woman” in the Western Academy: A Critical Review. Journal of Women in Culture and Society, n. 1, v. 22, The University of Chicago, 1996, pp.115-151.:121, tradução minha), esses relatos "aderiram à crença de que o status da mulher poderia ser usado como medida do nível de desenvolvimento de uma sociedade"11 11 "( ) many turn-of-the-century writers adhered to the belief that women's status could be used as a measure of a society's level of development". , assim, a subordinação das mulheres chinesas validou o argumento ocidental sobre o atraso cultural do país e a prática dos pés-de-lótus foi usada como símbolo de uma suposta barbárie chinesa e como indicação da urgência da intervenção missionária; a situação permite uma paráfrase de Spivak: "homens brancos salvando mulheres de pele amarela de homens de pele amarela".

Já outra vertente dos relatos dedicava-se à descrição da vida das mulheres da elite, as quais eram vistas como mulheres exemplares. Seja por uma ou por outra vertente, Teng esclarece que em ambos os casos o interesse pelas mulheres está ligado à estreita associação delas ao que seria uma cultura tradicional chinesa, tanto no seu pior como no seu melhor. Desse modo, esses relatos enviesados acabam por criar uma ideia equivocada do que seria uma "mulher tradicional chinesa" e é essa ideia que entra em contraponto com o que é observado na realidade por Lygia em meio ao regime maoísta.12 12 Além disso, outras concepções sobre o que seria o feminino, todavia em termos chineses, são usadas pelo maoísmo em sua propaganda estatal.

Entretanto, Lygia não encontra na realidade local as "mulheres pintadas" do imaginário Ocidental. A oportunidade de falar em francês com a moça lhe permite perguntar:

Ainda não vi nenhuma chinesa pintada, nem as jovens, nem as mulheres maduras usam batom ou mesmo pó de arroz, a mulher na China abriu mão das mais elementares vaidades? Nem brincos, nem anéis, nem unhas esmaltadas... (Telles, 2011TELLES, Lygia F. Passaporte para a China: crônicas de viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.:56).

Talvez Lygia estivesse tentando justificar uma expectativa que não era tanto sua, mas do público brasileiro que acompanhava suas crônicas no Última Hora.13 13 Em uma pesquisa que fiz nas páginas do jornal nos anos anteriores à contribuição de Lygia, vi que são comuns retratos estereotipados de pessoas da China como acrobatas, músicos e artistas circenses. O termo "chinesinha" é usado recorrentemente para se referir às artistas, atrelado à ideia de docilidade e beleza (conforme os termos que complementam as frases). O público, depois da leitura dos relatos de uma longa viagem, passando por inumeráveis cidades, estaria ansioso por encontrar nas crônicas da escritora alguma China. Nesse sentido, o modo como Lygia compõe seu texto, formulando a conversa que teve com a moça chinesa, revela a sua consciência histórico-cultural no trato com o imaginário que o brasileiro de uma classe trabalhadora letrada dos anos 1960 poderia ter sobre o Oriente.

Retornando ao veio aberto por Vanesa Miseres, é possível observar que, a partir do confronto com a realidade chinesa, Lygia pode questionar as identidades de gênero criadas nos limites das fronteiras do Brasil, ideias não necessariamente suas, mas que seu leitor ideal teria. Por esse motivo, não é de modo ingênuo que recupera a feminilização do Oriente no seu próprio relato. Ela parte do lugar comum para desconstruí-lo. Ao descrever a resposta da chinesa, ficamos todos surpreendidos:

Ela ficou séria "O nosso povo acaba de sair de uma fase terrível que durou dezenas e dezenas de anos, não podemos nos preocupar com ninharias quando ainda há coisas tão importantes a serem resolvidas. Principalmente nós, as mulheres, nunca tivemos sequer o essencial. Então não podemos agora nos dar ao luxo de pensar no supérfluo, temos é que trabalhar. O resto fica para depois" (Telles, 2011TELLES, Lygia F. Passaporte para a China: crônicas de viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.:56).

Nesse período, a mulher brasileira urbana e das classes menos abastadas ainda oscilava entre as tarefas domésticas e a possibilidade de realizar um trabalho fora de casa, remunerado.14 14 Note-se que as crônicas de Lygia são veiculadas ainda antes dos processos de emancipação que o final da década traria às mulheres. Seu texto é parte da transição vivida antes da liberação da pílula e do uso livre do biquíni. Em jornais da década anterior, como O Globo, as colunas voltadas às mulheres perpetuavam os ideais dos Anos Dourados, em que, segundo Carla Bassanezi (2008), maternidade, casamento e dedicação ao lar estavam diretamente atrelados ao conceito de feminino, logo, às mulheres, e sem possibilidade de contestação. Ainda que mais mulheres entrassem para o mercado de trabalho na década de 1960, o teor das publicações da imprensa reforçava a importância de um equilíbrio entre a vida doméstica e a profissional, reiterando a importância da primeira em detrimento da segunda. Toda a década anterior fez questão de reforçar esse ideal de mulher, sendo o romance Ciranda de Pedra, 1954, um dos precursores da representação da figura de uma mulher emancipada no cenário nacional. Todavia, é importante salientar que esses elementos estão diretamente veiculados à criação de um ideal de mulher urbana e não devem ser tomados como verdade para todas as camadas sociais do país. Quando podiam optar pelo trabalho fora de casa, essa tarefa não estava apartada de um sentimento de culpa pelo "abandono do lar", portanto, o discurso da chinesa - pautado pelo regime comunista de seu país -, assim convicta da necessidade do trabalho, poderia soar conturbador para o ideal brasileiro.15 15 Segundo Luciana Portilho, do instituto de economia da UNICAMP, "os dados dos Censos de 1940, 1950 e 1960 mostram significativa diferença na participação feminina e masculina da População Economicamente Ativa (PEA) por idade (...). A estrutura da participação feminina é a mesma ao longo dos anos, com a faixa entre os 15 e 19 anos apresentando as maiores taxas e a partir de então um declínio das mesmas conforme a idade avança. Este declínio se inicia a partir dos 20 anos, sugerindo possíveis efeitos do casamento e maternidade (...)" (Portilho, 2011:7). Como o jornal era voltado a uma classe trabalhadora, embora letrada, era provável que os leitores vivessem esse dilema em alguma medida. O trânsito do encontro com a China e com a mulher em questão possibilita o questionamento das ordens vigentes no Brasil.

A descrição feita pela autora dá voz à entrevistada, pois o relato está na primeira pessoa. Por isso, vai contra o que Said, em Orientalismo, percebeu acerca de alguns relatos e ficções ocidentais sobre a geografia e as mulheres do lado Leste do globo: nas descrições analisadas por Said, o Oriente é convertido em espaço sexualmente permissivo, vinculado ao feminino: "Metáforas de profundidade, de secretismo e de promessa sexual [...] como 'os véus de uma noiva oriental' ou 'o inescrutável Oriente'" (Said, 1996:228). Este estereótipo evidencia a noção do oriental como simbolicamente feminino e fértil: "Poderíamos especular por que razão o Oriente parece ainda hoje sugerir não apenas fecundidade, mas promessa (e ameaça) sexual, sensualidade inesgotável, desejo ilimitado, profundas energias generativas (...)" (Said, 1996SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.:195).16 16 Apesar de delimitar o âmbito da sua análise, o autor foi acusado não ter dado a devida ênfase às questões de género e de sexualidade, colocando-as em uma subárea do discurso orientalista. Talvez a subalternidade de Lygia, como latino-americana, fomente o seu olhar igualitário.

Ao abrir espaço no seu texto para a voz da operária e ao desconstruir a ideia da Oriental como um souvenir, uma boneca de porcelana, Lygia revela as linhas sobre as quais avança a "Nova China" e continua: "Ah! a jovem era parecida com o Wang de fronte pensativa, a fronte carregada de responsabilidade". A jovem chinesa carregava, para Lygia, a mesma expressão do jovem chinês, Wang, seu tradutor. Desse modo, a escritora brasileira parece salientar uma possibilidade de igualdade nos ideais dos dois jovens chineses, cujas identidades se aproximam em prol da criação de uma nova nação. Tal descrição reflete as máximas da campanha de Mao "Os tempos mudaram, homem e mulher são os mesmos" e "O que quer que o homem possa fazer, a mulher também pode".

De fato, o corpo da mulher tornou-se um elemento central na propaganda do novo regime, conforme podemos ver nos pôsteres abaixo, entretanto, não pelas qualidades que estão normalmente relacionadas ao feminino e sim pela possibilidade de assumirem atributos vinculados a uma identidade de gênero masculinizante. Ou seja, há uma valorização dos símbolos relativos ao masculino em detrimento do que se considera relativo ao feminino, justamente pelo teor pejorativo que o senso comum atrelado à figura da mulher traria para o novo projeto de nação.

Segundo Wenqi Yang e Fei Yan, em "The annihilation of femininity in Mao's China: Gender inequality of sent-down youth during the Cultural Revolution", a aparente ênfase do slogan na igualdade de gênero interpretou mal o conceito de igualdade. Entrevistas ilustram como "a retórica do Estado se apropriou de um discurso de igualdade das mulheres para silenciar as mulheres e despolitizar o gênero como categoria política" (Wenqi; Yan, 2017:2, tradução minha).17 17 In-depth interviews with former 'sent-down' youth illustrate how state rhetoric appropriated a discourse of women's equality to silence women and depoliticize gender as a political category". No artigo, afirma-se que a desigualdade de gênero estava ausente do discurso público e que o conflito entre os sexos foi ocultado por um discurso estatal, assim, o gênero como categoria foi creditado com significado exclusivamente político.


"Temos orgulho em participar na industrialização do país"

Lygia ainda espera que a moça possa usar maquiagem, pois lhe parece trazer alguma alegria/vida/festividade que não vê nessa Nova China; entretanto, ao pensar nas meninas brasileiras maquiadas ainda crianças, desiste de sugerir que a moça o faça e compara a chinesa com a personagem Inocência, de Visconde Taunay. Assim, de rosto lavado, parecia "doce, delicada e pura". Ainda que essa visão possa ser estereotipada, ela se afasta da ideia da mulher oriental como lasciva e sexualizada.

De certo modo, a moça carrega em si, no relato de Lygia, tanto atributos comumente atrelados ao feminino (docilidade e delicadeza), quanto elementos geralmente colocados como masculinos (seriedade e responsabilidade). A cronista não escapa das dicotomias, todavia promove uma descrição menos unilateral ao observar aspectos relativos tanto ao masculino quanto ao feminino, compondo um retrato mais próximo do que vem a ser a complexidade psicológica de qualquer ser humano.

Em Gender Trouble: feminism and the subversion of identity, 1990, Judith Butler salienta que as estruturas jurídicas contemporâneas fixam categorias de identidade dentro dos termos da norma heterossexual, o que explicaria a visão equilibrada e dicotômica de Lygia. Num primeiro momento, a autora estranha a ausência dos atributos tidos como femininos na jovem que observa e com quem conversa, todavia, ao pensar nas identidades de gênero brasileiras, reforçadas desde a infância, Lygia reconfigura suas expectativas sobre o que seria uma "identidade da 'mulher'".

Diante dessa desestabilização, a escritora faz uso dos estereótipos referentes às concepções de masculino/feminino a fim de apresentar ao leitor uma construção complexa, aproximando-se da nova realidade chinesa. Todavia, se Lygia observa nessa mulher aspectos comumente relacionados tanto ao masculino quanto ao feminino, o regime maoísta parece ir num sentido contrário, aniquilando qualquer vestígio do que possa ser percebido/atribuído como feminilidade, perpetuando uma ideia do feminino como frágil.

No mesmo livro citado acima, Judith Butler questiona: "quem é 'a mulher' e como defini-la?" Qualquer definição que exista (atrelada ou não a elementos considerados femininos) se encaminharia rumo a um engessamento identitário que reforça as estruturas de poder e saber. Desse modo, é possível notar, por meio do relato de Lygia, que, apesar de promover determinada igualdade, o regime Maoísta, ao definir os aspectos que deveriam constituir a identidade da mulher, estava agindo na manutenção de estruturas.

Adiante, a brasileira conhece Xangai e a única pessoa levemente maquiada da viagem: a poeta e atriz Whang Chiang Ying. Em suas crônicas, não havia muito espaço para a crítica direta ao regime, uma vez que a autora tinha receio de retaliações; todavia, uma leitura atenta de seu trabalho textual permite a visão de várias camadas importantes que exibem nas suas curvas mais íntimas toques de discernimento e um ponto de vista bem formado sobre as práticas da Nova China. A mão ficcionista de Telles é o que permite que a autora carregue sua narrativa de viagem com os contrastes do olhar crítico.

O ponto de partida para a crítica sutil que faz à China que visita e observa são as duas mulheres que conhece e suas (não) maquiagens. Lygia usa sua aguçada percepção sobre esse traço e, por meio dos recursos textuais de quem cria personagens, transmite a ideia complexa de que as mulheres e o povo em geral poderiam estar sendo submetidos a uma vida de trabalhos forçados na qual não havia espaço para lazer, intimidades e sociabilizações fora dos padrões exigidos pelo maoísmo, todavia, em nenhum momento Lygia tenta salvá-los ou destila sobre eles valores ocidentais. A escritora deixa espaço aberto para a dúvida e prefere dar voz às pessoas que encontra usando o recurso do diálogo em suas crônicas.

Quando Lygia descreve a poeta usando maquiagem, uma intelectual que trabalhava a favor do regime, e sublinha o fato de essa mulher ser a única maquiada em todo o seu percurso de viagem, a escritora salienta a ousadia de expressão da intelectual chinesa. A poeta se afasta das trabalhadoras que, agora mais igualadas aos homens nos atos de trabalho (aspecto simbolizado pelo abandono dos adereços que estão relacionados à feminilidade, como a maquiagem) estavam (num movimento contrário à lógica imediata de que a mulher sem maquiagem seria uma mulher mais livre das amarras da sociedade patriarcal) submetidas a uma nova égide de controle e submissão: a do Estado.

Aqui vale salientar um aspecto importante da escrita de Lygia - que se consolidaria no romance As meninas -, a habilidade de criar identidades fluidas para suas personagens com base na observação do real. A própria autora afirmaria em 1995 que "parti da realidade para a ficção. Sei que em estado bruto, minhas meninas existem, estão por aí". Alfredo Bosi disse que Lygia é dos escritores que "têm escavado os conflitos do homem em sociedade, cobrindo com seus contos e romances-de-personagens a gama de sentimentos que a vida moderna suscita no âmago da pessoa" (Bosi, 2006:414), complementando o que afirmara Antonio Candido sobre o modo como Lygia usa a realidade em sua escrita: "A obra de Lygia Fagundes Telles realiza a excelência dentro das maneiras estabelecidas de narrar. Mas ela sabe fecundá-las graças ao encanto com que compõe, à capacidade de apreender a realidade pelos aspectos mais inesperados, traduzindo-a de modo harmonioso" (Candido, 1999:92). Assim, Lorena, Lia e Ana Clara, de As meninas, não representam símbolos de algo estanque, mas se constituem de fragmentos de identidades que as fazem complexas, revelando a inconstância inerente à humanidade. Por tudo isso, suas "meninas" são personagens abertas às mudanças e Lygia não as encerra em uma identidade fixa, seja de gênero, seja de classe social. A autora usa o artifício mimético, que concilia o literário e o social, dando vida especial às três personagens de As meninas.

Essa habilidade de apreensão da realidade é mais que evidente em suas crônicas sobre a China, a agudeza com que apreende as tensões sociais coloca esses relatos de viagem a par dos relatos sociológicos. Sem fazer uso de teorias, Lygia nos presenteia com material rico ao documentar suas impressões, além disso, parece que a autora estranha a falta de espaço que o regime maoísta deixa para a complexidade humana, algo pelo que muito prezava, conforme seus textos subsequentes viriam a revelar no cenário da nossa literatura.

No relato de Lygia, as relações de micropoderes articulados ao Estado aparecem de modo interessante. Esses poderes atravessam a estrutura social, atingindo, de um modo ou de outro, toda a sociedade. O que a crônica revela, sem criticá-la ou lhe atribuir algum juízo de valor, é a separação entre classe trabalhadora e classe intelectual dentro do regime. Pela descrição da cronista-viajante, as separações do regime maoísta não parecem pautadas exclusivamente pelo determinismo biológico existente na ideia de sexo. Butler (2003)BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2003. Tradução de Renato Aguiar. explica que essa determinação faz com que a desigualdade entre homens e mulheres seja naturalizada:

a ideia de que o gênero é construído sugere um certo determinismo de significados do gênero, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexorável. Quando a 'cultura' relevante que 'constrói' o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino. Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino (Butler, 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2003. Tradução de Renato Aguiar.:26).

O regime maoísta parece compreender a possibilidade de formar um gênero único para os corpos dos trabalhadores, relegando os elementos relacionados ao feminino a esferas cada vez mais periféricas. Desse modo, conforme o que é apresentado no discurso de Lygia, podemos inferir que o novo regime chinês não desfazia as estruturas de poder. Independentemente de determinações biológicas, todos os corpos saudáveis e produtivos deveriam servir ao regime.

O que transparece, portanto, é que nem todos os corpos têm o mesmo "direito de poder" e nem podem ocupar os mesmos espaços. Conforme Foucault (1979)FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979. explicita, é equivocado pensar o poder apenas pelo seu viés repressivo, há uma face dele que se instaura por meio de induções e reafirmações de práticas aparentemente não repressivas que têm por objetivo a formação de corpos dóceis e produtivos. Nesse sentido, para ver uma Nova China, foi necessário que Lygia olhasse com uma lógica que ponderasse as singularidades da experiência social daquele local em um momento específico de sua história. Se a escritora brasileira forçasse sua visão para fazer caber uma estrutura pautada nas identidades de gênero vigentes no Brasil, não teria apreendido as sutilezas do regime que vigorava por lá.

Em outro momento da viagem, Lygia usa as palavras de uma amiga para sinalizar que na China faltava alguma diversão/corrupção em meio a tanta aparente perfeição. Assim, a atenção para a presença/ausência da maquiagem aponta para uma possível desconfiança velada da autora em relação à verdade do que via no país, afinal, sua viagem era guiada pelos membros do Estado e não lhe era permitido ver nada que estivesse fora do roteiro por eles planejado.

Na volta de Xangai, rumo a Pequim, Lygia expõe:

Chegamos às cinco horas da madrugada, a vasta estação já fervilhando (...). Uma velha de pés atrofiados caminha ao meu lado arrastando pela mão uma menina de uns quatro anos e que tem os pés do tamanho dos pés da vó.

Velha China. Nova China. Imagino como seria essa velha quando jovem: se era nobre tinha a obrigação de ter aqueles pés infantis, olhar sempre baixo, voz aguda - característicos de elegância e beleza. Se era do povo, sua condição então se reduzia simplesmente à de uma escrava, propriedade da família enquanto solteira, propriedade da família do marido quando casada. Com direito de trabalhar desde o raiar do dia até a hora de se estender na cama, moída de cansaço e com o corpo dolorido porque as surras eram mais ou menos diárias. Com a nivelação dos direitos da mulher aos direitos do homem no novo regime, figura só nas gravuras o tipo da mulher-bibelô, uma flor de estufa ociosa e infeliz pertencente a uma classe abastada. Simples animal de carga, sem personalidade e sem os mais rudimentares direitos se pertencente a uma classe inferior (Telles, 2011TELLES, Lygia F. Passaporte para a China: crônicas de viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.:71).

Sob esse aspecto, as mulheres que Lygia conheceu, embora estivessem mais livres das amarras da família - dada a possibilidade do divórcio - e dos traços estéticos pelos quais ficara simplificada e simbolizada nos relatos ocidentais como a "mulher-bibelô", estavam agora presas a uma nova ética que as submetia a um regime no qual sua identidade se dava em especial pela centralidade do trabalho visando ao bem de uma coletividade. Essa nova submissão transparecia na sua estética e, sendo assim, se a mulher chinesa não era mais uma propriedade central da família, ela ainda estava sob a tutela de um Estado centralizador, pautado na criação de uma identidade de gênero unilateral, tal como viria a se mostrar a Nova China nos anos subsequentes à visita de Lygia, com a Revolução Cultural.

Quando Lygia secretamente espera que aquela moça chinesa que encontrou nos primeiros dias da viagem use maquiagem, deixa aparecer o seu desejo de que aquela mulher possa de fato se expressar, seja qual for a sua forma de ser. De certo modo, a escritora brasileira compreende que esses aspectos fazem parte da visão comunista do país, em que todo o cidadão trabalha em prol de uma coletividade. Todavia, sutilmente, Lygia se questiona sobre a identidade gênero estanque que essa coletividade assume e o quanto isso supostamente elimina nuances de individualidade que a brasileira sentia necessárias como parte do bem-estar humano.

O interessante é que em nenhum momento a autora julga a organização chinesa, chega até mesmo a culpar a sua desconfiança, creditando-a a resquícios de uma visão burguesa (Lygia se considerava socialista naquele momento, mas percebia o quanto o olhar burguês ocidental também se apresentava na sua própria educação moral), ao mesmo tempo que procura, veladamente, vestígios de violações nos direitos das comunidades locais (Lygia era formada em direito). É possível perceber o quanto o deslocamento/trânsito atuou para uma reconfiguração de certos aspectos da identidade da autora, que passa a se enxergar de modo transnacional, como herdeira de uma tradição burguesa ocidental.

Tendo isso em vista, a maquiagem, no seu relato, passa a ser um símbolo geral para uma complexa questão de gênero e, nesse sentido, deixa de estar somente relacionada aos padrões de submissão da era chinesa anterior para representar a necessidade que Lygia sentia, naquele país, da presença de elementos representativos da liberdade, uma vez que a China maoísta elegeu os elementos considerados masculinos como característica única do regime, excluindo qualquer outro tipo expressão. A maquiagem funciona, no relato de Lygia, como símbolo da libertação do sujeito, mas Lygia só chega a essa possibilidade a partir da experiência com a realidade local, por isso, o deslocamento é crucial na elaboração de sua percepção.

Conclusão

O texto da escritora brasileira mostra como, para continuar existindo nesse novo sistema, a identidade de gênero passa a ser monolítica e todo o sujeito precisa construir sua identidade social tendo como base os elementos atribuídos a certa masculinidade. Desse modo, o relato da autora abre espaço para que nos questionemos sobre o quanto a pretensa igualdade de direitos entre gêneros na verdade mascarava o massacre de toda e qualquer expressão daquilo que se considerava uma característica relativa às mulheres, ou "feminino".18 18 Segundo Helen Gao (2017), os historiadores que pesquisaram a coletivização do campo chinês na década de 1950 descobriram que, embora as mulheres realmente contribuíssem enormemente para a agricultura coletiva, elas raramente subiam para posições de responsabilidade. Helen Gao, cuja avó participou da Revolução Chinesa, pondera que as mulheres, no local de trabalho, a fim de aderir à nova imagem feminina definida pelo regime, passaram a ver, entender e falar sobre sua vida não como realmente era, mas como deveria ser. Todavia, apesar das contradições entre a realidade e o discurso do partido sobre as melhorias nas vidas das mulheres, a propaganda maoísta ensinou as mulheres a "sonhar grande". Para garantir seu bem-estar nessa sociedade, todos precisavam se parecer cada vez mais com um homem ideal: "A mocinha do trânsito - pés grandes, cabelos curtos, gestos decididos - indica que o caminho está livre" (Telles, 2001:72). A questão se levanta é: o que aconteceria com aqueles que não quisessem dobrar sua identidade à coletividade imposta, com quem quisesse usar a sua "própria maquiagem"? Todavia, essa pergunta só pode ser levantada pelo leitor, em nenhum momento ela é explicitamente feita pela cronista. É aí que a magistral habilidade da escritora se consolida. Seu deslocamento (viagem), fixado na escrita, permite uma reconfiguração de valores que ultrapassam a sua individualidade e avançam para a realidade brasileira quando suas crônicas chegam ao jornal e ao leitor.

O relato de viagem de Lygia Fagundes Telles capta nuances e complexidades do regime chinês dos anos de 1960, e a mulher é recriada textualmente como um símbolo mutante e polivalente. Pautada por um olhar que abarca tanto o lado bom quanto o ruim das mudanças promovidas pelo maoísmo sobre a cultura geral das práticas dos sujeitos e corpos daquele país, a escritora construiu, com o uso de recursos estilísticos comuns à ficção, uma narrativa que apresenta uma China instigante, viva, profunda e repleta de contrastes. Trabalhando com o senso comum e os estereótipos criados ao longo dos séculos pelos relatos de viagens ocidentais a respeito do Oriente, principalmente no que se refere à construção de uma imagem para a mulher oriental, Lygia redefine Pequim e Xangai, inserindo no cerne da tradição da narrativa de viagem luso-brasileira e latino-americana uma nova possibilidade de leitura para esses lugares. Muitas das impressões sócio-políticas suavemente indicadas por Lygia em sua narrativa sobre a República Popular da Nova China hoje figuram como perspectivas canônicas nos mais variados antros acadêmicos que se dedicam ao estudo do período maoísta, dentro e fora da China.

As suas crônicas sinalizam não apenas aspectos relativos à constituição de uma identidade ou olhar da cronista sobre o mundo, mas, por terem um valor de relato sociológico, permitem observar tensões nas relações de gênero e classe no país para o qual viaja e, mais do que isso, viabilizam uma reconfiguração do olhar do seu leitor a respeito das questões de gênero, uma vez que confronta o status quo a partir de suas crônicas de viagem periodicamente publicadas no jornal e, mais recentemente, reunidas em livro. A contribuição de seu texto só reforça a importância de estudarmos os relatos das viajantes lusófonas do Brasil e dos países africanos, bem como de situar as narrativas brasileiras no cenário latino-americano a fim de observar as questões sociais que elas levantam, além das questões relativas à identidade das autoras e suas filiações.

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  • 1
    O livro de Sónia Serrano presta um favor imenso à crítica ao resgatar e organizar relatos de viagem relevantes de várias culturas ocidentais; todavia, o texto feito pela autora revela outro sintoma da crítica em língua portuguesa referente aos estudos da narrativa de viagem feita por mulheres: a maior parte dos trabalhos publicados se concentra no comentário e análise de obras de autoras estrangeiras (inglesas, norte-americanas, alemãs, francesas e austríacas, na sua maior parte. Há também alguns estudos sobre as narrativas sul-americanas, onde geralmente o número de brasileiras estudadas é sempre menor ao de escritoras argentinas e mexicanas, por exemplo). Talvez isso se justifique pela dificuldade em encontrar os relatos das mulheres lusófonas, o que alça aos olhos, ainda que de modo velado, os problemas mais sutis das relações de gênero das culturas lusófonas e o constante sentimento de "periferismo cultural" que atinge, em especial, os estudos literários no Brasil.
  • 2
    Fundado em 1951, o Última Hora foi responsável pela renovação do jornalismo no Brasil ao inserir limite para o tamanho dos textos e publicar várias edições diárias. Esteve diretamente ligado ao nome de Getúlio Vargas, idealizador do periódico em 1949 e permaneceu fiel à causa trabalhista inclusive na era Goulart, além de manifestar apoio a esse presidente. Por esse motivo, enfrentou diversos problemas e perseguição durante a ditadura militar. O público alvo do jornal era "a classe proletária e largas faixas da classe média urbana, desassistidas quanto a algumas necessidades básicas - faltava água, faltava luz, faltava leite, faltava carne - e à espera de um veículo que as compreendesse e abrisse espaço às suas aflições do dia a dia" (Medeiros, 2009MEDEIROS, Benicio. A rotativa parou!: os últimos dias da Última Hora de Samuel Wainer. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009.:14).
  • 3
    Os estudos de gênero são consequência dos processos de luta que se deram na segunda metade da década de 1960, como as revoltas estudantis de Paris, a Primavera de Praga e o movimento dos Black Panters. No Brasil, essas ideias começam a circular em meio à ditadura militar e ao processo de emancipação da mulher, que vinha desde o século XIX e intensifica-se com o suporte da imprensa local. A vida das mulheres passaria por imensas mudanças nos anos seguintes à publicação das crônicas de Lygia Fagundes Telles, e algumas dessas mudanças incluem a liberação do uso da pílula anticoncepcional.
  • 4
    Tanto Oriente quanto Ocidente não são localidades estáticas, inclusive, suas demarcações geográficas oscilam ao longo dos séculos. Os povos que habitam os espaços que no mapa localizamos como Leste e Oeste são igualmente plurais, móveis e diversificados. Tendo isso em mente, quando uso os termos Ocidente e Oriente neste artigo, faço-o com o intuito de facilitar a comunicação. O termo Ocidente, sobretudo, refere-se a um conjunto de sujeitos que por séculos dominaram as narrativas literárias, históricas e mesmo artísticas (artes visuais) compondo um quadro estereotipado dos povos orientais ao tratá-los como uma massa amorfa e monolítica. Nesse sentido, entenda-se por Ocidente os diferentes grupos hegemônicos que perpetraram o senso comum que ainda hoje tentamos desfazer sobre as diferentes localidades do leste do globo. Vale ressaltar que há grupos e povos inseridos em espaço Ocidental que sofreram o mesmo roubo de suas imagens e histórias por parte disso que genericamente compreendemos como Ocidente.
  • 5
    Entretanto, em crônicas seguintes, Lygia deixaria claro que sua ideia de China não ficou presa às narrativas fílmicas: a autora demonstra ter conhecimento aprofundado da obra de Lao She, natural de Beijing (1899-1966), conhecida por expressar as vidas e memórias nativas de Pequim com uma abordagem realista.
  • 6
    Elizabeth A. Bohls, em Woman Travel Writers and the Language of Aesthetics, 1716-1818, descreve que, no relato ocidental, "o Oriente é discursivamente feminizado e erotizado; colocado em uma relação de dominação protocolonial que assume um caráter sexual aparentemente inevitável" (1995:28, tradução minha). Elizabeth prossegue afirmando que, nesse discurso, as mulheres orientais carregam uma carga simbólica desproporcional e que seus apetites sexuais supostamente insaciáveis oferecem uma desculpa para a dominação sexualizada que esses diários de viagem subscrevem.
  • 7
    "( ) whether male or female, the Western subject's desire for its Oriental other is always mediated by a desire to have access to the space of its women, to the body of its women and to the truth of its women. What explains such an obsession with the Oriental woman is the metonymic association established between the Orient and its women. The Orient, seen as the embodiment of sensuality, is always understood in feminine terms and accordingly its place in Western imagery has been constructed through the simultaneous gesture of racialization and feminization. As Mary Harper notes, 'the Orient is its women for many of these travellers'. In this imagery, the inquiry into the Orient always implies a need to investigate its women. It is through the simultaneous mobilization of these two lines of inquiry, which are brought together and bear and reflect upon each other, that the Orient is comprehended in feminine terms. The process of Orientalization of the Orient is one that intermingles with its feminization".
  • 8
    The projection of the oriental Other as female is a figuration of 19th-century social and political crises in sexual language and rhetoric - the crisis of authority in the instability of monarchy, the crisis of class hierarchy in a bourgeois age, the crises of family, gender, and social structure in an age of rapid industrialization, urbanization, emigration and immigration, and social change. All are figured in the concerns with the centrality and coherence of masculine individualism over and against a feminine Other. The problematic tensions within the French identity are rhetorically condensed into the topos of sexual difference between male and female. In other words, sexuality becomes the privileged field of reference in the 19th century; the 18th century's cultural Other of the Orient becomes the 19th century's sexual Other".
  • 9
    Conforme já explicado em nota anterior, claro está que o "Ocidente" não é algo estático, desse modo, nesse parágrafo em específico, emprego o termo a fim de me referir à tradição lusófona que, com suas recorrentes incursões a diferentes localidades do Oriente Médio e da Ásia criou, ao longo de séculos, uma ideia, esta sim estática, do que seriam as culturas e povos locais (conforme Álvaro Manuel Machado explica em seu livro O mito do Oriente na Literatura Portuguesa, 1983; entretanto, note-se que esse "mito" se construiu também pelas artes visuais e relatos orais, chegando ao Brasil através do processo de colonização e aqui ganhando vida própria). Assome-se a isso o senso comum reforçado pelo cinema americano e inglês da primeira metade do século XX.
  • 10
    Acrescento à reflexão de Emma Teng que, no caso da tradição de língua portuguesa, os relatos dos viajantes dos séculos XVI e XVII já eram ricos em descrições (dentre esses textos estão os dos missionários, como o católico São Francisco Xavier, bem como o famoso texto de Fernão Mendes Pinto).
  • 11
    "( ) many turn-of-the-century writers adhered to the belief that women's status could be used as a measure of a society's level of development".
  • 12
    Além disso, outras concepções sobre o que seria o feminino, todavia em termos chineses, são usadas pelo maoísmo em sua propaganda estatal.
  • 13
    Em uma pesquisa que fiz nas páginas do jornal nos anos anteriores à contribuição de Lygia, vi que são comuns retratos estereotipados de pessoas da China como acrobatas, músicos e artistas circenses. O termo "chinesinha" é usado recorrentemente para se referir às artistas, atrelado à ideia de docilidade e beleza (conforme os termos que complementam as frases).
  • 14
    Note-se que as crônicas de Lygia são veiculadas ainda antes dos processos de emancipação que o final da década traria às mulheres. Seu texto é parte da transição vivida antes da liberação da pílula e do uso livre do biquíni. Em jornais da década anterior, como O Globo, as colunas voltadas às mulheres perpetuavam os ideais dos Anos Dourados, em que, segundo Carla Bassanezi (2008)BASSANEZI, Carla. Mulheres dos Anos Dourados. DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2008, pp.522-48, maternidade, casamento e dedicação ao lar estavam diretamente atrelados ao conceito de feminino, logo, às mulheres, e sem possibilidade de contestação. Ainda que mais mulheres entrassem para o mercado de trabalho na década de 1960, o teor das publicações da imprensa reforçava a importância de um equilíbrio entre a vida doméstica e a profissional, reiterando a importância da primeira em detrimento da segunda. Toda a década anterior fez questão de reforçar esse ideal de mulher, sendo o romance Ciranda de Pedra, 1954, um dos precursores da representação da figura de uma mulher emancipada no cenário nacional. Todavia, é importante salientar que esses elementos estão diretamente veiculados à criação de um ideal de mulher urbana e não devem ser tomados como verdade para todas as camadas sociais do país.
  • 15
    Segundo Luciana Portilho, do instituto de economia da UNICAMP, "os dados dos Censos de 1940, 1950 e 1960 mostram significativa diferença na participação feminina e masculina da População Economicamente Ativa (PEA) por idade (...). A estrutura da participação feminina é a mesma ao longo dos anos, com a faixa entre os 15 e 19 anos apresentando as maiores taxas e a partir de então um declínio das mesmas conforme a idade avança. Este declínio se inicia a partir dos 20 anos, sugerindo possíveis efeitos do casamento e maternidade (...)" (Portilho, 2011:7).
  • 16
    Apesar de delimitar o âmbito da sua análise, o autor foi acusado não ter dado a devida ênfase às questões de género e de sexualidade, colocando-as em uma subárea do discurso orientalista.
  • 17
    In-depth interviews with former 'sent-down' youth illustrate how state rhetoric appropriated a discourse of women's equality to silence women and depoliticize gender as a political category".
  • 18
    Segundo Helen Gao (2017)GAO, Helen. How Did Women Fare in China's Communist Revolution? The New York Times: New York Times Opinion. Red Century Series, Sept. 25, 2017 [https://www.nytimes.com/2017/09/25/opinion/women-china-communist-revolution.html - acesso em: março 2022].
    https://www.nytimes.com/2017/09/25/opini...
    , os historiadores que pesquisaram a coletivização do campo chinês na década de 1950 descobriram que, embora as mulheres realmente contribuíssem enormemente para a agricultura coletiva, elas raramente subiam para posições de responsabilidade. Helen Gao, cuja avó participou da Revolução Chinesa, pondera que as mulheres, no local de trabalho, a fim de aderir à nova imagem feminina definida pelo regime, passaram a ver, entender e falar sobre sua vida não como realmente era, mas como deveria ser. Todavia, apesar das contradições entre a realidade e o discurso do partido sobre as melhorias nas vidas das mulheres, a propaganda maoísta ensinou as mulheres a "sonhar grande".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2022
  • Aceito
    05 Maio 2023
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