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Nossos (des)pedaços voláteis: entrevista com Leonardo Triandopolis Vieira*

VIEIRA, Leonardo Triandopolis. Pedaços Humanos . 3 ed.Campo Grande, MS: Não Sou Uma Editora, 2021

Leonardo Triandopolis Vieira é natural de Campo Grande - MS, graduado em música pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), escritor, editor e dono de casa, tem atualmente doze livros de literatura publicados, sendo a maioria destes autopublicados pela da Não Sou Uma Editora. Além dos livros, possui um canal1 1 Disponível em: < https://www.youtube.com/c/leoescreve> . Acesso em: 26 jan. 2022. no YouTube, em que publica vídeos sobre literatura e política, apresentando seus livros e comentando os de autoras e autores como Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, José Saramago, Chico Buarque e Paul B. Preciado.

Com grande influência de Paul Preciado, Leonardo Triandopolis Vieira tem uma escrita marcada por uma erótica que prescinde de uma ideia fixa e heternormativa sobre corpo, gênero e sexualidade; no lugar, adota uma escrita contrassexual, que, na proposta de Preciado (2019:411), “os corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, e sim como corpos falantes, e reconhecem os outros corpos como falantes”. Em acréscimo, também por influência de Paul, a literatura de Leonardo apresenta o gênero como prótese, “não se dá senão na materialidade dos corpos. É puramente construído e ao mesmo tempo inteiramente orgânico. [...] O gênero se parece com o dildo” ( Preciado, 2019PRECIADO, Paul B. O que é a contrassexualidade? In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2019.: 416).

Apesar de toda a literatura contrassexual de Leonardo Triandopolis Vieira ser marcada por essa perspectiva sobre corpo, gênero e sexualidade, é em Pedaços Humanos – definido pelo autor como um livro-laboratório, exercício sobre o exercício de fazer literatura, com versos e prosas experimentais que convidam a leitora e o leitor à interação e a des(d)enhar com palavras (Vieira, 2021a) – que o autor explora mais profundamente a ideia de gênero como prótese, em um contexto pantaneiro. Desde o título, há um convite para que corpos humanos e nossa leitura sobre eles deixem de lado organizações funcionalistas dos órgãos, que frequentemente fazem com que gêneros sejam impostos a partir de pênis e vaginas. No lugar, propõe-se que se corpos humanos passem a ser pensados como um conjunto de pedaços – pedaços que podem ser negociados, remanejados, inseridos ou retirados, e, nesses movimentos, pode-se experimentar uma construção corporal poética.

Ao longo do livro, esses pedaços humanos são desenhados através da palavra, e aproximam-se de objetos, animais, nuvens, montanhas… Em um dos primeiros textos, esses pedaços humanos se aproximam de montanhas de sal, “sal que sai da pele, que sai dos poros, dos vácuos, das pernas. Entre o vale uma floresta: negra e despudorada. Entre o vale uma pele” (Vieira, 2021a:11). Todavia, logo em seguida, o sal vira areia, e a areia vira uma jaguatirica: “haste inóspita de dunas areia. Areia que dá nas coxas. Areia que arranha a carne. Como a garra da jaguatirica” (Vieira, 2021a:13). E mais para o final do livro, ao falar da dor que a personagem Aurora sente durante o parto, seu coração é representado por uma linha que se traça sobre si em um desenho abstrato, “cujos interstícios renderam relvas de briófitas” (Vieira, 2021a:113). Pouco depois, as linhas reaparecem no texto: “mergulho o breu entre a cama e a manta que nos aquece, traduzo o seu corpo. As linhas e ranhuras da sua pele, eu as leio com as mãos. Não são apenas marcas do tempo, são os versos mais íntimos e jubilosos” (Vieira, 2021a:119).

A volatilidade com que o autor fala desses pedaços – montanhas de sal, areia, jaguatirica, briófitas, linhas e ranhuras – é próxima da proposta de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996) de um corpo sem órgãos (CsO), que se opõe à organização imposta pelo organismo, abrindo o corpo a conexões, distribuição de intensidades e desterritorializações. A oposição ao organismo ocorre pois este está relacionado a acumulação e sedimentação, com imposição de formas e funções, “uma territorialização arbitrária do corpo, que procura reduzir drasticamente as possibilidades de experimentação com esses órgãos” (Mombaça, 2015:n.p.). Destarte, na proposta de Deleuze e Guattari (1996DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de Janeiro, Editora 34, 1996. Tradução de Aurélio Guerra neto et al.: 12), o corpo sem órgãos “é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam”.

Esses exercícios de enxergar e (des)construir corpos inconstantes são, de acordo com Félix Guattari e Suely Rolnik (2013), importantes processos de singularização, em que há a possibilidade de construção de referenciais próprios, de viver seus processos e ler a própria situação, em um vir a ser (devir) diferencial, que recusa a subjetividade imposta. A literatura de Leonardo Triandopolis Vieira, além de construir referenciais outros que mudam constantemente, também recusa criticamente a heteronormatividade, expondo-a.

Um dos contos que mais explicitamente critica como a sociedade trata pessoas que não se adequam à heteronormatividade é o que narra os diálogos que residentes de uma cidade interiorana têm quando a personagem Valéria chega à procura de seu pai. Grande parte da população da pequena cidade fica com medo pela chegada de Valéria, vendo-a como um homem “daqueles tipos da cidade, sabe. [...] Daqueles que faz até cirurgia pra virar muié” (Vieira, 2021a:87, sic), ao passo que outros residentes contrapõem esses discursos: “Mas se virou muié, num é mais hômi! Para de ser teimoso!” (idem, sic). No dia seguinte a cidade procura a igreja para se benzer, sob a premissa de que a visita de Valéria era uma provação espiritual. Ao final da missa, o padre comentou que estava feliz em ver a igreja tão cheia, um fiel lhe respondeu que estavam na missa “por causa daquilo” (Vieira, 2021a:89), o padre então lhe dá um sermão, de que não se deve falar assim de pessoas. O conto se encerra com o padre conversando com Valéria, perguntando-lhe seu nome e como gostaria de ser chamada.

Além disso, o livro também apresenta um conto sobre um “coito surreal” que uma mulher tem com o fantasma de seu marido, enquanto observava uma “árvore às margens da cidade”. Em transe, a mulher afasta o fantasma do marido e aproxima-se da janela para observar a árvore: “ela estava em um transe tão profundo, perdida em suas abstrações, que sequer percebeu seus impulsos erógenos”. Posteriormente, a mulher interrompe sua masturbação e sem graça tenta esconder sua ereção. Nesse momento, o conto fala sobre como os pedaços da mulher foram negociados por ela, com silicone e hormônios, e, apesar disso, “a vírgula entre suas pernas era uma maldição. Um deboche falha divina a deturpar sua condição de mulher” (Vieira, 2021a:47). O interessante é que o conto expressa que, apesar do deboche indesejável, o pedaço humano entre as pernas é uma vírgula, não um ponto final, o que abre a possibilidade de negociação, de contestação e até mesmo de despedaçar uma pontuação que, ao contrário do que impõe a heteronormatividade, não determina o gênero.

Essa abertura da vírgula no lugar de um ponto final determinista é retomada no último poema do livro: “[...] o ponto / aquele que finda / não ousei” (Vieira, 2021a:131). Esta é uma das características mais marcantes desse livro-laboratório: a constante experimentação na escrita, o que faz de Pedaços Humanos um livro vivo, inquieto, que a cada edição carrega consigo marcas do tempo. Cabe dizer que, escrito durante a pandemia de covid-19, esta nova edição, além de revisada e ampliada, atualiza uma proposta da primeira edição do livro: na primeira edição, o autor deixou a penúltima página do livro em branco, para que no lançamento e noite de autógrafos pudesse improvisar um poema inédito para cada pessoa do evento; mas como na terceira edição não seria possível uma noite de autógrafos presencial, o autor atualizou a proposta colocando, em uma das últimas páginas do livro, um código QR (ou QR code ) que direciona a uma página virtual intitulada Nossos Pedaços2 2 Disponível em: < https://www.leoescreve.com.br/nossospedacos> . Acesso em: 05 de fev. de 2022. . O autor escreveu poemas, compôs e tocou melodias inéditas para as primeiras pessoas que adquiriram a terceira edição do livro, experimentação que se aproxima de

Corpos inconclusos, desfeitos e refeitos, arquivos vivos de histórias de exclusão. Corpos que embaralham as fronteiras entre o natural e o artificial, entre o real e o fictício, e que denunciam, implícita ou explicitamente, que as normas de gênero não conseguem um consenso absoluto na vida social ( Bento, 2006BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro, Garamond, 2006.: 19-20).

Para tanto, Pedaços Humanos de Leonardo Triandopolis Vieira apresenta-se como incompleto, não porque lhe falte algo, mas por estar constantemente em construção e mutação, confrontando-se com o instável, precário, incerto, contornos ambíguos, corpos e textos inconclusos, em movimento, que escolhem a vírgula porque não ousam findar com um ponto. Assim, com grande volatilidade, esse livro-laboratório é um convite inquieto a experimentar e des(d)enhar com palavras, a olharmos nossos (des)pedaços, remanejá-los, e conceber corpos, gêneros e sexualidades para além da heteronormatividade.

Após esta breve apresentação de Leonardo Triandopolis Vieira e seu livro Pedaços Humanos , temos a seguir a entrevista realizada com o autor sobre esta obra, os bastidores de sua produção literária e projetos futuros. A entrevista ocorreu no final de outubro de 2022 e, por sugestão de Leonardo, essa foi realizada de forma escrita, em um arquivo online de acesso simultâneo. Assim o texto da entrevista está tal qual foi escrito, com pequenas alterações para adequá-lo às normas da revista.

***

Entrevistadora (E): Muito obrigada por me conceder esta entrevista. Já conversamos inúmeras vezes sobre seus textos, me sinto honrada em poder estar aqui formalmente lhe entrevistando hoje, principalmente por se tratar do livro Pedaços Humanos , que é tão especial para mim. Quero começar lhe parabenizando por sua extensa produção literária, admiro muito sua escrita, e tenho em minha estante (e em meu coração) grande parte dos seus livros. A maioria dos seus livros foram autopublicados pela Não Sou Uma Editora. Como é este processo de escrever, editar e publicar os próprios livros?

Leonardo Triandopolis Vieira (LTV): Eu que agradeço, o sentimento é mútuo. Quando comecei a editar meus livros, então, eu trabalhava como editor em uma editora de livros de Campo Grande - MS. Era uma editora especializada em livros infantojuvenis e paradidáticos. Estava em contato com outros editores e profissionais do mercado. Um editor de São Paulo, quando eu disse a ele que iria buscar uma editora (com o perfil do meu trabalho) para publicar meus livros, recomendou-me a autopublicação. Basicamente ele disse: Leonardo, você já faz tudo o que uma editora faz, por que você não edita o seu livro? A internet possui recursos para que você conecte o leitor à sua obra, sem a conciliação tradicional de autor-editora-livraria-leitor. E foi isso o que eu fiz. Hoje, meus romances estão sendo publicados por uma editora de Goiás. Mas é um processo fruto de afeto e não de transição monetária, os editores são meus amigos, e eu continuo editando meus livros (diagramação, projeto gráfico), mas, pelo menos, os romances não ocupam apenas o espaço do meu HD ou estoque pessoal e, sim, na casa editorial de amigos queridos. O processo de me ocupar de quase tudo - da criação à produção dos meus livros (terceirizo apenas a revisão e a impressão) é, basicamente, uma senda pessoal onde procuro me apropriar dos meios de produção para, através do exemplo, talvez, mostrar que é possível criar e manter a existência enquanto escritor, independente do mercado e elites culturais. Quero escrever e produzir como se não existisse o capitalismo. Tenho a consciência que estou sob o regime capitalista, mas não sou o regime capitalista. Parafraseando Paul Beatriz Preciado (2020)PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro, Zahar, 2020. Tradução de Eliana Aguiar. , sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e epistemológico binário gritando diante de vocês (Tradução de Eliana Aguiar).

E: É muito interessante a perspectiva ético-política que carrega na escrita e editoração de seus livros. Ainda sobre o processo de escrita, Pedaços Humanos é definido em sua quarta capa como um livro-laboratório. Em acréscimo, o último poema, bem como a orelha do livro e a existência de três edições de Pedaços Humanos - sem contar sua curta apresentação em Topografia Bacanal (2021b) -, demonstram que este livro-laboratório e seu escritor não ousam findar e concluir. Dito isso, quero lhe perguntar como foi o processo de escrita de Pedaços Humanos , em especial a terceira edição, que foi publicada durante a pandemia.

LTV:Pedaços Humanos possui esse título, pois se trata disso: de pedaços: componentes: elementos: fragmentos: retalhos: frações: ossadas: escombros daquilo de produção minha que orbita a minha produção central, digamos assim. Por isso ele é recheado de textos experimentais, versos e prosa. O humano é, acima de tudo, um ser inacabado. Um gato é um gato. Pronto. Não precisa nem da palavra gato para ser o que é. Nós, humanos, bem, a tragédia que somos está aí todos os dias. Pensamos que somos inacabados ou queremos ser inacabados? Pedaços podem ser peças de um quebra-cabeça. E o livro reflete isso, não é um livro que eu escrevi, no sentido tradicional de que pensei em escrever o livro assim. É uma enciclopédia daquilo que eu já havia escrito e, até então, não publicado. A principal diferença da terceira edição, além da adição de alguns textos inéditos, foi o exercício de improvisar uma música instrumental e um poema para as pessoas que comprassem o livro na primeira semana. Foi um desastre. Além de você, minha companheira e dois amigos, ninguém mais comprou o livro na semana de lançamento. Apesar de o livro ainda ser adquirido, casualmente, desde que foi lançado.

E: Uma pena que poucas pessoas tenham adquirido o livro na semana de lançamento. Lembro que no lançamento da primeira edição, lá em 2017, você já havia improvisado poemas na última página do livro, o que brinca bastante com essa questão de ser inacabado. Foi interessante ver como manteve esta experiência mesmo em isolamento social, e ainda compondo músicas inéditas. Algo que considero muito interessante em Pedaços Humanos é que é o único livro que você publicou que combina poesias e contos. Por que é o único? E como surgiu este título, Pedaços Humanos ?

LTV: Ele é o único, porque é constituído de pedaços, de retalhos - o que deu origem ao título. Os meus demais trabalhos são processos sólidos, principalmente os de poesia, que não utilizo como campo para ser poeta, mas, sim, para pesquisar sobre temas que me interessam e exercitar a síntese: transmitir e provocar o máximo através da menor composição textual possível.

E: No início da entrevista você parafraseou Paul Preciado, e também já comentou algumas obras do autor em seu canal no YouTube. Eu considero que sua escrita, de modo geral, é marcada por uma erótica que prescinde de uma heternormatividade sobre corpo, gênero e sexualidade. Consigo perceber algumas influências de Preciado em Pedaços Humanos e em outros livros que escreveu, que são marcados por tal erótica. Por isso quero te perguntar de que modos Preciado influenciou suas escritas? Há outras autoras e autores dos estudos de gênero e sexualidade que lhe influenciam?

LTV: Acredito que, mais do que prescindir, eu procuro, com a minha escrita, criticar, derrubar, desconstruir e combater hegemonias, tais como a heteronormatividade, o genitalismo e binarismos cotidianos e estruturais. A obra de Preciado chegou para mim de maneira paradoxal, pois considero um evento acidental planejado. Adquiri seu primeiro livro não pela autoria, não o conhecia até então, mas pela editora, a n-1, por conhecer o perfil editorial. O primeiro livro que li de Preciado foi Manifesto Contrassexual (2017). É como a frase do Menino Maluquinho , de Ziraldo, que em um de seus livros diz “todo lado tem seu lado e eu posso viver ao lado do seu lado, que um dia foi o meu”, algo assim. Estou citando de cabeça. Ler Preciado foi como encontrar esse lado que um dia foi o meu. Outras autoras que me influenciaram, e me influenciam, vejamos, Virginie Despentes, Gabriela Wiener, Alejandro Jodorowsky, Glauco Mattoso, Judith Butler, David P. Barash e Judith Eve Lipton.

E: Que potência acidental seu encontro com livros de Preciado! Percebo que ao longo do livro há uma grande volatilidade para, em suas palavras, des(d)enhar estes pedaços humanos. Pode comentar um pouco sobre isso?

LTV: Aí já é uma questão subjetiva do outro que lê. A partir do momento em que publico o livro, o texto já não me pertence. Inclusive, quando leio um texto assinado por mim. Esse “mim”, esse eu, já não é mais o eu que escreveu, é apenas quem lê. Para mim, o texto literário precisa extrapolar quem assina sua autoria. O meu trabalho só existe a partir do momento que deixa de ser meu sem deixar de ser, me aniquila, quando me transcende. Quando me desindividualizo, me desencarno e a minha literatura cria raízes – se materializa. O verbo se faz carne. Sem o pronome meu, torno-me uma espécie de deus. O texto (literatura), como uma espécie de Cristo. Assim, “meu” texto, a “minha” literatura desencarnada, é tão meu quanto Cristo o é de João, Mateus, Marcos ou Lucas. Dito isso, não desdenho da sua pergunta, mas deixo livre a resposta para que você e os leitores a desenhem como bem entender.

E: Entendo, e de modo algum sinto que tenha desdenhado da minha pergunta. Considero inclusive muito interessante essa perspectiva aberta que tem com os textos que escreve, de aniquilação e transcendência. Me dá uma sensação de despedaçamento desse “eu” e desta autoria, para que outras pessoas possam desenhar estes (des)pedaços com suas próprias leituras. Em minha leitura, esta é também uma proposta bem volátil. Mas seguindo com a entrevista, há um conto em Pedaços Humanos que explicitamente critica como a sociedade trata pessoas trans. O conto de Valéria, que chega em uma cidade interiorana à procura de seu pai. Infelizmente os diálogos transfóbicos estabelecidos neste conto são corriqueiros. Em outras ocasiões, conversamos sobre pesquisas que ambos realizamos para escrever nossos textos. Considerando isso, queria lhe perguntar sobre o processo de escrita destes diálogos. Caso tenha realizado uma pesquisa para escrever este conto, quais histórias reais e/ou bases de dados quantitativos inspiraram o conto?

LTV: Esse conto surge do resgate de memórias infantis. Meus avós maternos moravam na Vila Carvalho, bairro aqui de Campo Grande com muitas esquinas ocupadas por travestis e mulheres trans trabalhadoras sexuais. Com exceção da minha avó materna, toda a família da minha mãe é homofóbica, transfóbica, enfim, oprimidos que se fantasiam de opressores. Certa vez, eu devia ter uns 8 anos, estávamos, eu e minha mãe, chegando de carro na casa dos meus avós, quando eu vi uma travesti e achei ela uma das mulheres mais lindas que eu tinha visto até então, tanto, que vocalizei o meu fascínio, ao que minha mãe respondeu “isso não é mulher, é um homem sem vergonha”. E o conto é composto apenas por diálogos, porque foram os diálogos que me atravessaram que adubaram essa narrativa.

E: Entendo. Eu acho muito instigante como nesse conto, diante de falas próximas à que sua mãe lhe disse quando criança, um dos personagens do conto diz “mas se virou muié, num é mais hômi! Para de ser teimoso!” (sic). Você comenta que esta narrativa foi adubada por diálogos que lhe atravessaram. Além destes, carregados de homotransfobia familiar, você também estabeleceu diálogos com pessoas LGBTQIA+? Se sim, como estes diálogos adubam suas escritas?

LTV: Antes de estabelecer qualquer espécie de diálogo, de minha parte, o aspecto medular foi, e é, eduzir um olhar real não-binário e não-genitalista. E, a partir daí, vivendo e convivendo com as pessoas sem olhar primeiro para legendas ou estereótipos, escuto elas através delas e não de mim. Eu chamo esse processo de escuta acromática, porque tento conservar o outro sem decompô-lo. Tão pouco quero compreender o outro. Aqui, elucido, compreender pode ser uma forma de aprisionar o outro, porque pode, às vezes sem intencionalidade, limitar algo que é fluente, espontâneo, descomplicado, a um conceito engessado e datado. Pode virar um dogma. Veja bem, digo isso em um contexto artístico. Sei muito bem da importância de estabelecer siglas, corpos, definições etc., para, através da dialética, das ciências, do direito, epistemologia, organizar atóis, espaços, pessoas, defesas, direitos e marcos. Dito isso, se vozes LGBTQIA+ atravessam meu discurso artístico, é porque elas não apenas existem (no sentido etimológico de estar fora de), mas são reais, logo, são naturais. O que não é natural é o movimento que busca desnaturalizar, marginalizar, remover a importância de corpos plurais e fluidos. Banalizar. Ouvir, sem decompor, sem discriminar, permite que eu possa, através da minha arte, desbanalizar o banal. Posso resumir assim: o que é natural não é adubo, é semente. O que não é natural é adubo, pois me provoca, me incomoda, faz com que eu me movimente, através do meu texto, em busca do natural.

E: O que tem lhe adubado agora? Há uma perspectiva de trabalhos futuros? O que tem produzido neste momento?

LTV: A única perspectiva é a de transformação. Algumas pessoas pensam que eu mudo muito, mas eu não encaro esses processos como mudança, mas, sim, como morte. E morte não é sinônimo de mudança. Mudar pode ser se deslocar de um ponto A para um ponto B, sem a necessidade de transformação. Morte é transformação. É destruir para reconstruir. São várias mortes que atravesso ao longo dessa vida. O trabalho com mais substância para se materializar em um futuro próximo será o meu último livro de poesia. E, por falar em morte e poesia, será uma coletânea com todas as minhas poesias. O título é Toda Poesia Tem Seu Fim . A partir dessa publicação, não mais escreverei e nem publicarei poesia. Me dedicarei exclusivamente à prosa. Para ocupar o espaço do poeta (metaforicamente morto), assumirei a figura do bruxo. Mas não a figura do mago, do homem hermético que hierarquiza e faz do seu conhecimento acessível apenas para uma elite, mas, sim, a figura da bruxa do vilarejo, aquela que socializa o seu conhecimento com os outros.

E: Provocante sua proposta de, com a morte do poeta, retomar a figura das bruxas do vilarejo, ainda mais em momentos como estes, que parecem frequentemente uma caça às bruxas. Creio que neste próximo momento a influência que tem de Alejandro Jodorowsky ficará mais evidente. Nossa entrevista também está acabando, sua morte está a ser anunciada, e logo minha função de entrevistadora será aniquilada, para que esta entrevista transcenda para a leitura de outras pessoas. Mas antes quero lhe agradecer por prontamente aceitar meu convite. Me é sempre muito prazeroso conversar contigo sobre seus livros. Por fim, gostaria de lhe perguntar se deseja acrescentar algo, além do que conversamos até aqui.

LTV: Eu agradeço pela oportunidade e por, além de me ler, frutificar a partir do que realizei.

Referências bibliográficas

  • BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro, Garamond, 2006.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de Janeiro, Editora 34, 1996. Tradução de Aurélio Guerra neto et al.
  • GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes, 2013.
  • PRECIADO, Paul B. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo, n-1 edições, 2017. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro.
  • PRECIADO, Paul B. O que é a contrassexualidade? In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2019.
  • PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro, Zahar, 2020. Tradução de Eliana Aguiar.
  • VIEIRA, Leonardo Triandopolis. Pedaços Humanos. 3 ed. Campo Grande, MS, Não Sou Uma Editora, 2021a.
  • VIEIRA, Leonardo Triandopolis. Topografia Bacanal. Campo Grande, MS, Não Sou Uma Editora, 2021b.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
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