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Mulheres com deficiência e dependência complexa: experiências de relações de cuidado para (sobre)viver

Resumo

Neste estudo, investigamos sobre as percepções de mulheres com deficiência que experienciam a dependência complexa e necessitam das relações de cuidado para (sobre)viver. Adotamos como método a pesquisa qualitativa de cunho exploratório. Trata-se de uma investigação feminista emancipatória, alinhada aos Estudos Feministas da Deficiência. Nos resultados, discutimos sobre a experiência da dependência complexa, a falta de uma política pública do cuidado e a diminuição da participação social e, por fim, as potencialidades das relações de interdependência entre as entrevistadas e suas cuidadoras.

Mulheres com deficiência; Dependência complexa; Cuidado; Participação social; Interdependência

Abstract

In this study we investigated the perceptions of women with disabilities who experience complex dependence and need relationships of care to survive or "live more". The methodology involved exploratory qualitative research. This is an emancipatory feminist investigation, aligned with feminist disability studies. Based on the results we discuss the experience of complex dependence, the lack of a public policies for care, the reduction of social participation and, finally, the potential for interdependent relations between the interviewees and their caregivers.

Women with disabilities; Complex dependence; Care; Social participation; Interdependence

Introdução

Pensando na deficiência em estimativas globais, o Relatório Mundial Sobre a Deficiência (Organização Mundial da Saúde, 2011ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório Mundial Sobre Deficiência. Governo do Estado de São Paulo, 2011 [ http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/70670/WHO_NMH_VIP_11.01_por.pdf?sequence=9 - acesso em: 18 out. 2021].
http://apps.who.int/iris/bitstream/handl...
), com dados populacionais de 2010, aponta que o número ultrapassa um bilhão de pessoas. Ou seja, aproximadamente, 15% da população mundial vive a experiência da deficiência. De acordo com esse documento, o percentual deve crescer, uma vez que a população de todo o mundo está envelhecendo, e que há uma relação entre envelhecimento e deficiência. O relatório também aponta o aumento da necessidade de serviços de cuidado.

Quando falamos sobre o cuidado, não há um consenso entre autoras(es) sobre o seu conceito e seu significado. No entanto, para grande parte das(os) teóricas(os), o cuidado é uma prática que acontece de modo relacional entre as pessoas (Noddings, 1984NODDINGS, Nel. Caring: a feminine approach to Ethics and Moral Education. Berkeley, University of California Press, 1984.; 2002; Tronto, 2007TRONTO, Joan. Assistência Democrática e Democracias Assistenciais. Sociedade e Estado, 22(2), Brasília, maio/ago, 2007, pp.285-308.); é "(...) tentativa e erro. Mais do que isso, estamos falando de uma prática cujo desfecho é incerto. Um aprendizado constante e que pode ser feito por todos aqueles que se dispuserem a aprendê-lo" (Fietz, 2020FIETZ, Helena. Relações de cuidado na experiência da deficiência: negociações cotidianas de arranjos de autonomias. Instituto JNG, 2020 [ https://www.institutojng.org.br/post/relaes-de-cuidado-na-experincia-da-deficincia-negociaes-cotidianas-de-arranjos-de-autonomias - acesso em: 25 set. 2021].
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, s/p). O cuidado está aqui, então, entendido como uma prática que se estabelece nas relações (Mol, 2008MOL, Annemarie. The Logic of Care: Health and the Problem of Patient Choice. New York, Routledge, 2008.) nas quais alguém cuida de algo/alguém que é cuidado (Fietz, 2020FIETZ, Helena. Relações de cuidado na experiência da deficiência: negociações cotidianas de arranjos de autonomias. Instituto JNG, 2020 [ https://www.institutojng.org.br/post/relaes-de-cuidado-na-experincia-da-deficincia-negociaes-cotidianas-de-arranjos-de-autonomias - acesso em: 25 set. 2021].
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). Assim, deve ser pensado tanto pelo modo como é estabelecido quanto pelos efeitos que produz, sendo a garantia do bem-estar aquilo que mais importa. A autora destaca que, invariavelmente, o bem-estar não é algo estático ou pré-determinado, mas que depende do contexto situacional. Isso porque as práticas de cuidado tendem a ser permeadas por contradições e ambivalências, o que impossibilita a adoção de princípios ou regras universais - isto é, aplicáveis a todas as situações e a todos os sujeitos.

Especificamente sobre o cuidado de pessoas com deficiência, é importante destacar que há uma parcela delas que vivencia a dependência complexa. As teóricas Gesser, Zirbel e Luiz (2022) conceituam a dependência complexa como

(...) o tipo de dependência experienciada por pessoas que, por terem um alto grau de impedimentos - físicos, sensoriais, intelectuais, psicossociais ou múltiplos -, necessitam de apoio e/ou suporte para a maior parte das atividades das quais precisam ou desejam participar. Comumente, a dependência é pensada como algo relacionado às necessidades consideradas elementares (alimentação, higiene e cuidados para a manutenção dos corpos vivos) e circunscritas ao âmbito privado (na residência das pessoas ou, no máximo, nos serviços de saúde de que elas necessitam para se manterem vivas). Contudo, a partir de uma perspectiva político-feminista, entendemos que a dependência complexa deve ser incorporada no âmbito público, de modo a garantir a participação social, à sua maneira, de pessoas que necessitam de muitos suportes e apoios (Gesser et al., 2022GESSER, Marivete; ZIRBEL, Ilze; LUIZ, Karla Garcia. Cuidado na dependência complexa de pessoas com deficiência: uma questão de justiça social. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 30(2), e86995, 2022.:02).

Nesse sentido, precisamos olhar para o cuidado de forma mais ampla. Assim, ser alguém com dependência complexa implica a necessidade das relações de cuidado para (sobre)viver. Utilizamos o termo "(sobre)viver", pois entendemos que, nesse caso, o cuidado se faz indispensável à manutenção da vida em todos os sentidos, e não apenas aos aspectos relacionados às atividades que mantêm alguém vivo, biologicamente falando. Pensando no bem-estar, a relação de cuidado precisa estar sob determinada ética para possibilitar que a pessoa a ser cuidada possa ter garantido o direito ao acesso, bem como para que possa ter condições de exercer agência sobre sua própria vida. Para Wilkerson (2002)WILKERSON, Abby. Disability, Sex Radicalism, and Political Agency. NWSA Journal, 14(3), 2002, pp.33-57., o termo "agência" está relacionado à capacidade de reconhecer e agir em nome dos próprios interesses. Logo, poder contar com uma rede de cuidado pode significar a diferença entre sobreviver, poder ter agência ou estar vulnerável ao isolamento social e à violência (Fietz, 2020FIETZ, Helena. Relações de cuidado na experiência da deficiência: negociações cotidianas de arranjos de autonomias. Instituto JNG, 2020 [ https://www.institutojng.org.br/post/relaes-de-cuidado-na-experincia-da-deficincia-negociaes-cotidianas-de-arranjos-de-autonomias - acesso em: 25 set. 2021].
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; Masson, 2017MASSON, Stella. Projeto de Lei Prevê Cuidador Para Pessoas com Deficiência Severa. 2017 [ https://www.camarainclusao.com.br/noticias/projeto-de-lei-preve-cuidador-para-pessoas-com-deficiencia-severa/ - acesso em: 05 jul. 2019].
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).

Portanto, neste estudo, estamos considerando o cuidado destinado às pessoas com deficiência que experienciam a dependência complexa, cuja presença de um(a) cuidador(a) é essencial para o exercício do direito à manutenção da vida - direito esse garantido no Art. 5⁰ da Constituição brasileira (Brasil, 1988), tanto quanto é imprescindível a figura da(o) cuidadora(or) para que as pessoas com deficiência possam ter uma vida ordinária, com possibilidades de decisão em diferentes âmbitos de sua trajetória. Essa compreensão da necessidade da oferta do cuidado contemplando distintos aspectos da vida das pessoas com dependência dialoga com a Justiça Defiça1 1 Durante o VII ENADIR - Encontro Nacional de Antropologia do Direito, a mesa redonda 04 foi composta por Anahí Mello, Helena Fietz e Gabriela Rondon (2021). Na ocasião, Mello e Fietz (2021) propuseram a tradução do termo "Disability Justice" como "Justiça Defiça". "Defiça" é um termo que vem sendo adotado pelo ativismo das pessoas com deficiência (Gesser et al., 2022). (Mello; Fietz; Rondon, 2021) (Disability Justice), sob o argumento de que o cuidado qualificado e remunerado por meio de uma política deveria ser entendido como a garantia do exercício de um direito básico, que contribui para que não deixemos ninguém para trás, corroborando as premissas dessa perspectiva (Sins Invalid, 2019).

Em entrevista a Gesser e Fietz (2019:141), Eva Kittay ressalta que é inevitável que pensemos no cuidado, pois "um mundo em que ninguém se importasse com ninguém seria um mundo em que as necessidades daquelas(es) que não pudessem atender às suas próprias necessidades (e que somos todos nós em algum momento de nossas vidas) seriam negligenciadas". Assim, a abordagem da temática do cuidado torna urgente e inevitável o rompimento com os ideais liberais de autonomia e independência, que estão fortemente presentes no contexto social em geral, inclusive nas teorias sobre justiça (Kittay, 2015). Romper com esses ideais é fundamental, uma vez que eles invisibilizam a dependência e a interdependência como inerentes à condição humana, bem como desqualificam o cuidado, que é uma necessidade elementar para parte das pessoas com deficiência, ainda que todas as barreiras sejam removidas (Kittay, 1999KITTAY, Eva Feder. Love's Labor: essays on women, equality and dependency. New York, Routledge, 1999.; Diniz, 2007DINIZ, Debora. O que é deficiência. São Paulo, Brasiliense, 2007.; Fietz, 2017FIETZ, Helena. Deficiência, Cuidado e Dependência: reflexões sobre redes de cuidado em uma família em contexto de pobreza urbana. Teoria e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFJF, 11(3), 2017, pp.101-113.; Gesser, 2019GESSER, Marivete. Gênero, Deficiência e a Produção de Vulnerabilidade. In: VEIGA, Ana Maria et al. (org.). Mundos de Mulheres no Brasil. Curitiba, CRV, 2019, pp.353-361.).

Apesar da diversidade de possibilidades de investigação e problematização contemporâneas sobre dependência, ética do cuidado e deficiência, constata-se uma escassez nas produções sobre a interseccionalidade dessas temáticas sob a percepção das próprias mulheres com deficiência que necessitam de cuidado em tempo integral, o que representa um potencial investigativo que carece de aprofundamento científico (Diniz, 2003DINIZ, Debora. Modelo social da deficiência: a crítica feminista. Série Anis, 28, 2003, pp.1-8.; Gesser; Nuernberg; Toneli, 2012; Gesser; Nuernberg, 2014GESSER, Marivete; NUERNBERG, Adriano Henrique. Psicologia, Sexualidade e Deficiência: Novas Perspectivas em Direitos Humanos. Psicologia: Ciência e Profissão, 34(4), 2014, pp.850-863.). Ao abordarmos o cuidado, ainda estamos falando de necessidades invisíveis, que parecem restritas ao seio familiar, tarefa das mulheres, nas margens das margens (Mingus, 2018MINGUS, Mia. Vídeo. DIS 2018 - Cúpula de Deficiência e Interseccionalidade [vídeo]. YouTube, 2018 [ https://www.disabilityintersectionalitysummit.com/mia-mingus-dis-2018-keynote/ - acesso em: 17 out. 2022].
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; Santos, 2017SANTOS, Wederson Rufino dos. O circuito familista na Política de Assistência Social. Textos & Contextos. Porto Alegre, 16(2), 2017, pp.388-402.). Contudo, compreender e propor que o cuidado esteja concebido numa perspectiva crítica e feminista implica redirecioná-lo para o centro das discussões sobre deficiência, ética e feminismo.

Kittay (1999)KITTAY, Eva Feder. Love's Labor: essays on women, equality and dependency. New York, Routledge, 1999., no livro Love's Labor, destacou que o cuidado, como qualquer outra atividade laboral, deve ser remunerado a fim de que seja reconhecido como trabalho. Ela também destacou, quando entrevistada por Gesser e Fietz, a importância de se romper com a naturalização de que o cuidado é uma atribuição feminina e enfatizou que "(...) enquanto nós falharmos em dar ao cuidado o que lhe é de direito, ambos - os cuidadores e aqueles que recebem o cuidado - perdem" (Gesser; Fietz, 2021GESSER, Marivete; FIETZ, Helena. Ética do Cuidado e a experiência da deficiência: entrevista com Eva Feder Kittay. Revista Estudos Feministas, 29(2), 2021, e64987 [ https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n264987 - acesso: 12 abr. 2022].
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:04). Tom Shakespeare (2018)SHAKESPEARE, Tom. Disability: the basics. New York, Routledge, 2018., no livro Disability: the basics destaca benefícios do cuidado profissional para que as pessoas com deficiência possam ter agência sobre suas vidas (Shakespeare, 2018SHAKESPEARE, Tom. Disability: the basics. New York, Routledge, 2018.).

O fato é que, embora a quantidade de pessoas com deficiência que experiencia a dependência complexa seja muito expressiva, os números parecem não reverberar politicamente quando discutimos a deficiência, visto que o cuidado ainda é algo que se restringe ao ambiente familiar e, majoritariamente, executado por mulheres2 2 Aproveitamos esse dado para anunciar que, sempre que possível, usaremos o termo "cuidadora", no feminino, por uma escolha política, uma vez que, frequentemente, são as mulheres que exercem o cuidado. Além disso, todas as participantes desse estudo são cuidadas por mulheres. . No Brasil, nunca houve uma política pública que garantisse o direito ao cuidado subsidiado integralmente pelo Estado para acompanhar as pessoas com deficiência nas suas necessidades mais elementares (alimentação, higiene, medicação), tampouco nas demais atividades da vida (viajar, ter lazer, trabalhar, estudar, etc). Apesar de todos os avanços recentes na legislação, decorrentes da incorporação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) como emenda constitucional (Decreto n. 6.949/2009), e da própria Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), n. 13.146/2015, os marcos legais pouco avançam nessa questão.

Na CDPD e na LBI, a pauta do cuidado é contemplada de modo parcial, prevendo o cuidado apenas na educação básica por meio de um profissional auxiliar e em residências inclusivas - o que remonta ao caráter de institucionalização do cuidado das pessoas com deficiência e que parece ser insuficiente, pois não prevê opções que ofereçam maiores possibilidades de agência das pessoas com deficiência em situação de dependência complexa. Portanto, levando-se em conta esse cenário, interessa, neste estudo, investigar quais são as percepções de mulheres com deficiência sobre sua experiência da dependência complexa e do cuidado em tempo integral.

A pesquisa foi realizada tendo como perspectiva teórica os estudos feministas da deficiência - que consistem em um campo que articula os estudos feministas com os estudos da deficiência e considera a deficiência como uma categoria de análise (Garland-Thomson, 2002GARLAND-THOMSON, Rosemarie. Integrating disability, transforming feminist theory. NWSA Journal, 14(3), 2002, pp.1-32.) que tem potencial analítico e político para a pesquisa, o ativismo e as políticas públicas. Dentre os autores que embasaram o estudo, além das teóricas já citadas que vêm se debruçando sobre a temática do cuidado, destacam-se também o diálogo com a perspectiva feminista de pesquisa localizada (situated knowledge), proposta por Donna Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.07-41 [ https://www.academia.edu/5017774/Saberes_Localizados_Donna_Haraway - acesso em: 17 mai. 2021].
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, e a investigação emancipatória de Mike Oliver (1992)OLIVER, Mike. Changing the Social Relations of Research Production? Disability & Society, 7(2), 1992, pp.101-114.. Segundo Oliver (1992)OLIVER, Mike. Changing the Social Relations of Research Production? Disability & Society, 7(2), 1992, pp.101-114., a investigação emancipatória é uma perspectiva crítica de pesquisa no campo da deficiência, na qual, em articulação ao modelo social, propõe uma desmistificação de estruturas e processos opressores, estabelecendo um diálogo entre a comunidade científica e as pessoas com deficiência, de modo a potencializar a participação e emancipação dessas últimas. A partir dessa abordagem, as(os) pesquisadoras(es) colocam seus conhecimentos e capacidades a serviço das pessoas com deficiência, construindo, em conjunto, o que os movimentos e sujeitos necessitam em termos de investigação. Os caminhos da pesquisa são formados a partir do diálogo, considerando-as como protagonistas ao longo da pesquisa - inclusive como pesquisadoras. Posicionamos a pesquisa como "feminista" por articular os conhecimentos dos estudos da deficiência com as teorias feministas, tal qual Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.07-41 [ https://www.academia.edu/5017774/Saberes_Localizados_Donna_Haraway - acesso em: 17 mai. 2021].
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propôs: numa lógica feminista de ciência, os conhecimentos são parciais e marcados por relações de poder. A autora é crítica às perspectivas de escrita acadêmica que se afirmam imparciais e não localizadas, considerando que só é possível conhecer a partir de algum lugar (localização). Em outras palavras, "na ciência, todo olhar é situado, tecido a partir de conexões e mediações que fazem certos mundos visíveis e deixam outros na sombra" (Moraes; Tsallis, 2016MORAES, Márcia; TSALLIS, Alexandra. Contar histórias, povoar o mundo: a escrita acadêmica e o feminino na ciência. Rev. Polis e Psique, 6(1), 2016, pp.39-50.:5). A partir dessa ideia, podemos compreender que todo conhecimento é localizado e produzido por sujeitos atravessados por gênero, raça, classe, deficiência/capacidade, entre outras características.

Ainda com base no diálogo de Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.07-41 [ https://www.academia.edu/5017774/Saberes_Localizados_Donna_Haraway - acesso em: 17 mai. 2021].
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com Harding (1986)HARDING, Sandra. The Science Question in Feminism. New York, Cornell University Press, 1986., é possível argumentar que há uma multiplicidade de sujeitos e de realidades, embora reconheçamos que essas não podem ser relativizadas, uma vez que a pesquisa localizada não alimenta narrativas estereotipadas de histórias únicas (Adichie, 2019ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma história única. São Paulo, Companhia das Letras, 2019.). Logo, é fundamental mostrar a multiplicidade da experiência da deficiência, a qual abrange dependências, sofrimentos, alegrias, reinvenções, que podem acontecer em simultaneidade.

Anunciamos que este texto foi escrito por duas mulheres que vêm atuando como pesquisadoras no campo dos estudos feministas da deficiência. A primeira autora é uma mulher cis, mãe, branca e com deficiência que vivencia a dependência complexa e que, portanto, precisa das relações de cuidado para (sobre)viver. A segunda autora é uma mulher branca, cis e sem deficiência, mas que vem desenvolvendo atividades de ensino, pesquisa e extensão no campo da deficiência e que se reconhece como aliada da luta anticapacitista.

Para finalizar este tópico, posicionamos este estudo com um exercício de reparação histórica feminista. Para Diniz (2022:134), a reparação acontece depois da violação de algum direito, "quando uma mulher se afeta pelo sofrimento de outra", em uma tentativa de fissurar os marcos hegemônicos de poder que causaram injustiça a essa mulher. Assim, a escuta dispensada às participantes e a visibilidade dada às experiências de cuidado buscam reparar as injustiças produzidas pelo capacitismo e suas articulações com outros sistemas opressivos na vida das mulheres entrevistadas.

Percursos metodológicos

Delineamento da pesquisa

O presente artigo é um recorte de uma pesquisa de doutorado em Psicologia realizada em uma universidade pública do sul do Brasil. A pesquisa se caracteriza qualitativa. Nessa modalidade, há um enfoque na perspectiva dos participantes acerca de suas experiências e significações, situadas em contextos específicos (Gialdino, 2006GIALDINO, Irene Vasilachis de. La Investigación cualitativa. In: GIALDINO, Irene Vasilachis de (org.). Estrategias de investigación cualitativa. Gedisa, 2006, pp.23-64.). A partir do diálogo com os estudos feministas da deficiência (Garland-Thomson, 2002GARLAND-THOMSON, Rosemarie. Integrating disability, transforming feminist theory. NWSA Journal, 14(3), 2002, pp.1-32.; Kittay, 1999KITTAY, Eva Feder. Love's Labor: essays on women, equality and dependency. New York, Routledge, 1999.; Gesser; Fietz, 2021GESSER, Marivete; FIETZ, Helena. Ética do Cuidado e a experiência da deficiência: entrevista com Eva Feder Kittay. Revista Estudos Feministas, 29(2), 2021, e64987 [ https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n264987 - acesso: 12 abr. 2022].
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), a investigação emancipatória (Oliver, 1992OLIVER, Mike. Changing the Social Relations of Research Production? Disability & Society, 7(2), 1992, pp.101-114.) e com a perspectiva feminista de pesquisa localizada de Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.07-41 [ https://www.academia.edu/5017774/Saberes_Localizados_Donna_Haraway - acesso em: 17 mai. 2021].
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, consideramos as narrativas obtidas na pesquisa proposta como localizadas e conectadas com os muitos outros, humanos e não humanos, que medeiam a constituição dos sujeitos.

Participantes

Foram convidadas a participar desta pesquisa cinco mulheres adultas com deficiência que vivenciam a dependência complexa e que necessitam de cuidados para (sobre)viver. Apresentamos, a seguir, as participantes, que concederam as entrevistas que discutimos neste artigo. São elas:

  • Mia: é da região norte do país. É mulher com deficiência física, de 38 anos, e se declarou como heterossexual e parda. É da religião evangélica. Mora com a mãe e com o companheiro. Possui formação superior em psicologia e pós-graduação. Afirmou que sua renda familiar ultrapassa cinco salários mínimos. Em alguns momentos da conversa, Mia se emocionou ao falar sobre dependência e cuidado.

  • Aline: é da região sul do país. É mulher com deficiência física e intelectual associada, de 40 anos, e se declarou como heterossexual e branca. É da religião luterana. Mora com a mãe e com dois irmãos. Cursou até o ensino médio e não exerce nenhuma atividade laboral. Afirmou que sua renda familiar está entre dois e três salários mínimos. Aline foi a única participante que solicitou conceder a entrevista via gravação telefônica, pois, segundo ela, não sabe fazer uso de outros recursos - como aplicativos de reunião online.

  • Carmela: é da região sul. É mulher com deficiência física, de 30 anos. Declarou-se como branca e heterossexual. Sobre sua religião, afirmou ser ateísta. Reside com os pais e um irmão que também é pessoa com deficiência física. Possui formação superior em serviço social e pós-graduação. Declarou que sua renda familiar ultrapassa cinco salários mínimos.

  • Fernanda: é da região sudeste. É mulher com deficiência física, de 36 anos. Declarou-se como heterossexual e "negra de pele clara". É espírita e reside com os pais. Possui formação superior em publicidade e pós-graduação. Afirmou que sua renda familiar está entre dois e três salários mínimos.

  • Lígia: é da região centro-oeste. É mulher com deficiência física, de 26 anos. Declarou-se como heterossexual e branca. Sobre religião, afirmou ser agnóstica. Reside com os pais e uma irmã. Possui formação superior em psicologia e pós-graduação. Declarou que sua renda familiar está acima de cinco salários mínimos.

Instrumentos de pesquisa

Como instrumentos para a obtenção das informações, utilizamos entrevistas em profundidade por meio de história de vida (HV) e um breve questionário sociodemográfico. Segundo Cordero (2012)CORDERO, Mayra Chárriez. Historias de vida: Una metodología de investigación cualitativa. Revista Griot, 5(1), 2012., nas entrevistas HV, quem entrevista interage frequentemente com a pessoa que está sendo entrevistada e sua principal função é retratar as experiências vivenciadas pelas pessoas. Essa técnica tem como foco principal permitir que a(o) entrevistada(o) retome sua vivência de forma retrospectiva. As histórias de vida fornecem uma possibilidade interpretativa por meio da qual os sentidos se revelam em relatos pessoais, dando prioridade à subjetividade em relação aos métodos que classificam as respostas em categorias conceituais pré-determinadas (Cordero, 2012CORDERO, Mayra Chárriez. Historias de vida: Una metodología de investigación cualitativa. Revista Griot, 5(1), 2012.). Tendo em vista que a dependência e o cuidado permeiam toda a história de vida das entrevistadas, pensamos em alguns eixos à priori, que serviram como "bússolas" na escuta das trajetórias das companheiras da pesquisa, deixando-as à vontade para relatarem o que quisessem.

Para isso, realizamos entrevistas semiabertas, partindo de um roteiro-base apoiado nos pontos que mais interessavam à pesquisa (Duarte, 2004DUARTE, Rosália. Entrevistas em Pesquisas Qualitativas. Educar, Editora UFPR, Curitiba, 24, 2004, pp.213-225.). Tal roteiro foi composto por eixos, para que as entrevistadas compreendessem quais temas eram importantes, mas, ao mesmo tempo, para que pudessem se sentir livres para comunicar o que quisessem da maneira como desejassem. Os eixos foram divididos em: 1. deficiência; 2. cuidado; e 3. participação comunitária (escola, trabalho, lazer, relacionamentos etc.).

O questionário sociodemográfico foi elaborado no Google Forms para ser respondido de modo virtual e assíncrono, com as seguintes perguntas: nome, idade, raça, tipo de deficiência, orientação sexual, religião, com quem reside, nível de escolaridade, profissão e renda familiar. O link do questionário foi enviado por e-mail junto dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e de Assentimento Livre e Esclarecido3 3 Como uma das companheiras de pesquisa revelou que sua mãe detém sua tutela, enviamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a mãe e o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido para a entrevistada. .

Procedimentos de obtenção das informações

A princípio, havia a intenção de entrevistar pessoalmente mulheres do Sul do país por uma questão geográfica e logística. As entrevistadas são de nossos círculos de contatos e, portanto, foi utilizado o critério de conveniência para selecioná-las. Com o surgimento da pandemia de COVID-194 4 A pandemia causada pelo novo coronavírus impactou diretamente a metodologia deste estudo e, inclusive, apareceu nos resultados obtidos, conforme veremos em um dos relatos. , as entrevistas precisaram ser realizadas e gravadas de modo online, por meio de programas de reuniões, tais como Skype e WhatsApp, ou por ligação telefônica (em apenas um dos casos). Sobre os encontros na modalidade online, cabe dizer que, se por um lado não foi possível estar presencialmente com as participantes - e perdemos muito sem o contato físico -, por outro lado, foi possível ouvir mulheres de outras regiões do país, nos permitindo o contato com diferentes contextos. Assim, a localização geográfica deixou de ser um critério importante e outros ganharam destaque para a participação: ser mulher adulta com deficiência que vivencia a dependência complexa, de qualquer lugar do Brasil.

Escolhemos entrevistar apenas mulheres, pois, de acordo com os registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Brasília, Ministério da Saúde, 2019 [ https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/especiais/2019 - acesso em: 15 jan. 2023].
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), no ano de 2019, houve mais de 7 mil casos de violência contra pessoas com deficiência registrados, dos quais 61% diziam respeito a mulheres, em diferentes faixas etárias.

Em relação ao tempo de duração, deixamos as companheiras à vontade para falar o que desejassem a partir dos pontos que elegemos como roteiro, pelo tempo que achassem suficiente para contar suas histórias. As entrevistas tiveram duração de 40 a 90 minutos e realizamos apenas uma entrevista com cada companheira porque avaliamos que obtivemos material considerável para responder os objetivos da pesquisa.

Procedimentos de análise

Para as análises das entrevistas, utilizamos a análise temática que, conforme Braun e Clarke (2006)BRAUN, Virginia; CLARKE, Victoria. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 2006, pp.77-101 [ https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa - acesso em: 18 out. 2021].
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, trata-se de um "método para identificar, analisar e fazer relatórios de temas nos dados. É, minimamente, organizado e descreve seu conjunto de dados visando manter a riqueza dos detalhes. No entanto, frequentemente vai além, e interpreta vários aspectos do tópico de pesquisa" (Braun; Clarke, 2006BRAUN, Virginia; CLARKE, Victoria. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 2006, pp.77-101 [ https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa - acesso em: 18 out. 2021].
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:79, tradução nossa5 5 imally organizes and describes your data set in (rich) detail. However, frequently if goes further than this, and interprets various aspects of the research topic" (Braun; Clarke, 2006:79). ). As autoras afirmam ainda que a análise temática é amplamente utilizada, mas não há um consenso acerca de sua definição e de como fazê-la. De todo modo, apontam seis pistas na tentativa de alcançar os temas de análises: 1. familiarizar-se com as informações por meio das transcrições e leituras; 2. gerar códigos iniciais (codificação de características interessantes dos dados de uma forma sistemática em todo o conjunto de dados, agrupando dados relevantes para cada código); 3. procurar temas (agrupando códigos em temas potenciais); 4. revisar os temas (verificar se os temas funcionam em relação aos extratos codificados à totalidade do conjunto de dados, gerando um "mapa" temático da análise); 5. definir e nomear temas; e, por fim, 6. produzir o relatório (análise em si, extraindo exemplos dos dados e relacionando-os com a literatura).

Em síntese, esse foi o caminho que seguimos para chegar aos temas e às análises deste artigo. Depois de transcrever, ler e reler as entrevistas, nós as agrupamos por códigos. Um dos códigos encontrados foi o cuidado. Posteriormente, lendo e relendo todos os depoimentos que se encaixavam nesse código, foi possível observar especificidades e subdividi-lo em dependência e interdependência. Por fim, com leitura constante, definimos e nomeamos os temas em: "A experiência da dependência: percepções sobre a necessidade de cuidado", "A falta de uma política pública do cuidado e a diminuição da participação social" e "As potencialidades das relações de interdependência entre as entrevistadas e suas cuidadoras". As análises dos referidos temas estão a seguir, no tópico Resultados e Discussões.

Questões éticas

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (CAAE 29072920.0.0000.0121) e, portanto, todos os princípios éticos recomendados pelas Resoluções n. 466/12 e n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde foram respeitados. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido com as informações sobre o estudo foi lido e assinado por todas as participantes. Visando assegurar a participação das mulheres entrevistadas, após o estudo estar pronto, o termo lhes foi enviado para que indicassem o modo como gostariam de ser chamadas ao longo do texto; assim, foram-lhes atribuídos nomes fictícios escolhidos por elas mesmas.

Resultados e discussões

A escolha dos trechos das entrevistas apresentados neste tópico segue uma direção política e epistemológica, com o intuito de visibilizar as dificuldades da experiência da dependência complexa - sobretudo, por falta de uma política pública de cuidado. No entanto, buscamos também apontar a potência das relações de cuidado na vida de todas as pessoas, inclusive aquelas com dependência, no sentido da interdependência como característica intrínseca à existência humana.

As análises dos relatos que compõem essa pesquisa apontam que a dependência e o cuidado permeiam todos os aspectos da vida das participantes. Estas demonstram suas percepções sobre a experiência da dependência com significados ambivalentes. Por vezes, as falas retratam como é difícil precisar de ajuda para todas as ações cotidianas e como a falta de apoio na dependência diminui a participação nas atividades sociais.

Por outro lado, em outros momentos, é possível observar como os relatos vão na direção do reconhecimento das potencialidades das relações de interdependência entre as entrevistadas e suas redes de cuidado. Essas percepções se articulam com a afirmação de que o cuidado opera sempre de maneira relacional e, muitas vezes, de modos contraditórios, conflituosos e ambíguos (Fietz, 2017FIETZ, Helena. Deficiência, Cuidado e Dependência: reflexões sobre redes de cuidado em uma família em contexto de pobreza urbana. Teoria e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFJF, 11(3), 2017, pp.101-113.). Além disso, corroboram a perspectiva de que a dependência e o cuidado são inerentes à vida humana e não apenas de um grupo específico - no caso, das pessoas com deficiência (Kröger, 2009KRÖGER, Teppo. Care research and disability studies: Nothing in common? Critical Social Policy, 29(3), 2009, pp.398-420.; Fietz, 2017FIETZ, Helena. Deficiência, Cuidado e Dependência: reflexões sobre redes de cuidado em uma família em contexto de pobreza urbana. Teoria e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFJF, 11(3), 2017, pp.101-113.).

A experiência da dependência: percepções sobre a necessidade de cuidado

De acordo com as falas das participantes, podemos observar que a dependência está percebida de diferentes formas. Para elas, ora a dependência é compreendida de modo limitante, responsável por restringir ou inviabilizar a participação em situações básicas de sobrevivência, inclusive naquelas que envolvem a vida social e o lazer, ora é reconhecida como parte das relações humanas, numa condição de interdependência. Assim, é possível afirmar que as análises deste estudo indicam que as percepções sobre a experiência da dependência variam e são ambivalentes, levando em conta justamente o caráter relacional do cuidado (Fietz, 2017FIETZ, Helena. Deficiência, Cuidado e Dependência: reflexões sobre redes de cuidado em uma família em contexto de pobreza urbana. Teoria e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFJF, 11(3), 2017, pp.101-113.; Gesser; Fietz, 2021GESSER, Marivete; FIETZ, Helena. Ética do Cuidado e a experiência da deficiência: entrevista com Eva Feder Kittay. Revista Estudos Feministas, 29(2), 2021, e64987 [ https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n264987 - acesso: 12 abr. 2022].
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; Kittay, 2011KITTAY, Eva Feder. The Ethics of Care, Dependence and Disability. Juris, 24(1), 2011, pp.48-58.).

Um aspecto importante, citado pelas participantes, é o quanto a dependência impõe a falta de privacidade, uma vez que o cuidado é uma necessidade em situações que dizem respeito à intimidade. Sobre tomar banho, por exemplo, destacamos os relatos de Carmela (comunicação pessoal, junho, 2020):

Eu acho que é bem complicada essa questão de não ter privacidade. É bem chato assim, nem um minuto sozinha. Não consigo tomar um banho sozinha." e de Fernanda (comunicação pessoal, julho, 2020): "Olha, o cuidado agora é mediado, né? Então o banho já tem que ter outra pessoa, que faz... Foi difícil, não é uma coisa muito fácil, não. Confesso a você.

Nesse sentido, o corpo é o mediador entre nós e o mundo, composto por inúmeras características - inclusive pelos impedimentos corporais - as quais vão compor a visão de mundo de cada sociedade, resultado de longa construção histórica (Ayres; Rial; Nuernberg, 2014). A visão contemporânea do corpo indica uma perspectiva mais individualista e que rompe com a solidariedade coletiva, circunscrita pelo fechamento do sujeito sobre/em si mesmo. No caso da deficiência física, "o corpo é o principal marcador da diferença" (Brah, 2006, citada por Ayres; Rial; Nuernberg, 2014:76). A respeito desse corpo, são criadas diversas representações voltadas à perspectiva incapacitante e individualizada, o que pode nos dar pistas sobre as percepções de cuidado e de intimidade. O mito do sujeito independente também se articula com essa noção moderna de corpo e atravessa e constitui a nossa noção sobre a necessidade de cuidado, conforme veremos a seguir.

Além disso, algumas entrevistadas demonstram dificuldades em vivenciar a dependência em diferentes aspectos da vida pelas implicações psicossociais importantes que lhes são causadas pela dependência. Em seus relatos, sentimentos como sobrecarga emocional, angústia, dor e ansiedade aparecem ao falarem sobre a necessidade de serem cuidadas. Mia (comunicação pessoal, maio, 2020) destaca: "Acho que a grande dor é essa, em relação à vivência da deficiência, tem a ver com isso, com esse precisar, com este depender. [Se emociona]". Lígia, por sua vez, relata (comunicação pessoal, julho, 2020): "E me angustia muito pensar [na dependência], até porque eles [os pais] também estão envelhecendo e agora, com a pandemia, a ansiedade que eu sinto da contaminação minha e deles (...)".

Cabe dizer que esses sentimentos não aparecem, necessariamente, por conta da deficiência em si, mas pela falta de suporte e pelo modo como as pessoas lidam com a dependência. Isso porque, nas sociedades modernas e liberais, a independência é uma categoria fundamental para a valorização dos sujeitos e, consequentemente, as percepções da dependência emergem como algo ruim e limitante, que atribui um valor de inferioridade à pessoa. Nesse cenário, os sujeitos com dignidade são aqueles que (supostamente) conseguem ser livres, independentes e com capacidade de se autogerir (Ferguson, 2013FERGUSON, James. Declarations of dependence: labor, personhood, and welfare in Southern Africa. Journal of the Royal Anthropological Institute, 19(2), 2013, pp.223-242.; Fietz, 2017FIETZ, Helena. Deficiência, Cuidado e Dependência: reflexões sobre redes de cuidado em uma família em contexto de pobreza urbana. Teoria e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFJF, 11(3), 2017, pp.101-113.). Ou seja, "(...) a racionalidade e a escolha são, portanto, centrais para o indivíduo moderno e a autonomia se torna uma categoria central nos modos de subjetivação liberal" (Fietz, 2017FIETZ, Helena. Deficiência, Cuidado e Dependência: reflexões sobre redes de cuidado em uma família em contexto de pobreza urbana. Teoria e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFJF, 11(3), 2017, pp.101-113.:108). Essa ideia está intimamente ligada ao conceito de personhood (condição de pessoa) de Kittay, Jennings e Wasunna (2005): a autonomia é compreendida como um atributo basilar e constitutivo dos sujeitos e impacta diretamente o modo como concebemos e valorizamos uns aos outros.

Como consequência dessa concepção, a dependência passa a ser algo que deve ser combatido, enquanto a independência é almejada. Dessa forma, os sujeitos que não se enquadram num status de independentes são vistos negativamente, como "(...) incapazes ou não merecedores de racionalidade e autogovernança" (Kittay et al., 2005KITTAY, Eva Feder; JENNINGS, Bruce; WASUNNA, Angela. Dependency, Difference and the Global Ethic of Longterm Care. The Journal of Political Philosophy, 13(4), 4, 2005, pp.443-469.:1012). Assim, nos contextos em que a independência e a autonomia são um ideal a ser alcançado por todas as pessoas, invariavelmente, a dependência será negativa e deve ser rechaçada (Fietz, 2017FIETZ, Helena. Deficiência, Cuidado e Dependência: reflexões sobre redes de cuidado em uma família em contexto de pobreza urbana. Teoria e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFJF, 11(3), 2017, pp.101-113.) ‒ o que pode ser evidenciado em práticas de omissão e negligência do Estado com a falta de uma política pública de cuidado, atribuindo às famílias a responsabilidade pelo cuidado de seus membros, por exemplo.

No entanto, para conferir dignidade a todas as pessoas e, principalmente, àquelas com dependência complexa, a dependência precisa ser reconhecida como atributo inerente à vida humana. Obviamente, essa perspectiva não pretende negar ou invisibilizar os "aspectos opressores que podem decorrer dessas relações" (Fietz, 2017FIETZ, Helena. Deficiência, Cuidado e Dependência: reflexões sobre redes de cuidado em uma família em contexto de pobreza urbana. Teoria e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFJF, 11(3), 2017, pp.101-113.:111), mas significa que compreender as noções básicas que envolvem as questões da dependência no sentido de ser uma dimensão humana nos ajuda a (re)posicioná-la como uma possibilidade de existência, que carece de reconhecimento e dignidade àqueles que são, inevitavelmente, dependentes (Kittay, 2011KITTAY, Eva Feder. The Ethics of Care, Dependence and Disability. Juris, 24(1), 2011, pp.48-58.).

Nessa direção, é fundamental que reconheçamos a dependência como parte da trajetória humana do mesmo modo que compreendemos a interdependência como possível nas relações entre os sujeitos, inclusive naquelas em que as pessoas, inevitavelmente dependentes, estão inseridas. A seguir, vemos como a falta de suporte na experiência da dependência complexa traz implicações para a vida das participantes no sentido de diminuir e/ou impossibilitar a participação social.

A falta de uma política pública do cuidado e a diminuição da participação social

Como discutimos anteriormente, é necessário que reconheçamos a dependência e o cuidado como aspectos humanos. A partir dessa perspectiva, observamos como as participantes não possuem seus direitos mais fundamentais garantidos. A falta de uma política pública do cuidado implica diretamente a diminuição da participação dessas mulheres na vida social e comunitária. Algumas delas revelam que já deixaram de fazer coisas comuns, cotidianas, por conta da falta de apoio na experiência da dependência, tais como sair ou viajar, por exemplo.

Sobre a falta de apoio para atividades de lazer, Mia (comunicação pessoal, maio, 2020) diz: "A dependência realmente limita, por exemplo, horário de chegada, né? Passeio, quanto tempo eu posso ficar na rua, para quais lugares eu posso viajar ( )". O relato de Lígia (comunicação pessoal, julho, 2020) corrobora a fala de Mia:

(...) E aí as minhas experiências acabam ficando condicionadas a isso: será que vai ter alguém para ajudar ou não? Será que eu realmente posso contar com essa pessoa ou não? Parece uma vida que não é privada, sabe, que não depende apenas da minha escolha e tal, do que eu tô afim de fazer daquele momento.

Esses dois relatos nos dão uma dimensão sobre escolhas. Cabe dizer que não nos referimos ao significado neoliberal e ocidental do termo "escolha", mas, sim, do quanto participamos ativamente daquilo que nos interessa e engaja. Para Mol (2008)MOL, Annemarie. The Logic of Care: Health and the Problem of Patient Choice. New York, Routledge, 2008., precisamos nos afastar de uma "lógica da escolha" e redirecionar o olhar para uma perspectiva de uma "lógica do cuidado". Ao fazermos isso, passamos a conceber o sujeito a partir/pelas diversas relações das quais ele faz parte (Mol, 2008MOL, Annemarie. The Logic of Care: Health and the Problem of Patient Choice. New York, Routledge, 2008.). Nesse sentido, percebemos, pelos relatos, que as entrevistadas, apesar de desejarem viver certas experiências, são impossibilitadas de vivê-las por uma ausência de segurança em relação ao cuidado. Se as políticas públicas fossem pautadas numa lógica do cuidado, como preconiza Mol (2008)MOL, Annemarie. The Logic of Care: Health and the Problem of Patient Choice. New York, Routledge, 2008., muito provavelmente essas mulheres poderiam ter maior participação social.

O relato de Lígia (comunicação pessoal, julho, 2020) evidencia as dificuldades de acessar o lazer, por exemplo, por conta da dependência, apontando outra possibilidade de pensar o cuidado: "'Ai, na faculdade a gente saía para beber' e tal é uma experiência que eu não tive, por conta dessa questão do cuidado (...)". Para assegurar a possibilidade de agência em diferentes âmbitos de suas vidas e participação em igualdade de condições com as demais pessoas, conforme promulga a CDPD (Decreto n. 6.949/2009), a presença de um(a) cuidador(a) e/ou serviços de atendentes pessoais é essencial e inalienável. Segundo o artigo 19 da CDPD, para que isso ocorra, o Estado deve garantir uma série de serviços de apoio, inclusive serviços de atendentes pessoais. No entanto, ainda não vemos esse direito se efetivar na vida das pessoas com deficiência. Nos relatos trazidos anteriormente, percebemos o quanto a falta de suporte para a necessidade do cuidado impossibilita que as entrevistadas tenham garantido o direito à participação comunitária previsto pela CDPD.

Os Estudos Feministas da Deficiência (Garland-Thomson, 2002GARLAND-THOMSON, Rosemarie. Integrating disability, transforming feminist theory. NWSA Journal, 14(3), 2002, pp.1-32.) e da Justiça Defiça, tão caros para as análises que propomos, questionam as concepções de autonomia e independência tão valorizadas pelas sociedades liberais que mencionamos anteriormente. Autoras como Eva Kittay, por exemplo, afirmam que a independência é "(...) uma construção que é uma abstração de todas as diversas dependências que decidimos tornar invisíveis" (Gesser; Fietz, 2021GESSER, Marivete; FIETZ, Helena. Ética do Cuidado e a experiência da deficiência: entrevista com Eva Feder Kittay. Revista Estudos Feministas, 29(2), 2021, e64987 [ https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n264987 - acesso: 12 abr. 2022].
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:8).

McRuer (2018McRUER, Robert. Crip Times: Disability, Globalization, and Resistance. New York, New York University Press, 2018.:110) problematiza que, "como o neoliberalismo depende de soluções privadas para todos os problemas, 'a família' assume um papel cada vez mais importante enquanto provedora de bens e serviços, como o trabalho de cuidar dos mais jovens ou velhos". Assim, o fato de vivermos, atualmente, em uma sociedade economicamente liberal e moralmente conservadora impede que avancemos na construção de políticas públicas de cuidado que deem conta de implementar os direitos já garantidos em lei, conforme citamos anteriormente. Isso significa que, enquanto o direito ao cuidado não for amplamente efetivado por meio de políticas públicas menos familistas, as pessoas com dependência complexa continuarão a ter sua participação social diminuída ou impossibilitada, pois a garantia desse direito pode significar a diferença entre a participação e a exclusão social.

As potencialidades das relações de interdependência entre as entrevistadas e suas cuidadoras

Os relatos que compõem esse tópico apontam que, mesmo aquelas pessoas com dependência complexa - as quais, supostamente, apenas são cuidadas e não podem cuidar -, vão, de alguma forma, exercer o cuidado de outras pessoas. Argumentamos que as informações obtidas nesta pesquisa apontam que tanto a dependência como o cuidado precisam ser ressignificados no sentido de que quem depende também pode cuidar, tendo em vista que o cuidado não se dá de modo restrito.

A seguir, vemos como as participantes, mesmo sendo pessoas com deficiência que vivenciam a dependência complexa, também exercem o cuidado. Notamos que, mesmo para pessoas que necessitam do cuidado de outra pessoa para se manterem vivas, a interdependência é possível e potente numa relação de troca e afeto com suas cuidadoras. Essa constatação traz à tona dois aspectos importantes: 1. o fato de o cuidado ainda ser uma atividade majoritariamente feminina, vinculada equivocadamente a uma suposta "essência feminina", sustentada pela divisão sexual do trabalho e afirmada pela precarização da mão de obra feminina; e 2. o caráter familista do cuidado que impede o avanço nas políticas públicas, sobrecarregando e explorando mulheres como cuidadoras - muitas vezes, sem remuneração pelo seu trabalho (Passos, 2016PASSOS, Rachel Gouveia. Trabalho, cuidado e sociabilidade: contribuições marxianas para o debate contemporâneo. Serv. Soc. Soc., n. 126, São Paulo, maio/agosto 2016, pp.281-301.; Santos, 2017SANTOS, Wederson Rufino dos. O circuito familista na Política de Assistência Social. Textos & Contextos. Porto Alegre, 16(2), 2017, pp.388-402.). Os desdobramentos do modelo de família patriarcal estão relacionados ao modo como estão dispostas as condições de cuidado das participantes da pesquisa: cuidadas por familiares, sobretudo, por outras mulheres.

A respeito da relação com a mãe, que é sua cuidadora, Fernanda (comunicação pessoal, julho, 2020) diz:

É uma mulher que precisou sair do trabalho e teve que abrir mão da própria vida para poder cuidar de mim. Hoje em dia, eu tento compensar com o meu trabalho e dou uma espécie de 'mesada'. Ela usa o dinheiro para fazer algumas coisas dela (...) porque ela não pode fazer isso. Já que o meu pai pode continuar trabalhando.

Esse relato nos faz pensar sobre como as questões de gênero e econômicas impactam os arranjos familiares em relação ao cuidado. Foi no contexto capitalista que a família nuclear surgiu e se consolidou, tendo uma atribuição importante para a reprodução de determinados valores. Nos discursos políticos contemporâneos, independência e autossuficiência são termos que se complementam e são vistos como positivos, assim como, em contrapartida, a dependência e o subsídio recebem um valor negativo (Zirbel, 2016ZIRBEL, Ilze. Uma Teoria Político-feminista do Cuidado. 2016. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil [https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167820 - acesso em: 8 ago. 2019].
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). um caráter individualista da apropriação privada dos meios de produção e da mercantilização

No molde neoliberal, a família tem como fundamento dos produtos e da força de trabalho. Desse modo, o capitalismo torna o trabalho do cuidado subalterno e invisível e o utiliza para fins de modo de produção (Passos, 2016PASSOS, Rachel Gouveia. Trabalho, cuidado e sociabilidade: contribuições marxianas para o debate contemporâneo. Serv. Soc. Soc., n. 126, São Paulo, maio/agosto 2016, pp.281-301.). A autora assinala que a constituição da família patriarcal foi fundamental para a organização do cuidado, estabelecendo-o como função das mulheres e como deveria ser executado.

Conforme Nogueira (2004)NOGUEIRA, Claudia Mazzei. A feminização no mundo do trabalho: entre a emancipação e a precarização. In: ANTUNES, Ricardo; SILVA, Maria Aparecida Moraes (org.). O avesso do trabalho. São Paulo, Expressão Popular, 2004, pp.243-284., esse cenário foi propício para que "a feminização do mundo do trabalho" se instaurasse e, consequentemente, as mulheres passassem a ocupar os empregos de maior precarização. Acerca dos paradoxos do emprego feminino, Hirata (2010)HIRATA, Helena. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Revista Tecnologia e Sociedade, 2. ed., Curitiba, 2010, pp.01-07. problematiza que há uma indissociabilidade em relação à divisão sexual do saber e do poder entre homens e mulheres, expressa tanto na sociedade quanto nas relações familiares. Para a autora, isso reforça o poder desigual existente no interior da família nuclear.

No caso das participantes desta pesquisa, todas são cuidadas por familiares, especialmente pelas mães. Em sua maioria, como no caso de Fernanda, a mãe precisou abrir mão dos seus projetos pessoais por conta da tarefa de cuidar de uma filha com deficiência. De acordo com o relato, é possível observar que essa decisão teve impacto na vida econômica da mãe da entrevistada.

Em um dos relatos de Lígia (comunicação pessoal, julho, 2020), percebemos como ela vivencia uma relação de interdependência com sua irmã quando menciona:

E aí é muito legal, assim, né? Porque ela [a irmã] me ajuda, mas hoje, por eu ser mais velha, eu também consigo ajudá-la. (...) A gente tinha organizado pra ela ficar durante a semana [na outra cidade, para fazer faculdade] e vir na sexta-feira [para casa] e voltar na segunda. E aí muita gente (...) ficava falando 'não, você não pode ir, quem vai ajudar sua mãe? Quem vai cuidar da sua irmã?'. (...) E era uma opressão que eu não queria que ela sentisse. Então várias vezes a gente conversou sobre isso. Eu falei: 'Você tem que ir'. (...) Então, assim, eu tinha muita preocupação se essas coisas que os nossos parentes falaram para ela, ela entenderia como se fosse uma questão minha, sabe? Mas não. Isso acaba me aliviando um pouco porque aí realmente parece uma relação de troca, sabe? Uma relação de interdependência.

A partir do depoimento acima apresentado, podemos refletir sobre "(...) como as relações de dependência e relações de cuidado nas quais os sujeitos se inserem podem ressignificar as noções de autonomia e dependência" (Fietz, 2017FIETZ, Helena. Deficiência, Cuidado e Dependência: reflexões sobre redes de cuidado em uma família em contexto de pobreza urbana. Teoria e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFJF, 11(3), 2017, pp.101-113.:110). É possível observar que Lígia - a pessoa com dependência que, supostamente, apenas pode ser cuidada - passa também a cuidar de alguém em alguma medida. Assim, a deficiência deixa de ser um fenômeno isolado e individual para ser uma experiência coletiva que inclui redes familiares e da comunidade, de tal modo que o sujeito passa a ser parte das relações nas quais se insere (Das, 2015).

Nesse sentido, embora a dependência seja algo que está fortemente presente nas trajetórias de vida de todas as entrevistadas, as informações obtidas mostraram a potência da interdependência e suporte (ou cuidado) mútuo como constituintes das relações estabelecidas entre as participantes e suas cuidadoras. Destacamos que visibilizar essas relações de interdependência é um ato político que rompe com as narrativas estereotipadas acerca da deficiência, na medida em que se abre para a potência dessas relações (Luiz; Silveira, 2020LUIZ, Karla Garcia; SILVEIRA, Thais Henriques Becker da. Pessoas com Deficiência e (Inter)Dependência: uma perspectiva da ética do cuidado para a promoção da justiça social. In: GESSER, Marivete; BÖCK, Geisa Letícia Kempfer; LOPES, Paula Helena (org.). Estudos da deficiência: anticapacitismo e emancipação social. Curitiba, CRV, 2020, pp.113-127.).

Considerações finais

O objetivo deste texto foi problematizar o significado e os impactos da dependência complexa na vida das mulheres com deficiência que necessitam de cuidado para (sobre)viver. Reiteramos que nossas análises foram pautadas nos estudos feministas da deficiência, com ênfase nos diálogos entre as teóricas do cuidado, a perspectiva da pesquisa localizada e a investigação emancipatória. Os estudos feministas da deficiência oferecem importantes subsídios teóricos, metodológicos e políticos para eliminar narrativas generalizantes, as quais circunscrevem a experiência de pessoas com deficiência que vivenciam a dependência complexa como uma tragédia. Esse campo de conhecimentos também apresenta aportes para a construção de políticas que rompam com a perspectiva familista que ainda embasa as políticas públicas de cuidado no Brasil.

Não obstante, apontamos as limitações do estudo: foram entrevistadas apenas cinco participantes, todas com deficiência física - embora uma delas tenha apresentado a deficiência intelectual associada. Ademais, todas as participantes conseguem se comunicar verbalmente - o que nos instiga a pesquisar com pessoas com outras formas de comunicação - e quatro das cinco entrevistadas possuem formação acadêmica em nível de pós-graduação, o que aponta para a necessidade de se realizar novos estudos com mulheres com deficiência que experienciam a dependência complexa provenientes de outros extratos sociais. Além disso, o estudo foi realizado em um contexto pandêmico, impossibilitando visitas a campo.

Destacamos que os achados desta pesquisa são relevantes para a disseminação dos estudos feministas da deficiência, sobretudo, acerca do cuidado e das pessoas com deficiência que experienciam a dependência complexa. Com frequência, vemos a questão das cuidadoras ser debatida na literatura, mas pouco problematizamos acerca do cuidado sob o ponto de vista de quem o recebe. Visibilizar as narrativas das pessoas cuidadas trata-se de um passo fundamental para mostrar a necessidade de se construir políticas públicas de cuidado voltadas às necessidades de grupos específicos, como o das mulheres entrevistadas que dependem dessas políticas para a garantia do direito à (sobre)vivência. Ademais, os resultados da pesquisa apontam para a necessidade de se romper com as práticas patriarcais e paradigmas capacitistas, uma vez que estes diminuem ou inviabilizam a vida das pessoas com deficiência nas dimensões individual e coletiva. Outra importante contribuição do estudo foi a de mostrar como gênero e deficiência se articulam nas práticas de cuidado recebidas pelas mulheres entrevistadas, uma vez que todas são cuidadas por suas mães e demais familiares que, na maior parte das vezes, são mulheres, e esse cuidado não é remunerado. Assim, considerar as questões como as de gênero nas práticas de cuidado é fundamental para ampliar e qualificar o debate sobre o tema.

Por fim, sugerimos novas pesquisas acerca do cuidado para investigar/aprofundar temas, tais como a desconstrução do caráter familista nas políticas públicas do cuidado e as implicações da ausência de uma ética do cuidado na vida de mulheres com deficiência em situação de dependência complexa no acesso a trabalho, educação, lazer, participação social/comunitária e direitos sexuais e reprodutivos.

Referências bibliográficas

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  • BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, Presidência da República, 2015 [ http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm - acesso em: 20 set. 2022].
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    » https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167820
  • 1
    Durante o VII ENADIR - Encontro Nacional de Antropologia do Direito, a mesa redonda 04 foi composta por Anahí Mello, Helena Fietz e Gabriela Rondon (2021). Na ocasião, Mello e Fietz (2021) propuseram a tradução do termo "Disability Justice" como "Justiça Defiça". "Defiça" é um termo que vem sendo adotado pelo ativismo das pessoas com deficiência (Gesser et al., 2022GESSER, Marivete; ZIRBEL, Ilze; LUIZ, Karla Garcia. Cuidado na dependência complexa de pessoas com deficiência: uma questão de justiça social. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 30(2), e86995, 2022.).
  • 2
    Aproveitamos esse dado para anunciar que, sempre que possível, usaremos o termo "cuidadora", no feminino, por uma escolha política, uma vez que, frequentemente, são as mulheres que exercem o cuidado. Além disso, todas as participantes desse estudo são cuidadas por mulheres.
  • 3
    Como uma das companheiras de pesquisa revelou que sua mãe detém sua tutela, enviamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a mãe e o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido para a entrevistada.
  • 4
    A pandemia causada pelo novo coronavírus impactou diretamente a metodologia deste estudo e, inclusive, apareceu nos resultados obtidos, conforme veremos em um dos relatos.
  • 5
    imally organizes and describes your data set in (rich) detail. However, frequently if goes further than this, and interprets various aspects of the research topic" (Braun; Clarke, 2006BRAUN, Virginia; CLARKE, Victoria. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 2006, pp.77-101 [ https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa - acesso em: 18 out. 2021].
    https://doi.org/10.1191/1478088706qp063o...
    :79).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2022
  • Aceito
    26 Abr 2023
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