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Desejo e acusação: a "novinha" e a sexualidade feminina como fonte de tensão

Desire and Accusation: The "Young Girl" and Female Sexuality as A Source of Tension

Resumo

O artigo analisa a figura da "novinha" enquanto categoria articuladora de idade e comportamento, na interface com outros marcadores sociais da diferença, tais como gênero, território, raça e sexualidade. A partir de etnografia realizada em duas favelas do Rio de Janeiro, discuto as tensões que pesam sobre as "novinhas": o uso das roupas curtas, a "afronta", o "medo de engravidar", as acusações sobre usurpação de relações afetivas e a provocação de homens mais velhos. Ao final, apresento de que maneira a relação entre performance e enquadramento evidencia um campo de tensões mais amplo relativo à sexualidade feminina que atualiza um imaginário racializado e colonial acerca de meninas negras e moradoras de favela.

Novinhas; Gênero; Sexualidade; Performance; Enquadramento

Abstract

The article analyzes the figure of the "young girl" as category that articulates age and behavior at an interface with other social markers of difference, such as gender, territory, race and sexuality. Based on an ethnography carried out in two favelas in Rio de Janeiro, I discuss tensions that weigh on "young girls": the use of short clothes, the "affront", the "fear of becoming pregnant", the accusations about usurpation of affective relationships and the provocation of older men. In conclusion I present how the relationship between performance and framing highlights a broader field of tensions related to female sexuality that revises a racialized and colonial imaginary about black girls and favela residents.

Young girls; Gender; Sexuality; Performance; Agency

As muitas faces da "novinha"

Este artigo analisa as diferentes percepções acerca da categoria "novinha" e suas dimensões acusatórias.1 1 Durante a construção deste artigo, contei com a contribuição crítica e generosa de diferentes pessoas. Nesse sentido, agradeço a Laura Lowenkron (IMS/UERJ) pelas trocas e leituras em diferentes momentos. Agradeço a Adriana Piscitelli (UNICAMP), Natália Corazza Padovani (UNICAMP) e o conjunto de pesquisadoras do grupo de pesquisa coordenado por Adriana e Natália. Obrigada por todas as sugestões e pelo espaço gentil e acolhedor proporcionado durante os encontros virtuais na pandemia. Agradeço também a Carlos Eduardo Henning (UFG) e Júlio Assis Simões (USP) pelas contribuições valiosas realizada na ocasião da XIII RAM, em Porto Alegre. Finalmente, agradeço ao querido colega Prof. Dr. Kaciano Barbosa Gadelha, que tanto contribuiu para o amadurecimento das primeiras ideias presentes neste artigo. Kaciano nos deixou no ano de 2018 e este artigo é uma forma singela de registrar sua contribuição inestimável ao campo dos estudos de gênero, raça e sexualidade no Brasil. A análise explora as tensões sobre o uso de roupas curtas, o "medo de engravidar" compartilhado por mães e filhas, as acusações sobre roubo de namorados e/ou maridos, a provocação de homens mais velhos, incluindo padrastos, pais e vizinhos e a disputa por vagas na educação pública infantil. Procuro descrever as zonas de prazer e perigo pelas quais elas transitam e de que maneira a realização de uma performance lida socialmente como provocadora é enquadrada a partir de marcadores sociais como gênero, geração e raça. Ao final, veremos que uma explícita gramática de acusação evidencia como o investimento sexualizador sobre as jovens expõe pontos de tensão relativos à sexualidade feminina.

A "novinha" é uma categoria popular atribuída a meninas, sejam elas crianças ou adolescentes. A categoria mistura marcos etários junto a percepção social do comportamento das jovens. O termo possui uma conotação sexualizada e é endereçado a pessoas que, ora se localizam enquanto "novinhas", ora são localizadas enquanto tal diante das interações cotidianas. Autores do campo da sexualidade mostram que os enunciados científicos em torno das categorias de infância e adolescência estão presentes na linguagem das políticas públicas estatais, nas ciências médicas e na psicologia (Duarte, 2004DUARTE, Luiz Fernando Dias. A sexualidade nas Ciências Sociais: leitura crítica das convenções. In: PISCITELLI, A; GREGORI, M. F.; CARRARA, S. (ed). Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro, Garamond, 2004.; Russo; Carrara, 2002RUSSO, Jane. A.; CARRARA, Sérgio. A psicanálise e a sexologia no Rio de Janeiro de entreguerras: entre a ciência e a auto-ajuda. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 9(2), 2002, pp.273-290. https://doi.org/10.1590/S0104-59702002000200003
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; Lowenkron, 2015LOWENKRON, Laura. O monstro contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2015.). Enquanto a presença destas categorias permanece na gramática das ciências biomédicas e das políticas públicas, a "novinha" corre solta no repertório cultural do senso comum.

Na indústria pop, a "novinha" está presente no funk, na música romântica e no sertanejo.2 2 Falo dos repertórios culturais presentes no imaginário popular, a saber, os produtos de propaganda e marketing que acionam a imagem da "novinha", seja em novelas, seja na figura de estrelas mirins apontadas como "sexualizadas" ou na presença constante da categoria "novinha" nas músicas. Na literatura, elas remetem a figuras icônicas, tal como a personagem Lolita, de Vladmir Nabokov, e sua versão brasileira encarnada na minissérie "Presença de Anita".3 3 Presença de Anita é uma minissérie de televisão realizada pela Rede Globo. Em debates acadêmicos, é comum que a "novinha" seja evocada para falar de uma "sexualização da infância" que, por sua vez, seria produzida por uma "adultização precoce" de meninas.4 4 Exemplos dessa "sexualização da infância" podem ser observados em algumas "polêmicas" ocorridas no cenário da indústria cultural, como a que envolveu a cantora mirim de funk Melody. O pai da cantora, MC Belinho, foi indiciado pelo Ministério Público pelo "forte conteúdo erótico e de apelos sexuais" contidos nas apresentações e músicas da cantora. Sobre essa discussão, ver Senra (2015). Mais recentemente, a "novinha" também seria vista como um "sintoma" de uma "cultura do estupro".5 5 O termo "cultura do estupro" não é novo na literatura dos estudos de gênero. A categoria surge no contexto do feminismo da segunda onda nos Estados Unidos durante a década de 70. Falar em cultura do estupro remete a um conjunto de discursos e práticas que naturalizam a violência contra as mulheres. Uma segunda acepção do conceito tenta mostrar que, ao contrário do que o senso comum acredita, a prática do estupro é algo presente e naturalizado nas redes de proximidade das mulheres, tal como família, comunidade e trabalho. No Brasil, a categoria ganhou evidência a partir de caso de estupro coletivo perpetrado por 33 homens contra uma jovem moradora de uma favela do Rio de Janeiro no ano de 2016. É pertinente afirmar que essa figura condensa imagens em disputa sobre o lugar e o comportamento de crianças e adultos em nossa sociedade.

Ao longo das ultimas décadas, pesquisadores se empenharam em mostrar algumas divergências entre categorias êmicas e normativas que operam distantes da realidade dos interlocutores, estes que, por sua vez, são os principais afetados pelas ausências e presenças das politicas públicas. O desajuste entre a norma e a realidade vivida pode ser visto no debate sobre "gravidez na adolescencia" (Heilborn et alii, 2006), na discussão entre sexualidade "precoce" e sexualidade como "direito" (Leite, 2012LEITE, Vanessa. A sexualidade adolescente a partir de percepções de formuladores de políticas públicas: refletindo o ideário dos adolescentes sujeitos de direitos. Psicologia Clínica, v. 24, n. 1, 2012, pp.89-103. https://doi.org/10.1590/S0103-56652012000100007
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), na interface entre "pedofilia" e "violência sexual contra crianças" (Lowenkron, 2015LOWENKRON, Laura. O monstro contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2015.) e nos marcos geracionais em suas ideologias heternormativas (Henning, 2016HENNING, Carlos Eduardo. “Na minha época não tinha escapatória”: teleologias, temporalidades e heteronormatividade. cadernos pagu (46), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2016, pp.341-371 [ https://doi.org/10.1590/18094449201600460341 - acesso em: 18 jul. 2022].
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; Sander; Oliveira, 2017).

Por outro lado, a literatura interseccional atenta para a articulação dinâmica entre categorias de diferenciação - a saber, gênero, raça, sexualidade, idade e território - que incidem sobre determinada realidade produzindo configurações relacionais complexas e ambivalentes (Moutinho, 2014MOUTINHO, Laura. Diferenças e desigualdades negociadas: raça, sexualidade e gênero em produções acadêmicas recentes. cadernos pagu (42), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2014, pp.201-248.; Piscitelli, 2008PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, 11(2), 2008, pp.263-274 [Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras (redalyc.org) - acesso em: 12 jul. 2023].
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). Assim, o objetivo é pensar tais categorias a partir de contextos específicos, a fim de analisar relações de poder e sujeição que incidem na produção de desigualdades (Díaz-Benítez; Mattos, 2019DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira; MATTOS, Amana. Interseccionalidade: zonas de problematização e questões metodológicas. In: SIQUEIRA, Isabel Rocha de et al. (org.). Metodologia e relações internacionais: debates contemporâneos, v. 2. Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio, 2019, pp.67-94.).

As representações sociais em torno das "novinhas" nos convidam a pensar nas fronteiras entre desejo, poder e violência, expressas em zonas de instabilidade e limites do intolerável. Trata-se de feminilidades que convocam experiências coexistentes de prazer e perigo (Vance, 1992VANCE, Carole. Pleasure and danger: toward a politcs of sexuality. In: VANCE, Carole. (ed.). Pleasure and Danger: exploring female sexuality. London, Pandora Press, 1992, pp.1-27 [1984].), alternando entre ostentação e contenção, apego e negligência, amor e horror (Gregori, 1993GREGORI, Maria Filomena. Cenas e Queixas. um estudo sobre mulheres, relações violentas e prática feminista. São Paulo, Paz e Terra, 1993.; 2004; 2008; 2016; Díaz-Benítez; Fígari, 2009DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira; FÍGARI, Carlos. Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro, Garamond, 2009.; Díaz-Benítez, 2015DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira. O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade. Mana, v. 21, n. 1, 2015, pp.65-90. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p065
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).

O artigo é baseado em uma etnografia realizada entre os anos de 2014 e 2016 nos morros do São Carlos e da Mineira, duas favelas situadas na Zona Norte do Rio de Janeiro.6 6 O morro do São Carlos e o morro da Mineira tratam-se de duas favelas situadas na Zona Norte do Rio de Janeiro. A Mineira é uma favela localizada no bairro do Catumbi, região central do Rio de Janeiro, enquanto que a favela do São Carlos situa-se no bairro do Estácio. As duas localidades estão situadas em áreas de grande movimentação na cidade, tais como as grandes obras de revitalização da Zona Portuária e de realização dos jogos olímpicos. Ademais, as favelas se situam próximas de dois espaços do poder público, a saber, a prefeitura do Rio de Janeiro, situada na Cidade Nova e o Palácio Guanabara, situado no bairro de Laranjeiras. De acordo com os moradores, o fato de ambas as favelas se situarem em meio a lugares de prestígio social e interesses político-econômicos faz com que as violências perpetradas pela militarização do território sejam silenciadas pelos principais veículos da mídia. A pesquisa de doutorado acompanhou redes de cuidados de crianças estabelecidas entre creches públicas, casas de cuidadoras da vizinhança e famílias. No decorrer dessas interações, identifiquei crenças compartilhadas acerca de mulheres acusadas de fazerem "filhos demais". Assim, dediquei-me em compreender de que forma a sexualidade e a reprodução das mulheres moradoras da favela são localizadas como responsáveis por perturbar a ordem social e eventualmente provocar a precariedade dos serviços públicos. É nesse contexto que a "novinha" é localizada enquanto uma figura perigosa, seja por usurpar e/ou contaminar relações afetivas e sexuais ("roubar" maridos e amantes), seja na desregulação de serviços públicos ("roubar" vagas nas creches), ou seja, na predominância da violência na favela (incitação dos "bandidos" locais).

A etnografia foi desenvolvida de forma multissituada em espaços de convivência dos moradores. O trabalho de campo realizou-se em bares, quadras, casas e festas, assim como em instituições públicas - creches, escolas, clínicas da família e instituições não governamentais - e em projetos sociais que atuam na localidade. As mulheres e jovens evocadas nessa pesquisa são moradoras do território e suas idades variam entre 09 e 65 anos de idade. Em termos de identificação racial, elas se declaram como "brancas", "negras", "pardas" e "pretas". Com relação ao mercado de trabalho, elas atuam no setor do comércio, limpeza, serviço e cuidado de idosos e crianças, em empregos formais e/ou informais. As crianças e jovens são estudantes das escolas públicas da região e estão envolvidos em circuitos de cuidados locais e comunitários.

Quem é novinha e quem não é? A dinâmica entre performance e enquadramento.

"Olha, você não vê? Essas novinhas não param de fazer filho!", comenta Flor, uma mulher de 27 anos. Flor é moradora da parte baixa da comunidade e está sempre rodeada de amigas na porta de sua casa. Ali, mulheres se reúnem, tomam banho de mangueira, fazem as unhas e jogam conversa fora. Nesse dia, estávamos em uma mesa de bar em frente à quadra da Mineira, quando o assunto das "novinhas" veio à tona.

Mulheres mais velhas, porém ainda jovens, circulam as mensagens com tom de advertência: "tá vendo, depois abandona aí, porque tem sempre gente pra cuidar", diz Karen, uma mulher de 32 anos ao se referir às "novinhas". O falatório continua na roda de mulheres: "elas têm filho assim e depois não têm paciência com a criança", comenta Luciana de 28 anos de idade. Cinthia, uma mulher de 26 anos de idade, continua: "as novinhas quer sentar, elas sentam melhor que nós", em alusão à suposta desenvoltura sexual atribuída às "novinhas". As mulheres citadas aqui são amigas de Flor, uma das interlocutoras desta pesquisa. Todas são moradoras da favela da Mineira e se declaram negras de cor.

O giro de afirmações continua, e Karen retoma a conversa: "elas não querem homem trabalhador não, só querem bandido", "elas não têm nada, só a roupa do corpo. Vai ali no mercado, rouba um quilo de carne, e diz que tem as coisas", frases que anunciam tanto a precariedade desses corpos como a habilidade para a subversão, na prática do furto ("roubar a carne no mercado") ou na atração compulsória por "bandidos". Cinthia emenda: "a culpa das novinha engravidar é das mães que não fica em cima, não fala de sexo, não fala de gravidez e às vezes fica feliz quando a filha fica grávida, posta no Facebook e diz que vai ser vovó", sentença que localiza a natureza "errada" das "novinhas" num ponto nevrálgico para esta discussão, que diz respeito à relação entre mães e filhas, feita nas dobras do conflito e da amorosidade maternal.

Caminhando em alguns pontos da favela, é possível notar a presença de meninas agrupadas, conversando, mexendo em seus aparelhos celulares. Na escuta do "disse me disse" local, a pouca roupa, o short curto, a alcinha do sutiã à mostra são alguns dos atributos lidos como "exibição" no espaço público. Nos comentários gerais, as "novinhas" são consideradas "atrevidas", "afrontosas" e "sem medo". Apesar da pouca idade, são descritas como experientes na prática da sexualidade, já que "sentam muito", "dão de ladinho", entre outras manobras sexuais.7 7 "Sentar" é uma gíria que significa fazer sexo.

Contudo, a visão da lascívia e a liberdade atribuída às "novinhas" contrastam com as narrativas das meninas acerca de suas próprias vivências. Neste artigo, não me concentrei em explorar a forma como as próprias novinhas percebem-se ou gestam intencionalmente os elementos que serão lidos, a posteriori, como critérios inquestionáveis de sua produção enquanto tais. O foco da análise está na gramática acusatória que recai sobre elas e as consequências de tais discursos na forma de enquadramento das jovens. Entretanto, em conversa com especialistas que atuam com adolescentes nas escolas municipais do entorno acerca do tema "sexualidade", as profissionais usaram termos como "espanto" ou "pesado" para falar das percepções que tinham sobre as jovens. A atuação das profissionais sugere que a gestão da sexualidade das "novinhas" é um tema "difícil" e "complexo":

Difícil até pra gente que atua nesta área... e pior ainda é a forma como a sociedade lida com isso... as pessoas falam muito dessas novinhas, como se pra elas fosse tudo muito fácil, que elas fazem tudo isso, que elas se exibem assim, mas eu acredito que não é, não pode ser fácil encarnar isso com tanta firmeza... e fico pensando que elas fazem isso porque parece que fora criado um lugar pra elas né, e elas incorporam tudo isso. É muito curioso esse jogo entre o lugar que foi criado e a realidade (Priscila, 33 anos, psicóloga na escola Municipal Estados Unidos).

Ao conversar com as "novinhas", elas diziam que "os meninos" viviam solicitando nudes por meio dos chats de Facebook e WhatsApp. Como analisado por Isabela Petrosillo (2016)PETROSILLO, Isabela Rangel. Esse nu tem endereço: o caráter humilhante da nudez e da sexualidade feminina em duas escolas públicas. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2016. na ocasião de sua dissertação sobre a troca de nudes entre jovens, trata-se de uma dinâmica que intensifica hierarquias sociais de gênero e desencadeia inúmeros constrangimentos morais decorrentes do envio dessas fotografias.

Contam de situações nas quais se sentiam pressionadas a "dar logo". Entre elas, há uma preocupação muito significativa em relação a "se guardar": explicaram-me diversas vezes sobre a importância de "segurar" e "esperar pra dar", categorias que falam de uma sexualidade que não pode ser desgastada. Essa necessidade de contenção ocorre não tanto pela ausência de vontade de viver a sexualidade, mas se deve aos possíveis julgamentos dos quais as "novinhas" estão à mercê. A avaliação das reputações femininas apresenta um léxico significativo: "dar", "guardar", "esperar", "perder" e "ceder" são exemplos dessa economia dos atos sexuais, vivida na minúcia, em avaliações constantes do melhor ou pior momento para exprimir ou reter os desejos sexuais.

As "novinhas" mostram ter algum entendimento sobre o controle da sexualidade feminina, o que contrasta com as existentes narrativas em torno de uma suposta sexualidade desvairada que as caracterizaria. Certa vez, uma menina criticou a forma como comumente referiam-se a outras garotas que já haviam iniciado a vida sexual: eram apontadas como "a menina que se perdeu". Ela questionava: "por que se perdeu, né? Se perdeu nada, se achou!", traduzindo uma expressão positiva da vida sexual ativa. As "novinhas" com quem conversei criticaram com ênfase a desigualdade da distribuição dos julgamentos entre meninas e meninos no tocante à sexualidade: "o homem mostra o pau e fica como galinha, a menina manda uma foto e fica de piranha". Em casos de tentativa de sexo forçado, dizem imediatamente que iriam recorrer à "boca de fumo" para "explanar" o caso e "falar pra todo mundo".

Da parte dos meninos, eles afirmam que as "novinhas" "gostam de se amostrar". Esse é o ponto de vista de Maycon, um jovem de 21 anos de idade que trabalha na pequena loja de açaí que tem com a sua mãe na favela. Ele explica que a troca de imagens em que elas aparecem nuas acontece porque: "elas são exibidas e querem mostrar peitinho".

Durante a temporada de campo na escola municipal Estados Unidos, situada no bairro do Catumbi, acompanhei algumas interações entre os jovens em redes sociais, nas quais se compartilham vídeos de dança com muita desenvoltura. As danças são feitas em diferentes ocasiões pela favela, onde grupos de "novinhas" filmam umas às outras e se divertem juntas, como visualizei em diferentes momentos na saída das creches enquanto irmãs mais velhas esperam as suas respectivas crianças para levar de volta às casas. Nesses momentos, elas aperfeiçoam passos, atualizam gostos musicais e treinam novos "closes".8 8 Close" é a expressão para falar da pose para fotos e selfies (autorretratos). Durante o baile funk no morro da Mineira, as danças em grupo compõem o ponto alto da festa. O som retumbante do "batidão" será domesticado através de rebolados, "quadradinhos" e passinhos. É também o momento da "resenha", dedicado ao lazer, às paqueras, a pegação e à diversão entre os frequentadores.

Uma primeira controvérsia relativa às "novinhas" diz respeito à forma de classificá-las em relação à idade. Não foram poucas as vezes ao longo da pesquisa que me questionaram "mas... quantos anos elas têm?". Com o passar do tempo, entendi que a categoria "novinha" não diz respeito somente a uma questão etária, mas se concentra em uma combinação entre a atitude das jovens e suas formas de enquadramento locais.

A performance das "novinhas" é traduzida pelo entorno como o "comportamento das meninas", expressão de uma essência, vista como uma "verdadeira identidade" (Butler, 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2003.:195). Para Judith Butler, a performance é sustentada através de ações, linguagens e discursos constantemente reiterados que produzem a aparência de naturalidade de determinada identidade, "como se" esta fosse natural. Logo, a naturalidade é um efeito da repetição das performances em ação.

Ademais, o comportamento das jovens é lido socialmente a partir de variadas formas de enquadramento. Na análise sobre "os quadros da experiência social" e a partir de uma perspectiva interacionista, Erving Goffman (2012)GOFFMAN, Erving. Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise. Vozes, 2012. escreve sobre as "framing analysis", permitindo examinar a interação das pessoas e o modo pelo qual determinadas situações são lidas ou apreciadas socialmente a partir de diferentes "frames". As formas de enquadramento nos permitem levar em consideração não apenas as "molduras" nas quais diversas situações cotidianas são apreendidas, mas também a relação entre o "observador" e suas interações com o "frame", no nosso caso, num jogo entre observadores, figura e fundo.

Dito isso, é preciso acrescentar que a questão da idade não é uma variável descartável e pode atuar como uma linha de corte para avaliação em determinadas situações, seja no flerte, na "pegação", na avaliação de riscos, como o "medo de doença" ou o "medo de engravidar", ou nas suspeitas de "abuso sexual" ou "estupro" conforme ocorre no trabalho de Laura Lowenkron (2013)LOWENKRON, Laura. Da materialidade dos corpos à materialidade do crime: à materialização da pornografia infantil em investigações policiais. Mana, v.19, n.3, 2013, pp.505-528. acerca da construção social do "pedófilo".

Com base na apreciação polissêmica dessa performance, que se faz a partir de um olhar externo dos observadores, podemos afirmar que tanto as crianças de 06, 07, 08 ou 09 anos de idade como as adolescentes de 14 ou 17 anos, ou mesmo mulheres adultas de 22 ou 25 anos podem ser consideradas "novinhas". É interessante notar que mulheres idosas, apesar de não serem mais "novinhas", podem "se comportar como novinha", como certa vez um interlocutor, Ryan, me explicou ao afirmar que as "novinhas" queriam "muita coisa, dinheiro e ostentação":

Você vê só, minha vó é uma novinha, ela coloca ao mesmo tempo calça legging, saia, canga, casaco, coloca três anéis no dedo. Elas ["as gringas"] não, elas são simples. Ela ["a gringa"] me chamou um dia pra dar um passeio na praia e tava chovendo, que mulher vai te convidar pra fazer isso? Na favela não, querem sair ostentando (Ryan, 18 anos de idade, trabalhador informal no setor do comércio).

Ryan enumera a quantidade de roupas e acessórios que sua avó utiliza como "ostentação", comparando seu jeito de se vestir à atitude das "novinhas". Nessa ocasião, ele traça um paralelo com mulheres que conhece na barraca que possui com sua família na praia de Copacabana.9 9 A "barraca" se refere ao ponto de aluguéis de cadeiras de praia e comércio de bebidas que sua família possui na praia. São "as gringas", que, na perspectiva dele, "são simples", diferente das "novinhas da favela". Outro dia, em minha presença, Ryan censurou com ironia a forma como sua mãe se veste. Baiana, como é chamada por todos, está quase sempre trabalhando em sua barraca vestida com shortinho e barriga de fora. Ela foi "mãe nova", como certa vez me contou, e diz que Ryan tem ciúmes dela.

Numa outra conversa com um grupo de meninos, um deles questionou a minha idade. Com o tom da brincadeira, menti na intenção de produzir uma provocação, e respondi que tinha 20 anos, e que, portanto, eu era "uma novinha também". Ele imediatamente me localizou: "tia, você não é novinha não! Novinha é novinha mesmo!". Já em outra ocasião, num grupo de adolescentes durante um jogo de futebol na quadra da favela, um deles me questionou sobre o meu interesse nas "novinhas": "qual é! Pra que você quer saber? Se você é novinha também!". Em outra conversa com uma "novinha", ela explica que uma menina deixa de ser "novinha" "quando tem filho" e "vira mãe". Para outras pessoas, algumas mães poderiam ainda assim "se garantir como novinha".

Com esses exemplos, pretendo mostrar que há um processo sutil de classificação das inclassificáveis. Esse processo confuso de inteligibilidade indica uma elasticidade da categoria "novinha", bem como marca o lugar do equívoco e da dúvida presentes nessas apreciações. Decerto, podemos afirmar que a "novinha", enquanto categoria nativa, afronta os critérios etários oficiais do Estado, tais como as definições arbitrárias do que é criança e adolescente.10 10 Conforme definição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ao mesmo tempo, a idade se mantém como um critério válido e pode ser a qualquer momento acionado, como na negociação das relações sexuais mencionadas acima, ainda que essa decisão provisória possa sempre ser disputada posteriormente. Diante dessas elasticidades, é certo afirmar que a "novinha", "novinha mesmo", é uma categoria que diz respeito a meninas situadas na faixa dos últimos anos da infância até meados da adolescência.

"Proibida a entrada de top, sutiã e roupa curta". Sexualização e racialização de corpos femininos.

Um dos aspectos muito debatidos sobre as "novinhas" diz respeito às roupas, uma questão nada trivial e que serve como um filtro para avaliação do comportamento das jovens. Fiquei surpresa quando entrei em uma creche no morro do São Carlos e avistei um cartaz em folha de papel A4 afixado na grade do portão, no qual se lia uma mensagem: "proibida a entrada com top, sutiã e roupa curta". O cartaz fazia uma explícita alusão aos corpos das "novinhas" e à forma como elas se vestem.

A discussão sobre roupas nos remete aos debates feitos por antropólogas como Lila Abu-Lughod (2012)ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus Outros. Revista Estudos Feministas, 2012, pp.451-470. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000200006
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acerca do olhar ocidental sobre as mulheres islâmicas.11 11 Abu-Lughod aborda como o uso do véu adquiriu um caráter sensacionalista nas coberturas midiáticas após o evento do 11 de setembro. Países como os Estados Unidos e a França fortaleceram uma retórica sobre a necessidade de "salvar as mulheres" das "garras do regime talibã". Nesse percurso apelativo, o hijab (véu) e a burca tornaram-se símbolos da dominação das mulheres islâmicas, vistas como essencialmente oprimidas, independentemente dos sentidos do uso dessas peças de roupas em cada localidade, da etnia dessas mulheres, de seus agenciamentos familiares ou condições de classe. Abu-Lughod (2012)ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus Outros. Revista Estudos Feministas, 2012, pp.451-470. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000200006
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destaca como a burca se forjou como um dos símbolos de maior fetiche do imaginário ocidental acerca do "Oriente". Categorias como "guerra ao terrorismo" e "Talibã" foram reificadas a partir da centralidade dos corpos femininos, concebidos como necessitando salvação e utilizados como um dos meios para legitimar politicamente a entrada dos militares norte-americanos em territórios árabes.

Nesse contexto, há uma flagrante preocupação com as roupas utilizadas por mulheres pobres. Essa preocupação remete, por um lado, à ideia de um corpo lascivo e provocativo e, por outro, a uma suposta capacidade para a reprodução sexual/social descontrolada. Nesse sentido, cabe lembrar sobre as frases ditas nos discursos corriqueiros a respeito do "fogo que elas têm", uma suposta quentura localizada sempre nas entranhas e orifícios corporais, tais como o famoso "fogo no rabo", "fogo na boceta" ou "fogo no cu", atribuídos às mulheres que fazem uso de "pouca roupa". Frases ouvidas no cotidiano, tais como "piriguete não sente frio", aludem a corpos supostamente resistentes, capazes de perambular tranquilamente desnudos. De acordo com essa representação, esses corpos não precisam se vestir "muito", pois são hábeis para aguentar a noite e a madrugada afora, em uma visão que remete à imagem da prostituição de rua.

A antropóloga Lélia Gonzalez fala sobre uma dialética entre a "consciência" e a "memória", na qual processos de enunciação são reveladores de categorias de pensamento que estão encobertas no cotidiano (1984:226). A autora analisa as figuras da "mucama", da "mãe preta" e da "mulata", procurando mostrar de que maneira esses nominativos dizem respeito à atribuição de lugares sociais.12 12 Essas imagens femininas são construídas na intersecção entre marcadores de raça, gênero e classe, fundamentais para entender a distribuição de posições sociais para mulheres negras. Durante a escravidão no Brasil colonial, Gonzalez mostra como os corpos das mulheres negras foram alvo de controle. A construção das figuras examinadas pela autora nos ajuda a pensar sobre dois tipos de rivalidade de sexo e gênero: uma que se dá no eixo intragênero masculino, entre homens brancos e homens negros - que, na cena colonial, competiam por relações afetivo/sexuais pelas mulheres negras, apesar de homens brancos estabelecerem oficialmente relações de aliança com mulheres brancas -; e outra, no outro eixo, que se refere à dimensão intragênero feminina, na qual mulheres competiam pela atenção de homens. Nesta última, a autora destaca uma rivalidade entre mulheres brancas e negras e outra somente entre mulheres negras (González, 1984). Diante de suas considerações, podemos pensar que as manifestações temerárias em relação às "roupas curtas" guardam relação com o imaginário racializado e colonial acerca de mulheres negras e pobres, vistas ora enquanto "corpos fortes", "reprodutivos" e por isto admissíveis para o castigo e a escravização, ora como provocativos e sexualizados, e nesse sentido considerados despertadores de desejos ilícitos.

A partir dessa reflexão, podemos entender as continuidades entre algumas fantasias raciais expressas durante o trabalho de campo, tais como a ideia do "sangue quente", fornecida por uma profissional da gestão de uma creche, que certa vez tentou me explicar sobre os motivos pelos quais mulheres pobres, segundo ela, "não param de engravidar": "deve ser porque dizem que negra tem sangue quente, já ouviu falar? Que negra tem sangue quente?". Enfatizo que estamos diante de mulheres racializadas, sejam "negras", "moreninhas" e/ou "faveladas". O contexto das jovens se assemelha ao que Adriana Piscitelli (2009)PISCITELLI, Adriana. Tránsitos: circulación de brasileñas en el ámbito de la transnacionalización de los mercados sexual y matrimonial. Horizontes antropológicos, v. 15, n. 31, 2009. https://doi.org/10.1590/S0104-71832009000100005
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denominou "sexualidade tropical", conforme indica a autora, está presente:

A ideia de que elas são portadoras de uma disposição naturalmente intensa para fazer sexo e uma propensão à prostituição, combinadas com noções ambíguas sobre seus estilos de feminilidade, tidos como submissos, com uma alegre disposição para a domesticidade e a maternidade tende a atingir indiscriminadamente essas migrantes (2009:110).

No contexto analisado por Piscitelli, a imagem das mulheres migrantes é associada a limpeza, domesticidade, propensão ao cuidado e sensualidade. No contexto desta pesquisa, a sexualidade feminina é associada ao exagero, irresponsabilidade e situada como produtora de filhos em excesso. As "novinhas" são apontadas como aquelas que têm filho "cedo demais" e por isso tornam-se má cuidadoras, seja como mães "nervosas" ou como "mães que abandonam".

O olhar sobre os corpos das "novinhas" fala de processos de racismo e racialização que acometem as jovens. Conforme mostra Laura Moutinho (2014)MOUTINHO, Laura. Diferenças e desigualdades negociadas: raça, sexualidade e gênero em produções acadêmicas recentes. cadernos pagu (42), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2014, pp.201-248., a metáfora do "sangue quente" relacionada à negritude evoca ideias de reprodução e transmissão, processos sociais que falam sobre partilha de substâncias consideradas problemáticas de acordo com acepção negativa da mestiçagem. Essa ideia racializada fundamenta a crença num desejo sexual intenso mesclado à incapacidade de se prevenir, atribuídos ao campo das sexualidades consideradas "erradas". Ao mesmo tempo, a metáfora alude a uma lascívia sexual, representação há muito tempo presente no conjunto dos estereótipos sobre mulheres negras (Carneiro, 1995; Corrêa, 1996; Segato, 2006). Nesse contexto, a raça enquanto construção social se articula ao gênero, engendrando também os marcadores territoriais e de classe remetidos às mulheres moradoras da favela, uma vez que no Brasil a classe é racializada (Piscitelli, 2010PISCITELLI, Adriana. "Sexo tropical": Comentários sobre gênero e "raça" em alguns textos da mídia brasileira. cadernos pagu, (6/7), 2010, pp.9-33 ["Sexo tropical": Comentários sobre gênero e "raça" Em alguns textos da mídia brasileira | Cadernos Pagu (unicamp.br) - acesso em: 12 julho 2023].
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).

Num contexto em que corpos vestidos com "pouca roupa" são enunciados como provocadores e exibicionistas, o cartaz afixado na instituição possui uma mensagem de interdição a determinados corpos femininos: "jovens", "negras", "morenas" e "faveladas" enquanto categoria atribuída a quem vive no morro. A informalidade de determinadas práticas, tal qual um cartaz pendurado de forma casual, não quer dizer ausência de ação direta relativa às formas de regulação dos corpos e exprime os processos de vigilância extremamente ativos. Resta saber, portanto: por que é necessário cobrir esses corpos? E quais são os perigos que eles podem provocar?

Dos perigos que o olhar esconde: o manejo do olhar masculino

Brenda tem 37 anos de idade e se declara "parda" de cor. A mulher, que trabalha como faxineira em uma biblioteca no morro do São Carlos, certo dia explicou sobre as formas de contenção do olhar dos homens em casa. Para descrever o tipo de constrangimento sobre o qual me contava, ela tomou uma jovem garota pelo dedo indicador e rodopiou a menina, enquanto declarava num tom fatalista:

Olha, se quiser se vestir assim eu não vou deixar, vai sair de casa, porque quando meu marido me pegou pra morar junto ele me deu tudo, ele botou tudo dentro de casa. Ele cuidou de mim. Agora, se quiser se vestir assim, o que eu posso fazer? Entende? Eu vou ter que bater de frente! Imagina essa menina desse jeito com um padrasto em casa, eu vou impedir ele de olhar? Você tá entendendo a situação? Como que vai ficar assim em casa?

Com seu gesto, Brenda chama atenção para um corpo de treze anos. Uma jovem vestida com um top de lycra pequeno e um short de tecido. Esses corpos híbridos, que misturam as primeiras formações de um futuro corpo de mulher à presença indiscutível de traços de menina, são motivo do falatório local, ao passo que se constituem como fonte de tensão entre mães e filhas e entre os parentes que cuidam.

Dessa maneira, os corpos das "novinhas" são enunciados como mobilizadores de dilemas entre relações filiais ou de aliança. O enquadramento desses corpos atua de maneira semelhante ao que Néstor Perlonguer (1987) denominou "tensores libidinais", potencializando rupturas entre relações afetivas e de parentesco, articulando incitação e possíveis transgressões.

Outra "novinha" conta sobre o clima em sua casa, feito de conflitos entre ela, sua mãe e o padrasto. Jackeline tem quatorze anos e é frequentadora da biblioteca do morro do São Carlos. Conta que volta e meia seu padrasto critica o seu jeito de se vestir: "Sabe o que ele fala? 'Olha a roupa que essa aê usa, parece até uma vagabunda, daqui a pouco aparece aí com dez filhos pra criar'". Jackeline, entretanto, não se deixa dobrar e rebate: "pois é a sua filha que tá namorando e vive trancada no quarto!". O padrasto engole a resposta e sai bufando.

A partir de uma queixa sobre afetos diferenciados entre os "filhos de sangue" e os "filhos dos outros", Jackeline me explica em tom didático sobre a forma como tais cuidados vão se delineando entre as distintas filhas:

É porque é assim: uma pessoa quando casa com outra, e essa outra pessoa já tem um filho, o que ele vai fazer com o filho do outro? Vai deixar de lado, entende? Se ele tem um filho que é dele, e um filho que é de outro, quem ele vai dar preferência? Foi assim que aconteceu comigo (Jackeline, 14 anos de idade e estudante de escola pública).

Sua amiga Karen, de 10 anos de idade, entre outras crianças igualmente atentas, assiste à exposição de Jackeline e em determinado momento a interrompe e protesta:

Me desculpe, mas a sua mãe não presta! Ela só pensa nela, ela tá agindo como uma vagabunda, porque que eu acho assim: quer galinhar que cuide dos seus pintinhos! Ela tem que ficar com alguém que cuide dos filhos dela, que se dê bem, que goste, não pode ficar com alguém que te maltrata! (Karen, 10 anos de idade e estudante de escola pública).

Situações como essas não foram raras e explicitam que, na dinâmica da circulação de crianças, relações de sangue e origem convivem de modo candente junto às relações de cuidado (Fonseca, 2006FONSECA, Claudia. Da circulação de crianças à adoção internacional: questões de pertencimento e posse. cadernos pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.11-43. https://doi.org/10.1590/S0104-83332006000100002
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). Crianças e adultos fabulam sobre parentescos originários e afetos recebidos; expectativas de carinho, cuidado e obrigação são discutidas. Neste leque de conjecturas, "novinhas" filhas de relações anteriores podem ser projetadas como partes fora do eixo.

Com essas passagens, procuro destacar que não se trata apenas de performances provocadoras, mas sobretudo de "um discurso decididamente social da regulação pública da fantasia pela política da superfície do corpo" (Butler, 2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015.:27). Além das tarefas que mães se veem obrigadas a realizar no cuidado dos filhos, o controle do olhar masculino surge como mais uma necessidade, um olhar que deve ser vigiado a fim de evitar a provocação dos homens adultos e, no limite, o "descontrole" masculino, elemento capaz de desfazer famílias e instaurar tragédias. Em algumas situações de violência, o motivo para incitação de atos de estupro ou exposição pública das jovens teve como ponto explicativo as roupas das vítimas e seu corolário: o comportamento da mulher como justificativa para a violência masculina.13 13 A elegibilidade de um elemento estético em situações de violência é algo muito comum nas dinâmicas sociais e se encontra profundamente ancorado nas formas de avaliar, julgar e punir de nossas instituições, sobretudo aquelas voltadas à Justiça e à Polícia. Daniella Coulouris (2010) analisa processos de julgamento de estupro e demonstra como em muitos casos os operadores do Direito destacam o elemento da roupa que a mulher vestia no momento do estupro para julgar possíveis "incoerências" nos relatos das vítimas. Seja na admiração, seja na necessidade de controle dos corpos, os olhares sobre esses corpos falam da possibilidade de certos perigos se realizarem.

"Novinhas" usurpadoras: rivalidade e competição entre mulheres

Outro motivo de tensão com as "novinhas" diz respeito à prioridade que elas recebem uma vez que se tornam mães. O acesso às vagas nas creches públicas se faz a partir de uma batalha de recursos sociais num contexto intenso de produção da escassez (Fernandes, 2019FERNANDES, Camila. Figuras do constrangimento: As instituições de Estado e as políticas de acusação sexual. Mana, 25(2), maio 2019, pp.365-90. https://doi.org/10.1590/1678-49442019v25n2p365
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, 2021). Neste âmbito, as "novinhas" são consideradas como aquelas que "roubam as vagas das mulheres mais velhas", daquelas que fizeram "tudo certo", no "tempo certo", como explica uma profissional durante a pesquisa:

As adolescentes têm prioridade pelo governo federal, é critério, então muitas mães vêm reclamar com a gente que eles perdem a vaga pra adolescente, elas dizem que é injusto, que elas fizeram tudo no tempo certo, esperaram pra ter filho, enquanto que as adolescentes engravidam e têm prioridade, eu também não consigo entender por que [elas] têm, tudo bem, pra não abandonar o estudo, mas as mães também precisam trabalhar (Ivany, vice diretora de creche).

Janaína, moradora da favela e mãe de uma criança assistida na creche, explica que:

Eles dão preferência pra essas meninas novas que fica aí o dia todo pra cima e pra baixo e pra quem tem parente bandido. Quem tem parente bandido consegue rápido. Eles falam que é por sorteio, mas não é nada disso, quando você chega lá, eles perguntam, tem pai preso? Cachaceiro? Fuma maconha? Usa alguma droga? Alguma coisa? Porque aí você já consegue a vaga (Janaína, moradora de 32 anos de idade e manicure).

A prioridade que elas recebem devido aos critérios assistenciais da política pública de acesso a creches é vista tanto pelos moradores como pelas profissionais das administrações como "privilégio" e "sacanagem". Nessas falas, percebemos que a "novinha" é mencionada ao lado das categorias de "bandido" e "drogado". Localizam-se também como figuras do tempo errado, uma vez que são vistas como aquelas que transaram na "hora errada" e tiveram filho "cedo demais". A partir do comportamento considerado "precoce", elas são vistas como usurpadoras das vagas na Creche, entre outros recursos sociais oferecidos pelo Estado: "assim, elas tiram vaga de mãe que trabalha", conforme ouvi em diferentes ocasiões. Ao "roubar" as vagas das mulheres mais velhas, aquelas que "precisam de verdade", elas são projetadas como concorrentes desleais no acesso a um bem de cuidado fundamental para adentrar nas malhas do Estado. Mulheres "que trabalham" se sentem preteridas, num jogo extremamente conflitivo que articula relações geracionais e intragênero.

As "novinhas" também são conhecidas por "roubar os homens" de mulheres mais velhas. Foi muito comum ouvir que o comportamento "ostentação" e "abusado" que as jovens apresentam era direcionado a cobiçar homens adultos, eventualmente comprometidos. Aqui, retomo a frase enunciada por uma interlocutora na introdução deste artigo, ao afirmar que as novinhas "roubam carne no mercado". A usurpação de bens sociais ocorre em planos simétricos, na carne subtraída do supermercado, por meio de pequenos crimes supostamente cometidos por elas, e no roubo dos homens das outras mulheres, em um discurso que aloca "homens" e "carnes" como mercadorias em disputa.

Neste contexto, a "novinha" convoca os contornos de outra conhecida figura popular: a "mulher bandida". Uma personagem voltada ao "mundo do crime" e desenvolta na arte da contravenção (Lopes, 2011LOPES, Natânia. Os bandidos da cidade: formas de criminalidade da pobreza e processo de criminalização dos pobres. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, 2011.; Larangeira, 2016LARANGEIRA, Larissa. Mulheres perigosas: uma análise da construção da categoria piriguete. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (IFCS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2016.). Neste imaginário, a bandidagem feminina possui o seu correlato masculino, a figura do "menor", categoria usual atribuída a jovens meninos e garotos racializados de classe popular. Se a presença do "menor" é alvo de pânico e perturbação social (Vianna, 1999VIANNA, Adriana de Resende Barreto. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro, 1910-1920. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1999.), hoje, a "novinha" se destaca neste cenário como contraparte feminina, em ares de provocação e ousadia. Assim, podemos dizer que enquanto o "menor" é a categoria masculina que atualiza determinados pânicos morais relacionados ao crime, à violência e ao distúrbio social, a "novinha" é uma categoria feminina que atualiza pânicos morais e sexuais com potencial de desfazer famílias.

Como mencionado na introdução deste artigo, as versões da "novinha" "bandida" não flutuam num vazio discursivo e se encontram representadas no universo do funk ou das novelas, no qual a "novinha" é uma figura celebrada de forma enfática em mil e um repertórios. A referência às "novinhas" está presente também em ritmos musicais, tais como o sertanejo, o pagode, o axé e outras ramificações da "música romântica" e popular. Em pesquisa realizada em sites específicos de música, localizei 98 letras que apresentam a categoria "novinha". Essas letras não dizem respeito aos "proibidões", que, se fossem levados em conta, ampliariam a aparição do termo ainda mais. 14 14 Consulta feita em sites musicais a partir do buscador Google.

A evocação múltipla dessa célebre personagem popular se dá quase sempre a partir da inexistência da inocência ou da pureza. As "novinhas" aparecem cantadas de maneiras especialmente distintas, tais como: "as provocadoras", "as bandidas", "a sedutora", a que "vai até o chão", a que "vai chorar", a que "sabe rebolar", a "gracinha", a "safadinha", a que "assim você me mata", as "sensacional", as que "gosta de pau", as que "tão a mil", as "cobiçada", a que "sabe quicar", a "mercenária", a "interesseira", a "atrevida", a "meiga", a que é "chapa quente", as que "pira", as que "faz pirar", a que se "finge de santinha", as "ostentação", a "novinha má" e a "novinha terrorista".15 15 A ausência de concordância entre o artigo "as" e a qualificação feita a seguir acerca das novinhas, aqui e em alguns exemplos seguintes, é intencional e reproduz a forma com que algumas letras cantam sobre "as novinhas" (sic).

O funk, "um dos ritmos mais malditos da cultura popular brasileira" (Facina, 2009FACINA, Adriana. "Não me bate doutor": funk e criminalização da pobreza. Comunicação apresentada no V Enecult, Salvador-BA (2009) [Microsoft Word - 19190.doc (ufba.br) - acesso em: 12 jul 2023].:2), nos oferece um conteúdo de representações que diz respeito ao imaginário popular, incluindo também as classes médias e de áreas da Zona Sul da Cidade. Ainda que a famosa "novinha do funk" não corresponda diretamente à "novinha" enquanto pessoa relacional, sua evocação fala de determinadas representações do feminino em situações de sujeição e protagonismo social, marcadas por apelos e alusões que se comunicam com processos mais amplos e que se fazem presentes no imaginário midiático, popular e de territórios de favela.

Outro tema presente nos debates entre os moradores de favela e que guarda relação com tópicos narrados no funk diz respeito à chamada rivalidade entre mulheres.16 16 No trabalho de Mariana Caetano (2015) sobre a trajetória de Valesca Popozuda, a autora mostra como o tema da rivalidade entre mulheres, "seja por disputa de poder, de espaço, ou mesmo por disputar um homem", é acionado como mecanismo para deslegitimar as cantoras de funk, que seriam acusadas de estimular a competição entre mulheres reais (Caetano, 2015:151). Assim é que o tema da rivalidade emerge de relações assimétricas, seja na competição por recursos sociais como creches, água, bens e serviços, seja por divisões desiguais na partilha dos cuidados e do ônus da reprodução distribuídos entre diferentes gerações femininas. Essas disputas se dão em dois níveis regulatórios: entre mulheres e entre homens e mulheres. Assim sendo, a chamada rivalidade, sintetizada no universo midiático como fonte de estímulos para estereótipos em torno da "competição feminina", interpretada comumente de maneira desencarnada, está longe de ser algo esvaziado de processos políticos brutais entre mulheres e entre homens e mulheres, na batalha por mobilidades, temporalidades e recursos.

"Eu não tenho como colocar um cadeado na boceta dela": o medo de engravidar e o dever de regulação da reprodução como tarefa materna

Gisele é uma mulher de 34 anos e se declara negra de cor. Ela tem uma filha chamada Maysa, que possui 14 anos de idade. Em conversa sobre os cuidados de sua filha, ela conta que nos últimos meses o convívio entre as duas beirava o insuportável. Ela reclamava que a filha não queria fazer nada dentro de casa, não se comprometia com as tarefas domésticas e nem entendia a necessidade de realizá-las. As brigas entre as duas tornaram-se cada vez mais frequentes, "coisa de bater de frente mesmo", como ela conta. Em uma outra ocasião em que estivemos juntas, Gisele havia mencionado os desgastes entre sua filha e o padrasto, um homem muito "rígido" que trabalha em uma oficina mecânica. Em resumo, o cotidiano em casa se dividiu entre as brigas da sua filha com o padrasto de um lado e, do outro, das vezes em que Gisele e a filha "batiam de frente". A mudança de Maysa para a casa do pai foi uma solução provisória, para "dar um tempo" nas contendas. Gisele explicou que sua saída de casa também era boa por outro motivo, "pra ela se dar conta do que é a casa do pai".

Ainda assim, Gisele conta sobre esse processo num misto de resignação com aflição. Ela está decidida, porém sua firmeza não elimina algumas sombras, "não tem muito como eu ficar tranquila...". As primeiras semanas na casa do pai se passam tal qual Gisele previu, a filha possui seus próprios horários e faz o que bem entende: "lá ela toca a vida dela como ela quer, o pai não cobra, ela não vai à escola". É no meio da mudança de casa que Gisele anuncia uma das preocupações centrais presentes no campo: "o medo da filha engravidar".17 17 Trajetórias como essas são exploradas no trabalho de Maria Luiza Heilborn (2006). Por conta desse medo, "que não sai da minha cabeça", todas as vezes em que encontra sua filha, procura fazer algum alerta, transmitir uma preocupação: "a amiga agora tá grávida, de treze anos, eu falei, 'olha aí! Vai vendo como isso acontece!'. Ela fala, 'mãe, quando eu fizer eu vou usar camisinha'" .

Gisele narra esses diálogos e, entre uma pausa e outra, dispara: "agora, vê se pode?". Aflita, segue descrente de que a filha consiga de fato "evitar uma gravidez". Gisele analisa as condições concretas das quais as meninas participam, "os meninos só querem saber de meter, você acha que ela vai conseguir colocar a camisinha nele?", pontuando as frágeis possibilidades de negociação do uso de preservativos entre jovens, especialmente sobre a responsabilidade dos meninos frente às suas capacidades reprodutivas. Ao final, Gisele reflete, implacável: "eu não tenho como colocar um cadeado na boceta dela! É complicado...".

Quando uma mulher cogita sobre a possibilidade de "colocar um cadeado na boceta da filha", tal enunciado pode soar exagerado. Entretanto, a imagem do cinto de castidade se atualiza como virtualidade, ecoando o ditado: "prendam suas cabritas que meu bode está solto!".18 18 Ditado popular. A evocação desse símbolo remete a uma necessidade de trancafiar a genitália feminina, indicando uma sexualidade compósita entre mães e filhas, nas quais as vivências sexuais entre duas gerações e trajetórias se encontram engendradas e correlacionadas de maneira mútua.

Se a imagem do cinto de castidade é, em muitos sentidos, exagerada, a reflexão receosa em torno da sexualidade das "novinhas" e das consequências do ato sexual faz parte das preocupações cotidianas nas quais as mulheres mães se veem enlaçadas. A preocupação com a possibilidade de a filha engravidar contrasta com os discursos de senso comum de que na favela não haveria uma preocupação com a reprodução das meninas jovens. Estamos num campo repleto de pavores que mobilizam mulheres das mais distintas maneiras a atuarem diretamente sobre o problema da reprodução feminina, mais especificamente, sobre uma sexualidade que deve ser controlada, com o objetivo de evitar o pior: uma "gravidez adolescente".

No contexto da sociedade indiana, a antropóloga Veena Das (2020)DAS, Veena. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo, Editora Unifesp, 2020. fala sobre algumas noções de lealdade presentes em relações familiares.19 19 Aqui, reportamo-nos ao trabalho de Veena Das e sua reflexão sobre as dimensões públicas e íntimas das experiências de gênero, violência e família para além da oposição ordinário e extraordinário. Em seu livro "Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário" (2020), a autora se interessa por como as pessoas habitam experiencias de violência nas suas relações mais íntimas. A partir dessa proposição, perguntamo-nos sobre as incertezas de vivenciar o dia a dia diante da irrupção do mal, que, no caso de Gisele e sua filha, é representado por uma gravidez "precoce". Mulheres que tomam conta devem aprender a habitar o lugar da confiança e do cuidado. Entretanto, há sempre a possibilidade de uma gravidez acontecer. Como esse medo é ancorado e assimilado na experiência do dia a dia? Estamos diante de relações tecidas entre aposta e hesitação, tão características das relações de cuidado. Incertezas vividas no interior das famílias são cruciais para expor um campo de dúvidas filosóficas dos sujeitos sobre as suas próprias realidades: "dúvidas que colocam o meu mundo em risco" (Das, 2020:14). O "medo de engravidar" se atualiza como uma sombra perturbadora, capaz de colocar o mundo em risco. As relações entre mães e filhas são permeadas por promessas e hesitações mútuas, desvelando situações nas quais se vivem momentos de aposta e risco. Assim é que o "medo de engravidar" se consolida sobretudo como um medo generificado e materno.

As mulheres mães das "novinhas" que engravidam são cobradas socialmente de duas maneiras, seja na ostentação da alegria de ter uma filha grávida, quando é o caso de "ficar feliz" com uma nova vida que chega na família, seja no fracasso de não ter conseguido controlar a reprodução da filha. Essas projeções sociais são dirigidas a pares e trios de mulheres, ligadas por linhas intergeracionais de expectativas, deveres, confianças e medos.

Em resumo, mulheres mães são alocadas como as principais guardiãs da conduta sexual das filhas. O controle da sexualidade das "novinhas" não fere somente a honra masculina (Pitt-Rivers, 1965), mas recai nas responsabilidades concretas das mães, que despontam como guardiãs da sexualidade. O produto do dever não cumprido é lido socialmente como "culpa das mães". Nesse raio de acusações, é preciso dizer que as possibilidades concretas de "guardar" a virgindade ou de "evitar engravidar" tornam-se uma tarefa árdua, realizada em um contexto de acessibilidade precária em relação aos serviços de saúde existentes.

A agência masculina nos processos de fazer a vida, como observado no léxico popular - "meter", "furar", "comer" e "engravidar" -, é obliterada durante as sucessivas etapas descritas. Homens se abduzem e são abduzidos em um complexo jogo de apagamento das responsabilidades masculinas na vida das mulheres e nos processos de fazer a vida e tornar o mundo habitável. Entretanto, apesar de apagados, é importante significá-los como ausências ativas nas redes de cuidado.

Entre a ostentação e a contenção. Sustentando ambivalências.

Ao longo deste texto, procurei acompanhar a tensão entre enquadramento e performance da qual as novinhas estão enredadas. O discurso social produzido em torno das jovens mostra uma lógica simultânea na qual estas são colocadas, ora no lugar de presas, ora no lugar de predadoras, apontando para um exercício da sexualidade que ao mesmo tempo que é provocadora também é frágil.

Por meio da questão da roupa, vimos como a justificativa para situações de abuso ou violência ocorre a partir da imputação de intencionalidade às jovens, consideradas com "pouca roupa" e por isso causadoras de desordens. Mulheres atentam para a capacidade das "novinhas" de sequestrarem seus maridos, roubarem as vagas nas creches e "causarem" na "boca" do tráfico armado, em uma dinâmica que aprofunda a rivalidade intragênero na batalha por estabilidade. Daí, emergem explícitos processos de racialização que atualizam um imaginário racial e colonial ao associar negritude e degenerescência sexual. A metáfora do "sangue quente", remete a atributos essencialistas e biológicos que são considerados potencialmente transmissores de uma sexualidade lasciva e capaz de reproduzir socialmente filhos indesejáveis.

Entendendo a colonialidade como um processo permanente, tal como proposto por McClintock (2010)MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, Editora da Unicamp, 2010., podemos compreender que a exploração de determinados territórios passa pelo controle dos corpos femininos e racializados, nos quais a sexualidade e a reprodução possuem lugar estratégico vital.20 20 No livro Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial, Anne McClintock (2010) reproduz o mapa do best-seller As minas do Rei Salomão. A autora reproduz um mapa feito pelo mercador português José da Silvestre. Com a imagem, somos apresentados a um território feminizado em sua topografia, marcado por linhas de gênero, raça e sexualidade. Ao longo de sua obra, a autora articula três temas investigados no livro: "a transmissão do poder masculino branco através do controle das mulheres, o surgimento de uma nova ordem global de conhecimento cultural e o comando imperial do capital mercantil" (2010:15). McClintock parte do contexto do imperialismo britânico e seu violento desmantelamento, marcados pelo domínio da Grã-Bretanha vitoriana e a luta pelo poder na África do Sul. Os enquadramentos realizados sob os corpos das "novinhas" projetam jovens lascivas e incontroláveis. As retóricas carregadas de delírios raciais e hiper sexualização nos conduzem ao imaginário de uma favela selvagem, que agrega componentes de luxúria, excesso e descontrole.

Vimos de que forma é sustentada a crença do descontrole masculino. Ensina-se que é preciso fugir dos padrastos aos 10 anos de idade ou evitar os olhares que possam suscitar a perturbação da ordem familiar. O controle do olhar masculino surge como uma necessidade de cuidado, um olhar que deve ser vigiado a fim de evitar a provocação dos homens adultos e a consequente ruptura de famílias devido a tragédias de parentesco. Os corpos das "novinhas" são enunciados como mobilizadores de rupturas e escolha entre relações filiais ou de aliança: trata-se de um corpo identificado como capaz de desfazer a família, corpo que apressa relações de aliança para fora do grupo.

As mães das novinhas se veem diante da impossibilidade de poder dizer que vão se tornar avós, assinalando o quanto a reprodução dos pobres é vista como um elemento indesejável e preocupante. Trata-se de uma sexualidade que deve ser evitada a todo custo, com o objetivo de evitar o pior: uma "gravidez adolescente". Nesse percurso, as mulheres mães são obrigadas a exercer a tarefa de guardiã da sexualidade das filhas, atualizando o elo inquebrantável entre mulheres, reprodução e geração.

Isso aponta para o fato de que as novinhas são múltiplas e evidencia que a tarefa de regulação dos seus corpos é coletiva. Elas estão relacionadas simetricamente as posições de "bandidos" e "drogados", numa dinâmica na qual a "novinha" e o "menor" engendram pânico morais e sociais. As "novinhas" também são responsabilizadas pela escassez dos serviços públicos, a exemplo da disputa sobre as vagas nas creches, num diálogo que aviva o eixo entre território, sexualidade e os marcadores sociais da diferença. As variadas formas de enunciação referidas a localidade e suas relações, tais como favela e/ou comunidade, consistem em uma importante categoria nesta análise, porque as representações sobre esses territórios compõem o imaginário da sexualidade "irresponsável" e "errada" que circula entre os agentes de Estado e os moradores.

Diante desse cenário, o conhecimento das "novinhas", ainda que permeado por muita fragilidade, não pode ser desprezado, uma vez que fornece alguns pontos de negociação das meninas em suas relações com os outros. Nas conversas que tive com grupos de "novinhas", elas falaram sobre questões sexuais que faziam parte de suas preocupações e desejos. Durante o sexo, algumas não usam preservativo, seja por falta de hábito ou porque esperam que os meninos tomem a iniciativa de o utilizar, o que nem sempre acontece. Nessas ocasiões, permanecem dias "morrendo de medo" ou simplesmente acreditam que "tudo vai dar certo".

Discutindo sobre as relações entre novinhas e homens mais velhos, elas afirmam que existe muita "novinha safada" que "sabe o que faz". Foi comum ver o acionamento da categoria da "pedofilia", que, por sua vez, era problematizada a partir de experiências e situações distintas. Chamou minha atenção o que seria uma versão permitida da "pedofilia" e sua explícita diferença em relação ao "estupro". Para algumas "novinhas", nem todas as situações de "pedofilia" podem ser configuradas como "estupro", porque a "novinha" em questão podia ter ciência e ter, segundo elas, "permitido". Ainda assim, elas atentaram para o fato de que, em alguns casos, a "pedofilia" poderia ser enunciada como "estupro", pois "pode não ser pra você, mas pra delegacia é", conforme me explica uma jovem de 15 anos de idade. Ainda nessa linha, elas afirmam que: "muita novinha sabe o que está fazendo ao procurar homens mais velhos".

Com o tempo, entendi que, de forma geral, a visão da moralidade local se alinha a essa percepção. Em situações que envolvem violências sexuais, mulheres adultas afirmam que: "a novinha provoca" oportunidades de apuros envolvendo adolescentes mais velhos ou homens adultos. Dizer isso não quer dizer que situações de violência sejam aceitas e que os homens estejam isentos de julgamentos. A carga moral sobre eles pode ser observada em situações nas quais as "novinhas" são mais próximas da idade de uma criança, "criança mesmo", a exemplo de uma tentativa de estupro ocorrida contra uma criança de 10 anos de idade.21 21 Aqui, cabe uma explicação acerca de categorias que são acionadas e possuem diferentes significados. Entre os interlocutores, o termo "pedofilia" é uma categoria mobilizada e diz respeito a relações sexuais e afetivas entre adultos e crianças. Embora o termo não denomine um tipo penal, ou seja, não há "crime de pedofilia", na dinâmica do senso comum, as relações entre adultos e "novinhas" podem ser lidas como "pedofilia". De modo semelhante às análises de Laura Lowenkron (2013), esse termo serve para falar de relações entre pessoas com grande diferença de idade, relações que se tornam moralmente questionáveis pela comunidade, família e vizinhança devido à assimetria geracional ou a outras fontes de tensão que não necessariamente dependem apenas da idade (disputa por recursos sociais e companheiros). Assim, apesar de não constituir uma tipificação penal em nosso ordenamento jurídico, a acusação de pedofilia por meio de rumores e fofocas pode servir como avaliador moral de comportamento e operar de forma difamatória. O termo "estupro", na concepção das jovens, está relacionado ao sexo penetrativo forçado e que envolve marcas de violência e resistência física.

Assim, existem meninas que não são reconhecidas como uma "novinha que afronta". Em situações como essas, as mães das "novinhas" podem ser responsabilizadas por "abusos" que as crianças sofreram, como certa vez uma interlocutora, mãe de duas filhas, comentou: "igual aquele caso, a menina com três anos e ele (o padrasto) estava chupando a boceta da criança, a mãe ao invés de ir na boca, não, deu tempo pra ele ir embora. Essa mãe é culpada, né?".

De forma simétrica às "novinhas", destaco a alusão a inúmeros "velhos" ao longo do trabalho de campo. Mulheres jovens apontavam quais eram seus "velhos" de contato. Estes homens podiam fornecer presentes, cuidados e dinheiro. As mulheres que tinham seus "velhos" não consideravam tais relações como "prostituição", mas como uma das maneiras de extrair um benefício material num contexto de escassez e pobreza (Piscitelli, 2009PISCITELLI, Adriana. Tránsitos: circulación de brasileñas en el ámbito de la transnacionalización de los mercados sexual y matrimonial. Horizontes antropológicos, v. 15, n. 31, 2009. https://doi.org/10.1590/S0104-71832009000100005
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). Para elas, a "prostituição" se realiza em outras escalas de troca, a exemplo das jovens que conheci e que se prostituíam em casas especializadas para tais práticas.

Finalmente, sobre o falado uso das "roupas curtas", elas defendem o uso das peças, pois, segundo elas, "é mais bonito". No tempo que passamos juntas e após muitas conversas com elas, tive a impressão de que a sexualidade das "novinhas" é vivida com momentos de prazer na ostentação dos corpos no espaço público e na provocação dos jogos sexuais, porém com a manutenção rígida da virgindade como modo de evitar a difamação. A coexistência da ostentação e da contenção conforma uma vivência de exaltação da sexualidade junto a práticas de regulação, medo e difamação dos desejos. O campo dos possíveis está marcado por relações sexuais ora satisfatórias, ora arriscadas do ponto de vista da negociação da contracepção, das doenças e da "vontade de fazer sexo".

Apesar das diferenças geracionais, mulheres mais velhas possuem dilemas muito similares aos das "novinhas". Questões como prazer sexual feminino no momento da transa, a exemplo do orgasmo, eram permeados por dificuldades consideráveis. Muitas meninas que haviam transado, por exemplo, disseram que não sentiam prazer orgástico. Acredito que a ostentação da sexualidade cantada no universo do funk quase sempre de maneira hiperbólica guarda relação com essa esfera na qual os prazeres sexuais ainda são vividos com muito conflito, escassez, contenção e dilemas morais. Isso não significa negar que situações verdadeiras de prazer ocorram, mas procuro apenas apontar que essas situações estão distribuídas de outras formas não tão dependentes dos atos sexuais em si ou do sexo penetrativo. Neste contexto, podemos entender que exibir os corpos é uma das modalidades de prazer seguro, ainda que permeado pela fofoca, julgamento e possibilidade de ataque. Finalmente, as conquistas, as cenas e a exploração da sexualidade são feitas em momentos de prazer sexual e estético, vividos num contexto de possibilidades de rotulação, mas composto por ousadias que demonstram coragem no exercício de uma sexualidade que "afronta" os acordos sociais estabelecidos.

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  • VIANNA, Adriana de Resende Barreto. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro, 1910-1920. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1999.
  • 1
    Durante a construção deste artigo, contei com a contribuição crítica e generosa de diferentes pessoas. Nesse sentido, agradeço a Laura Lowenkron (IMS/UERJ) pelas trocas e leituras em diferentes momentos. Agradeço a Adriana Piscitelli (UNICAMP), Natália Corazza Padovani (UNICAMP) e o conjunto de pesquisadoras do grupo de pesquisa coordenado por Adriana e Natália. Obrigada por todas as sugestões e pelo espaço gentil e acolhedor proporcionado durante os encontros virtuais na pandemia. Agradeço também a Carlos Eduardo Henning (UFG) e Júlio Assis Simões (USP) pelas contribuições valiosas realizada na ocasião da XIII RAM, em Porto Alegre. Finalmente, agradeço ao querido colega Prof. Dr. Kaciano Barbosa Gadelha, que tanto contribuiu para o amadurecimento das primeiras ideias presentes neste artigo. Kaciano nos deixou no ano de 2018 e este artigo é uma forma singela de registrar sua contribuição inestimável ao campo dos estudos de gênero, raça e sexualidade no Brasil.
  • 2
    Falo dos repertórios culturais presentes no imaginário popular, a saber, os produtos de propaganda e marketing que acionam a imagem da "novinha", seja em novelas, seja na figura de estrelas mirins apontadas como "sexualizadas" ou na presença constante da categoria "novinha" nas músicas.
  • 3
    Presença de Anita é uma minissérie de televisão realizada pela Rede Globo.
  • 4
    Exemplos dessa "sexualização da infância" podem ser observados em algumas "polêmicas" ocorridas no cenário da indústria cultural, como a que envolveu a cantora mirim de funk Melody. O pai da cantora, MC Belinho, foi indiciado pelo Ministério Público pelo "forte conteúdo erótico e de apelos sexuais" contidos nas apresentações e músicas da cantora. Sobre essa discussão, ver Senra (2015)SENRA, Ricardo. Ministério Público abre inquérito sobre “sexualização” de MC Melody. G1, 24/04/2015 [ http://g1.globo.com/musica/noticia/2015/04/ministerio-publico-abre-inquerito-sobre-sexualizacao-de-mc-melody.html - acesso em: 07 abr. 2023].
    http://g1.globo.com/musica/noticia/2015/...
    .
  • 5
    O termo "cultura do estupro" não é novo na literatura dos estudos de gênero. A categoria surge no contexto do feminismo da segunda onda nos Estados Unidos durante a década de 70. Falar em cultura do estupro remete a um conjunto de discursos e práticas que naturalizam a violência contra as mulheres. Uma segunda acepção do conceito tenta mostrar que, ao contrário do que o senso comum acredita, a prática do estupro é algo presente e naturalizado nas redes de proximidade das mulheres, tal como família, comunidade e trabalho. No Brasil, a categoria ganhou evidência a partir de caso de estupro coletivo perpetrado por 33 homens contra uma jovem moradora de uma favela do Rio de Janeiro no ano de 2016.
  • 6
    O morro do São Carlos e o morro da Mineira tratam-se de duas favelas situadas na Zona Norte do Rio de Janeiro. A Mineira é uma favela localizada no bairro do Catumbi, região central do Rio de Janeiro, enquanto que a favela do São Carlos situa-se no bairro do Estácio. As duas localidades estão situadas em áreas de grande movimentação na cidade, tais como as grandes obras de revitalização da Zona Portuária e de realização dos jogos olímpicos. Ademais, as favelas se situam próximas de dois espaços do poder público, a saber, a prefeitura do Rio de Janeiro, situada na Cidade Nova e o Palácio Guanabara, situado no bairro de Laranjeiras. De acordo com os moradores, o fato de ambas as favelas se situarem em meio a lugares de prestígio social e interesses político-econômicos faz com que as violências perpetradas pela militarização do território sejam silenciadas pelos principais veículos da mídia.
  • 7
    "Sentar" é uma gíria que significa fazer sexo.
  • 8
    Close" é a expressão para falar da pose para fotos e selfies (autorretratos).
  • 9
    A "barraca" se refere ao ponto de aluguéis de cadeiras de praia e comércio de bebidas que sua família possui na praia.
  • 10
    Conforme definição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
  • 11
    Abu-Lughod aborda como o uso do véu adquiriu um caráter sensacionalista nas coberturas midiáticas após o evento do 11 de setembro. Países como os Estados Unidos e a França fortaleceram uma retórica sobre a necessidade de "salvar as mulheres" das "garras do regime talibã". Nesse percurso apelativo, o hijab (véu) e a burca tornaram-se símbolos da dominação das mulheres islâmicas, vistas como essencialmente oprimidas, independentemente dos sentidos do uso dessas peças de roupas em cada localidade, da etnia dessas mulheres, de seus agenciamentos familiares ou condições de classe.
  • 12
    Essas imagens femininas são construídas na intersecção entre marcadores de raça, gênero e classe, fundamentais para entender a distribuição de posições sociais para mulheres negras. Durante a escravidão no Brasil colonial, Gonzalez mostra como os corpos das mulheres negras foram alvo de controle. A construção das figuras examinadas pela autora nos ajuda a pensar sobre dois tipos de rivalidade de sexo e gênero: uma que se dá no eixo intragênero masculino, entre homens brancos e homens negros - que, na cena colonial, competiam por relações afetivo/sexuais pelas mulheres negras, apesar de homens brancos estabelecerem oficialmente relações de aliança com mulheres brancas -; e outra, no outro eixo, que se refere à dimensão intragênero feminina, na qual mulheres competiam pela atenção de homens. Nesta última, a autora destaca uma rivalidade entre mulheres brancas e negras e outra somente entre mulheres negras (González, 1984).
  • 13
    A elegibilidade de um elemento estético em situações de violência é algo muito comum nas dinâmicas sociais e se encontra profundamente ancorado nas formas de avaliar, julgar e punir de nossas instituições, sobretudo aquelas voltadas à Justiça e à Polícia. Daniella Coulouris (2010)COULOURIS, Daniella Georges. A Desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro. Tese (Doutorado em Sociologia), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP), 2010. analisa processos de julgamento de estupro e demonstra como em muitos casos os operadores do Direito destacam o elemento da roupa que a mulher vestia no momento do estupro para julgar possíveis "incoerências" nos relatos das vítimas.
  • 14
    Consulta feita em sites musicais a partir do buscador Google.
  • 15
    A ausência de concordância entre o artigo "as" e a qualificação feita a seguir acerca das novinhas, aqui e em alguns exemplos seguintes, é intencional e reproduz a forma com que algumas letras cantam sobre "as novinhas" (sic).
  • 16
    No trabalho de Mariana Caetano (2015)CAETANO, Mariana Gomes. My pussy é o poder: Representação feminina através do funk: identidade, feminismo e indústria cultural. Tese (Doutorado em Cultura e Territorialidades), Instituto de arte e comunicação social, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2015. sobre a trajetória de Valesca Popozuda, a autora mostra como o tema da rivalidade entre mulheres, "seja por disputa de poder, de espaço, ou mesmo por disputar um homem", é acionado como mecanismo para deslegitimar as cantoras de funk, que seriam acusadas de estimular a competição entre mulheres reais (Caetano, 2015CAETANO, Mariana Gomes. My pussy é o poder: Representação feminina através do funk: identidade, feminismo e indústria cultural. Tese (Doutorado em Cultura e Territorialidades), Instituto de arte e comunicação social, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2015.:151).
  • 17
    Trajetórias como essas são exploradas no trabalho de Maria Luiza Heilborn (2006)HEILBORN, Maria Luiza et alii. (org.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro, Editora Garamond/Editora Fiocruz, 2006..
  • 18
    Ditado popular.
  • 19
    Aqui, reportamo-nos ao trabalho de Veena Das e sua reflexão sobre as dimensões públicas e íntimas das experiências de gênero, violência e família para além da oposição ordinário e extraordinário. Em seu livro "Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário" (2020), a autora se interessa por como as pessoas habitam experiencias de violência nas suas relações mais íntimas. A partir dessa proposição, perguntamo-nos sobre as incertezas de vivenciar o dia a dia diante da irrupção do mal, que, no caso de Gisele e sua filha, é representado por uma gravidez "precoce". Mulheres que tomam conta devem aprender a habitar o lugar da confiança e do cuidado. Entretanto, há sempre a possibilidade de uma gravidez acontecer. Como esse medo é ancorado e assimilado na experiência do dia a dia? Estamos diante de relações tecidas entre aposta e hesitação, tão características das relações de cuidado.
  • 20
    No livro Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial, Anne McClintock (2010)MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, Editora da Unicamp, 2010. reproduz o mapa do best-seller As minas do Rei Salomão. A autora reproduz um mapa feito pelo mercador português José da Silvestre. Com a imagem, somos apresentados a um território feminizado em sua topografia, marcado por linhas de gênero, raça e sexualidade. Ao longo de sua obra, a autora articula três temas investigados no livro: "a transmissão do poder masculino branco através do controle das mulheres, o surgimento de uma nova ordem global de conhecimento cultural e o comando imperial do capital mercantil" (2010:15). McClintock parte do contexto do imperialismo britânico e seu violento desmantelamento, marcados pelo domínio da Grã-Bretanha vitoriana e a luta pelo poder na África do Sul.
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    Aqui, cabe uma explicação acerca de categorias que são acionadas e possuem diferentes significados. Entre os interlocutores, o termo "pedofilia" é uma categoria mobilizada e diz respeito a relações sexuais e afetivas entre adultos e crianças. Embora o termo não denomine um tipo penal, ou seja, não há "crime de pedofilia", na dinâmica do senso comum, as relações entre adultos e "novinhas" podem ser lidas como "pedofilia". De modo semelhante às análises de Laura Lowenkron (2013)LOWENKRON, Laura. Da materialidade dos corpos à materialidade do crime: à materialização da pornografia infantil em investigações policiais. Mana, v.19, n.3, 2013, pp.505-528., esse termo serve para falar de relações entre pessoas com grande diferença de idade, relações que se tornam moralmente questionáveis pela comunidade, família e vizinhança devido à assimetria geracional ou a outras fontes de tensão que não necessariamente dependem apenas da idade (disputa por recursos sociais e companheiros). Assim, apesar de não constituir uma tipificação penal em nosso ordenamento jurídico, a acusação de pedofilia por meio de rumores e fofocas pode servir como avaliador moral de comportamento e operar de forma difamatória. O termo "estupro", na concepção das jovens, está relacionado ao sexo penetrativo forçado e que envolve marcas de violência e resistência física.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2022
  • Aceito
    21 Mar 2023
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