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Capitão Gay: um super-herói homossexual apesar da Ditadura Militar*

Captain Gay: a homosexual superhero despite the Military Dictatorship

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar o super-herói Capitão Gay, personagem interpretado por Jô Soares nos anos 1980, considerando sua emergência e inserção televisiva num contexto de repressão às homossexualidades perpetrada no período da ditadura militar brasileira, focalizando os elementos que lhe conferiram fama e as tensões acerca da fronteira entre jocosidade e artivismo, suscitadas a partir das suas performances de gênero. Metodologicamente são utilizadas como fontes reportagens na grande imprensa, entrevistas e alguns episódios desse personagem disponíveis na internet. A pesquisa fundamenta-se nos estudos de gênero, homossexualidades e imprensa.

Capitão gay; Homossexualidades; Humor; Ditadura militar

Abstract

The purpose of this article is to analyze the superhero Captain Gay, character played by Jô Soares in the 1980s, considering its emergence and television insertion in a context of repression of homosexualities perpetrated during the period of the Brazilian civil-military dictatorship, focusing on the elements that made him famous and the tensions about the border between playfulness and artivism that arose from his gender performances. Methodologically are used as sources news reports in the big press, interviews and some episodes of this character available on the internet. The research is based on studies of gender, homosexuality and the press.

Captain gay; Homosexuality; Humour; Military dictatorship

Gay quer dizer alegria, euforia, eu sou o primeiro super-herói gay,

alegre, da história em quadrinhos. Entendeu, pessoooaaa?

E eu sou gay, tá sabendo!?

Capitão Gay, 1982

Considerações iniciais

Em 1981, José Eugênio Soares, mais conhecido como Jô Soares, foi contratado para apresentar um programa de humor na Rede Globo de Televisão. Humorista, ator, apresentador, dramaturgo, escritor, tradutor, dentre outras profissões compõem o vasto currículo de Jô. Poliglota e com um nível cultural erudito, construiu uma carreira de destaque. Nos anos 1980 já era conhecido por ter participado de outros projetos na televisão. No começo dessa década assumiu um programa chamado Viva o Gordo, que tinha origem numa peça teatral que apresentava, chamada Viva o Gordo e Abaixo o Regime, no qual fazia críticas ao governo militar (Memória, 2020).

Diferentes personagens foram representados por Jô Soares nesse programa, como: Bô Francineide (atriz de pornochanchada), Reizinho (monarca de estatura baixa), Sebá (um exilado do Brasil em Paris), Zé da Galera (torcedor fanático da seleção brasileira), Vovó Naná (velhinha que tentava uma vaga na televisão), dentre outros. Um desses personagens que obteve grande destaque foi o Capitão Gay, um super-herói semelhante àqueles das histórias em quadrinhos, que, ao ser chamado, resolvia os problemas das pessoas oprimidas junto de seu ajudante, Carlos Suely. Esse super-herói homossexual vestia um collant cor de rosa e sobre ele um colete preto que se estendia até a parte inferior. Usava um cinto prata que combinava com a sua capa de mesma cor. Portava luvas cor de rosa que se estendiam até o antebraço e botas prateadas com um pequeno salto. Tinha como adereços um par de algemas logo abaixo do pescoço, utilizada para prender a capa que estava rodeada de plumas brancas na parte superior, em volta de seu rosto. Seus lábios estavam marcados por um batom escuro e trajava uma máscara purpurinada em torno dos olhos.

Esse personagem utilizava uma linguagem bastante efeminada, com palavras do dialeto partilhado por alguns homossexuais, bem como expressava trejeitos que estavam marcadamente sintonizados ao estereótipo difundido sobre essas pessoas. Sua aparição pública, a partir dessa grande mídia, tornou-o conhecido; no entanto, a intensa defesa da “moral e dos bons costumes” da época colocava entraves para a visibilidade desse personagem calcado na figura de um herói gay. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é analisar o super-herói Capitão Gay, considerando sua emergência e inserção televisiva num contexto de repressão às homossexualidades perpetrada no período da Ditadura Militar brasileira, focalizando os elementos que lhe conferiram fama e as tensões acerca da fronteira entre jocosidade e artivismo, suscitadas a partir das suas performances 1 1 É preciso destacar a distinção entre performatividade de gênero e performance de gênero, segundo Butler. Para a autora a performatividade diz respeito a um discurso construído que estabelece as normas atribuídas às pessoas, nesse sentido, a expressão performativa de gênero por parte dos sujeitos vai se operar a partir da repetição das possibilidades oferecidas por esse discurso dominante, não se tratando de um determinismo biológico nem cultural. A performance, por outro lado, é a expressão de gênero intencional a partir da ciência da expressão de gênero atribuída a determinados grupos, como o exemplo das drags . A performance do Capitão Gay também é entendida nesse sentido, uma vez que a representação dominante dos gays, de forma estereotipada, é intencionalmente expressada pelo personagem. de gênero ( Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 13. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017. Tradução de Renato Aguiar. ). Metodologicamente são usadas como fontes as matérias publicadas na grande imprensa nacional, entrevistas e episódios desse personagem disponíveis na internet. A análise está embasada nos estudos de gênero, homossexualidades e imprensa.

O artigo é dividido da seguinte forma: na primeira parte discutem-se brevemente alguns elementos daquela conjuntura para entender o contexto em que o Capitão Gay foi inserido; na sequência é historicizado o programa, suas principais características e a publicização desse super-herói em notícias da imprensa, especialmente na revista Veja , valendo-se também de depoimentos e entrevistas dos atores, bem como de episódios centrados na figura desse personagem; a terceira parte deste artigo discute os limites e tensões na fronteira entre o uso do humor como uma representação do estereótipo homossexual e/ou como um artivismo gay, suscitados a partir da visibilidade e fama desse personagem.

Uma ditadura dos “bons costumes” e a repressão às homossexualidades

Em meio às diferentes formas de repressão, discriminação, censura e estigmatização às sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade como parte de uma política sexual perpetrada no período da Ditadura Militar brasileira ( Quinalha, 2017QUINALHA, Renan Honório. Contra a moral e os bons costumes: A política sexual da ditadura brasileira (1964-1988). Tese (Doutorado em Relações internacionais), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017. ), surgiram movimentos sociais a partir da segunda metade da década de 1970 que reivindicaram direitos e respeito, sobretudo, a diferentes grupos de pessoas marginalizadas pelas políticas públicas e por boa parte da sociedade. Um desses movimentos foi o homossexual, mobilizando, por meio de seu ativismo político, a positivação dessa sexualidade e/ou forma de experienciar seus prazeres afetivo-sexuais que eram vistos como patológicos pela área médica brasileira, inferiorizados socialmente por diferentes entendimentos que tinham grande respaldo da interpretação dominante da religião cristã difundida no país e no Ocidente como um todo.

Nessa temporalidade, em especial, cresceu a adesão ao tema da homossexualidade, não só pela formação de um grupo ativista, mas também pela discussão do tema na grande imprensa nacional ( Martinelli, 2019MARTINELLI, Leonardo da Silva. “Um gay power à brasileira”: Veja e a representação dos homossexuais em meados de 1977. Aedos, v. 11, n. 24, Porto Alegre, ago. 2019, pp.164-188. ) e na imprensa alternativa, sinalizando que não era possível omitir e/ou silenciar essas pessoas. Apesar de alguns esforços em intentar e desejar empurrá-las para as margens da sociedade, como ocorreu com as questões dos direitos sociais, elas estavam inseridas no interior da sociedade, podiam ser vistas, pertenciam a diferentes camadas sociais, grupos étnicos, sendo que algumas tornavam pública sua sexualidade, seus prazeres, e outras a ocultavam em razão dos obstáculos impostos às suas vivências. Entretanto, a defesa da “moral e dos bons costumes” no período e as ferramentas usadas com a finalidade de interdição dessas transformações, permitiram perpetrar um aparato censor sobre esse tema tanto na imprensa ( Marconi, 1980MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira (1968-1978). São Paulo, Global Editora, 1980. ; Smith, 2000SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. Tradução de Waldívia M. Portinho. ; Almeida, 2009ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo, Jaboticaba, 2009. ; Aquino, 1999AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa e Estado Autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência - O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru, EDUSC, 1999. ) quanto nas diversões públicas por meio do Departamento de Censura das Diversões Públicas ( Quinalha, 2020QUINALHA, Renan Honório. Censura moral na ditadura brasileira: entre o direito e a política. Revista Direito e Práxis, v. 11, n.3, Rio de Janeiro, 2020, pp.1727-1755. ).

Esse período, entre os anos 1970 e 1980, também foi marcado pelo o que Souto Maior Jr. (2019) chamou de “tempo de assumir”, época em que o termo homossexual passou a ser difundido e demandou das pessoas o reconhecimento para assumi-lo, afinal, era o nome dado para aquilo que “eram”, desejavam, devendo reconhecer-se como tal, e outras pessoas os identificavam nessa categoria. Esse entendimento da homossexualidade repousava numa ideia de um fundacionismo biológico, usando uma expressão discutida por Linda Nicholson (2000)NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Revista Estudos feministas, v. 8, n. 2, Florianópolis, 2000, pp.9-41. , na qual era considerado que essas pessoas eram gays, lésbicas e travestis por razões naturais, sendo que esta identidade geral foi apropriada pelos movimentos sociais, repousando nessa visão essencialista. Para Souto Maior Jr. (2019:70): “Constituir-se homossexual passava por uma dupla encruzilhada: reconhecer-se no conceito de homossexualidade e vestir essa máscara que lhe era oferecida, aceitá-la, chamá-la de sua”.

A partir daí a apropriação dessas compreensões e do assumir-se, impulsionadas também pela ação da imprensa, contribuíram para a visibilidade homossexual na medida em que esse tema e sua positivação adquiriram um caráter de ineditismo, que de um lado podia ser criticado, mas de outro também gerava curiosidade, visto que algumas pessoas homossexuais começaram a aparecer em espaços antes cerceados. João Silvério Trevisan (2000)TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 3a ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro, Record, 2000. destaca que por tratar-se de um tema polêmico, a homossexualidade suscitava o interesse das pessoas, aumentando assim a audiência dos programas e as vendas.

Nos anos 1980, especialmente, grupos de esquerda2 2 Se entende os grupos de esquerda como aqueles que eram compostos por pessoas e partidos políticos que desejavam mudanças na sociedade brasileira: o fim da Ditadura Militar, a defesa da democracia e do direito ao voto, sendo também favoráveis às pautas em favor da população carente, dos trabalhadores e trabalhadoras, dos direitos humanos, das minorias, do feminismo, dentre outras. Não era um grupo coeso, cuja centralidade da luta podia estar em torno de algum componente específico e dividir opiniões acerca de alguns temas, mas foi modificando-se essa forma de pensamento abarcando uma ação coletiva que passou a ser difundida. Para saber mais a respeito das contradições que os termos direita e esquerda suscitam ver ( Bobbio, 1995 ). passaram a articular essas demandas sociais numa luta conjunta, não apenas em nome da luta maior centrada na questão de classe. No entanto, não se pode generalizar essa adesão, pois certamente essa inclusão não era bem aceita por todas as pessoas, mas representou um avanço, tendo em vista que o tema da homossexualidade era rejeitado pelo viés comunista dominante, como lembram Quinalha (2017)QUINALHA, Renan Honório. Contra a moral e os bons costumes: A política sexual da ditadura brasileira (1964-1988). Tese (Doutorado em Relações internacionais), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017. e James Green (2018)GREEN, James N. Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. . Grupos de direita3 3 Se entende os grupos de direita como sendo aqueles compostos por pessoas e partidos políticos favoráveis ao governo autoritário da Ditadura Militar. Desejavam conservar a estrutura social tida por tradicional, mantendo em funcionamento a defesa da moral e dos bons costumes cristãos, sobretudo na aparência pública, da família entendida conforme o modelo burguês e patriarcal, compactuando com o modelo neoliberal em ascensão. Também não era um grupo coeso e havia divergências internas em relação às pautas. não aderiram à positivação da homossexualidade por afrontar a “moral e os bons costumes” do ideal de família burguesa e cristã presente no discurso ufanista propagado, apesar de que na prática tal expectativa não se materializava, permanecendo forte e representativa somente no campo idealista e de aparência pública. Ney Matogrosso já mostrava por meio de suas canções, no começo da década de 1980, as contradições dessa moralidade. Perguntava e respondia: “O que a gente faz? É por debaixo dos panos, pra ninguém saber ...”. E mais à frente, prosseguia: “É debaixo dos panos que a gente esconde tudo e não se fica mudo e tudo quer fazer, é debaixo dos panos que a gente comete um engano sem ninguém saber, é debaixo dos panos que a gente entra pelo cano sem ninguém ver...” ( Cecéu, 1982CECÉU. Por debaixo dos panos. In: MATOGROSSO, Ney. Álbum Mato Grosso. Rio de Janeiro: Polygram Discos, 1982. LP, faixa 3, lado A, 3’ 35’’ [https://www.youtube.com/watch?v=G9q0OuLh8kA - acesso em: 03 fev. 2022].
https://www.youtube.com/watch?v=G9q0OuLh...
).

É possível que dissidências internas nesses grupos também se fizessem presentes, no entanto, a visibilidade desses entendimentos era propagada. Mas para além desses grupos citados, na década de 1970 também emergiu um chamado “desbunde gay” entre os jovens, que fazia parte da ideia de uma liberalização individual e/ou solidariedade que não era alinhada nem à ideologia da esquerda nem da direita da época, tampouco partidária, e que era associada ao uso de drogas, à androginia e à homossexualidade ( Trevisan, 2000TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 3a ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro, Record, 2000. ).

Essa breve caracterização daquela conjuntura se faz necessária porque é nesse cenário que o super-herói Capitão Gay vai ser inserido e é com base nesses entendimentos partilhados e nas divergências de olhares entre os grupos citados e a população em geral que se dará sua recepção pelo público, não isenta de críticas mesmo entre homossexuais. São essas transposições de significados a partir dos usos do humor que apontam ser um componente decisivo para a visibilidade pública e midiática desse personagem, muito profícuas para compreender o seu sucesso.

O surgimento do Capitão Gay na televisão

O Capitão Gay era um dos personagens exibidos no programa Viva o Gordo da Rede Globo de Televisão. O programa contava com um elenco numeroso e teve como redatores ao longo de sua exibição (09/03/1981-15/12/1987): Max Nunes, Afonso Brandão, Hilton Marques, José Mauro, Luis Fernando Verissimo, Carlos Ferreira e Armando Costa, sendo que uns foram integrados após a saída de outros. A direção estava a cargo de Cecil Thiré, Francisco Milani e Walter Lacet. O programa ia ao ar nas segundas-feiras às 21h10min, no entanto, em 1983 passou para as terças, às 21h30min, e a partir de 1984 voltou a ser apresentado nas segundas, às 21h30min. No ano de 1987, Jô Soares não renovou o seu contrato com a emissora, findando o programa Viva o Gordo. (Memória, 2020).

Numa entrevista concedida ao apresentador Pedro Bial, no programa Conversa com Bial , da Rede Globo de Televisão, Jô Soares destacou que o Capitão Gay quase não foi ao ar em razão da censura presente no período de Ditadura Militar, e que foi mantido na programação mesmo sabendo que poderia haver represálias (Jô Soares, 2018). No entanto, o programa acabou obtendo grande sucesso por seu entretenimento.

O Capitão Gay tinha um parceiro chamado Carlos Suely, que segundo Trevisan (2000TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 3a ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro, Record, 2000.: 308) “era autodefinido como 20% Carlos e 80% Suely”. Tratava-se de um personagem negro, magro e alto, que usava uma peruca afro de cor azul e tinha uma voz efeminada, parodiando a fechação do universo homossexual4 4 O “universo homossexual” é entendido como um espaço físico, mas também imaginado e partilhado por pessoas homossexuais que dividem experiências, afetos, constroem linguagens de comunicação, constituindo subculturas singulares. No entanto, esse universo não é pré-existente, mas construído e reconstruído constantemente e é um território no qual são engendradas relações de poder. Nem todas as pessoas homossexuais fazem parte dele, por diferentes razões, sendo que internamente também são operadas discriminações. , que segundo Edward MacRae (2018MACRAE, Edward. Os respeitáveis militantes e as bichas loucas. In: MACRAE, Edward. A construção da solidariedade: política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador, EDUFBA, 2018, pp.37-49.: 44): é “uma expressão de gíria homossexual que se refere a um comportamento caricato, desmunhecado e escandaloso”. O personagem Capitão Gay dizia que ele era filho do “homem mosca com a mulher aranha”. Juntos, ambos resolviam os problemas “que nenhum homem e nenhuma mulher podiam resolver” ( Trevisan, 2000TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 3a ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro, Record, 2000.: 308).

Os personagens reproduziam narrativas semelhantes a dos super-heróis das histórias em quadrinhos, como Batman e Robin. Eram pessoas comuns que, ao ouvir a proclamação: “Capitão Gay!”, transformavam-se nos heróis e direcionavam-se para atender ao chamado. É interessante observar que o dia a dia dessas pessoas estava vinculado à questão moral, como sinaliza um dos episódios analisados. O comendador Gouveia (Capitão Gay) e seu secretário Leopoldo (Carlos Suely) trabalhavam em um escritório no alto de um edifício do centro da cidade, sendo que um mapa ao fundo explicitava o distrito de Manhattan, em Nova York. Gouveia menciona ao seu secretário que teria uma conferência “na sede da Liga a favor da moralidade”, demonstrando terem uma postura disciplinada, pudica. (Capitão Gay, 1981).

De acordo com Áureo Busetto (2020)BUSETTO, Áureo. “Defensor das minorias e contra as tiranias”: o Capitão Gay no humor televisivo e entre tentativas de (auto)censura e a cobrança de royalties. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 13, n. 1, jan.-jul. 2020, pp.242-274. , não foi criada uma cidade fictícia onde residiam os super-heróis, mas também não foi escolhida uma cidade brasileira, pois no seu entendimento ela poderia ser associada à figura do Capitão Gay e vir a ser alvo de algum tipo de estigma por parte da população. É interessante observar que a identidade real do super-herói era de um senhor de terno e gravata que foi identificado como comendador Gouveia. Essa palavra “gouveia” pode fazer referência a um termo usado desde a segunda década do século XX, no Brasil, que significava um homem mais velho que tinha interesse por rapazes mais jovens ( Green, 2019GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. 2a ed. São Paulo, Ed. Unesp, 2019. ).

Esses personagens, ao ouvirem o chamado de alguém necessitado, brandiam seu bordão – Cansei! – e transformavam-se nos super-heróis. Mikhail Bakhtin (1997)BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo, Martins Fontes, 1997. nos ajuda a entender essa enunciação, entonada de forma expressiva e irônica, que estabelecia a comunicação verbal e suscitava uma compreensão responsiva ativa por parte dos ouvintes, na medida em que se consideram estes elementos à situação que molda esse gênero do discurso, ou seja, possibilitava o questionamento do público diante do uso recorrente dessa expressão, afinal, se o super-herói estava cansado e pronunciava a palavra como um bordão, o público devia questionar-se: cansou de quê? Não se tratava de uma palavra qualquer, mas de um verbo de ação que sinalizava o cansaço dos personagens ante uma situação moralista, de aparência pública, em conformidade com aquilo que era esperado por meio de uma postura recatada, valorizada socialmente. De um lado sinalizava a opressão verticalmente imposta de forma coercitiva às pessoas, aos homens nesse caso, que escondiam suas aventuras e desventuras e posteriormente retornavam com aquele semblante de que nada havia acontecido; mas, especialmente, aos gays que não assumiam publicamente sua homossexualidade e “se disfarçavam” por trás de uma imagem cisgênero e heteronormativa.

Deve-se recordar que esse período estava marcado pelo “tempo de assumir”, conforme Souto Maior Jr. (2019), e que se esperava dessas pessoas essa autonomeação e apresentação pública. Entretanto, diferentes marcadores sociais interseccionais também atuavam como entraves para que elas pudessem reconhecer-se nessa identidade. Nesse sentido, havia singularidades oriundas da agência dessas pessoas em meio a negociação do uso de seus prazeres homoeróticos no interior da cisheteronormatividade.

O Capitão Gay reunia características que proporcionavam o riso. Além das performances e vestimentas que usava, tinha a língua presa e, como tal, dificuldades ao pronunciar as palavras com a letra “r”, sendo usada num roteiro que tornava a história contada mais engraçada. Uma das palavras apropriadas por seu vocabulário era “pessoa”, usada de uma forma debochada para se referir ao interlocutor, não revelando seu sexo e/ou gênero. Mas no contexto em que era empregada, como um elemento visível atribuído ao universo homossexual, suscitou repreensões, como num episódio em que o Capitão Gay foi indagado por um personagem homem com quem contracenava: “o que que [sic] quer dizer esse tal de Capitão Gay?”, sendo que após ouvir a resposta, disse para acabar com as brincadeiras porque era um homem sério, ao que o super-herói de forma debochada respondeu: “Não existe pessoa séria, o que você é, é um alegre enrustido” (Capitão Gay, 1982a).

Num dos episódios analisados, ao ser evocado, o Capitão Gay apresentou-se: “Gay de alegria, gay de assumido, gay de contra as tiranias, gay de super-herói [...]” (Capitão Gay, 1982b). O personagem trazia à tona não somente a alegria que podia estar subentendida pelo trocadilho no uso da palavra gay, mas também de sua apropriação pelo movimento homossexual estadunidense, sobretudo, vindo a difundir-se como uma terminologia em referência aos sujeitos homossexuais como um todo, identificando-se ou não por meio desta palavra. A ideia de “assumido” denota a incorporação de tal identificação, como homossexual, assim como pontuou Souto Maior Jr. (2019). Alguns grupos ativistas em favor da homossexualidade não usavam o neologismo “gay”, como o Somos , em São Paulo, ou o jornal Lampião da Esquina , preferindo a expressão “guei”, ao passo que outros a utilizaram, como o Grupo Gay da Bahia (GGB), fundado em 1980.

A visibilidade desse personagem na televisão brasileira o tornou notícia na grande imprensa nacional, como se constatou na revista Veja . Na seção Televisão, em 1982, Artur Xexéo assina um artigo intitulado “A hora do magro: comparado com Jô, Chico Anysio sai na frente”. Nesta publicação Artur Xexéo (1982:88) destaca que a qualidade dos textos dos dois humoristas era distinta: “os de Chico Anysio são simplesmente mais engraçados. Jô parece cada vez mais preocupado em criar personagens exuberantes e suas invenções para este ano são engraçadíssimas. É o caso do delirante Capitão Gay, super-herói desmunhecado [...]”. O programa de Chico Anysio era o Chico Anysio show exibido nas quintas-feiras à noite.

A comparação entre ambos os humoristas explicitada nessa matéria sugere uma relativa inferiorização dos personagens de Jô, sendo que uma ilustração do Capitão Gay acompanhou o artigo, tendo como legenda: “Jô como Capitão Gay: um super-herói desmunhecado”. Essa crítica e ênfase a esse personagem, reunida a partir dos recursos narrativos e imagéticos inseridos, sinalizam para uma rejeição de público diante desse tipo de humor, respaldada pela atribuída queda de pontos no Ibope mencionada na matéria.

Quatro meses depois dessa publicação, outra menção ao Capitão Gay foi publicada na revista Veja . Desta vez, na seção “Gente”. Diferentemente da publicação anterior, esta destacava o sucesso do personagem:

O sucesso do Capitão Gay e de seu secretário, Carlos Suely, se tornou tão grande que o humorista Jô Soares, 44 anos, resolveu dar a eles espaço maior do que o quadro semanal no programa Viva o Gordo , da TV Globo. Já começa a produzir um compacto com o hino da dupla, para a gravadora Som Livre, e tem planos para fazer com eles um filme infantil. “As crianças são as mais fervorosas admiradoras do Capitão Gay”, conta Soares. Apesar dos modos andróginos do personagem, o humorista não vê nisso uma contradição, “Quando criei o Capitão Gay, pensei no público infantil”, diz ele. “Criança se identifica com super-heróis. Por isso, fiz tudo com loucura, mas sem perder a pureza” ( Gente, 1982GENTE. Veja, São Paulo, n. 724, 21, jul. 1982, pp.103.: 103, grifo do autor).

A canção da dupla de heróis foi gravada (Capitão Gay & Carlos Suely, 1982) e parte da letra dizia:

Abaixo o machismo enrustido (Gay!)

E viva, viva, viva a nova lei (Gay!)

Seja logo alegre e assumido (Gay!)

Como o novo herói Capitão Gay!

Quem é o defensor das minorias? (Gay!)

Que é sempre contra as tiranias? (Gay!)

É avião ou passarinho sem rabicho? (Gay!)

Ou se parece mais com outro bicho?

É o Capitão Gay, Gay, Gay!

Capitão Gay uuuhhh

Capitão Gay, (vai Suely!) Capitão Gay...

Ao analisar a letra, pode-se observar que na primeira estrofe é enfatizada a necessidade de derrubar o “machismo enrustido”, ou seja, aquele sistema que coloca o macho, homem, como se fosse superior às demais pessoas, de forma hierárquica, e o seu enrustimento, que pode ser entendido como o falso moralismo, no discurso, nas aparências, simulando uma postura pudica, como a história retratada dos personagens, distinguindo sua identidade real do dia a dia, daquela que escondiam. Mas também é possível aventar que questionasse o machismo de gays enrustidos que reproduziam esse sistema opressor.

Essa “nova lei” podia sinalizar a nova conjuntura de transformações em que a homossexualidade estava sendo positivada e defendida de forma mais intensa, bem como a demanda feita pelos movimentos ativistas homossexuais para que assumissem essa identidade. É aí que o trocadilho de significados acerca da palavra gay é imbricado: “Seja logo alegre e assumido”; ou seja, além da compreensão de alegria atribuída a essa palavra, esse neologismo também passou a ser sinônimo de homossexual, logo parece ser um chamamento para que fossem assumidos, não omitissem sua sexualidade e/ou esse uso dos prazeres afetivo-sexuais, a exemplo do super-herói Capitão Gay – alegre e assumido!

A segunda estrofe, por sua vez, parece estar mais atrelada às reivindicações dos movimentos sociais por mais direitos, sendo um “defensor das minorias”, grupo no qual as pessoas homossexuais estavam (e ainda estão) inseridas, e lutando “contra as tiranias” da sociedade, contra quaisquer segmentos que precisassem. É interessante recordar que na década de 1980 esse discurso de minorias estava bastante em voga, sinalizando o agrupamento de movimentos em torno de lutas sociais. De maneira geral, “minoria constitui um grupo de sujeitos que, quando comparado a outro, apresenta desvantagens em relação ao acesso à igualdade devido às suas condições físicas e/ou culturais” ( Pereira, 2020PEREIRA, João Lenon Siqueira. Somos todos minorias: mulheres, negros e indígenas nas páginas de Lampião da Esquina (1978-1981). Dissertação (Mestrado em História), Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.: 55).

No final da estrofe, a menção a “avião ou passarinho sem rabicho” pode fazer alusão a outro personagem de história em quadrinhos (HQ). Conforme Busetto (2020BUSETTO, Áureo. “Defensor das minorias e contra as tiranias”: o Capitão Gay no humor televisivo e entre tentativas de (auto)censura e a cobrança de royalties. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 13, n. 1, jan.-jul. 2020, pp.242-274.: 255), esta associação era com o Super-Homem, num seriado produzido desde a segunda metade da década de 1950, nos Estados Unidos, cuja entrada dizia: “É um avião? É um pássaro? Não. É o Super-Homem!”. Além disso, a rima que acompanhou essa expressão era “ou se parece mais com outro bicho”, possivelmente uma alusão ao veado. Uma alteração na pronúncia dessa palavra ( viado ) tornou-se uma forma de identificar homossexuais. Sua origem pode estar presente desde 1920, ou até mesmo antes, segundo Green (2019)GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. 2a ed. São Paulo, Ed. Unesp, 2019. . O refrão da canção explora a figura do Capitão Gay e uma aparente efeminação a partir das possíveis performances dançantes da dupla, provavelmente semelhante à exibida nos trechos dos episódios em que foram protagonistas.

A respeito do sucesso dessa canção, João Silvério Trevisan conta uma história que presenciou: “Era especialmente hilariante e, sem dúvida, irônico encontrar na vizinhança, como me aconteceu, grupos de garotinhos que brincavam enquanto cantarolavam em conjunto o ‘Rock do Capitão Gay’, então um grande sucesso em disco” (2000:308, grifo do autor). Para além das possíveis brincadeiras em que os envolvidos se divertiam, a música e a expressão “gay” também podiam ser usadas como uma forma de discriminação direcionada a crianças identificadas como homossexuais, sendo que socialmente essa menção trazia à tona a significação negativa atribuída às pessoas integrantes desse grupo – fossem adultas ou crianças, o estigma era direcionado a ambas. Ainda, é possível aventar que algumas crianças se identificavam com o super-herói, no entanto, é provável que os pais e/ou responsáveis tentassem ludibriá-las, tendo em vista as diferentes pedagogias para evitar que sua prole fosse homossexual, pois, além da discriminação, seriam vistas como doentes na época.

Para além desse destaque, Busetto (2020)BUSETTO, Áureo. “Defensor das minorias e contra as tiranias”: o Capitão Gay no humor televisivo e entre tentativas de (auto)censura e a cobrança de royalties. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 13, n. 1, jan.-jul. 2020, pp.242-274. aponta outros elementos que reiteram a visibilidade desse super-herói, como: pessoas das grandes cidades vestindo camisetas com estampa do Capitão Gay; bonecos artesanais do personagem vendidos na Feirinha Hippie de Ipanema; fantasias disponíveis no carnaval de 1983; destacando, inclusive, o caso de um padre que desfilou no carnaval, em Pelotas/RS, fantasiado de Capitão Gay, mesmo sendo repreendido pela Igreja. Esses exemplos demonstram a grande visibilidade que o personagem teve no cenário nacional.

Na entrevista que Jô Soares concedeu ao apresentador e jornalista Pedro Bial, lembrou-se de um episódio que precisa ser mencionado. Ao fazer um show no Recife, Jô recebeu uma ligação de um candidato gay que queria convidar o Capitão Gay para subir no palanque junto de seu “correligionário, Carlos Suely”, no entanto, Jô destacou que não podia, pois se tratava de um personagem e seu parceiro era um policial civil. O candidato teria dito ao humorista: “Mas seria muito interessante porque o senhor não sabe como é difícil a gente ser gay aqui no nordeste”. (Jô Soares, 2018). Ou seja, nota-se que a fama do Capitão Gay tinha respaldo também das pessoas homossexuais e, para algumas, era uma forma de incentivar sua visibilidade, mesmo sendo um personagem. No entanto, nem todas as pessoas, dentre as quais homossexuais, viam com bons olhos tal representatividade na mídia.

A transposição das fronteiras simbólicas entre o humor e o artivismo

A veiculação do Capitão Gay através da mídia televisiva, especialmente da Rede Globo de Televisão, uma emissora que tinha bastante audiência, precisa ser considerada para entender sua incorporação e apresentação num horário nobre. De acordo com Irineu Ramos Ribeiro (2008RIBEIRO, Irineu Ramos. Identidade capturada: a Parada do Orgulho Gay de São Paulo de 2007 nos telejornais. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Universidade Paulista, São Paulo, 2008.: 57): “Dentre todas as mídias existentes, a televisão no Brasil é, sem dúvida, o meio de comunicação de massa mais abrangente. Atinge indistintamente todas as camadas sociais e detém poder significativo na formação da opinião pública”.

O papel das mídias vai além do informar, sendo que existem suspeitas acerca de sua manipulação sobre seus interlocutores. É possível que esses conteúdos que são criados a partir de objetivos específicos, adequados ao formato desses veículos de comunicação e partem de uma ideologia partidária ( Gramsci, 2001GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 2. Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 2001. ), jamais neutra, tenham a pretensão de transmitir determinados entendimentos, valores e informações formatadas; no entanto, não se pode dizer que se trata de um público visto como massa , num sentido numérico, e que apenas absorve esses conteúdos, sem uma reelaboração, constituindo uma cultura homogênea ( Thompson, 1998THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 5a ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1998. ).

Patrick Charaudeau (2006)CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo, Contexto, 2006. salienta que as mídias também podem ser vítimas de manipulação por pressões externas: atualidade, poder político, concorrência; bem como por pressões internas, de suas próprias representações. Tudo isso nos ajuda a entender os elementos que podem estar imbricados a essa produção televisiva e, como já falado, não devem ser entendidos como uma apreensão acrítica por parte dos telespectadores, mas como uma representação que será decodificada de distintas maneiras.

Esse super-herói era, de acordo com Trevisan (2000TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 3a ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro, Record, 2000.: 308): “Atacado pelos moralistas (que acusavam o programa de fazer apologia do homossexualismo [sic]) e por certos militantes gueis (que detestavam ver as bichas como objeto de riso nacional)”. Um dos grupos de ativismo homossexual que criticou o personagem foi o Grupo Gay da Bahia (GGB), sendo que em dois de seus boletins do ano de 1982 foi possível constatar as críticas. Na edição número 4, do mês de setembro do ano já citado, foram questionados os usos da televisão e da imprensa em divulgar caricaturas como a do Capitão Gay, dentre outros citados, criticando a ausência de menções quando se tratavam de “acontecimentos sérios” (Boletim, 2011a:73).

Já na edição seguinte, de dezembro de 1982, o posicionamento foi mais enfático e direcionado a Rede Globo de Televisão. Numa seção intitulada de “Protesto do GGB”, foi destacado:

Painho e Capitão gay pode: Marta Suplicy não! Essa é a lógica da TV Globo, que acaba de tirar do ar o quadro “Comportamento Sexual” sob a direção da sexóloga Suplicy. Lastimamos e protestamos veementemente contra mais esta atitude obscurantista global, ao mesmo tempo que nos solidarizamos com a cientista censurada, dando nosso apoio incondicional a seu importante trabalho em prol da libertação sexual do povo brasileiro. Corrente de São Cipriano Gay...: escreva uma carta protestando contra a retirada do ar do programa da Dra. Marta Suplicy – TV Globo, Programa TV Mulher, São Paulo, SP. Quem cala, consente. Grite, esperneie!!!!!!!!!! (Boletim, 2011b:86, grifo do autor).

Painho era um personagem interpretado pelo humorista Chico Anysio no programa Chico City , também exibido pela Rede Globo de Televisão, e tratava-se de um pai de santo homossexual que desmunhecava em cena. Assim como o Capitão Gay, eram personagens homossexuais visibilizados por meio de seu sucesso nesses programas de humor. Marta Suplicy é uma psicóloga/sexóloga – mas posteriormente ingressou também na política – e tinha um quadro chamado Comportamento Sexual no programa TV Mulher da Rede Globo, criado em 1980.

O objetivo do protesto era mobilizar a população, especialmente a homossexual, que possivelmente era o público que tais boletins se direcionavam, para que protestassem diante de tal situação, iniciando o que foi chamado de “corrente de São Cipriano Gay”. Há uma dubiedade em torno desse santo, pois teria existido um São Cipriano, inclusive tem livros com esse nome, que seriam manuais de práticas mágicas, rituais e/ou simpatias para alcançar aquilo que as pessoas desejam; ao passo que há o santo católico São Cipriano de Cartago. Ao que parece, a razão para essa associação no protesto escrito no boletim foi uma brincadeira em alusão aos rituais mágicos atribuídos ao São Cipriano do livro, suposto feiticeiro, para que lhes ajudasse a obter êxito em seu protesto.

A crítica ao Capitão Gay parece dar-se pelo fato da difusão de uma imagem do sujeito homossexual de forma estereotipada, sendo que inclusive foi destacada a “misoginia” do personagem (Boletim, 2011b:98). Em um dos episódios analisados, esse aspecto também pareceu sinalizar uma forma de aversão à mulher, que de um lado mostrava o interesse do super-herói em ser tocado por homens ao invés de mulheres, mas de outro podia mostrar a misoginia de muitos homossexuais que ele expressava ( Capitão Gay, 1981CAPITÃO GAY. In: Viva o Gordo. São Paulo, Rede Globo de Televisão, 1981 [https://www.youtube.com/watch?v=1trG3si4KO8 - acesso em: 31 out. 2020].
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). Mais um motivo que descontentava uma parcela dos gays, para além dessa leitura estereotipada do personagem, que se somava à demanda de ver destaques na mídia que discutissem o tema de forma séria e explicitassem o apoio à homossexualidade de maneira direta. Entretanto, os entraves daquela conjuntura frente às homossexualidades impuseram interdições, sendo que uma discussão com mais seriedade se delimitava a determinados ambientes e grupos, pois na sociedade como um todo havia uma discriminação dominante. Basta lembrar que as pessoas homossexuais eram consideradas doentes pela área médica, que gozava também de uma valorização intelectual, logo, mesmo nos espaços acadêmicos, tais discussões e positivações tinham resistência por boa parte dos pesquisadores e pesquisadoras.

No ano de 1983, na revista Veja , foi publicada uma matéria em referência aos personagens de humor interpretados por Chico Anysio e Jô Soares. Uma imagem do Capitão Gay e de Carlos Suely sem a indumentária característica foi registrada junto de Clóvis Bornay, um carnavalesco vestido com roupa cor de prata, com muito brilho e plumas rosas no entorno das suas costas, e que estava sobre um banco que elevava a visibilidade de sua presença. Na legenda estava escrito: “Capitão Gay: aulas com o tio Bornay” ( Figurinhas, 1983FIGURINHAS repetidas: com a galeria de tipos de Jô Soares e Chico Anysio começa a temporada de humor na TV. Veja, São Paulo, n. 758, 16 mar. 1983, pp.76-77.: 76).

Essa menção se deve ao fato de que naquela semana um episódio do Capitão Gay iria ao ar com a participação de Bornay. De acordo com o fragmento publicado, foi informado:

Nos dois programas, entretanto, continuam a existir personagens que garantiam um sucesso de público. Painho, de Chico Anysio, retoma com grande vulgaridade e poucas falas engraçadas. O Capitão Gay, por sua vez, irá mostrar esta semana cenas de sua infância, como as aulas de dicção com o tio Clóvis Bornay. Os dois tipos montados sobre personagens homossexuais, indicam que tanto o humor de Chico como o de Jô, mesmo enfeitados e beneficiados pelo talento de cada um, não conseguiram ainda se libertar de tiques da Idade da Pedra ( Figurinhas, 1983FIGURINHAS repetidas: com a galeria de tipos de Jô Soares e Chico Anysio começa a temporada de humor na TV. Veja, São Paulo, n. 758, 16 mar. 1983, pp.76-77.: 77).

Tal crítica revela, inicialmente, o sucesso de alguns personagens perante o público, caso de Painho e do Capitão Gay, embora atribua “grande vulgaridade” na atuação do primeiro. Essa ideia pode estar associada ao comportamento fechativo, marcado por trejeitos tidos como de exagerada efeminação de Painho, apesar do Capitão Gay não ficar para trás nesse aspecto. No entanto, a vinculação do super-herói, de forma mais sutil na matéria, também parece sintonizar-se a essa ideia, uma vez que Bornay representava um modo de ser homossexual, adorava brilho, fantasias, usava salto alto nas performances carnavalescas, além de ter dificuldades de pronunciar a letra “r”, características que o Capitão Gay também exibia, daí a associação como seu suposto aprendiz. Esse estereótipo não era representativo da totalidade dos homossexuais, mas reforçava o modelo que era partilhado acerca do entendimento da homossexualidade. A matéria, que não teve autoria assinada, também reiterou a crítica a esses personagens, Painho e Capitão Gay, que ainda não tinham se libertado de “tiques da Idade da Pedra”, ou seja, de usar esses elementos como forma de buscar o riso.

Rui Zink (2011)ZINK, Rui. Da bondade dos estereótipos. In: LUSTOSA, Isabel (org). Imprensa, Humor e Caricatura: a questão dos estereótipos culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011. pp.47-68. , ao refletir acerca dos estereótipos, destaca que estes são construídos e partilhados sobre muitas coisas, podendo tanto estar imbuídos de preconceitos quanto sinalizar uma dada realidade social não falaciosa. O Capitão Gay foi um personagem criado com base em um estereótipo de homossexual compartilhado e que era ao mesmo tempo discriminado socialmente. Nem todos os homossexuais eram assim, isso é verdade; mas existiam outros tantos que eram. Como chama a atenção o autor, o problema é a generalização dos estereótipos que precisa ser combatida, pois o estereótipo é uma construção do outro sobre alguém, cuja autoimagem pode ser divergente, aceita por algumas pessoas e não por outras. Conforme Zink (2011ZINK, Rui. Da bondade dos estereótipos. In: LUSTOSA, Isabel (org). Imprensa, Humor e Caricatura: a questão dos estereótipos culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011. pp.47-68.: 64): “o mais importante na relação entre indivíduo e estereótipos é aquela que culmina numa autorreflexão”.

O uso da homossexualidade pelo humor, de fato, não era novidade alguma, haja vista que explorar esses elementos andróginos e sexuais era uma possibilidade de prospectar o riso do público, confundindo os supostos papéis sexuais e desejos afetivo-sexuais atribuídos a homens e mulheres. Essas escolhas não estão descoladas da realidade social, pois para compreendê-las é preciso contextualizá-las e atentar ao contexto cultural e aos significados que estão sendo acionados e sugeridos aos espectadores mediante àquelas representações e encenações. De modo que o riso precisa ser decodificado a partir de uma leitura cultural e situacional, como no exemplo da piscadela abordado por Clifford Geertz (2008)GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC, 2008. , embora não se reduza a um significado apenas.

Alain Deligne (2011DELIGNE, Allan. De que maneira o riso pode ser considerado subversivo? In: LUSTOSA, Isabel (org.). Imprensa, humor e caricatura: a questão dos estereótipos culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011, pp.29-46.: 31), citando o humorista Pierre Desproges, destaca: “podemos rir de tudo, mas não em qualquer lugar, nem a qualquer hora, nem com qualquer pessoa. É preciso, portanto, conhecer bem a situação e o que convém”. Para Deligne, é preciso atentar ao contexto e aos significados para compreender o riso, o sorriso e até mesmo a gargalhada.

A respeito do Capitão Gay, seria possível questionar: o propósito deste tipo de humor era subverter a ordem social vigente? Ao que parece, essa não é a questão. Entretanto, alguns elementos para a sua mudança são suscitados. Por exemplo: a música dos super-heróis que sugeria para que as pessoas assumissem a homossexualidade, época em que isso era demandado, conforme Souto Maior Jr. (2019) e, ao mesmo tempo, contrariava aquilo que era prezado como uma bandeira da Ditadura Militar – a “moral e os bons costumes”; outro aspecto é que a figura do gay assume o protagonismo de resolver os problemas sociais, ou seja, uma figura central e não marginalizada como geralmente ocorria na sociedade; apesar da imagem estereotipada, há que se considerar também a visibilidade do personagem em um horário nobre e em uma emissora bastante assistida, sendo que a fama do Capitão Gay pode ser um indício do alcance dessa visibilização e relativa adesão social. A partir desses fatores, percebe-se uma sutil subversão.

Para além do aspecto do humor, do deboche, geralmente levado a priori em consideração, será acionado o conceito de artivismo para atentar a outros elementos que parecem ser de grande valia para compreender esse super-herói. De acordo com Rui Mourão (2015)MOURÃO, Rui. Performances artivistas: incorporação duma estética de dissensão numa ética de resistência. Cadernos de Arte e Antropologia, v. 4, n. 2, 2015, pp.53-69. , essa palavra tem sido usada desde os anos 2000 em alguns pequenos grupos do meio artístico e acadêmico dos Estados Unidos e posteriormente difundiu-se para outros países.

Segundo Raposo5 5 A citação do autor destacada foi escrita no idioma português de Portugal, dessa forma, é mantida a grafia original das palavras. :

Artivismo é um neologismo conceptual ainda de instável consensualidade quer no campo das ciências sociais, quer no campo das artes. Apela a ligações, tão clássicas como prolixas e polémicas entre arte e política, e estimula os destinos potenciais da arte enquanto ato de resistência e subversão. Pode ser encontrado em intervenções sociais e políticas, produzidas por pessoas ou coletivos, através de estratégias poéticas e performativas [...]. A sua natureza estética e simbólica amplifica, sensibiliza, reflete e interroga temas e situações num dado contexto histórico e social, visando a mudança ou a resistência. Artivismo consolida-se assim como causa e reivindicação social e simultaneamente como ruptura artística – nomeadamente, pela proposição de cenários, paisagens e ecologias alternativas de fruição, de participação e de criação artística ( Raposo, 2015RAPOSO, Paulo. “Artivismo”: articulando dissidências, criando insurgências. Cadernos de Arte e Antropologia, v. 4, n. 2, 2015, pp.3-12.: 5, grifo do autor).

Leandro Colling (2019)COLLING, Leandro. A emergência e algumas características da cena artivista das dissidências sexuais e de gênero no Brasil da atualidade. In: COLLING, Leandro (org.). Artivismos das dissidências sexuais e de gênero. Salvador, EDUFBA, 2019, pp.11-40. que já dissertou acerca da cena artivista, das dissidências sexuais e de gênero no Brasil no período recente, pontuou que não entende o artivismo como uma identidade singular, apesar de algumas pessoas auto definirem-se desta forma, nem como um elemento que agrupe um conjunto de pessoas artivistas; mas atentou-se às diversas linguagens, formas e estéticas de artistas do Brasil, citando essas personalidades que trazem em sua obra tais reflexões e que articulam de forma intrínseca arte e política.

O artivismo é entendido como uma série de performances construídas e visibilizadas a partir dos corpos dos performers, da estética, e que demonstram a articulação entre arte e política, seja de forma individual ou coletiva, suscitando reflexões e críticas sociais que não necessariamente estão alinhadas a algum grupo específico de ativismo, bem como sua arte vai além das demandas capitalistas do mercado. Esse conceito não serve apenas para caracterizar os chamados novíssimos movimentos sociais , posto que foi usado na análise de grupos e/ou pessoas de uma temporalidade anterior, como o grupo Dzi Croquettes da década de 1970, dentre outros exemplos que poderiam ser citados, que contribuíram com diferentes reflexões em torno das questões de gênero e sexualidade, sendo precedentes do artivismo queer da atualidade ( Trói, 2018TRÓI, Marcelo de. Corpo dissidente e desaprendizagem: do teatr(r)o aos a(r)tivismos queer. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2018. ). Nesse sentido, serão citados alguns elementos que permitem operacionalizar esse conceito para compreender o super-herói homossexual.

O Capitão Gay era um personagem representado por um homem branco, pertencente às altas camadas sociais, com um nível cultural erudito, sendo bastante conhecido pelo seu talento no humor, mas também como crítico da situação política na época. Ao ser contratado por uma emissora que apoiou o Golpe de 1964, mas que posteriormente manifestou seu arrependimento, trouxe à cena diferentes personagens que faziam uma crítica explícita à Ditadura Militar. O Capitão Gay contrariava a ufanista “moral e os bons costumes” tanto reiterada naquele período, criticando tanto o governo quanto boa parte da sociedade homofóbica e a disciplinarização empreendida pelo movimento homossexual.

A forma caricata do personagem permitiu que fosse integrado no humor, um espaço de descontração que, para além do riso, pode suscitar diferentes problematizações sociais. Isso fez com que o tema da homossexualidade estivesse em pauta, uma vez que o personagem era homossexual, mas não só isso, tratava-se de um super-herói semelhante aos das histórias em quadrinhos e, como tal, sabe-se que existem somente na ficção e não na realidade. Esses elementos podem ter contribuído para sua visibilidade e fama, pois borravam a fronteira entre a seriedade e o deboche, podendo adequar-se a diferentes situações de modo conveniente.

Suas performances vinculavam uma expressão de arte, o humor, com um tom político e ativista, crítico da realidade social. Mas essa vinculação não estava atrelada a um movimento homossexual que, como apontado, também fez críticas ao personagem. Se de um lado o estereótipo bastante explorado do homossexual efeminado era usado como forma de entreter o público à custa dos homossexuais, de outro, criticava a operação de normalização, disciplinamento e adestramento que modelava os sujeitos em torno da identidade homossexual ( Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20a ed. Petrópolis, Vozes, 1999. Tradução de Raquel Ramalhete. ), recatada, como se uma postura mais fechativa não fosse digna de respeitabilidade. Se parcela da sociedade desejava que as pessoas homossexuais não existissem, quanto mais reivindicar tais vivências como positivas, um atenuante menos “subversivo” passou a ser difundido como modelo de visibilidade para que essas pessoas fossem aceitas, reivindicando a identidade homossexual ou sendo reconhecidas nessa categoria.

Nessa perspectiva, alguns questionamentos que se pode fazer são: por que homossexuais efeminados podiam ser vistos na televisão e entreter os telespectadores, mas se fossem vistos na rua homossexuais que tivessem comportamento semelhante eles seriam discriminados? Como um homossexual era capaz de resolver os problemas de todas as pessoas, sendo que os heterossexuais na sociedade, tidos como maioria, não eram capazes de resolver os problemas dessa população? De que forma esse discurso de moralidade pública sustentada por muitas pessoas não escondia aventuras sexuais e/ou outras identidades que extrapolavam o seu dia a dia, como na história dos super-heróis? Quantos homossexuais omitiam seus prazeres homoeróticos por medo de repressões e discriminações, reproduzindo um comportamento sintonizado a cisheteronormatividade? Enfim, algumas indagações possíveis, suscitadas a partir do Capitão Gay, que não demandam respostas, mas são citadas a fim de que possibilitem reflexões.

A partir do exposto é compreendida a performance do Capitão Gay como um artivismo individual que, conscientemente pensado ou não, fazendo uso do humor, da arte, da encenação, possibilitou diferentes problematizações sociais e políticas que transitavam entre essa fronteira e parece ser uma estratégia para abordar o tema das homossexualidades naquele contexto. Ademais, evidentemente também visava audiência, inclusive da população homossexual, atraindo um público amplo, infantil e adulto, com uma parcela de conservadores para se divertirem à custa do personagem, mas também adultos com olhares mais compreensíveis em torno dessa causa. Isso não invalida as críticas que foram direcionadas a ele, especialmente a necessidade de ver o tema ser discutido com mais seriedade. Entretanto, uma leitura unicamente caricata e apressada parece ser extremamente reducionista. Contratar um crítico à Ditadura Militar e manter essa crítica visível através dos personagens, não somente com o Capitão Gay, pode ter sido uma forma de demarcar uma oposição ao governo e sinalizar uma postura conivente com a abertura política e os novos rumos democráticos almejados naquele contexto.

Considerações finais

A análise realizada permitiu pensar o Capitão Gay como um elemento a mais do repertório de personagens de Jô Soares no programa Viva o Gordo , na Rede Globo de Televisão, que criticava a Ditadura Militar brasileira e era uma forma bastante visível de demonstrar essa oposição. Para além das suas performances caricatas, que exploravam o estereótipo homossexual, o super-herói é entendido como uma forma de artivismo que usava os aspectos jocosos do personagem para entreter o público e, ao mesmo tempo, trouxe o tema da homossexualidade à tona, com centralidade, fazendo um chamamento para que as pessoas fossem assumidas como o novo herói. Dessa forma, podia transitar entre o humor e uma postura artivista conforme a situação lhe conviesse. Possibilitou também reflexões sobre as vivências homossexuais e criticou a moralidade pública demandada que exercia uma opressão sobre os sujeitos e escondia outros modos de viver e existir que eram relegados a uma vida sob máscaras, escondendo sua identidade e tentando conciliar esses atravessamentos constantes.

Chimamanda Adichie (2009)ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Conferência Anual TED Global, 2009 [https://www.geledes.org.br/chimamanda-adichie-o-perigo-de-uma-unica-historia/ - acesso em: 20 dez. 2020].
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chamou a atenção para a necessidade de se escrever outras histórias para romper com a história única que se tem sobre algum lugar ou sobre um grupo de pessoas. Neste aspecto, em especial, se pode pensar em outras histórias das homossexualidades. Não aquelas que omitem essas pessoas ou as trazem como seres marginais, doentes, reproduzindo uma vitimização que parece ser eterna, mas aquelas que destacam outros aspectos e narrativas felizes, pois elas também existem.

É possível observar recentemente outros enredos sendo contados e protagonizados por sujeitos que geralmente estavam à margem das histórias de até então, quando não eram silenciados e/ou omitidos totalmente. Nesse cenário, heróis e heroínas homossexuais e/ou queers começaram a aparecer como uma forma de sanar a invisibilidade dessas pessoas, dando-lhes representatividade, agência e possibilitando aos espectadores uma identificação. No entanto, tais intentos também recebem críticas por parte de pessoas conservadoras que veem ameaçada a estruturação social cisheteronormativa e têm um suposto medo de que isso corrompa as crianças e adolescentes – argumento já ultrapassado e bem conhecido – como ocorreu com a animação brasileira Super Drags da plataforma Netflix, lançada em 2018 (Cf. Rosa; Felipe, 2019ROSA, Cristiano Eduardo da; FELIPE, Jane. “Agora eles foram longe demais”: as crianças, as famílias e as super-heroínas drag queens. Periódicus, n. 11, v. 2, Salvador, maio-out. 2019, pp.45-64. ).

Nesse sentido, em meio a diferentes olhares e críticas lançadas ao Capitão Gay, indaga-se: por que não ir além desse estereótipo dos gays efeminados que são discriminados socialmente e sofrem preconceito? Por que intrigaria ver gays efeminados, envoltos em roupas rosas, cheios de brilho e com bordões? Eles não podem ser os heróis da história, salvando o dia, ajudando as pessoas e tornando-se famosos? Que modelo de gay seria mais conveniente, então, para usar como destaque? Parece que muitas questões estavam em jogo nessa percepção e não era o modelo que algumas pessoas gostariam de ver, mas trata-se de um exemplo representativo da vida de alguns gays que possivelmente se identificavam com o personagem. Dessa forma, relações de poder estão presentes nessas escolhas e também nas decodificações pelos telespectadores, logo, pensar quem teria a pretensa autoridade para dizer qual modelo deve ser divulgado diante da multiplicidade presente no universo homossexual não é um tema polêmico somente na atualidade, mas já pode ser observado desde a década de 1980.

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  • 1
    É preciso destacar a distinção entre performatividade de gênero e performance de gênero, segundo Butler. Para a autora a performatividade diz respeito a um discurso construído que estabelece as normas atribuídas às pessoas, nesse sentido, a expressão performativa de gênero por parte dos sujeitos vai se operar a partir da repetição das possibilidades oferecidas por esse discurso dominante, não se tratando de um determinismo biológico nem cultural. A performance, por outro lado, é a expressão de gênero intencional a partir da ciência da expressão de gênero atribuída a determinados grupos, como o exemplo das drags . A performance do Capitão Gay também é entendida nesse sentido, uma vez que a representação dominante dos gays, de forma estereotipada, é intencionalmente expressada pelo personagem.
  • 2
    Se entende os grupos de esquerda como aqueles que eram compostos por pessoas e partidos políticos que desejavam mudanças na sociedade brasileira: o fim da Ditadura Militar, a defesa da democracia e do direito ao voto, sendo também favoráveis às pautas em favor da população carente, dos trabalhadores e trabalhadoras, dos direitos humanos, das minorias, do feminismo, dentre outras. Não era um grupo coeso, cuja centralidade da luta podia estar em torno de algum componente específico e dividir opiniões acerca de alguns temas, mas foi modificando-se essa forma de pensamento abarcando uma ação coletiva que passou a ser difundida. Para saber mais a respeito das contradições que os termos direita e esquerda suscitam ver ( Bobbio, 1995BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo, Ed. UNESP, 1995. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. ).
  • 3
    Se entende os grupos de direita como sendo aqueles compostos por pessoas e partidos políticos favoráveis ao governo autoritário da Ditadura Militar. Desejavam conservar a estrutura social tida por tradicional, mantendo em funcionamento a defesa da moral e dos bons costumes cristãos, sobretudo na aparência pública, da família entendida conforme o modelo burguês e patriarcal, compactuando com o modelo neoliberal em ascensão. Também não era um grupo coeso e havia divergências internas em relação às pautas.
  • 4
    O “universo homossexual” é entendido como um espaço físico, mas também imaginado e partilhado por pessoas homossexuais que dividem experiências, afetos, constroem linguagens de comunicação, constituindo subculturas singulares. No entanto, esse universo não é pré-existente, mas construído e reconstruído constantemente e é um território no qual são engendradas relações de poder. Nem todas as pessoas homossexuais fazem parte dele, por diferentes razões, sendo que internamente também são operadas discriminações.
  • 5
    A citação do autor destacada foi escrita no idioma português de Portugal, dessa forma, é mantida a grafia original das palavras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2021
  • Aceito
    07 Fev 2022
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