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Sobre a crítica ao pensamento hétero e a desconstrução das categorias de gênero: Butler leitora de Monique Wittig

About Criticism of Straight Thinking and Deconstruction of Gender Categories: Butler as a Reader of Monique Wittig

Resumo

Da crítica butleriana ao pensamento de Wittig, indagaremos caminhos para a desconstrução das normas de gênero associadas ao pensamento hétero. Para viabilizar o entendimento de que sexo e gênero não são categorias fixas, notaremos quão recorrentes são os estudos de Wittig para as teorias feministas e de gênero contemporâneas, especialmente no que tange sua crítica à psicanálise, aos binarismos sexuais e ao regime heterocentrado do patriarcado. Criticando-a por meio de Butler, advogaremos que é possível fazer com que as leis se voltem contra elas mesmas, de modo a provocar uma sobrecarga nos sistemas de poder.

Pensamento hétero; Psicanálise; Sexo e gênero; Monique Wittig

Abstract

From Butler's critique of Wittig, we question paths for deconstructing gender norms associated to hetero thinking. To make viable the understanding that sex and gender are not fixed categories, we note how current Wittig's studies are to contemporary feminist and gender theories, especially with regard to her criticism of psychoanalysis, sexual binaryisms and the heterocentric regime of patriarchy. By criticizing her through Butler, we will argue that it is possible to have laws turn against themselves, to overload power systems.

Straight thinking; Psychoanalysis; Sex and gender; Monique Wittig

I

Nas décadas de 1950 e 1960, as pautas feministas endereçaram críticas não só aos valores do patriarcado, mas aos sistemas de opressão implicados nas culturas, nas sociedades, nas políticas, nas psicologias, nas ciências e nas filosofias ocidentais. Os trabalhos de Beauvoir foram chave contra a instrumentalização dos sistemas de gênero, especialmente sobre as mulheres. Propondo novas estratégias de enfrentamento, foi só entre 1970 e 1980 que, na cena feminista, despontaram as contestações das mulheres lésbicas, cujas pretensões eram promover, além de uma desconstrução dos dispositivos "sexo-gênero", a subversão da matriz heterossexual que rege o pensamento ocidental. Foi nessa seara que os escritos de Monique Wittig se destacaram tanto por viabilizarem críticas ao pressuposto da heteronormatividade e ao termo "mulher" quanto por serem vitais ao surgimento das atuais teorizações queer, dentre elas as de Butler e de Preciado.

Adepta da teoria marxiana, Wittig é uma das teóricas de sua época que nada deve ao modelo fenomenológico-existencial, ainda que guarde diversas conexões com Beauvoir e, assim como esta, proponha duras críticas à psicanálise. Ocupando um lugar de destaque nos modos como Butler lida não apenas com Beauvoir, mas com Freud e Lacan, é como se Wittig permeasse o pensamento butleriano no sentido de facultar um ataque aos saberes, aos enquadramentos clínicos, ao funcionamento das instituições e aos impactos da psicanálise na cultura e na vulnerabilização de certas subjetividades. Tão criticamente presente em Butler quanto as gêneses psicanalíticas de sua teoria queer, as proposições de Wittig são relevantes pois, além de anteciparem noções relativas à performatividade de gênero, são taxativas quanto ao que é vivido pelas mulheres, especialmente a maneira como a psicanálise transformou suas noções numa forma quase mítica de imposição compulsória da heterossexualidade.

Entre a literatura, a filosofia e a teoria política, não raro deixando transparecer as relações amorosas entre mulheres, Wittig exerce vasta influência nisso que, após os anos de 1970, se configurou entorno das teorizações feministas e de gênero, particularmente quando marcadas pela crítica à psicanálise, aos binarismos sexuais e ao regime heterocentrado do patriarcado. Analisando os limites do modus operandi que construiu a heterossexualidade, Wittig denuncia não só que "sexo" é uma categoria política, mas que é preciso "estabelecer uma ligação entre mulheres que lutam por mulheres enquanto classe, contra a ideia de 'mulher' como um conceito essencialista" (Wittig, 2022:28). Seja como tarefa histórica ou luta política, a meta é especificar o que se entende por opressão, de modo que, ao analisar a mulher como classe, seja possível deduzir que "tanto 'mulher' quanto 'homem' são categorias políticas e econômicas, não categorias eternas" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:48). Trata-se de compreender: se desaparecida a classe dos homens, "as 'mulheres' como classe também desaparecerão, pois não há escravo sem senhor" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:49). Segundo Wittig, o termo "mulher" serve apenas "para nos confundir, para ocultar a realidade das 'mulheres'" (Wittig, 2022:49).

II

Visto que os mitos heterossexuais atuam como um "sistema de signos que usa figuras de linguagem e por isso pode ser estudado politicamente" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:66), Wittig ressalta que a luta das mulheres precisa estar ancorada na ideia de que não se deve falar de opressão, de direitos, tampouco das mulheres como iguais ou diferentes dos homens. O objetivo é alavancar o movimento feminista a um novo patamar, no qual a lésbica, por estar fora da "norma hétero", é capaz de secretar um modelo teórico que reabsorve a história de forma tão brutal que os sistemas de dominação são obrigados a buscar outras formas de conhecimento. Minando tudo que está associado a heterossexualidade, Wittig nega que as lésbicas possam fazer amor com outras mulheres: "lésbicas não são mulheres" (Wittig, 2022:67).

Apesar de notória pela reprovação quanto aos modos como o patriarcado subjuga as mulheres, Wittig considera que se ater apenas em uma denúncia contra tal sistema constitui uma estratégia precária das lutas feministas. Facultando não apenas uma crítica à universalidade de certas subjetividades, mas à percepção da insuficiência das binaridades de sexo, gênero e parentalidade, o que precisa ser questionado é a configuração de termos como "homem" e "mulher", visto que estes só existem mediante relação de diferenciação dentro do sistema heterossexual, reiteradamente instaurado como norma. Entendida por Wittig como umas das tantas políticas de sujeição das mulheres, a heterossexualidade é minada na proporção em que as categorias identitárias são abolidas tanto política quanto "filosófica e simbolicamente, e nessa empreitada a comunidade lésbica deve ser estrategicamente acionada" (Cossi, 2020COSSI, R. K. Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos. São Paulo, Zagadoni, 2020.:97).

Todavia, vale salientar: o intuito não é criar uma "outra" identidade, a "lésbica", que substitua a "mulher". Para Wittig, promover certas categorias como "mais emancipatórias" é produzir identidades cujos efeitos reeditam a coerção/normatização dos corpos-gêneros tornados ininteligíveis. Contra esse perigo, trata-se de erradicar quaisquer resquícios do regime heterossexual, criticando inclusive os aspectos conservadores das teorias feministas. Para tanto, seja do ponto de vista do "sexo", do "gênero" ou da "diferença sexual", deve-se destruir os termos/categorias "homem", "mulher" e seus correlatos. Não por meio de um genocídio, mas sim, como luta política, Wittig quer abordar o humano "para além de toda categoria que envolva o sexual, rejeitando toda a ciência, inclusive a psicanálise, que se fundamenta nele ao se voltar ao sujeito" (Cossi, 2020COSSI, R. K. Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos. São Paulo, Zagadoni, 2020.:97). Nisto, não só rechaça a instrumentalização de uma "política lésbica", como "aporta nuevos conceptos a un feminismo excesivamente unitario en sus fundamentos y sus objetivos" (Sáez, 2004SÁEZ, J. Teoria Queer y psicoanálisis. Madrid, Editorial Sínteses, 2004.:100).

Para Wittig, a diferença sexual opera como uma "censura em nossa cultura ao mascarar, em nome da natureza, a oposição social entre homens e mulheres" (Wittig, 2022:32). Por serem produzidas no seio dos sistemas patriarcais, trata-se de desmascarar o caráter político das categorias relativas ao sexo. "Masculino" e "feminino", "macho" e "fêmea", "homem" e "mulher" são termos "que servem para esconder o fato de que as diferenças sociais pertencem a uma ordem econômica política e ideológica" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:32). Não sendo natural, a diferença sexual atua como um determinante similar ao ocultamento subjacente nas lutas de classes. Agindo sobre os sujeitos como se estivesse legitimando a segmentação do trabalho, o pensamento hétero parte da prerrogativa de que há sempre duas categorias cujas diferenças se refletem no âmbito social. Contudo, se tomado como um dado biológico, o sexo invisibiliza a função das relações sociais nele implícitas. Portanto, se todo sistema de dominação cria divisões tanto no plano social quanto nos âmbitos material e econômico, "não existe sexo. Existe apenas o sexo que é oprimido e o sexo que oprime. É a opressão que cria o sexo, e não o contrário" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:33). Como categoria, "sexo" "não existe a priori, antes de toda sociedade" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:36).

Em sentido análogo, é sem deixar de lado as indagações butlerianas que notamos: se Wittig se aproxima do "tornar-se" beauvoiriano e da respectiva crítica ao conceito de falo na psicanálise, afasta-se de ambos quando considera que não são os mitos criados entorno da "mulher" que originam a opressão, e sim o tratamento conferido ao "sexo" enquanto criação cultural pressuposta a priori. Propondo uma dissociação da "mulher imaginária" (mito) das "mulheres como classe" (produto das espoliações patriarcais), Wittig deixa transparecer: ainda que uma mulher não nasça como tal, deve-se evitar que ela venha a "tornar-se mulher", pois sujeitificar-se dessa maneira é correr o risco de alimentar os mitos relativos ao "feminino". Seja lá quais forem as qualidades das mulheres, elas são partes integrantes da estratégia de dominação masculina, da qual o regime heterossexual jamais se desvencilhou. Contra as consequências desse sistema de dominação, Wittig mostra-se radical por recorrer a um elemento que tolhe "toda e qualquer tentativa de elaboração de discursos sobre o feminino, ao fazer a própria categoria de mulher desaparecer" (Cossi, 2020COSSI, R. K. Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos. São Paulo, Zagadoni, 2020.:98).

III

Em não se tratando de uma "outra" essência, são as corporificações das lésbicas que perfilam um "para além" do "sexo" e do "gênero", aqui entendidos como determinantes das subjetividades. Ora, se a "mulher" (o feminino) pertence ao homem, a lésbica pode ser "uma não mulher, uma não homem, um produto da sociedade, não um produto da natureza, pois não há natureza na sociedade" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:46). Segundo modalidades específicas de vinculação, as lésbicas não só evidenciam que a divisão binária das identidades é uma construção político-ideológica, como apontam para a necessidade de recusar tanto o papel da mulher na sociedade (a passividade) quanto o tipo poder prescrito aos homens. Empregando a ótica marxiana, Wittig diz que as sujeições enfrentadas por cada mulher em particular são frutos do pensamento patriarcal e heteronormativo, que se ancora no dimorfismo sexual para justificar e mascarar a opressão. Em vias de interpelar os dispositivos de saber que estipulam certas subjetividades - e apenas elas - como inteligíveis, a autora mostra que o "sexo" escraviza as mulheres. O sexo funciona "por meio de uma operação de redução, tomando a parte pelo todo" (Wittig, 2022:39).

Segundo a autora, "sexo" é uma "categoria política que funda a sociedade enquanto heterossexual" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:36). Trata-se de um axioma que impõe a heterossexualidade como forma "natural" das relações, mas que, produto desta, tangencia as mulheres a perpetuarem a "reprodução da 'espécie', ou seja, a reprodução da sociedade heterossexual" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:37). Ocultando-as tal qual o Outro da dialética do senhor e do escravo, a imposição da tarefa reprodutiva é a evidência do sistema de exclusão e exploração sobre o qual está apoiada a economia heterossexual. Assim como qualquer trabalho efetuado por um escravo, a tarefa de reprodução, quando destinada apenas às mulheres, é um tipo de labor que permite aos homens se apropriarem do que é feito por elas. A "apropriação do trabalho das mulheres é executada da mesma maneira que a apropriação do trabalho da classe trabalhadora pela dominante" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:37). Contra isso, trata-se de combater a ideia de que as funções sociais das mulheres são naturais. Para tanto, o movimento feminista lésbico precisa fazer com que cada mulher saiba que seus problemas são os de uma classe subjugada. Para Wittig, por mais indiscutíveis que sejam as vivências particulares, a transformação só ocorre quando estes se reconhecem como "membros de uma classe oprimida" (Cossi, 2020COSSI, R. K. Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos. São Paulo, Zagadoni, 2020.:99).

Como uma das pensadoras que, tal qual Beauvoir, acompanhou o desenvolvimento tradição feminista francesa, depreende-se disso que Wittig tampouco conseguiu abdicar da relevância política e ideológica que os estudos de linguagem tiveram na constituição das subjetividades e, portanto, dos modos como, hoje, lidamos com as diversidades. Sendo uma das primeiras autoras de sua época a empreender uma crítica ao modelo psicanalítico, em especial aos aportes de Lévi-Strauss e Lacan, Wittig considera: para questionarmos os sistemas de dominação, é preciso uma análise tanto da semiologia quanto do inconsciente.

Orientado aos universais, o pensamento hétero - do qual a psicanálise nunca se desvencilhou - não é capaz de conceber outras modalidades culturais que não estejam submetidas aos tipos de relacionamentos prescritos por ele, conscientemente ou não. Neste campo, ainda que a lida com os processos inconscientes tenha se tornado funcional, não raro são os especialistas quem detém o poder de delimitar os padrões de prescrição e o que será, consequentemente, relegado ao não-inteligível. Revestida de metáforas, a retórica desses padrões tem a função de "poetizar o caráter obrigatório do 'serás-hétero-ou-não-serás'" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:63). Mergulhada nessa opressão quase poética, a psicanálise, segundo Wittig (o que reverbera em Butler), impossibilita que uma mulher rejeite, por exemplo, a obrigação ao coito, assim como as instituições que daí decorrem como fundantes da cultura. Sob a batuta do pensamento psicanalítico, é impossível pensar a lesbianidade, a homossexualidade ou qualquer outra sociedade ainda não enunciada, por mais que tenham sempre existido. É como parte da psicanálise que o pensamento heterossexual continua afirmando o incesto, e não a homossexualidade, como sua maior proibição. Assim, se balizada "pelo pensamento hétero, a homossexualidade não é nada mais do que heterossexualidade" (Wittg, 2022:63).

Quanto ao principal "mito" psicanalítico, nota-se: das produções do pensamento hétero, o inconsciente deve ser especialmente questionado. Do ponto de vista wittiguiano, isso deve ser assim pois foi no momento em que a dominação de certos grupos não pôde mais se impor como logicamente válida que "Lévi-Strauss, Lacan e seus epígonos apelaram a necessidades que escapam ao controle da consciência e, portanto, à responsabilidade dos indivíduos" (Wittig, 2022:65). Quando descreve na conduta de uma mulher processos inconscientes, a psicanálise parte de um novo modo de sustentar e perpetuar a dominação; ela jamais escapa da heterossexualidade. Ora, mas se é fato que experiência clínica ensina aos psicanalistas o que já sabem (o pensamento hétero), e se cada qual ensina aos demais o que lhes foi ensinado, então há de se questionar "quem deu aos psicanalistas o seu conhecimento?" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:57). Para Wittig, Lacan, por exemplo, encontrou "no Inconsciente as estruturas que ele disse ter encontrado - afinal, ele mesmo as havia colocado ali antes" (Wittig, 2022:58). Prova disso é que, desde Freud, só há "um Inconsciente que zela com consciência demais pelos interesses dos senhores em que habita para que eles sejam destituídos tão facilmente de seus conceitos" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:65).

Ora, se mesmo os psicanalistas se sentem oprimidos quando percebem a necessidade de operar através de conceitos que escapam aos supostos psicanalíticos, o que dizer da experiência terapêutica, particularmente quanto aos grupos/coletivos vulnerabilizados? Perguntando-nos sobre a necessidade de um contrato "mais atual" entre analista e analisando, Wittig alerta: durante a clínica, certos pacientes, além de oprimidos, têm suas demandas por comunicação cooptadas de tal forma que nada lhes resta a não ser aceitar o que o psicanalista/inquisidor tem a dizer, de modo a repetir, na linguagem dele, o que ele deseja ouvir a respeito do que foi vivido em primeira pessoa. O contrato confessional pactuado entre analista e analisando constrange este último, levando-o a revelar suas mazelas a um tipo de opressor que, além de causá-las, "o explora econômica, política e ideologicamente e cuja interpretação reduz essa angústia a algumas figuras de linguagem" (Wittig, 2022:58). Destinando-os a assumir a cura em termos de humilhação perante um sistema que não tem interesse em os eleger como inteligíveis, esses tipos de pactuações são os mesmos que fazem com que certos coletivos - dentre eles, os grupos das mulheres feministas, das lésbicas e dos homossexuais - sejam empurrados a se comunicarem apenas no âmbito da análise. Como resultado, tais grupos são tolhidos de outras vias de expressão, partilha e reconhecimento.

Negando a possibilidade de constituírem suas próprias categorias/vozes, os tipos de discursos implícitos nesses pactos, além de fundados no pensamento hétero, falam livremente sobre as lésbicas, as mulheres, os homens homossexuais, etc., e com a justificativa de narrarem "a verdade em um campo apolítico, como se todos os signos desse campo pudessem escapar do político" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:59). Ao que concerne esses coletivos, tais pactos pressupõem a existência de "signos politicamente insignificantes" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:59). Eles oprimem quando negam a esses grupos a possibilidade de falarem por conta própria, a não ser segundo palavras/leis preestabelecidas: "tudo que os coloca em questão é tido como rudimentar" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:59). E, se os coletivos rechaçam esse viés universalista, logo são levados a assumir que negligenciam a dimensão simbólica da psicanálise.

Em se tratando de uma prática cuja tirania é incessante, Wittig alerta que as necessidades dos vulnerabilizados não podem ter como único espaço o "enquadre psicanalítico, que molda o discurso do paciente à escuta do analista que se orienta heterossexualmente" (Cossi, 2020COSSI, R. K. Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos. São Paulo, Zagadoni, 2020.:101). Haja vista que são muitos os ambientes onde as pessoas subjugadas, ao quebrarem o contrato psicanalítico, podem tomar consciência do atual estado de coisas, de modo a aprenderem que tal pacto de confissão não é "consensual, mas sim um contrato forçado" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:59), Wittig indaga em que sentidos a psicanálise está alicerçada num regime de opressões endossadas que incidem sobre as lésbicas, as mulheres, os homossexuais, etc. Enquanto saber cuja tendência é universalizar suas noções, a psicanálise - apesar de reconhecer a função errática da sexualidade - segue reeditando a ideia de que há na cultura uma essência "natural" "que resiste quando é posta à prova, uma relação excluída do social na análise" (Wittig, 2022:62). Essa essência é a matriz heterossexual que, tornada obrigatória, se impõe como um princípio autoevidente para quaisquer ciências, e que "desenvolve uma interpretação totalizante da história, da realidade social, da cultura, da linguagem e de todos os fenômenos subjetivos ao mesmo tempo" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:62).

IV

Mostrando-se emblemática para as teorizações queer, se se trata de combater os paradigmas que dissipam as diversidades no todo, podemos inferir que Wittig promove uma revisão/desconstrução das categorias concernentes aos sexos e aos gêneros, servindo assim ao escopo das problematizações butlerianas referentes aos corpos-gêneros que não se enquadram nas regularidades hegemônicas. De acordo com ela, essa supressão é necessária pois, caso contrário, perpetuar-se-ia o primado da heterossexualidade.

para nós, não há ser-mulher ou ser-homem. "Homem" e "mulher" são conceitos políticos de oposição, e a cópula que os une dialeticamente e a mesma que os elimina. É o conflito de classe entre homens e mulheres que vai abolir os homens e as mulheres. [...] Em outras palavras, isso significa que não pode mais haver homens e mulheres, e que, como classes e categorias de pensamento ou linguagem, elas têm de desaparecer política, econômica e ideologicamente (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:64).

Nessa esfera crítica, Wittig salienta que os psicanalistas se apegam ao regime simbólico como se estivessem falando de uma dimensão que nada deve ao projeto de dominação nele encrustado. Para ela, não podemos preterir o fato de que "a ordem simbólica compartilha a mesma realidade da política e da economia" (Wittig, 2022:96). Os psicanalistas precisam saber que há relação de continuidade entre o simbólico, o inconsciente e a realidade: "um continuum em que a abstração é imposta à materialidade e pode moldar tanto o corpo quanto a mente daqueles que ela oprime" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:96). É vital alertar que o desinvestimento desse registro acarreta a impossibilidade da transformação. O eventual descompromisso com as coisas mundanas é uma estratégia de poder com fins de manter a fixidez das noções relativas aos sujeitos.

Uma vez que o pensamento hétero está na base da práxis psicanalítica, este só age mediante conceitos ontológicos, o que a faz marcada por relações de poder. Ora, mas se é assim, então o diferente, o Outro, o "não-inteligível", em suma, as mulheres, os negros, os homossexuais, as lésbicas, etc. são cooptados como elementos a serem subjugados. Segundo Wittig, dadas as opressões sofridas pelos vulnerabilizados, não há como alegar que a noção de diferença, por exemplo, detém caráter ontológico. No mais das vezes, ela é a forma pela qual os especialistas interpretam uma situação de dominação, tendo que "mascarar [...] os conflitos de interesse, inclusive os ideológicos" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:64). Assim, se é fato que a psicanálise enumerou estruturas que disse ter inferido, mas que já conhecia (pois as pôs na condição de a priori), Wittig sugere: se a lógica hétero opera mediante forças que se contrapõem, ocorre não só que suas dualidades foram retiradas de contexto, mas que os sentidos de termos como Um (a coisa boa) e Outro foram alterados, de modo que a este foi acrescida a obscuridade, a multiplicidade, a maldade, a desrazão, a transitividade, etc. Eis a mulher?!

Em vias de propor um tipo de feminismo que se coloca para além de toda interpretação em que sexo e gênero devêm como não substancializados, é partir disto que Wittig assevera: diferentemente do que se espera como norma, se gênero é um indicador das antinomias políticas entre os sexos, então não há dois gêneros, mas apenas um. O único sexo a ser tratado como gênero é o feminino: "o 'masculino' não é gênero" (Wittg, 2022:98). Como norma do patriarcado, "o masculino não é o masculino, mas o geral. O que existe são o geral e o feminino, ou melhor, o geral e a marca do feminino" (Wittg, 2022:98). Desta feita, se gênero é um traço dos sujeitos, então é preciso erradicar qualquer pré-categorização das identidades, pois "gênero" se refere a "um conceito ontológico primitivo que impõe à linguagem uma divisão dos seres de acordo com o sexo" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:115). Face ao que se apresenta via experiência lésbica, Wittig nota: "destruir as categorias de sexo na política e na filosofia, destruir o gênero na linguagem (ao menos modificar seu uso) é parte do meu trabalho com a escrita" (Wittig, 2022:120). Aceitando-a ou não, essa interpretação influenciará Butler, mas não no sentido de destruir as categorias de gênero, e sim de ressignificá-las ao ponto de indicar que "não há a verdade do gênero" (Rodrigues, 2021RODRIGUES, C. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo horizonte, Autêntica, 2021.:169).

V

Similar ao que Butler estabelece, mas distinguindo-se pelo fato de a estadunidense conceber os gêneros como parodiáveis e passíveis de subversão, Wittig não só advoga em prol da extinção do gênero, como visa denunciar as falhas das teorias segundo as quais tal categoria prevalece sobre o sexo. Frágil, esse tipo de arguição, além subjugar as mulheres, faz do gênero um instrumento que, tal qual o sexo, "é fundamental no discurso político do contrato heterossexual" (Wittig, 2022:116). Sem dar cabo da opressão, tais descolamentos esquecem que o gênero supõe "a imposição do sexo na linguagem" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:118). Ora, se o gênero não se reduz à terceira pessoa e se a menção do sexo na linguagem não é objetiva - de modo que é sob a alcunha do gênero que o sexo afeta o corpo da linguagem, fazendo com que cada falante seja obrigado a aparecer segundo sua forma física -, então entender o sexo pelo gênero implica a manutenção da mulher no registro da particularidade, da minoria subjugada aos domínios do "Um" (do homem enquanto universal). Para Wittig, visto que o gênero é "nocivo às mulheres no exercício da linguagem" (Wittig, 2022:119), é preciso examinar como, em que sentidos e mediante quais pronomes as linguagens operam. Há de se indagar como os gêneros aparecem na linguagem, de modo a reforçarem as categorias que perpetuam a dominação. O que está em questão "é uma mudança estrutural na linguagem, em seus nervos, em sua estrutura" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:121).

Dobradas e reorientadas em muitas direções, mas contendo a potência de fazer com que todos acessem a condição de sujeito, as estruturas linguísticas não se deixam transformar se não há sobre elas um trabalho "paralelo na filosofia e na política, assim como na economia, porque, assim como as mulheres são marcadas na linguagem pelo gênero, elas são marcadas na sociedade pelo sexo" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:121). Se só há um ser e este "Um" é o homem, então tratá-lo como divido na linguagem pelo gênero é partir de um impeditivo que, ademais de introduzir um ser que não existe, extirpa como possível todos que não devêm como homem, a saber: os Outros como autoridades de si. Sendo uma das tantas armadilhas que subjugam as mulheres, destaca-se não só a proximidade de Wittig com o que a psicanálise chama de sujeito, mas a necessidade de tratar o gênero como extirpável.

Feito uma terrorista que deliberadamente desafia as regularidades requeridas no pensamento hétero e nas binaridades de gênero, podemos dizer que, ao propor uma escrita cujo tema é o lesbianidade, a leitura wittiguiana da psicanálise, além de suscitar novas formas de identificação e reconhecimento, visa elevar tal problemática ao status de "tema universal, uma realidade literária como forma de abalar a realidade social" (Cossi, 2020COSSI, R. K. Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos. São Paulo, Zagadoni, 2020.:105). Influenciando o pensamento butleriano, Wittig busca uma literatura capaz de promover transformações suficientes ao ponto de minar as regras gramaticais vigentes e, para além dos binarismos heterossexuais (dos quais a psicanálise é filha obediente), reposicionar, material e politicamente, a mulher/lésbica na sociedade, na cultura e na linguagem. Para tanto, a estratégia é agir na e sobre a materialidade da linguagem, sendo esta, uma coparticipe "da ilusão que eterniza a suposta rigidez histórica do campo político e das relações sociais" (Cossi, 2020COSSI, R. K. Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos. São Paulo, Zagadoni, 2020.:105). Experimental, transgressora e propositalmente instável para quem lê, a literatura requerida por Wittig faz questionar as estruturas que determinam os modos como as ideologias são construídas através da linguagem como forma de poder. A meta é examinar o quanto as estruturas de dominação são passíveis de subversão, de modo que, uma vez desestabilizadas, nos levam não só a rechaçar noções fixas relativas à feminilidade, mas a pensar o "gênero" menos como solução e mais como um problema, um ato performativo.

VI

Isto posto, quando se adentra em como Butler vai extrair consequências para suas problemáticas, logo se percebe: a despeito da distinção quanto à recusa ou não dos gêneros enquanto parodiáveis, seus escritos têm reconhecido a importância de Wittig para as atuais teorizações feministas e de gênero. Introduzindo-a como vital aos desenvolvimentos queer que, desde as décadas finais do século XX, têm influenciado os modos como lidamos com as subjetividades de nossa época, Butler não demora para notar: apesar da sentença "ninguém nasce mulher: torna-se" (Beauvoir, 2009BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2009.:361) ter facultado a compreensão segundo a qual não é possível coincidir identidade natural e gênero - pois o que nos tornamos não é o que já somos -, o correspondente wittiguiano seria ainda mais radical, visto que remove da formulação de Beauvoir o "tornar-se", mantendo apenas a ideia de que "ninguém nasce mulher" - afinal, "mulher" não existe ou, pelo menos, não deveria existir.

Diferentes em vários sentidos, ainda que concordem quando propõem uma teoria que, dando sentido cultural para as escolhas pessoais, requeira uma recusa à essencialização de noções relativas a subjetividade, é notório que Wittig amplifica as ambiguidades beauvoirianas ao ponto de questionar a naturalidade não só do gênero, mas do sexo. Segundo Butler, se Beauvoir deixa em aberto a possibilidade do sujeito que nos tornamos sempre ter sido o que somos, Wittig alarga as sentenças de O segundo sexo na intenção de sustentar que, assim como o gênero, o "sexo natural" é uma ficção (Butler, 1987BUTLER, J. Variations on Sex and Gender: Beauvoir, Wittig and Foucault. In: BENHABIB, S.; CORNELL, D. (org.). Feminism as Critique: On the Politics of Gender. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987, pp.128-142.). Sem deixar de reconhecer em Beauvoir a primazia das contestações relativas ao biologicismo e a supervalorização do falo que, mediante a castração, destinam a mulher a condição de Outro, Wittig persiste em amplificar a crítica beauvoiriana, pois, segundo ela, tais teses seguem reeditando a faceta biologicista das opressões incidentes sobre as mulheres.

Combativa, Wittig destaca a necessidade de revolução não só das condições sociais e econômicas, mas das noções que perpetuam a heterossexualidade como norma compulsória. Se o pensamento hétero se faz presente ao ponto da diferença sexual se constituir obrigatória, então trata-se de recusar tanto a palavra "mulher", quanto quaisquer referências a corpo-generificações debitarias da trama hétero. Dissociando as lésbicas da categoria "mulher" e, portanto, de qualquer referência ao "mito feminino", o que se pretende é uma problematização do feminismo heteroconcentrado e do patriarcalismo aí incutido e mascarado.

Tal como a noção de "raça", Wittig diz que "mulher" é um termo cunhado ao longo de uma história de opressões. Tão passível de análise quanto de desconstrução, eis mais um dos exemplos que cremos ser natural, mas que não passa de uma construção ideativa "que reinterpreta características físicas [...] por meio da rede de relações em que são percebidas" (Wittig, 2022: 45). Ora, mas então o "sexo" tampouco é autoevidente. Sendo esta uma interpretação que Butler mobiliza antes de suas problematizações sobre feminismo e subversão da identidade, se até mesmo o "tornar-se" beauvoiriano é repensado via crítica wittiguiana, então noções como "sexo", "masculino", "feminino", "macho", "fêmea", "homem", "mulher", etc. são tão ficcionais quanto o gênero. Apesar da máscara de naturalidade, essas noções são parte de uma matriz que "opera através de um sistema de reprodução sexual compulsória" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:162). Elas fazem com que as imagens que nelas não se enquadram constituam "o domínio do desumanizado e do abjeto, em contraposição ao qual o humano se estabelece" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:162). Ao fim, só existem "no âmbito da matriz heterossexual" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:162); e é justamente por se esquivarem da crítica que é preciso problematizá-las, parodiá-las e, quiçá, subvertê-las.

Segundo Wittig, por se recusarem a endossar o que culturalmente se entende por "mulher", as lésbicas, além de não aceitarem a passividade que lhes seria imputada caso escolhessem outra coisa, também rejeitam isso que, segundo o patriarcado, surge como obrigação de habitar um corpo determinado. Como que anunciando a mutua imbricação entre o dizer (a fala) e o fazer (o ato), a essa lógica - e em nome da relação sexual entre mulheres - Wittig prefigura algo que em Butler soa paradigmático: se vistas como negras, as lésbicas "são negras; são vistas como mulheres, logo são mulheres - mas, antes de serem vistas dessa forma, tiveram que ser feitas dessa forma" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:45). Estamos falando da performatividade: noção central aos problemas de gênero, e que em Wittig também se anuncia quando ela, ao falar das lésbicas como "mulheres não verdadeiras", notabiliza "mulher" como algo que não devém sem certo "dizer". Mobilizando essas declarações, Butler recorre ao pensamento de Wittig para alertar: assim como a heterossexualidade, a diferença sexual não é prévia ao que se diz e se interpreta sobre ela. Feito uma performance não subversiva, sua demarcação é um ato interpretativo saturado de pressupostos normativos sobre um sistema binário de gênero (Butler, 1987).

Lendo Wittig e afirmando um matiz significativo para suas interpretações, Butler sugere que, para além do "tornar-se" beauvoiriano, a crítica feminista-materialista ao modelo psicanalítico e ao pensamento hétero e a consequente radicalização em nome de um "não se nasce mulher" põem em xeque a aceitação de que o "sexo" se constitui como universal, invariável, fixo, natural e a priori. Reinterpretando Wittig, Butler percebe: não havendo razões para diferenciarmos os corpos entre masculino e feminino, uma vez que isso perpetua as necessidades da matriz heterossexual, tampouco há motivos para conservarmos a distinção entre sexo e gênero. Aliás, "a própria categoria de 'sexo' traz marcas de gênero, é politicamente investida, naturalizada, mas não natural" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:164). Como parte do trabalho de ressignificação das estruturas que edificam o sexo e o gênero como atributos humanos, Wittig, segundo Butler, dá a entender que, se ambos são difundidos por um sistema que subjuga as mulheres, os gays, os negros e as lésbicas, trata-se de conclamar uma reorganização da descrição dos corpos e suas sexualidades sem recorrer ao "sexo e, consequentemente, às diferenciações pronominais que regulam e distribuem os direitos de expressão no interior da matriz do gênero" (Butler, 2003:165). Disto, se "sexo" é uma interpretação político-cultural do corpo, então "não existe a distinção sexo/gênero em linhas convencionais; o gênero é embutido no sexo, e o sexo mostra ter sido gênero desde o princípio" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:165). Afirmando Wittig segundo suas próprias intenções, Butler nota o quanto o "sexo" se faz em codependência performativa com o "gênero".

VII

Entretanto, quando acentua que a diferença sexual não é apenas nomeada, mas criada no ato da nomeação (Butler, 1987BUTLER, J. Variations on Sex and Gender: Beauvoir, Wittig and Foucault. In: BENHABIB, S.; CORNELL, D. (org.). Feminism as Critique: On the Politics of Gender. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987, pp.128-142.) e, paralelamente, que Wittig deixa em aberto o entendimento de que a linguagem se faz "investida do poder de criar 'o socialmente real' por meio dos atos de locução dos sujeitos falantes" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:167), Butler não está só reprisando os escritos wittiguianos, mas ressignificando-os. Além de lê-los, ela está amplificando a base pela qual alimenta suas reflexões sobre feminismos, pautas queer e, como é de se esperar, a performatividade de gênero. Se até então esses problemas foram pincelados, em Butler eles assumem um corpo teórico que nos levam a questionar se a afirmação da diferença sexual mediante ação nomeadora não resulta contraintuitiva em Wittig.

Por mais vigorosa que tenha sido a sua crítica ao pensamento hétero e ao modelo psicanalítico, Butler percebe que Wittig toma a diferença sexual como um fundamento ontológico apartado do seu correlato material. Mobilizando os textos wittiguianos enquanto úteis, a estadunidense salienta que não se trata aí de negar a materialidade das diferenças entre os corpos. Não se trata disso pois Wittig deseja questionar, do ponto de vista sociopolítico, o que são e como se constituem as estratégias de dominação que concedem privilégios a certas características anatômicas, como se estas fossem definidoras tanto do sexo quanto de suas identificações. Para Butler, o valor de Wittig reside em fazer questionar os motivos pelos quais partimos de certos privilégios e, elegendo-os como universais, predeterminamos os destinos de uma pessoa por aquilo que se apresenta nela como anatômica e sexualmente binário, diferenciado e generificado segundo termos heterossexuais (Butler, 1987). Como bem salienta Preciado, Butler entende que, longe de surgir de maneira espontânea em cada recém-nascido, a heterossexualidade precisa se "reinscrever ou se reinstruir através de operações constantes de repetição e recitação dos códigos [...] socialmente investidos como naturais" (Preciado, 2019:415). Dadas as dicotomias cotidianas, trata-se de tomar emprestadas as noções wittiguianas para problematizar as razões pelas quais postulamos a heterossexualidade como um fato, sempre o reeditando enquanto condicionante dos corpos e suas identificações.

Preocupada em quebrar com a anteposição do contrato heterossexual e da binaridade de gênero sobre a multiplicidade das sujeitificações, Wittig permite compreender que a divisão das práticas sexuais entre masculinas (sádicas) e femininas (masoquistas) não passa de "um conjunto arbitrário de regulações inscritas nos corpos que asseguram a exploração material de um sexo sobre o outro" (Preciado, 2019PRECIADO, P. B. O que é contrassexualidade? In: HOLLANDA, H. B. Pensamento feminist: conceitos fundamentais. Rio de janeiro, Bazar do tempo, 2019, pp.411-419.:414). Visto que "homem" e "mulher" são construções fictícias, a meta é subverter a diferença sexual enquanto forma de "heterodivisão do corpo na qual a simetria não é possível" (Preciado, 2019PRECIADO, P. B. O que é contrassexualidade? In: HOLLANDA, H. B. Pensamento feminist: conceitos fundamentais. Rio de janeiro, Bazar do tempo, 2019, pp.411-419.:414). Presente em como Butler lida com a heterossexualidade e a performatividade de gênero, as arguições wittiguianas tem em vista a subversão da lógica linear, coerente e não-contraditória pela qual os sujeitos culturalmente devêm. Bastante evidente quando, das experiências lésbicas, inquire um pensar irredutível aos modos como a sanha patriarcal concebe a corporeidade, sua retórica visa dar fôlego "a un universo creativo propio, fecundo en imágenes evocadoras de inhabituales mundos de ensueño" (Díaz, 2008DÍAZ, E. B. Qué Cuenta Como Una vida: La pregunta por la libertad en Judith Butler. Madrid, A. Machado Libros, 2008.:77). Ao denunciar o quanto a cultura obriga que as relações lésbicas sejam cooptadas pela norma hétero, a estratégia wittiguiana influencia Butler pois permite vislumbrar interpretações onde o objetivo é não só colocar em xeque a subjetividade imposta pelo patriarcado, mas reivindicar para as mulheres uma vida plena e significativa, na qual todas e cada uma das suas partes constitutivas (seus membros, órgãos, vísceras, fluidos, etc) são capazes de moldar um novo estilo de escrita do corpo.

VIII

Recitando na escrita o que dizem as palavras do corpo, Wittig contribui ao pensamento butleriano quando faz pensar que as significações alusivas do corpo feminino ocupam um lugar nas estratégias de enfrentamento aos modos como a cultura hétero elege como significativas as partes dos corpos das mulheres que podem servir como objetos de desejo e satisfação masculina, a saber: a boca, os seios, a vagina - tudo que está associado a reprodução da espécie e que, portanto, não pode ser simplesmente relegado ao domínio da repugnância. Não muito distante do que Butler advoga quando faz da abjeção um paradigma das subjetividades, Wittig explicita a questão da repugnância dos homens sobre as mulheres. Como uma realidade linguística e material apartada das binaridades e dos estereótipos hegemônicos, a experiência do corpo lésbico é o que, em Wittig, se constitui como protagonista na busca por uma mirada não patriarcalista, não sexual e não generificada a priori.

Rastreáveis não apenas em Variations on Sex and Gender (1987) e em Gender Trouble (1990), mas também em Bodies that matter (1993) - quando se entende que ser nomeado é ser inculcado na lei paterna "e ser formado, corporalmente, de acordo com a lei" (Butler, 2019BUTLER, J. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo, Edições N-1, 2019.:134) -, os comentários de Butler são, no mais das vezes, elogiosos. Em se tratando, por exemplo, da corporeidade lesbiana, é reconhecida aí não só a possibilidade de um terceiro gênero capaz de "transcender a restrição binária ao sexo, imposta pelo sistema da heterossexualidade" (Butler, 2003:41), mas um ponto de ruptura com o modo patriarcal de pensar a integridade corporal. A crítica wittiguiana ao pensamento hétero e, portanto, à psicanálise é assertiva quando afirma que, em função das restrições que impõe sobre a sexualidade, a derrubada da heterossexualidade compulsória originaria "um verdadeiro humanismo da 'pessoa', livre dos grilhões do sexo" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:21). Ao eleger as lésbicas como pedra angular para uma desessencialização das subjetividades, Butler diz que Wittig pensa a difusão de uma economia erótica capaz de "banir as ilusões do sexo, do gênero e da identidade" (Butler, 2003:41).

Ainda que contribua para as questões de gêneros, é importante notar, não obstante: Wittig passa por alto que nem a heterossexualidade constitui a causa monolítica do sujeito, nem a lesbianidade representa uma vivência apartada das relações de poder. Em sua crítica aos pressupostos de gênero, deixar a lesbianidade de lado como se fosse algo natural, além de uma fragilidade do pensamento wittiguiano, constitui um ponto inaceitável ao feminismo de Butler, pois há de se recusar quaisquer essências que se coloquem como "mais-além" ou "mais-aquém" do sujeito. Rechaçando a suposição de que, para superar o gênero, só "um distanciamento radical dos contextos heterossexuais — isto é, o tornar-se lésbica ou gay — pode produzir a queda do regime heterossexual" (Butler, 2003:175), Butler advoga que, se subversivos, os gêneros exigem a constante criação de "categorias ressignificáveis e expansíveis que resistem tanto ao binário como às restrições gramaticais substantivadoras que pesam sobre eles" (Butler, 2003:164). Isso significa que presumir o hétero como totalizante, ou seja, como se toda participação na heterossexualidade fosse opressiva, é questionável "tanto para a compreensão de Wittig da prática heterossexual como para sua concepção da homossexualidade e do lesbianismo1 1 Cabe aqui um esclarecimento: publicada no ano de 1990, essa citação de Judith Butler utiliza o sufixo "ismo" para denotar as relações amorosas entre mulheres lésbicas, carregando assim um certo tom de patologia. Contudo, destacamos que a palavra "lesbianismo" pode ser substituída por "lesbianidade". No sentido de não recairmos em certos perigos, optamos por empregar essa última terminologia. " (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:175).

Situada fora da heteronormatividade, as lésbicas são concebidas por Wittig como não condicionadas pelas regulações desta matriz. Ora, mas se são capazes de indicar um tipo de sujeito soberano apto a travar guerras linguísticas contra o "mundo" que o oprime, então parece que Wittig recusa a possibilidade de uma heterossexualidade por opção. Lembremos que, em Butler, os gêneros se fazem em ato e em devir; por isso, mesmo que se apresentem como compulsórios, nada há que justifique os atos heterossexuais como "radicalmente determinados" (Butler, 2003:175). Ademais, na prática, a separação entre hétero e gay não faz outra coisa senão reproduzir "o tipo de binarismo disjuntivo que ela mesma [Wittig] caracteriza como o gesto filosófico divisório da mentalidade hétero" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:175). Butler propõe que, tal qual a homossexualidade, a heterossexualidade pode se ressignificar e, sob determinados aspectos, servir para a subversão das normas de gênero.

Apesar da crítica ao pensamento hétero, quando reitera que "não se nasce mulher" e que, estando "para além" das categorias sexuais, a lésbica "não é uma mulher, seja em termos econômicos, seja em termos políticos ou ideológicos" (Wittig, 2022WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.:53), Wittig concebe um tipo de sujeito que, mesmo soberano, mostra-se ambíguo e contraintuitivo. De difícil leitura, o termo "lésbica" não remete: "a la relación homosexual, que ya está marcada por el sexo, sino a un modo de pensamiento y de vida ajeno y anterior a las marcas de sexo" (Díaz, 2008DÍAZ, E. B. Qué Cuenta Como Una vida: La pregunta por la libertad en Judith Butler. Madrid, A. Machado Libros, 2008.:79). Assim, partir de uma separação radical entre hétero e homossexualidade é compreender equivocadamente o psiquismo. Se existem estruturas homossexuais no âmbito da heterossexualidade, também é possível que haja "estruturas de heterossexualidade psíquica no âmbito da sexualidade e dos relacionamentos lésbicos e gays" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:176). Para Butler, Wittig não percebe que existem outros centros de poder "que constroem e estruturam tanto a sexualidade gay como a hétero; a heterossexualidade não é a única manifestação compulsória de poder a instrumentar a sexualidade" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:176).

IX

Tal qual uma existência em radical liberdade, a experiência lésbica em Wittig é como um locus afetivo que nomeia a libertação das mulheres em suas relações de servidão e dependência, ela é o que pode se realizar mediante "la destrucción de la heterosexualidad, entendida como sistema social, que es asimismo una destrucción de la diferencia entre los sexos" (Díaz, 2008DÍAZ, E. B. Qué Cuenta Como Una vida: La pregunta por la libertad en Judith Butler. Madrid, A. Machado Libros, 2008.:79). Lendo Wittig, Butler admite que há de se ter isso em conta, principalmente quando se considera a necessidade de subverter as categorias voltadas à manutenção das dicotomias "homem-mulher", "macho-fêmea", "masculino-feminino", "sujeito-alteridade", etc. Todavia, essa interpretação não se satisfaz!

Caracterizar as lésbicas como "fora" ou "para além", além de dificilmente escapar aos binarismos, mantém vigente a relação com a cultura, ainda que a meta seja negar os sistemas aí implicados: "el afuera de la cultura está, de algún modo, relacionado con la cultura" (Díaz, 2008DÍAZ, E. B. Qué Cuenta Como Una vida: La pregunta por la libertad en Judith Butler. Madrid, A. Machado Libros, 2008.:80). Paralelamente, quando indaga a supressão do sexo como categoria, Wittig reivindica não só uma definição de humanidade, mas outro tipo de sujeito no âmbito feminista. Argumentando que o sexo como classe precisa ser deposto, ela vislumbra uma sociedade sem sexo cuja consequência é um programa humanista (Butler, 1987BUTLER, J. Variations on Sex and Gender: Beauvoir, Wittig and Foucault. In: BENHABIB, S.; CORNELL, D. (org.). Feminism as Critique: On the Politics of Gender. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987, pp.128-142.). Ora, mas isso não cabe na teoria butleriana! Em certo sentido, Butler concorda quanto à necessidade de se opor aos binarismos e às suas hierarquizações, mas disto não decorre que esteja em vias de postular um sujeito humanista, assexuado, natural e a priori. Não soa convincente "mantener el supuesto estructuralista que dice que la cultura trabaja siempre al servicio de las oposiciones binarias" (Díaz, 2008DÍAZ, E. B. Qué Cuenta Como Una vida: La pregunta por la libertad en Judith Butler. Madrid, A. Machado Libros, 2008.:80).

Ao contrário do que Wittig transparece quando visa erradicar as categorias relativas ao sexo e ao gênero, a aposta butleriana é proliferar de tal modo a diversidade das identidades que os sistemas de regulação, ao ficarem sobrecarregados, tornam-se inócuos, obsoletos e inoperantes, como se infectados por um cavalo de Troia. Não de fora, mas de dentro da cultura, o labor feminista, se preocupado com a vulnerabilidade, além de lutar contra as oposições binárias das normas de gênero, deve alargar o que se entende por humano e, disto, abrir novas linhas de intelecção. Sendo verdade que não há referência de uma realidade humana fora da cultura, então é pelo curto-circuito dos sistemas normativos que devém as possibilidades de subversão e ressignificação das subjetividades hegemônicas. Reconhecendo a relevância de Beauvoir para Wittig, Butler sugere que o programa para superar as binaridades deve se preocupar com a inovação cultural, não com mitos de transcendência.

Sem abrir mão da crítica de Wittig ao sexo enquanto ideia natural, a meta de Butler, ao invés de erradicar o sexo, é orientar-se de tal modo pela multiplicação das identidades que os sistemas de opressão não darão conta de processá-las. Interpelando Wittig no sentido de que suas críticas parecem suscitar uma radical transcendência do sexo, é possível dizer que Butler a aproveita na medida em que fornece ferramentas úteis para a dissolução das restrições binárias e, consequentemente, para a proliferação das diversidades (Butler, 1987). Esse aproveitamento opera de tal modo que em Problemas de gênero, por exemplo, Wittig segue sendo motivo de reflexão ao pensamento feminista, mas não sem uma crítica ao seu viés humanista, em especial quando defende a noção de sujeito.

X

Visto que a lésbica é desenhada como corporificação de um Eu que se estabelece como prévio ao social, tudo leva a crer que, apesar de clamar a destruição do "sexo", Wittig não conseguiu prescindir "dos ideais humanistas cuja premissa é a metafísica da substância" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:41). Ela reedita as armadilhas do "Ser" e da "substância" "promovidas pela crença em que a formulação gramatical de sujeito e predicado reflete uma realidade ontológica anterior, de substância e atributo" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:42). Nisto, fica presa a uma metafísica que confirma o "modelo normativo do humanismo como o arcabouço do feminismo" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:42). E lá onde sugere a emancipação, só a "faz por via da defesa de uma 'pessoa' cujo gênero é preestabelecido" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:42). Assim, Butler considera que um aproveitamento mais frutífero de Wittig, além da sua crítica à psicanálise, é quando ela mostra que "não é possível significar as pessoas na linguagem sem a marca do gênero" (Butler, 2003:43). Levando-nos a refletir sobre como os gêneros conferem significação aos sujeitos, suas afirmações apontam não só ao poder que a linguagem tem para subjugar as mulheres, mas para a possibilidade de ela ser empregada no sentido das reivindicações por reciprocidade e reconhecimento.

Dados os vícios do pensamento hétero, é por empreender uma crítica à naturalização de categorias linguísticas e culturais que Butler reconhece os méritos de Wittig, admitindo aí certa impugnação das metafísicas tradicionais. É como se Wittig estivesse esboçando caminhos para a ideia de que, assim como o gênero, o sexo também é performativo. Diante de como se encontram as mulheres, a tarefa é assumir a posição de sujeito falante, de modo a "derrubar tanto a categoria do sexo como o sistema da heterossexualidade compulsória que está em sua origem" (Butler, 2003:167). Para tanto, há de se compreender a linguagem como uma série de atos que, repetidos e reiterados, "produzem efeitos de realidade que acabam sendo percebidos como 'fatos'" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:168). Nesse processo, nomear o sexo é uma forma de dominação; um tipo de ato performativo que "cria e legisla a realidade social pela exigência de uma construção discursiva/perceptiva dos corpos, segundo os princípios da diferença sexual" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:168). Não obstante, é por estabelecer a lésbica como locus da transcendência que os desacertos de Wittig são pontuados por Butler.

A estadunidense observa que existem dois níveis ontológicos nos escritos wittiguianos: o primeiro remete ao que é linguística e socialmente instituído, enquanto que o segundo alude a uma ontologia "mais fundamental, que parece ser pré-social e pré-discursiva" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:167). No primeiro nível, estão situadas as noções "de 'sexo' y de 'género', género gramatical también, así como las históricas y contingentes estructuras de la heterosexualidad obligatoria" (Díaz, 2008DÍAZ, E. B. Qué Cuenta Como Una vida: La pregunta por la libertad en Judith Butler. Madrid, A. Machado Libros, 2008.:82). Já no outro: se sexo faz parte da linguagem, então "há uma ontologia pré-social que explica a constituição do próprio discursivo" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:167). Seja como for, deve-se reconhecer que Wittig recusa qualquer hipótese pela qual se configuram significações universais que, prévias ao sujeito, orquestram a sua formação e o seu discurso. Neste âmbito, a luta contra o "gênero" constitui tema central na sua produção. Se não no sentido de destruir, mas pelo menos no de desconstruir os usos do "gênero", Wittig diz ser preciso transformar as estruturas que compõem a linguagem. Mesmo quando indiretamente afetadas pelas marcações de gênero, ela nota as palavras como sempre "comprometidas con el género, en sus formas, en sus significados" (Díaz, 2008DÍAZ, E. B. Qué Cuenta Como Una vida: La pregunta por la libertad en Judith Butler. Madrid, A. Machado Libros, 2008.:82).

Como uma das pautas centrais em seus livros, podemos dizer que, no âmbito da crítica ao modelo psicanalítico, Wittig subverte o uso das categorias que veiculam e perpetuam os gêneros através da linguagem, ao menos segundo uma matriz que nos tangencia ao binário e ao heterossexual. É como se a escrita oferecesse a Wittig a oportunidade de fazer "experiências com pronomes, os quais, nos sistemas de significação compulsória, fundem o masculino com o universal e particularizam o feminino" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:173). E em não se tratando de uma feminização do mundo, a busca wittiguiana reside em atuar na contramão de uma humanidade aprioristicamente binarizada, em oposição a uma noção de subjetividade "diferenciada social y políticamente en sexos dicotómicos y marcada en el lenguaje por el género gramatical" (Díaz, 2008DÍAZ, E. B. Qué Cuenta Como Una vida: La pregunta por la libertad en Judith Butler. Madrid, A. Machado Libros, 2008.:83). Recusando a interpretação de que "sujeito" é um termo masculino, Wittig mostra - e Butler a segue de perto - que a linguagem pode indicar um tipo de sujeito falante que aluda ao "objetivo político das 'mulheres', objetivo este que, alcançado, dissolveria [ ] a categoria de 'mulheres'" (Butler, 2003:196).

Segundo Butler, Wittig dá a entender que a linguagem possibilita para a escrita um campo de liberdade não determinável pelas convenções, e que alude a "posibilidad de construir la idea de un neutro vencedor de la diferencia sexual" (Díaz, 2008DÍAZ, E. B. Qué Cuenta Como Una vida: La pregunta por la libertad en Judith Butler. Madrid, A. Machado Libros, 2008.:84). Para a pensadora francesa, ainda que o "contrato hétero" trabalhe pela distorção das vias de reciprocidade, falar representa "um ato de poder, uma afirmação de soberania que implica uma relação de igualdade com outros sujeitos falantes" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:174). Dotada de possibilidades implícitas, a linguagem tanto pode ser usada para afirmar a universalidade inclusiva dos sujeitos, como para hierarquizá-los. Neste caso, é em razão do que impõe como norma que desautoriza certas pessoas. Contudo, antes que predominem as dissimetrias, Wittig aposta num tipo de contrato onde todo ato de fala pressupõe "uma reciprocidade absoluta entre os sujeitos falantes" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:174).

Alude-se aí a uma inovadora comunidade de afetos que tornam obsoletas as regularidades relativas ao sexo e ao gênero. Nisto, conceber o sexo como ficcional coloca em questão a naturalidade "da coerência do gênero supostamente existente entre corpos sexuados, identidades de gênero e sexualidades" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:178). Pela desintegração lésbica das categorias constitutivas da linguagem, do sexo, do gênero e das subjetividades, a tarefa não é preferir o feminino, mas "afastar o binário como tal" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:181). Para tanto, visto que o sexo não raro é tratado como um natural que impõe a heterossexualidade, é preciso reivindicar estratégias de reapropriação, deslocamento e subversão dos "'valores' que originalmente pareciam pertencer ao domínio masculino" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:182). Nisto, diz Butler a partir de Wittig (criticando-a): não se trata de combater a heterossexualidade, mas de ir "contra seu caráter compulsório" (Butler, 2003:182).

XI

Das críticas que tecem ao pensamento hétero e aos pilares psicanalíticos, os escritos wittiguianos são mobilizados por Butler por fornecerem um arcabouço capaz de deslocar as categorias identitárias, tanto no sentido de "fazer uso de termos originalmente opressivos como para privar esses termos das suas funções legitimadoras" (Butler, 2003:180). Aludindo não ao meramente individual, antes aos frutos das trocas culturais entre os corpos, Wittig não só subverte as normativas identitárias ao ponto de "desintegrar a falsa unidade designada pela categoria de 'sexo', mas põe em cena uma espécie de ação corporal difusa, gerada a partir de vários centros de poder" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:183). Como estratégia, sua meta é suscitar uma escrita na qual o sujeito deve como transitivo e cambiante: a "identidade é construída, desintegrada e recirculada no contexto de um campo de relações culturais" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:183).

Propondo uma ressignificação das binaridades sexuais, a força do pensamento wittiguiano reside em fazer pensar novas modalidades de corpo-generificação, para além das categorias hegemônicas. Por meio de estruturas linguísticas/psíquicas completamente originais, é aqui que Butler fala de uma luta erótica orientada para a criação e recriação de "novas categorias a partir das ruínas das velhas, novas maneiras de ser um corpo no campo cultural" (Butler, 2003:183). Sem deixar de alertar que precisamos estar atentos aos riscos de como a absolutização da experiência lésbica, por meio de um "feminismo materialista", pode converter-se em obrigação, impedindo assim a problematização das identidades, o que Butler reivindica de Wittig é a necessidade de as pautas feministas utilizarem termos identitários - a palavra "mulheres", por exemplo - apenas enquanto forem passíveis de questionamento.

Tomando emprestados os conceitos wittiguianos para fomentar sua concepção de gênero como performativo, é submetendo as ciências, as filosofias e a psicanálise aos ditames de uma análise do discurso que Butler constata: determinadas por uma heterossexualidade compulsória, as pressuposições culturais relativas ao status de homens e mulheres, assim como o primado da binaridade de gênero, além de estruturarem as pesquisas sobre a determinação sexual, dificultam a tarefa de distinguir sexo de gênero. Isso se acentua quando se compreende que, seja quais forem as narrativas, as mesmas estão entremeadas num emaranhado linguístico que, a despeito de qualquer neutralidade, reproduz os vícios patriarcalistas sobre os sujeitos que visa compreender. Não sendo o corpo um dado natural, antes o fruto das inter-relações que espontaneamente se estabelecem no mundo e com os outros, é possível alegar que, assim como o gênero, o sexo é produto das suas correlações com saberes que já estavam aí. Dadas as influências de Wittig sobre Butler, isso significa que tanto o gênero quanto o sexo podem ser performativamente ressignificados e desconstruídos2 2 Segundo Carla Rodrigues, vale notar que Butler busca desconstruir a binaridade sexo-gênero, não a destruir. Sua destruição "levaria à compreensão de que, se a dualidade sexo/gênero foi fundamental para o movimento do feminismo, sua destruição levaria ao seu abandono" (Rodrigues, 2021:168). , de modo que o que neles se acentua, ao invés da facticidade, é o aspecto factício, não-natural, ambivalente e impermanente. Tal impermanência e tais possibilidades de desconstrução e ressignificação são o que permitem Butler dar passos significativos ao que, do ponto de vista da performatividade, tornou-se sua crítica aos pressupostos das identidades hegemônicas.

Seguindo de perto os caminhos esboçados por Wittig, Butler toma como problemática a ideia de que um sujeito "é um gênero e o é em virtude do seu sexo, de seu sentimento psíquico do eu" (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.:44). Sendo esta uma das suas contribuições mais significativas - a saber: "que não há a verdade do gênero" (Rodrigues, 2021RODRIGUES, C. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo horizonte, Autêntica, 2021.:169) -, é mediante os aproveitamentos que faz entorno da crítica wittiguiana à psicanálise e ao pensamento hétero que Butler, dadas as possibilidades de agência e reinscrição das identidades, faz pensar caminhos para a ressignificação performativa das normas de gênero. Lendo Wittig ao seu modo, ela nota: é possível fazer com que a força e a compulsividade das leis se voltem contra elas mesmas, como num processo de sobrecarga; um curto-circuito cujos fins, além de políticos, atingem âmbitos filosóficos, epistemológicos e ontológicos.

Referências bibliográficas

  • BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2009.
  • BUTLER, J. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo, Edições N-1, 2019.
  • BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
  • BUTLER, J. Variations on Sex and Gender: Beauvoir, Wittig and Foucault. In: BENHABIB, S.; CORNELL, D. (org.). Feminism as Critique: On the Politics of Gender. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987, pp.128-142.
  • COSSI, R. K. Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos. São Paulo, Zagadoni, 2020.
  • DÍAZ, E. B. Qué Cuenta Como Una vida: La pregunta por la libertad en Judith Butler Madrid, A. Machado Libros, 2008.
  • PRECIADO, P. B. O que é contrassexualidade? In: HOLLANDA, H. B. Pensamento feminist: conceitos fundamentais. Rio de janeiro, Bazar do tempo, 2019, pp.411-419.
  • RODRIGUES, C. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo horizonte, Autêntica, 2021.
  • SÁEZ, J. Teoria Queer y psicoanálisis. Madrid, Editorial Sínteses, 2004.
  • WITTIG, M. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2022.
  • 1
    Cabe aqui um esclarecimento: publicada no ano de 1990, essa citação de Judith Butler utiliza o sufixo "ismo" para denotar as relações amorosas entre mulheres lésbicas, carregando assim um certo tom de patologia. Contudo, destacamos que a palavra "lesbianismo" pode ser substituída por "lesbianidade". No sentido de não recairmos em certos perigos, optamos por empregar essa última terminologia.
  • 2
    Segundo Carla Rodrigues, vale notar que Butler busca desconstruir a binaridade sexo-gênero, não a destruir. Sua destruição "levaria à compreensão de que, se a dualidade sexo/gênero foi fundamental para o movimento do feminismo, sua destruição levaria ao seu abandono" (Rodrigues, 2021:168).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2022
  • Aceito
    26 Abr 2023
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