Acessibilidade / Reportar erro

"She leads expediction": a trajetória de Maria Czaplicka na história da antropologia* * Resenha do livro: KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020. Tradução de Ben Koschalka.

KUBICA, Grazyna. . Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biographyLincoln: University of Nebraska Press, 2020Ben, Koschalka. .

No livro Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography (2020), Grazyna Kubica apresenta a biografia da antropóloga Maria Czaplicka (1884-1921), polonesa e contemporânea de Bronislaw Malinowski na London School of Economics. Ambos saíram de seu país para estudar antropologia sob uma nova perspectiva, já que na Polônia ainda era percebida como uma ciência física (Kubica, 2020KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020.). O livro, lançado em 2020, é definido pela autora como sendo uma "história da antropologia crítica e feminista", e sua escolha para olhar para a trajetória de Maria Czaplicka justifica-se pela figura enigmática dessa mulher na história da antropologia. Com quase 700 páginas e cerca de 31 capítulos, trata-se uma pesquisa de fôlego dentro do campo da historiografia. A autora é uma antropóloga polonesa que, durante anos, realizou pesquisa documental pelo mundo e, nessa obra, propõe uma perspectiva mais panorâmica que atravessa as linhas nacionais e defende que a historiografia da antropologia precisa de uma teoria que vá além da dicotomia entre presentismo e historicismo estabelecida por George Stocking na década de 1960.

A autora argumenta que, devido à lógica própria do trabalho de campo, as mulheres emergiram como pesquisadoras ativas na antropologia sem enfrentar os desafios presentes em outras disciplinas. Os etnógrafos homens não tinham acesso ao "mundo das mulheres" em suas pesquisas, precisando então da presença e ajuda de suas esposas ou de outras pesquisadoras. Ela propõe uma redefinição dos cânones da disciplina para abarcarem mais mulheres e suas conquistas. O livro está localizado no campo de pesquisa das histórias das mulheres na academia, e seu objetivo não é o de apenas desenhar a vida de Czaplicka, mas acessar sua obra e apreciar e destacar seu impacto teórico, tendo como resultado o enriquecimento de nossa disciplina. Logo no início, Kubica define o livro como uma "biografia antropológica", mas, ao longo da leitura, não fica claro qual seria a real inovação no uso desse termo e o porquê de a autora tê-lo escolhido para especificar sua pesquisa.

Há algumas características do livro de Kubica, sobretudo o foco em uma personagem singular como Czaplicka, que também estão presentes no livro Antropólogas & Antropologia (2003) de Mariza Corrêa. A antropóloga busca, através da pesquisa historiográfica, situar os constrangimentos de gênero investidos nas trajetórias de mulheres na antropologia. Desenvolve sua argumentação pela trajetória de três pesquisadoras (que ela denomina de "três heroínas do romance antropológico brasileiro"): Emília Snethlage, ornitóloga alemã; Leolinda Daltro, professora sertanista; e Heloísa Torres, antropóloga do Museu Nacional. Mariza nos mostra como o gênero enquanto categoria social afetou suas vidas e suas carreiras, porém, apesar de serem todas mulheres, a autora frisa que as personagens são desiguais em suas trajetórias. Ela nos lembra que qualquer categoria analítica corre o risco de tornar-se reducionista; no entanto, o brilhantismo do livro não está no caráter justiceiro de "dar voz" às mulheres ofuscadas pela história da disciplina, mas sim de priorizar a busca da compreensão e complexidade dos contextos e mediações nesses três exemplos trazidos por ela. Como afirma: "é possível explicitar esses conteúdos tão variáveis e essas formas mais permanentes, recolocando essas personagens cada uma em seu cenário próprio, tentando compreender a leitura que seus interlocutores faziam de sua presença ali e situando-as no contexto de atuação de suas contemporâneas em outros lugares do mundo" (Corrêa, 2003:31). Uma característica apontada pela autora que as três personagens compartilham é o fato de terem sido pesquisadoras por conta própria, e não como esposas de antropólogos, situação semelhante à que Maria Czaplicka vivenciou na Europa no século XIX. Em cada caso, foram situações chamadas por Mariza de anômalas dentro da história da disciplina, porque escapam da "regra" de serem esposas ou auxiliares de pesquisa. Tais figuras não eram consideradas intelectuais plenas por não serem homens, não eram esposas de antropólogos e não eram "somente mulheres", estavam inseridas em categorias ainda não plenamente reconhecidas. Ao escolher Emilia, Leolinda e Heloísa, a autora exerce um poder analítico sobre as questões por ela proposta: como figuras anômalas, não se encaixavam nas categorias de gênero pré-estabelecidas. Os constrangimentos de gênero se sobrepõem a outros marcadores sociais, e a busca de Mariza é lançar luz as relações e contextos diferentes em cada caso.

Já a escolha de Kubica pela figura de Maria Czaplicka, diferentemente de Mariza Corrêa, foi inspirada por Sally Cole em Ruth Landes: A Life in Anthropology (2003), a qual pretende criar uma genealogia de mulheres, uma antropologia matrilinear. Segundo Kubica, como a disciplina tem poucas "mães fundadoras", há uma necessidade de encontrar pouco conhecidas ou esquecidas mulheres etnógrafas. Ao longo de seu livro, busca repensar a teoria desenterrando posições negligenciadas relendo escritas antropológicas de mulheres.

Sua carreira é marcada pela história das mulheres na antropologia. Em 2002, a autora decidiu investigar quem foram as mulheres interessantes, mas esquecidas, que cercavam Malinowski. Lançou o livro Malinowski Sisters, or Modern women in the early twentieth century em 2006, contando a história de pelo menos doze mulheres. Ao longo da pesquisa para a escrita desse livro, frequentou a National Library em Varsóvia e se deparou com valiosas descobertas: um romance escrito por Czaplicka em 1911, correspondências trocadas com um escritor e poemas escritos por ela. Para a autora, escrever uma "biografia antropológica" requer uma análise de perspectivas que se sobrepõem: a vida de uma pessoa específica, sua pesquisa científica, a história da antropologia e a "atmosfera intelectual" do tempo dessa pessoa, frisando a importância do estudo dos contextos nos quais as obras foram produzidas (Kubica, 2020KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020.:9).

Este é o objetivo do campo de pesquisa da história da antropologia: de localizar o objeto (ou sujeito) em seu contexto sociocultural e teórico daquele tempo; o mesmo é defendido por Mariza Corrêa para entender os constrangimentos de gênero vivenciados pelas três personagens no Brasil. No livro, Kubica tenta mostrar a "heroína" e sua obra no contexto do ethos ideológico da esquerda polonesa do século XIX, do modelo positivista de financiamento de bolsas, da emancipação das mulheres, como também do colonialismo russo e do nacionalismo polonês. A autora defende que a história é material para a teoria antropológica. A tarefa da historiadora da antropologia não é só retomar concepções antigas, mas também as colocar no contexto intelectual e biográfico de determinado tempo, mostrando de onde eles se originaram e de que modo se revelavam. O objetivo da historiografia da antropologia é tornar nós, praticantes contemporâneos da disciplina, mais reflexivos. Tal objetivo não consiste em submeter as teorias antigas ao debate de nosso tempo, mas em refletir a partir delas, tendo em mente as limitações e os pontos positivos de nossas próprias premissas teóricas, métodos e generalizações (Kubica, 2020KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020.).

A autora traça detalhadamente o contexto político, social e familiar em que Czaplicka cresceu e foi criada. Faz o trabalho de contextualização com maestria: ao longo a leitura do livro, a leitora é levada, por meio do texto descritivo, a lugares como a Varsóvia do final do século XIX. Kubica comenta que o interesse em antropologia era comum ao público leitor no começo do século XX e teve um lugar de destaque na vida intelectual polonesa, apesar de não ser uma disciplina oficial (Kubica, 2020). Quando Czaplicka estava iniciando sua formação, a educação formal da parte russa da Polônia era toda ensinada em russo. No entanto, existiam escolas particulares ilegais que ensinavam polonês, sendo um importante exemplo a chamada Flying University. Apesar de existirem aulas regulares, os cursos não davam as qualificações formais de um diploma. A maioria dos alunos eram mulheres, e muitas cientistas foram formadas inicialmente ali, incluindo a cientista mundialmente reconhecida Marie Curie, suas duas irmãs e a protagonista Maria Czaplicka (Kubica, 2020KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020.). Na Polônia, as famílias nobres intelectuais que perderam suas terras foram trabalhar nas cidades, e o único capital de que dispunham era a educação. Czaplicka trabalhou como professora em Varsóvia por exaustivas horas mal pagas ou mesmo voluntárias, mas sempre teve um perfil ativo e sede por conhecimento. Participou do primeiro congresso de mulheres polonesas em 1907 e escreveu poemas referentes à uma paixão platônica por Orkan Wladyslaw, um escritor influente na Polônia da época. Seus poemas não falam somente de romance; neles, retratam-se conflitos sobre corporalidade feminina, papéis de gênero da época e seu dilema pessoal de ter seguido o caminho da ciência (masculino) ao invés de se render aos sentimentos (feminino)1 1 No original: "[...] A woman's is my body alone / With an abnormal soul inside: / What for both sexes is a gift / In myself I must abide I have a man's hungry, unsatisfied eagerness, / Ans steadfast courageousness, / With it, female vacillation and tenderness / And exultant lastingness. If to you I give my suffering / with this strange constitution of mine / I remain alone with my torment - / And all your pain. For I exceed you in my womanhood, / Yet in manhood do not abate - / Derisively proud of this monstrousness / Poisoned with laughter's weight." (Kubica, 2020:86). . Pensando nas categorias analíticas de Corrêa, Czaplicka pode ser considerada uma figura anômala em seu contexto. Sua vida foi um exemplo para mulheres do leste europeu ao mostrar que era possível ultrapassar os modelos tradicionais de feminilidade (Kubica, 2020KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020.).

A autora também nos leva para conhecer as mulheres antropólogas na Associação Britânica para o Avanço da Ciência, no Royal Anthropology Institute, Folklore Society e Royal Geography Society, e como se deram os primórdios da carreira britânica de Czaplicka diante do contexto da época. Conta sobre seu principal mentor durante seus estudos em Oxford, Robert Marrett. Czaplicka entrou na London School of Economics em 1910, e, nesse momento, a sala de leitura do Museu Britânico era um lugar ocupado por mulheres e no qual Malinowski e Czaplicka tornaram-se colegas (Kubica, 2020KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020.). Um exemplo da relação entre Malinowski e Czaplicka é o financiamento pedido por Czaplicka para a Academy of Learning da Cracóvia, que, na época, financiou Malinowski, mas se recusou a financiá-la porque os subsídios oferecidos eram exclusivos para homens. Caso similar foi revelado por Mariza em seu livro: Audrey Richards, uma das alunas e amigas de Malinowski, queixa-se para ele numa carta que Evans-Pritchard recebia cem libras a mais do que ela na London School of Economics e tinha uma carga docente mais branda que a sua. Ele, seu orientador, recomendou-lhe ser menos delicada e menos tímida (Corrêa, 2003CORRÊA, Mariza. Antropólogas e Antropologia. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2003.).

Kubica nos conta também todo o processo de construção do primeiro livro de Maria Czaplica, Aboriginal Siberia (1914), e é interessante como consegue reconstituir a mentalidade dos poloneses sobre a pesquisa na Sibéria: um lugar de teor traumático devido aos exílios do regime Tzarista, mas que para alguns como Czaplicka, foi uma oportunidade de fazer etnografia. Sobre a preparação para o trabalho de campo, a autora remonta a todo o processo de organização da expedição, os inúmeros pedidos de financiamentos e como alguns deles foram recusados devido ao fato de ela ser uma pesquisadora mulher. Aqui, é possível observar a importância das mediações envolvidas no processo de financiamento e como a própria Czaplicka era percebida entre seus pares: uma jovem e brilhante antropóloga que estava encabeçando tal expedição para a tundra siberiana, como mostra uma das manchetes do Washington Post de abril de 1914: "She leads expediction: Russian girl at head of party sent from Moscow" (Kubica, 2020KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020.:244).

Após o retorno da extensa pesquisa na Sibéria, Kubica escreve sobre a estadia em Oxford e o retorno de Czaplicka à Polônia. Moradias como Lady Margaret Hall proporcionaram às mulheres apoio para que continuassem na ciência sem se sentirem culpadas por serem solteiras ou por não se dedicarem somente à família (Kubica, 2020). Conta que o fim da guerra teve impacto negativo em sua carreira docente, já que o professor que ela estava substituindo retornaria ao seu cargo. Semelhante processo é descrito por Corrêa quando menciona as trajetórias das antropólogas Audrey Richards, Camilla Wedgwood e Elsie Clews Parsons: assim como Czaplicka, nenhuma delas ocupou uma cadeira de antropologia que lhes permitisse formar alunos ou uma tradição de pesquisa. Todas seguiram o que era mais comum naquele momento: serem professoras em escolas de moças ou em colleges como Czaplicka, ajudando a formar um pensamento crítico nos estudantes que frequentariam as universidades nas gerações seguintes (Corrêa, 2003CORRÊA, Mariza. Antropólogas e Antropologia. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2003.). No capítulo 24, a autora se dedica a falar sobre antropólogos no debate público. Ela destaca o papel das mulheres, que, a partir do conhecimento etnográfico sobre mulheres de outras culturas, apontavam para os múltiplos modelos culturais de feminilidade para apoiar a emancipação feminina em sua própria cultura. Czaplicka teve importante papel e participação na esfera pública escrevendo para diversos jornais e fazendo palestras, sendo esta sua fonte de renda, já que não tinha uma posição permanente nas universidades como seus colegas homens.

Nos capítulos finais, a autora remonta aos períodos mais difíceis da vida da protagonista, que tentou trabalhar nos Estados Unidos com Franz Boas, mas sem nenhum sucesso, e depois sua mudança para Bristol e toda a infelicidade encontrada por lá. Junta os fragmentos de uma série de desfortunas que provavelmente levaram Czaplicka a cometer suicídio em 1921, com apenas 36 anos. É interessante como Kubica se faz presente no texto, tanto ao adicionar uma foto sua com o túmulo da biografada como ao compartilhar os esforços e tentativas de seu restauro, dizendo que a sepultura atualmente aparenta abandono no Wolvercote Cemetery, em Oxford.

O livro traz um olhar inédito sobre a figura de Maria Czaplicka, uma contextualização minuciosa sobre o universo acadêmico na Europa no início do século XX - o mesmo universo que criou Malinowski - e corrobora um dos argumentos principais da autora a saber: Czaplicka perdeu oportunidades de trabalho, de pesquisa e possivelmente de se tornar um dos cânones da disciplina pelo fato de ser uma mulher cientista naquele contexto. Assim como Mariza Corrêa, Grazyna Kubica busca olhar com atenção para a história da disciplina a partir de trajetórias de mulheres que não se tornaram cânones. A contribuição de Kubica para o campo da historiografia da antropologia é de extrema relevância devido aos detalhes oferecidos à leitora, a pesquisa precisa e a escrita descritiva. É recomendada a leitura do livro àquelas interessadas na vida de Czaplicka ou no contexto da disciplina no início do século XX, assim como a quem deseja pensar sobre trajetórias de mulheres cientistas e o que precisaram enfrentar para realizar seus trabalhos, mostrando a pertinência e atualidade dessa história da antropologia crítica e feminista.

Referências bibliográficas

  • CORRÊA, Mariza. Antropólogas e Antropologia Belo Horizonte, Editora UFMG, 2003.
  • KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020.
  • *
    Resenha do livro: KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020. Tradução de Ben Koschalka.
  • 1
    No original: "[...] A woman's is my body alone / With an abnormal soul inside: / What for both sexes is a gift / In myself I must abide I have a man's hungry, unsatisfied eagerness, / Ans steadfast courageousness, / With it, female vacillation and tenderness / And exultant lastingness. If to you I give my suffering / with this strange constitution of mine / I remain alone with my torment - / And all your pain. For I exceed you in my womanhood, / Yet in manhood do not abate - / Derisively proud of this monstrousness / Poisoned with laughter's weight." (Kubica, 2020KUBICA, Grazyna. Maria Czaplicka. Gender, Shamanism, Race. An anthropological biography. Lincoln, University of Nebraska Press, 2020.:86).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2022
  • Aceito
    02 Jun 2023
Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br