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Além do “Empoderamento Light”: empoderamento feminino, desenvolvimento neoliberal e justiça global* * Tradução: Daniela Ferreira Araújo Silva.

Resumo

Um aparente paradoxo persegue o aumento do empoderamento de mulheres e meninas. O argumento instrumental para “investir nas mulheres” foi colocado de forma persuasiva e brilhante. No entanto, o “caso do empreendedorismo” é sustentado principalmente por pesquisas feministas estruturadas por preocupações materialistas com desigualdade persistente ao invés do propósito de “liberar potencial”, e com transformação estrutural em vez de simplesmente incorporar mulheres em mercados de trabalho sustentados por normas e práticas injustas e discriminatórias. Situo algumas das contradições da atual conjuntura e exploro o papel da análise crítica na desestabilização dos mitos e conflações de gênero que caracterizam o que eu chamo de empoderamento light.

Neoliberalismo; Empoderamento; Gênero; Justiça Global

Abstract

An apparent paradox stalks the rise of women’s and girls’ empowerment. The instrumental case for “investing in women” has been persuasively and glossily made. Yet the “business case” is primarily underpinned by feminist research framed by materialist concerns with persistent inequality rather than “unleashing potential” and with structural transformation rather than simply the incorporation of women into labour markets underpinned and sustained by inequitable and discriminatory norms and practices. I situate some of the contradictions of the current conjuncture and explore the role of critical analysis in destabilising the gender myths and conflations that characterise what I call empowerment lite.

Neoliberalism; Empowerment; Gender; Global Justice

Introdução

Um aparente paradoxo persegue o aumento do empoderamento das mulheres. O argumento instrumental para “investir em mulheres e meninas” nunca foi defendido de forma tão persuasiva e brilhante. Assistimos a um crescente desfile de atores corporativos, incluindo grandes corporações transnacionais e bancos de investimento, juntando-se a bancos de desenvolvimento, doadores, ONGs e filantropos capitalistas para exaltar as contribuições que mulheres e meninas fazem para o desenvolvimento. À medida que conceitos feministas como “agência” (agency) e “escolha” passaram a ser colocados a serviço do neoliberalismo, a palavra “empoderamento” foi eviscerada de conteúdo controverso ou desafiador (Batliwala, 2007Batliwala, Srilatha. Taking the Power out of Empowerment – An Experiential Account. Development in Practice 17, nos 4-5, 2007, pp.557-565.; Chakravarti, 2008Chakravarti, Uma. Beyond the Mantra of Empowerment: Time to Return to Poverty, Violence and Struggle. IDS Bulletin, 39, 2008, pp.10-17.; Wilson, 2008Wilson, Kalpana. Reclaiming “Agency”, Reasserting Resistance. IDS Bulletin 39(6), 2008, pp.83-91.; Cornwall; Gideon; Wilson, 2008Cornwall, Andrea; Gideon, Jasmine; Wilson, Kalpana (ed.). Reclaiming Feminism: Gender and Neoliberalism. IDS Bulletin 39(6), 2008, pp.1-9.). Em vez disso, o ônus está na acomodação de mulheres e meninas dentro das ordens sociais e de gênero existentes: em colocá-las para trabalhar pelo desenvolvimento, em vez de fazer com que o desenvolvimento funcione para elas. E, no entanto, os argumentos em que se baseia o “caso de empreendedorismo” surgem de mais de três décadas de pesquisa e defesa por acadêmicas feministas, para quem a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres são enquadrados por uma preocupação com a desigualdade persistente e não com a intenção de “liberar potencial”, e com transformação estrutural em lugar de simplesmente incorporar as mulheres nos mercados de trabalho sustentadas por normas e práticas desiguais.

Prestando muita atenção à denominação neoliberal das mulheres como tema de empoderamento, destaco neste artigo a “confluência perversa”, tomando emprestada a expressão de Evelina Dagnino (2007)Dagnino, Evelina. Citizenship: a perverse confluence. Development in Practice 17(4-5), 2007, pp.549-556., dos enquadramentos feministas e dos discursos prevalentes de empoderamento das mulheres. Situo algumas das contradições da conjuntura atual no projeto de desenvolvimento internacional que começou com o colonialismo e chegou nas últimas décadas a ser aproveitado, que Pradella e Marois (2015Pradella, Lucia; Marios, Thomas (ed.) Polarizing Development: Alternatives to Neoliberalism and the Crisis. London, Pluto Press, 2015.) denominam de “o novo desenvolvimentismo”. Traçando os caminhos pelos quais o foco feminista na consciência e na ação coletiva que animaram os discursos anteriores de empoderamento das mulheres passou a ser eclipsado, eu faço eco à ênfase de Schild na “necessidade de localizar a problemática convergência entre projetos de emancipação feminina e capitalismo neoliberal” (Pradella Marois, 201Pradella, Lucia; Marios, Thomas (ed.) Polarizing Development: Alternatives to Neoliberalism and the Crisis. London, Pluto Press, 2015.5:74), como central para o projeto de definir um “feminismo crítico renovado”.

Definindo Empoderamento como “Empoderamento Light”

As narrativas de empoderamento que ganharam destaque nas falas das principais instituições e corporações internacionais de desenvolvimento, exaltando seu desejo de capacitar as mulheres a realizarem seu “potencial,” nos oferecem o empoderamento light, uma versão de empoderamento destituída de qualquer confrontação com as relações sociais e de poder subjacentes que produzem iniquidades sociais e materiais. Uma panóplia de mitos de gênero (Cornwall; Harrison; Whitehead, 2007Cornwall, Andrea; Harrison, Elizabeth; Whitehead, Ann (ed.). Feminisms and Development: Contradictions, Contestations and Challenges. London, Zed Books, 2007.) são aproveitados para representar as mulheres como um bem precioso de desenvolvimento, a boa mãe conscienciosa, diligente e voltada para a comunidade cujo empoderamento pode “elevar” sua família, comunidade e país para sair da pobreza. O “empoderamento feminino” anuncia a promessa de uma série de resultados de desenvolvimento: melhor saúde infantil, melhor governança, melhores resultados econômicos, o santo graal do crescimento econômico. As mulheres tornam-se um meio de assegurar esses resultados, instrumentalizados para “suprir” o desenvolvimento.

Dois atributos do empoderamento light distinguem-no de outras variantes. Um é o foco estreito na dimensão econômica do empoderamento e a maneira pela qual o poder do dinheiro e a natureza do mercado passam a ser representados. O outro são as causalidades imputadas às intervenções das agências de desenvolvimento, que parecem oferecer uma quantia enorme por muito pouco – não incomum para uma indústria que está constantemente prometendo o que não pode oferecer. A ONU Mulheres, por exemplo, adotou a seguinte linguagem para sua primeira divulgação promocional pouco depois de ter sido estabelecida em 2010:

Um Investimento de Alto Retorno

Há grandes esperanças para a ONU Mulheres. Assim como a ambição e a necessidade de ações corajosas. É possível imaginar o fim da discriminação contra as mulheres se os investimentos certos forem feitos… (UN Women, 2011, ênfase minha).

Em uma caixa proeminente nesse material de divulgação da ONU Mulheres está citado o seguinte trecho do Global Gender Gap Report [Relatório Global da Desigualdade de Gênero] produzido para o Fórum Econômico Mundial de 2010: “Países com maior igualdade de gênero têm economias que são mais competitivas e crescem mais rápido, como demonstrado por pesquisas em 114 países”. O exame rigoroso de Naila Kabeer e Luisa Natali (2013) sobre a relação entre o crescimento econômico e a igualdade de gênero elimina algumas das equações simples que passaram a ser reproduzidas tão levianamente nesses discursos. Elas mostram que o crescimento econômico não necessariamente acompanha a igualdade de gênero, embora a igualdade de gênero possa, sob certas condições, contribuir para o crescimento econômico.

Vemos o recrutamento das descobertas feministas para a recriação didática de fábulas feministas que inscrevem e reinscrevem, de diferentes formas em todo o mundo, a “mulher empoderada” como economicamente autônoma. Ficções numéricas evocativas – as mulheres fazem 70% do trabalho do mundo, as mulheres possuem 1% da propriedade do mundo – são mobilizadas em favor de argumentos para a igualdade em que apenas a feminista mais corajosa se atreve a resistir em aceitar. Tais números, e os argumentos a eles associados, tornam-se ficções que circulam, assumindo vida própria à medida que passam do site para o relatório, para os discursos e para as políticas. Investir em mulheres, nos é dito repetidas vezes, é o melhor investimento que as agências de desenvolvimento podem fazer.

Exemplos proeminentes dessa narrativa incluem o apresentado em um infográfico desenvolvido pela organização não governamental Women Deliver como parte de seu kit de ferramentas de 2014 Invista em Mulheres, Todos Ganham. Uma figura feminina é retratada, com o slogan “Meninas e mulheres são o coração do desenvolvimento”, rodeada por quatro caixas de texto: “melhorar a saúde”, “fortalecer economias”, “criar nações sustentáveis”, “reduzir a fome”, “aumentar a produtividade” e “Famílias beneficiárias”. O infográfico é levemente polvilhado com o pó mágico dos factóides: “quando 10% mais garotas vão para a escola, o PIB de um país aumenta em média 3%”; “meninas e mulheres gastam 90% de sua renda em suas famílias, enquanto os homens gastam apenas 30-40%”; “eliminar as barreiras ao emprego para meninas e mulheres poderia aumentar a produtividade do trabalho em 25% em alguns países”; “superar a desigualdade de gênero na agricultura poderia tirar de 100 a 150 milhões de pessoas da fome”.

Em um artigo do Huffington Post que tipifica o alcance público que essa narrativa está obtendo, intitulado Por que investir em mulheres?, a autointitulada “entusiasta do bem social” Amy Schoenberger conta “histórias de determinação que surgem desses desafios impossíveis”.1 1 http://www.huffingtonpost.com/amy-schoenberger/why-invest-in-women_b_3245862.html O relato de Schoenberger tem todos os ingredientes do Sonho Americano e nada das desigualdades estruturais que produzem e sustentam a pobreza que, segundo sua descrição, as mulheres empreendedoras buscam deixar para trás.2 2 http://www.huffingtonpost.com/amy-schoenberger/why-invest-in-women_b_3245862.html De fundações filantrópicas, a doadores bilaterais ocidentais, à ONU Mulheres, o mantra de “investir em mulheres e meninas” tornou-se o clamor de um clarim. A Goldman Sachs nos garante: “investir no poder das mulheres vale à pena”.3 3 http://www.goldmansachs.com/citizenship/10000women/news-and-events/10kw-progress-report/progress-report-full.pdf Como descreve uma fundação de mulheres canadenses, lisonjeando o possível investidor, esse investimento é “não apenas a coisa certa a fazer, é um investimento inteligente em um futuro melhor”.4 4 http://www.canadianwomen.org/why-invest-in-women-and-girls

Falar de “empoderar as mulheres” implica que o poder pode ser transmitido, e as mulheres são recipientes que podem ser infundidos com ele. Alegações de estar “empoderando as mulheres”, engajando-as no mercado, conjuga poder ao dinheiro. A aquisição de dinheiro passa a ter poderes quase mágicos, como se, uma vez que as mulheres tivessem seu próprio dinheiro, poderiam sacudir a varinha e, num passe de mágica, fazer desaparecer as normas sociais, as relações afetivas e as instituições subjacentes que as constrangem.

Visões de Empoderamento

O empoderamento feminino seria, ao que parece, um veículo ímpar para o setor de desenvolvimento utilizar para perseguir o projeto iniciado na era do ajuste estrutural dos anos 80. Olhando mais de perto, a lógica fica clara. Valorizados tanto por seu papel como consumidoras em alimentar o motor do crescimento econômico quanto por seu trabalho nos empregos precários de baixos salários, criados pela globalização das indústrias orientadas para a exportação, e seu papel em permear mercados não alcançados, “o investimento em mulheres e meninas” se torna uma panaceia de desenvolvimento. Ginger Boyd aponta três dimensões desse movimento que visa as mulheres, como: “1) devedoras na expansão dos mercados de crédito; 2) exploradas na expansão dos mercados de consumo; e 3) o “recurso inexplorado para mão de obra barata” (2016:146). Como Nancy Fraser afirma: “O capitalismo desorganizado transforma a orelha de uma porca em uma bolsa de seda ao escrever um novo romance do avanço feminino e da justiça de gênero” (Fraser, 2009:210).

O empoderamento light não soa real. Seus proponentes também imitam algumas das estratégias que organizações e movimentos feministas usaram para auxiliar as mulheres a se fortalecerem. Os grupos de conscientização feminista da segunda onda, por exemplo, reuniam mulheres para refletir e analisar criticamente suas vidas, como cadinhos de consciência e ação coletiva. O empoderamento light empresta o princípio dos grupos de mulheres, mas os usa como um meio de oferecer garantias para empréstimos, provendo as sanções sociais que estimulam o pagamento, compartilhando dicas de negócios e dando apoio moral às mulheres enquanto elas lutam contra os caprichos do mercado, dívidas e tensões domésticas.

Batliwala (2007)Batliwala, Srilatha. Taking the Power out of Empowerment – An Experiential Account. Development in Practice 17, nos 4-5, 2007, pp.557-565. mapeia a dissipação da promessa transformacional da noção de empoderamento à medida que passou a ser assimilada pelas agências internacionais de desenvolvimento. Ela reflete sobre um relatório de uma iniciativa de capacitação em larga escala na Índia, de 1993, na qual ela definiu o empoderamento como

um processo que desloca o poder social de três formas críticas: desafiando as ideologias que justificam a desigualdade social (como gênero ou casta), mudando os padrões prevalentes de acesso e controle sobre os recursos econômicos, naturais e intelectuais, e transformando as instituições e estruturas que reforçam e sustentam estruturas de poder existentes (família, Estado, mercado, educação, mídia, etc.) (Batliwala, 2007Batliwala, Srilatha. Taking the Power out of Empowerment – An Experiential Account. Development in Practice 17, nos 4-5, 2007, pp.557-565.:xx).

O relato de Batliwala continua refletindo sobre como essa abordagem do poder chegou a se dissolver completamente quando as agências de desenvolvimento assumiram o empoderamento como um objetivo de desenvolvimento. Em seu lugar, vemos a ascensão de uma noção individualizada de autoempoderamento através do mercado. Cecilia Sardenberg (2008)Sardenberg, Cecilia. Liberal vs Liberating Empowerment: Conceptualising Empowerment from a Latin American Feminist Perspective. IDS Bulletin 39 (6), 2008, pp.18-27. baseia-se no trabalho de Ann Ferguson para fazer uma distinção útil entre abordagens “libertadoras” e “liberais” para o empoderamento. Escrevendo sobre o “fortalecimento liberal”, ela observa:

o foco está no crescimento individual, mas numa perspectiva atomizada, isto é, na noção da ação racional dos atores sociais baseada nos interesses individuais (Romano, 2002, apud Sardemberg, 2010:234).

É uma abordagem que despolitiza o processo de empoderamento tirando o poder da equação. Em vez disso, o foco está em aspectos técnicos e instrumentais que supostamente podem ser “ensinados” em cursos especiais de treinamento, por exemplo (Sardemberg, 2008:18).

O empoderamento liberal procura simplesmente acomodar as mulheres dentro do mercado sem interromper as desigualdades sociais e de poder existentes. O empoderamento libertador, em contraste, coloca as relações de poder no coração de um “processo pelo qual as mulheres alcançam autonomia e autodeterminação, bem como um instrumento para a erradicação do patriarcado, um meio e um fim em si”, para “questionar, desestabilizar e, eventualmente, transformar a ordem de gênero da dominação patriarcal” (Sardemberg, 2010:235). “Tal abordagem”, continua Sardenberg, “é consistente com o foco na organização das mulheres, na ação coletiva, embora não desconsidere a importância do empoderamento das mulheres em um nível pessoal” (Sardemberg, 2010:235). Isso é evidente nos escritos feministas da década de 1990, como por exemplo os trabalhos de Naila Kabeer (1994) e Gita Sen (1997)Sen, Gita. Empowerment as an Approach to Poverty. Background Paper to the 1997 Human Development Report. Bangalore, Indian Institute of Management Bangalore, 1997..

Para as feministas que promoveram a noção de empoderamento das mulheres nesse período, a própria ideia de que duas décadas depois testemunhassem figuras importantes de grandes corporações transnacionais e bancos de investimento exaltando as virtudes de mulheres com maior autonomia econômica e exercendo sua agência seria uma fantasia bizarra. Depois de lutar por muitos anos por reconhecimento e recursos, os defensores dos direitos das mulheres têm razão em evitar o que parece ser uma resposta às suas demandas. O que torna o empoderamento light tão difícil de contestar é precisamente a influência que ele tem na imaginação das agências de desenvolvimento cujos dólares e libras são tão necessários para as organizações e movimentos das mulheres. No entanto, os paradoxos do empoderamento light podem torná-lo um cálice envenenado.

Empoderamento como palavra chavão: processos discursivos

O termo “empoderamento” tem uma longa e curiosa história. Enquanto seu uso pelos movimentos sociais ecoa ideais há muito acalentados da luta por igualdade e justiça, foi popularizado nas últimas décadas como sinônimo de uma versão de autoaprimoramento que fala menos aos ideais do Iluminismo do que ao individualismo e ao consumismo da modernidade tardia. Busque pelo termo “empoderamento” no Google e você terá a chance de se deparar com uma profusão de consultores corporativos e evangelistas cristãos, assim como falas sobre como melhorar a vida das mulheres. Pequenos livros como Empoderamento Bem-sucedido em uma Semana (Morris; Willcox, 1995Morris, Steve; Willcocks, Graham. Successful Empowerment in a Week. London, Hodder Arnold, 1995.) aparecem ao lado de anúncios que conclamam os consumidores a “se empoderarem” com os mais recentes óculos de sol de grife. Não admira que, para alguns, o empoderamento seja um termo tão degradado que seja hora de consigná-lo para a lata de lixo e seguir em frente. Srilatha Batliwala (2007Batliwala, Srilatha. Taking the Power out of Empowerment – An Experiential Account. Development in Practice 17, nos 4-5, 2007, pp.557-565.:89) fala da:

… distorção de boas ideias e práticas inovadoras à medida que são retiradas do contexto político e histórico em que evoluíram e se tornaram fórmulas “integradas”. Isso geralmente envolve desinvestir a ideia de sua especificidade cultural, seu conteúdo político e generalizá-la em uma série de rituais e etapas que simulam seus elementos originais, mas sem o poder transformador da coisa verdadeira.

Três pontos importantes emergem da análise de Batliwala. A primeira é em que medida todas as ideias têm sua gênese e encontram seu significado em relação a um conjunto particular de referentes culturais e políticos. Isso foca nossa atenção no que acontece à medida que essas ideias viajam e são traduzidas em contextos culturais, sociais e políticos totalmente diferentes, e transmutadas para outras linguagens, outros idiomas e outros domínios do discurso. A segunda é a questão do conteúdo político de um conceito: os projetos ideológicos a que ele pode servir para promover. Como Jonathan Fox sugere, uma propriedade comum de uma série de chavões sobre o desenvolvimento atualmente é o que ele chama de seu caráter “trans-ideológico” (Fox, 2007Fox, Jonathan. The uncertain relationship between transparency and accountability. Development in Practice 17 (4-5), 2007, pp.663-671.:245). Propriedades trans-ideológicas não são apenas úteis. Elas também são necessárias para o processo de alistamento que pode construir uma coalizão discursiva suficientemente extensa para mudar a política e a prática (Hajer; Wagenaar, 2003Hajer, Maarten; Wagenaar, Hendrik (ed.). Deliberative Policy Analysis. Understanding Governance in the Network Society. Cambridge, Cambridge University Press, 2003.). Mas, como Evelina Dagnino (2007)Dagnino, Evelina. Citizenship: a perverse confluence. Development in Practice 17(4-5), 2007, pp.549-556. observa, a capacidade dos conceitos de transitar por diferentes ideologias possui suas próprias contradições e perigos.

O que aconteceu com o empoderamento é semelhante à história de outros chavões do desenvolvimento (Cornwall, 2007bCornwall, Andrea. Buzzwords and fuzzwords: deconstructing development discourse. Development in Practice 17:4-5, 2007b, pp.471-484.). Ernesto Laclau (1990)Laclau, Ernesto. The New Revolution of Our Times. London, Verso, 1990. descreve como, quando as palavras são colocadas juntas em “cadeias de equivalência”, seu significado torna-se contingente dos outros termos da cadeia. Colocar “empoderamento” em uma cadeia de equivalência ao lado de “economia”, “mercados”, “crédito”, “crescimento” empresta qualidades significantes muito diferentes do que quando a palavra é colocada ao lado de “luta”, “conflito”, “direitos” e “poder”. O mero poder discursivo das instituições de desenvolvimento tradicionais significa que as cadeias de equivalência que elas constroem e disseminam afetam profundamente a maneira como esses termos passam a ser lidos e o que é feito com eles. E a partir daí, encontramos outros efeitos discursivos. O conceito de “ancoragem” de Moscovici (1984)Moscovici, Sergei. The phenomenon of social representations. In: Farr, R.; Moscovici, S. (ed.) Social Representations. Cambridge, Cambridge University Press, 1984. permite compreender parte desse processo: a ancoragem de políticas no que é familiar lhes confere uma palatabilidade que pode ser um fator-chave em sua aceitabilidade. E, no entanto, ao mesmo tempo que a incorporação de termos dentro de narrativas estabelecidas os faz parecer seguros, também os neutraliza.

Batliwala se refere à transformação do empoderamento das mulheres em uma série de rituais que simulam a “coisa real”, mas carecem de suas qualidades transformadoras. Isso está no cerne da ambivalência que algumas feministas têm sobre o termo: que o que é dito sobre as formas como o empoderamento das mulheres é um afastamento da “coisa real”, tornou-se uma farsa. Mas há outro ângulo nisso. Se o “empoderamento” se tornou um simulacro, no sentido de Baudrillard (1994), o que seria necessário para recuperar alguns dos elementos que o termo já possuiu, para o re-animar, devolver-lhe o fogo e a vida enquanto conceito político e contestar sua domesticação a serviço do neoliberalismo? O que seria necessário para tirá-lo da atual “cadeia de equivalência”, nos termos de Laclau (1990)Laclau, Ernesto. The New Revolution of Our Times. London, Verso, 1990. – uma que o alinha com a linguagem da mercantilização neoliberal e a aspiração de produzir uma legião de empreendedores individuais cujo consumo pode impulsionar a expansão de mercados corporativos e lucros – e reposicioná-lo dentro da linguagem da justiça global, social e de gênero?

Um primeiro passo é explorar mais detalhadamente o enquadramento do termo e suas qualidades. Uma linha de influência pode ser rastreada até a adoção da agenda de capacitação das mulheres pelo Banco Mundial, juntamente com medidas mais amplas para institucionalizar o empoderamento e a participação da comunidade para servir às metas neoliberais econômicas e da reforma da governança de segunda geração. Em 2005, o banco desenvolveu um brilhante slogan de marketing para acompanhar a promoção do empoderamento light: “igualdade de gênero é economia inteligente”.5 5 http://siteresources.worldbank.org/INTGENDER/Resources/GAPNov2.pdf A “Economia Inteligente” comercializou o “empoderamento” como a nova panaceia de desenvolvimento. No boletim informativo do Fundo Monetário Internacional, Mayra Buvinic e Elizabeth King oferecem um conjunto de associações que, através de uma série de causalidades implícitas, criam uma narrativa que faz da redução da pobreza um resultado direto do empoderamento das mulheres:

... maior igualdade de gênero pode ... ajudar na batalha para reduzir a pobreza (ODM1) e promover o crescimento - aumentando diretamente a participação das mulheres na força de trabalho e aumentando a produtividade e os ganhos, e indiretamente pelos efeitos benéficos do empoderamento das mulheres sobre o capital humano das crianças e bem-estar. A evidência empírica sobre esses benefícios é convincente. Independentemente de serem autônomas ou assalariadas, as mulheres que trabalham ajudam seus domicílios a escapar da pobreza. As mulheres são mais propensas que os homens a enfrentar restrições para acessar os mercados de crédito, mas quando elas são as usuárias diretas do crédito em vez dos homens, o impacto do crédito em várias medidas de bem-estar doméstico é maior. Quando as mulheres têm mais escolaridade, os retornos fluem não apenas para elas mesmas, mas também para a próxima geração. E quando elas têm maior controle sobre os recursos da família, elas são mais propensas do que os homens a alocar mais recursos à alimentação e à saúde e educação das crianças, uma descoberta proveniente de um conjunto tão diversificado de países como Bangladesh, Brasil, Costa do Marfim, Gana, Indonésia e África do Sul. De fato, estudos mostraram que dar às mulheres mais acesso à educação, aos mercados (trabalho, terra, crédito) e às novas tecnologias, e dar-lhes maior controle sobre os recursos domésticos, muitas vezes se traduz em maior bem-estar para elas e suas famílias. Para as mulheres, suas famílias e suas comunidades, isso é economia inteligente (Buvinic; King, 2007Buvinic, Mayra; King, Elizabeth. Smart Economics. Finance and Development: A Quarterly Journal of the IMF (44) 2, 2007, pp.6-11.:6).

Parece, pelo menos à primeira vista, haver pouco a ser discutido aqui. O economista inteligente, no entanto, pode olhar além dessa cadeia de causalidades para o quadro macroeconômico mais amplo. Aqui a história não é tão bonita. Como Mercedes de la Rocha (2007)González de La Rocha, Mercedes. The Construction of the Myth of Survival. Development and Change (38), 2007, pp.45-66. argumenta, a ascensão de uma narrativa que aplaude as mulheres pobres como aquelas que são capazes de tirar suas famílias da pobreza exige cada vez mais delas, como heróicas sobreviventes. As reformas liberalizantes em países que já ofertaram serviços sociais básicos universais no passado transformaram a saúde e a educação em bens de consumo, em vez de um direito do cidadão. Mudanças no mercado de trabalho podem ter criado novas oportunidades para as mulheres. Mas, muitas vezes, isso tem diminuído os direitos sociais existentes e marginalizado as instituições que poderiam, de outra forma, procurar proteger os direitos dos trabalhadores, criando condições de trabalho cada vez mais frágeis e precárias para as mulheres trabalhadoras. A informalização da mão de obra deixa as mulheres recém-ingressantes no mercado de trabalho vulneráveis aos caprichos do mercado e à exploração (Razavi; Danloy; Pearson, 2004Razavi, Shahra; Danloy, Caroline; Pearson, Ruth (ed.) Globalization, Export-Oriented Employment and Social Policy: Gendered Connections. Palgrave, 2004.).

As mulheres aparecem na narrativa do empoderamento neoliberal como esposas e mães mais capazes de negociar com seus maridos e sustentar seus filhos como resultado de um maior acesso a educação e oportunidades de emprego. Elas se tornam, de fato, instrumentos para melhorar o “capital humano” das crianças e o bem-estar da família. O empoderamento das mulheres, ao que parece, contribui para manter um modelo residual da família em que as mulheres são aquelas que cuidam, e compensam a incapacidade ou falta de vontade dos homens em desempenhar o papel de provedor, gerando recursos para alimentar e educar seus filhos, bem como fazem a maior parte do trabalho de reprodução social (Nós costumávamos falar sobre isso como uma dupla ou tripla jornada de trabalho. Agora chama-se “empoderamento”).

Apesar de todo o encorajamento para entrar no mercado de trabalho, as mulheres empoderadas podem não encontrar alívio nas expectativas de que irão fornecer trabalho de cuidado não remunerado em casa. Como Kate Bedford (2007)Bedford, Kate. The Imperative of Male Inclusion: How Institutional Context Influences the Policy Preferences of World Bank Gender Staff. International Feminist Journal of Politics 9(3), 2007, pp.289-311. sugere, há pouco nos programas de empoderamento neoliberais que ofereçam às mulheres que trabalham uma ajuda real nas tarefas domésticas ou no cuidado das crianças. De fato, há pouco espaço nos discursos sobre o empoderamento das mulheres no desenvolvimento internacional para colocar em questão o trabalho adicional exigido das mulheres; tampouco há espaço para pensar sobre as implicações da reconfiguração das relações de gênero dentro e fora do lar, especialmente em relação ao subemprego masculino em um mercado de trabalho cada vez mais frágil. A possibilidade de que as mulheres usem sua independência para libertar-se de relacionamentos infelizes e violentos com os homens não se vê em parte alguma.

A narrativa da diligência feminina aparece repetidas vezes nas políticas e materiais promocionais das agências internacionais de desenvolvimento, sejam elas de ajuda oficial ou ONGs internacionais. Um exemplo é o trabalho da Oxfam com a corporação Mars Chocolate. Uma sinopse promocional no site da Mars nos diz:

A empresa entende que as mulheres investem proporções significativamente maiores de sua renda disponível no bem-estar da família e da comunidade. A Mars Chocolate aprendeu que o empoderamento econômico das mulheres não é apenas uma ferramenta para a equidade de gênero, mas também tem um poderoso efeito multiplicador para o bem-estar mais amplo das crianças, famílias e comunidades.6 6 http://www.mars.com/global/press-center/press-list/news-releases.aspx?SiteId=94&Id=3990. Mars possui vendas líquidas no valor de US$ 33 bilhões à época desse artigo, publicado originalmente em março de 2013.

O programa Visão para a Mudança, da Mars-Oxfam, é orientado – como uma legião de outras iniciativas corporativas – a treinar mulheres no “desenvolvimento de empresas locais… que beneficia tanto as necessidades nutricionais das famílias quanto a renda das mulheres que vendem produção excedente nos mercados locais”.

Há uma satisfatória sensação de harmonia com a narrativa sobre o empoderamento das mulheres que emerge dessas fontes. Capacitar as mulheres é bom para todos. É bom para as crianças. É bom para famílias e comunidades. É bom para o crescimento econômico e a redução da pobreza. Mulheres capacitadas não fazem escolhas que não são parte do script. Elas não saem da linha. Nem balançam o barco politicamente. Longe de exercer sua própria prerrogativa, as mulheres são retratadas como trabalhadoras maternais altruístas, dedicadas a suas famílias e comunidades. O empoderamento light promove a conformidade dócil, ao invés de promover reversões de relações de poder, resistência ou outras manifestações de agência que desafiam o status quo (Wilson, 2008Wilson, Kalpana. Reclaiming “Agency”, Reasserting Resistance. IDS Bulletin 39(6), 2008, pp.83-91.). De fato, apesar de toda a conversa sobre “agência” que acompanha a promoção do empoderamento light, o que as mulheres supostamente fazem quando são “empoderadas” é se encaixar perfeitamente dentro de uma ordem social na qual elas consentem desinteressada e alegremente às próprias normas sociais muito restritivas que por décadas têm sido o foco da maioria das variedades de ativismo feminista (Chakravarti, 2008Chakravarti, Uma. Beyond the Mantra of Empowerment: Time to Return to Poverty, Violence and Struggle. IDS Bulletin, 39, 2008, pp.10-17.; Wilson 2008Wilson, Kalpana. Reclaiming “Agency”, Reasserting Resistance. IDS Bulletin 39(6), 2008, pp.83-91.). Srilatha Batliwala e Deepa Dhanraj evocam o tipo de mulher que se torna o sujeito privilegiado do imaginário social neoliberal:

As regras neoliberais para a nova mulher cidadã... são bem claras: melhorar o estado econômico de sua família, participar do desenvolvimento da comunidade local (se você tiver tempo), ajudar a construir e administrar instituições locais (apolíticas) como o grupo de auto-ajuda; então, você não deve ter mais nenhuma energia política ou física para desafiar esse paradigma (2004:13).

Sylvia Chant assinala que

o pensamento por trás da “economia inteligente” remonta pelo menos até os anos 80, quando, no contexto das Políticas de Ajuste Estrutural (Structural Adjustment Policies – SAPs), ficou notavelmente óbvio que as mulheres, individual e coletivamente, estavam assumindo os déficits de tendências induzidas pelas SAPs, como o aumento do desemprego masculino e do subemprego, o declínio do poder de compra de rendas familiares e reduções na provisão pública de serviços. Através dos esforços das mulheres, tanto na forma de maior participação em atividades remuneradas, geralmente de natureza informal, como na intensificação do trabalho não remunerado nos níveis doméstico e comunitário, os piores efeitos do neoliberalismo dos anos 80 e 90 sobre os membros dos agregados familiares foram substancialmente “amortecidos” (Chant, 2012Chant, Sylvia. The disappearing of “smart economics”? The World Development Report 2012 on Gender Equality: Some concerns about the preparatory process and the prospects for paradigm change. Social Policy 12(2), 2012, pp.198-218.:199).

As mulheres que vivem na pobreza estão enfrentando vidas cada vez mais árduas e difíceis na atual conjuntura. A maioria vive em contextos onde o subemprego e o desemprego masculinos criaram maior fragilidade para o bem-estar doméstico, com pouca mudança no envolvimento dos homens no trabalho não remunerado da reprodução social. Essas mulheres tornaram-se mais pressionadas em termos de acesso a benefícios sociais, serviços estatais e mercados de trabalho cada vez mais inseguros (Kabeer, 2011; Sholkamy, 2010Sholkamy, Hania. Power, Politics and Development in the Arab Context or How Can Rearing Chicks Change Patriarchy? Development 53 (2), 2010, pp.254-258.). Em seu relato sobre por que o empoderamento econômico das mulheres é importante, Mary Esther Iskenderian, do Women’s World Banking, capta exatamente o quanto se espera das mulheres:

As mulheres precisam de uma maneira de poupar para as taxas escolares e reduzir os choques econômicos que podem resultar na evasão de uma criança da escola. Elas precisam ter acesso a cuidados de saúde para toda a família, porque muitas vezes a mulher se certifica de que todos os outros membros da família sejam saudáveis antes de atender às suas próprias necessidades. As mulheres precisam de empréstimos para pequenas empresas ou a capacidade de economizar para construir um negócio. Em suma, eles precisam de serviços financeiros básicos. Para as mulheres que foram excluídas da economia formal, esses serviços as empoderam para se tornarem, pela primeira vez, agentes econômicos auto-gerenciados.7 7 [http://www.bsr.org/en/our-insights/blog-view/womens-world-banking-what-womens-empowerment-means-to-me acesso em: 3 abr. 2013].

Assim, o que alguns ainda podem considerar como obrigações do Estado, tornam-se “necessidades” das mulheres – como a “necessidade” de economizar para pagar escolas que não oferecem mais educação gratuita, para tratamento em clínicas que não oferecem serviços gratuitos de saúde. As mulheres e as meninas são obrigadas a se tornarem agentes econômicos autogerenciados, como parte de uma visão na qual não há alternativa a ter que cuidar de suas próprias necessidades. O empoderamento light torna-se, nesse contexto, um meio de empurrar o ônus para as mulheres. Homens e rapazes estão ausentes: seu único papel na história é como pequenos jogadores que são uma fonte potencial de ruptura, perigo e dano (Cornwall, 2014Cornwall, Andrea. Taking Off International Development’s “Straightjacket of Gender”. Brown Journal of World Affairs 21(1), December, 2014, pp.127-139.).

O novo mantra: elevação através do crescimento econômico

O empoderamento light tornou-se sinônimo de projetos que recrutam mulheres em atividades comerciais de pequena escala, e não de mobilização para reivindicar direitos sociais e econômicos ou de responsabilizar os governos por seus compromissos sob tratados internacionais como a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher da ONU (CEDAW). A iniciativa de microcrédito Trickle-Up é uma das centenas de exemplos. Ela descreve como

tecer, cortar o cabelo, costurar, criar porcos, galinhas e cabras, vender tortilhas, fivelas de cabelo, ovos, empanadas, panquecas de arroz, cuscuz e sorvete são apenas algumas das muitas atividades que as mulheres escolheram que possibilitam não apenas ganhar mais dinheiro, mas dar o primeiro passo para transformar suas vidas.8 8 http://www.trickleup.org/poverty/women.cfm

A promoção do empreendedorismo feminino tornou-se uma indústria em crescimento, apoiada por organizações tão diversas como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e consultores globais como a McKinsey. O relatório de 2014 da OCDE, Melhorando o Empoderamento Econômico das Mulheres por meio do Empreendedorismo e da Liderança Empresarial nos Países da OCDE, começa com a afirmação:

A igualdade de gênero é um imperativo moral e econômico. Superar a desigualdade de gênero deve ser uma parte central de qualquer estratégia para criar economias e sociedades mais sustentáveis e inclusivas. Trata-se de justiça e equidade, da realização de aspirações individuais, da capacitação econômica em todo o mundo e de crescimento.9 9 http://www.oecd.org/gender/Enhancing%20Women%20Economic%20Empowerment_Fin_1_Oct_2014.pdf

O Negócio de Empoderamento de Mulheres: Onde, Por que e Como, da McKinsey, contém subseções intituladas “as mulheres são importantes” e descreve a diversidade de gênero como um “impulsionador de desempenho corporativo”. Em outro exemplo, ao promover seu relatório de 2016, Empoderamento das Mulheres nas Cadeias Globais de Valor: Um Marco para a Ação Empresarial, a ONG Negócios para Responsabilidade Social (BSR) apresenta a seguinte narrativa:

As mulheres são uma parte essencial das cadeias globais de valor. Como produtoras de matérias-primas, proprietárias de pequenas empresas, executivas, trabalhadoras de varejo e consumidoras, as mulheres ajudam as empresas a ter sucesso e crescer. No entanto, as mulheres continuam a enfrentar barreiras para atingir seu pleno potencial no trabalho, no mercado e em muitos outros aspectos da vida. Isso não só impede o progresso das mulheres, como também prejudica o crescimento de empresas, economias e comunidades. Capacitar as mulheres nas cadeias de valor globais representa uma oportunidade única para criar valor comercial e fortalecer a saúde, os direitos e o bem-estar das mulheres.10 10 https://www.bsr.org/en/our-insights/report-view/womens-empowerment-in-global-value-chains-women-deliver-report

A visão para o empoderamento econômico das mulheres, no entanto, vai além disso. Em um discurso de setembro de 2014, no Japão, Christine Lagarde, diretora-gerente do FMI, nos fornece a seguinte macro-lógica:

A grande escritora e feminista japonesa Raicho Hiratsuka escreveu certa vez: “No princípio, a mulher era verdadeiramente o sol. Uma pessoa autêntica”. Hoje, mais do que nunca, a economia global necessita precisamente desse tipo de sol radiante – para fornecer luz e alimento. Para fornecer cura. Para secar os pântanos da pobreza e agitação. O motivo é óbvio. Sete anos adentro da pior crise financeira global desde a Grande Depressão, a recuperação ainda é muito tépida e turbulenta. E mesmo depois que a crise diminuir, enfrentaremos sérios desafios ao crescimento - à medida que um “novo normal” mais lento se instala, à medida que as populações envelhecem e as disparidades econômicas aumentam. Diante desses desafios, precisaremos de todo o crescimento econômico, dinamismo e engenhosidade que pudermos obter nos próximos anos. Felizmente, uma parte fundamental da solução está nos encarando – liberar o poder econômico das mulheres. Incluindo no rebanho o maior grupo excluído do mundo.11 11 http://www.imf.org/external/np/speeches/2014/091214.htm, ênfase da autora.

Contra o pano de fundo da indústria de desenvolvimento que relega às margens, ignora e enfraquece as atividades econômicas das mulheres, parece ainda mais notável esse entusiasmo por investir em mulheres. À primeira vista, parece responder às demandas feministas para prestar mais atenção às mulheres. Mas é isso que elas demandavam? Ou, como Hania Sholkamy (2010)Sholkamy, Hania. Power, Politics and Development in the Arab Context or How Can Rearing Chicks Change Patriarchy? Development 53 (2), 2010, pp.254-258. coloca no título de um artigo: “como criar pintinhos pode mudar o patriarcado?”. Mas o empoderamento light está muito distante da promessa transformadora da agenda feminista materialista que deu origem ao periódico Gender and Development. A incorporação do fator feminino na expansão do neoliberalismo, através do empoderamento light, oferece poucas perspectivas de desestabilizar a concentração de poder e riqueza nas mãos de uma pequena elite majoritariamente masculina. Tampouco oferece muita perspectiva de avanço na transformação das bases estruturais das ordens de gênero que produzem e sustentam as desigualdades de todos os tipos.12 12 Não obstante, ver os esforços de Dalberg, Oak Foundation, ICRW e Witter, com seu relatório de 2014, Business Case for Women’s Economic Empowerment, defendendo o valor e a necessidade de investimentos básicos no empoderamento econômico das mulheres em uma abordagem mais ampla baseada em direitos humanos que leva essas barreiras estruturais a sério. http://dalberg.com/documents/Business_Case_for_Womens_Economic_Empowerment.pdf Em vez disso, as mulheres são entusiasticamente convidadas para o projeto neoliberal, enquanto seu valor para a economia é o de prestadoras de serviços que combinam a reprodução social não remunerada, atendendo à expansão dos mercados consumidores. Com a promoção virtuosa do consumo, elas fomentam um ciclo de lucro corporativo com benefícios para a imagem da marca como “socialmente conscientes” para aqueles que participam (Calkin, 2015Calkin, Sydney. Post-Feminist Spectatorship and the Girl Effect: “Go ahead, really imagine her”. Third World Quarterly 36 (4), 2015, pp.654-667.; Prügl; True, 2014Prügl, Elisabeth; True, Jacqui. Equality means business? Governing gender through transnational public-private partnerships. Review of International Political Economy 21(6), 2014, pp.1137-1169.): o que Roberts (2014)Roberts, Adrienne. The political economy of “transnational business feminism”. International Feminist Journal of Politics 17(2), 2014, pp.209-231. chama de “feminismo empresarial transnacional”.

Um exemplo clássico disso, enaltecido pela Ernst & Young em seu relatório de 2014, The Beauty of Success: Going for Growth in the Household and Personal Care Sector [A Beleza do Sucesso: visando o crescimento no setor de cuidados domésticos e pessoais], é o Projeto Shakti da Unilever na Índia. Descrito como uma “joia para a Unilever”, o Projeto Shakti recruta mulheres como empreendedoras de pequeno porte que vendem sachês de xampu e outras pequenas mercadorias de autocuidado; ao fazê-lo, ele fornece à Lever Brothers um alcance capilar em mercados consumidores inexplorados. O Shakti cresceu para uma grande operação: 65.000 Empreendedoras Shakti formam uma rede de distribuição que abrange mais de 165.000 aldeias e atinge mais de quatro milhões de famílias rurais.13 13 http://www.hul.co.in/sustainable-living-2014/casestudies/Casecategory/Project-Shakti.aspx. O programa foi ampliado em 2010 para incluir os maridos ou irmãos das mulheres agentes que têm a tarefa de vender mercadorias em bicicleta e não, como as agentes femininas, a pé. Existem agora cerca de 50.000 desses “Shanktimaans”. O projeto não apenas gera renda para as mulheres, mas também procura ensiná-las sobre saúde e higiene e ampliar o uso de produtos que as mulheres podem usar para a limpeza de si e de suas famílias.14 14 http://healthmarketinnovations.org/program/project-shakti Thekkudan e Tandon (2009Thekkudan, Julie; Tandon, Rajesh. Women’s Livelihoods, Global Markets and Citizenship. IDS Working Paper 336, 2009.:16) observam como o nome das agentes, Shakti Amma (“mães empoderadas”), evoca “uma imagem da mulher empreendedora como figura materna”. Seu estudo mostra como, para um pequeno número de mulheres, o programa oferece um caminho para a política, mas, para a maioria, as demandas de seus negócios as mantinham tão ocupadas que tinham pouco tempo para se envolver com tais coisas. Eles observam:

Embora o Projeto Shakti tenha levado a um fortalecimento da identidade individual para quase todas, a produção de uma identidade coletiva entre as Shakti Amma como um coletivo engajado com processos econômicos globais não foi promovida nem desenvolvida como resultado de tais compromissos (Thekkudan; Tandon, 2009Thekkudan, Julie; Tandon, Rajesh. Women’s Livelihoods, Global Markets and Citizenship. IDS Working Paper 336, 2009.:21).

Esse tipo de empoderamento não era, ao que parece, a intenção da Unilever; observando mais de perto alguns detalhes financeiros, ficamos sabendo que essa iniciativa gerou um aumento de 20% nos lucros de sua operação na Ásia. Thekkudan e Tandon refletem que enquanto as Shakti Ammas entrevistadas falaram de como as contribuições para a renda familiar aumentaram os sentimentos de autoestima de algumas delas, e produziram maior respeito e reconhecimento em suas comunidades, como indivíduos,

… empoderamento como liberdade de escolha e ação para moldar a própria vida, juntamente com o controle sobre recursos e decisões, não é um resultado evidente do projeto... Aumentar a capacidade das mulheres de comprar Fair and Lovely [um creme popular de clareamento da pele] não se traduz para o empoderamento automático de mulheres alegado por anúncios publicitários que sugerem que isso leva a um maior sucesso na vida profissional e pessoal (Thekkudan; Tandon, 2009Thekkudan, Julie; Tandon, Rajesh. Women’s Livelihoods, Global Markets and Citizenship. IDS Working Paper 336, 2009.:28-9).

E, eles observam, o engajamento empresarial das mulheres também teve seus custos em termos de empoderamento coletivo:

Até certo ponto, o Projeto Shakti enfraqueceu as abordagens coletivas existentes e as formas coletivas de auto-organização como alternativas contra-hegemônicas. Alguns grupos de ajuda mútua perderam suas líderes fortes para o Projeto Shakti. Mais envolvidos na promoção da concessionária para atingir as metas estabelecidas pelo HUL, muitas Shakti Amma não são ativas na política local, ou inclinadas a lidar com questões sociais mais amplas que eram frequentemente enfrentadas pelos grupos de ajuda mútua. O funcionamento real das concessionárias tem sido muitas vezes depositado nas mãos dos homens. Enquanto o HUL buscou o empoderamento das mulheres através do Projeto Shakti, ele pode ter, até certo ponto, perpetuado as relações de gênero existentes na sociedade mais ampla. (Thekkudan; Tandon, 2009Thekkudan, Julie; Tandon, Rajesh. Women’s Livelihoods, Global Markets and Citizenship. IDS Working Paper 336, 2009.:30-31).

Tais intervenções de “empoderamento” podem melhorar um pouco a situação das mulheres em termos de todas as outras restrições que enfrentam em suas vidas, ao mesmo tempo que não conseguem ter qualquer efeito nas relações de poder estrutural que produzem as desigualdades que enfrentam em primeiro lugar. Um exemplo disso é a triste história de como a rápida expansão das empresas de microfinanças em Andhra Pradesh levou à escalada de dívidas entre aqueles que não tinham meios para pagar os empréstimos ou manter taxas de juros escandalosamente altas, e deu origem a uma onda de suicídios antes que o Estado agisse para fechar esses negócios.15 15 Como vários comentadores apontaram (ver, por exemplo, Yerramilli, 2013), esta não é uma história simples; a política de microfinanças no estado – e de fato, a Portaria de Microfinanciamento, de outubro de 2010, que limitou substancialmente o crescimento e a operação das IMFs em Andhra Pradesh – precisa ser confrontada com as aspirações modernizadoras de seu ambicioso Ministro-Chefe e a concorrência que as IMFs representaram para grupos de ajuda mútua patrocinados pelo estado.

Da consciência coletiva ao indivíduo que alcança seu potencial

As maneiras de conceber empoderamento das mulheres nos discursos corporativos contemporâneos, beneficentes e de doadores, como argumentei neste artigo, é como um processo através do qual um indivíduo se torna melhor equipado com os meios para navegar em um mercado de oportunidades e escolhas. Isso é concebido como um processo de individuação pelo qual as mulheres ganham um sentido mais claro de si mesmas, e seu potencial, bem como os meios – habilidades, ativos, recursos – para poder entrar no mercado e gerar os meios econômicos para prover para suas famílias, e se tornarem cidadãs econômicas autosustentáveis. Infundido com o individualismo liberal, esse modelo de empoderamento realoca o que uma vez foi concebido como um processo coletivo no indivíduo autorrealizador. Srilatha Batliwala observa:

...De acordo com o domínio insidioso da ideologia neoliberal e seu núcleo consumista, vemos a transição do empoderamento para fora do reino da mudança social e sistêmica para o indivíduo – de um substantivo significando mudanças no poder social para um verbo sinalizando poder individual, realização, status (Batliwala, 2007Batliwala, Srilatha. Taking the Power out of Empowerment – An Experiential Account. Development in Practice 17, nos 4-5, 2007, pp.557-565.:xx).

Enfrentando de forma crítica o artigo “Feminism, Capitalism and the Cunning of History” de Nancy Fraser na New Left Review, Verónica Schild (2015)Schild, Verónica. Feminism and Neoliberalism in Latin America. New Left Review (96), 2015, pp.59-75. chama a atenção para a importância de olhar para além da absorção e da institucionalização das narrativas do feminismo liberal. De fato, como outros apontaram, o relato de Fraser aborda uma forma etnocêntrica, embora altamente influente, de feminismo liberal que assumiu seu próprio alcance globalizante em vez de abranger a pluralidade de feminismos existentes em locais fora dos Estados Unidos (Aslan; Zeynep Gambetti, 2011Calkin, Sydney. Post-Feminist Spectatorship and the Girl Effect: “Go ahead, really imagine her”. Third World Quarterly 36 (4), 2015, pp.654-667.; Luxton; Sangster, 2013Luxton, Meg; Sangster, Joan Sangster. Feminism, co-optation and the problems of amnesia: a response to Nancy Fraser. Socialist Register (49), 2013, pp.289-309.). O diagnóstico de Schild sobre o problema com projetos de “desenvolvimento baseados em gênero” na América Latina destaca o papel crucial da conscientização coletiva e da ação na mudança social, e a negligência disso pelas principais iniciativas de empoderamento das mulheres:

Em vez de criar espaços coletivos onde as mulheres pudessem articular suas próprias demandas (...) os projetos institucionalizados de desenvolvimento de gênero tenderam a tratar as mulheres como indivíduos isolados, com problemas que podem ser solucionados por meio de formas de clientelização diferenciada (Schild, 2015Schild, Verónica. Feminism and Neoliberalism in Latin America. New Left Review (96), 2015, pp.59-75.:7).

Schild (2015Schild, Verónica. Feminism and Neoliberalism in Latin America. New Left Review (96), 2015, pp.59-75.:7) continua: “isso não é simplesmente um caso de ideais feministas sendo ‘ressignificados’, mas de profissionais feministas buscando ativamente o patrocínio de potências neoliberais”. E, pode-se acrescentar, são essas mesmas “potências neoliberais” que destinaram dinheiro para “investir em mulheres” em um momento em que as fontes tradicionais de financiamento para construção e organização de movimentos femininos continuaram a encolher (Miller et alii, 2013Miller, Julia; Arutyunova, Angelika; Clark, Cindy. New Actors, New Money, New Conversations: A Mapping of Recent Initiatives for Women and Girls. Association for Women’s Rights in Development, 2013.). O processo de “clientelização” descrito por Schild é uma característica central das principais narrativas de empoderamento econômico, nas quais a mulher se apresenta como um indivíduo que alcança seu potencial que, através do mercado, adquire “capacidades” e “escolhas” recém-descobertas.

É claro, no entanto, que embora todo o empoderamento light tenha como foco a auto-realização individual, a atenção é insistentemente sobre o que mulheres e meninas são capazes de fazer pelos outros; sua agência é implicitamente relacional, vinculada a suas famílias e ao papel vital prescrito para elas enquanto mães altruístas. O discurso de empoderamento neoliberal pode falar sobre permitir que as mulheres façam escolhas, mas é bem claro que certas escolhas são normativamente esperadas delas (Fried, 2008Fried, Marlene Gerber. 10 reasons to rethink “reproductive choice”. Different Takes (52), 2008, pp.1-4.). O objeto da ascensão é implicitamente a boa mulher, aquela que está em conformidade com as normas sexuais e de gênero, e obedientemente usa sua engenhosidade e renda para cuidar dos outros. Ai do microempreendedor que gasta seus ganhos em roupas e maquiagem, em vez de pagar as mensalidades escolares de seus filhos ou pagar as dívidas de seu marido – mesmo que, como um antropólogo poderia demonstrar, esse tipo de gasto seja vital para o que economistas denominam de “capital social”.

Quando as mulheres exercem o tipo errado de escolhas em sua busca por rendas, elas podem encontrar-se na extremidade receptora de outro ramo da indústria do desenvolvimento: forçosamente “resgatadas” e “reabilitadas”. Pesquisadores e ativistas dos direitos de trabalhadoras do sexo contam histórias apócrifas sobre os encontros de profissionais do sexo com aqueles que desejam “capacitá-los” (Ahmed; Seshu, 2012Aziza, Ahmed; Meena, Seshu. “We have the right not to be ‘rescued’…”: When Anti-Trafficking Programmes Undermine the Health and Well-Being of Sex Workers. Anti-Trafficking Review, Issue 1, 2012, pp.149-168.). Uma dessas histórias, contada por Nandinee Bandhopadhyay, vale a pena citar aqui, como um clássico tragicômico. Ela fala de uma profissional do sexo transgênero, Revati:

O governo queria reabilitá-la, então eles compraram uma vaca para que ela pudesse se dedicar à produção leiteira. Ela estava morando na cidade na época, então ela teve que alugar um lugar onde pudesse acomodar uma vaca. Isso fez com que ela precisasse fazer sexo com seu senhorio para persuadi-lo a deixá-la ficar com a vaca. Depois de um tempo, ela percebeu que não era muito fácil cuidar de uma vaca na cidade. Então ela se mudou para uma aldeia. Foi difícil. Havia menos clientes e sua renda ficou muito limitada. Então, a fim de ganhar dinheiro suficiente para alimentar a vaca, ela teve que viajar até a cidade para encontrar clientes suficientes. Então a vaca precisava ser inseminada, então ela teve que dormir com mais clientes para que ela pudesse pagar para que a vaca pudesse cruzar. No final, ela devolveu a vaca… (Seshu; Bandhopadhyay, 2009Seshu, Meena; Bandhopadhyay, Nandinee. Conversation with Cheryl Overs. How the Development Industry Imagines Sex Work. Development (52), 2009, pp.13-17.:15).

Resgatando o empoderamento

Hegemonias nunca são projetos concluídos: eles estão sempre em disputa. Sempre há fissuras e contradições – e, portanto, oportunidades (Hal; Massey; Rustin, 2013:19).

O empoderamento de mulheres e meninas tem sido cooptado e posto a serviço de uma variante do neoliberalismo baseada tanto na “implantação” de novas instituições e a produção de novas subjetividades quanto no “recuo” do Estado (cf. Peck; Tickell, 2002Peck, Jamie; Tickell, Adam. Neoliberalizing Space. Antipode (34), 2002, pp.380-404.). Mas o próprio deslizamento discursivo que tornou o termo tão atraente para tal diversidade de atores é uma fonte rica de contradição – e oportunidade. Foucault (1979Foucault, Michel. The History of Sexuality: Part I. Harmondsworth, Penguin, 1979.:101-2) destacou a “reversibilidade estratégica” do poder através do discurso:

Não existe, de um lado, um discurso de poder e, oposto a ele, outro discurso que lhe seja contrário. Os discursos são elementos táticos ou blocos operando no campo das relações de força; podem existir discursos diferentes e até contraditórios dentro da mesma estratégia; eles podem, ao contrário, circular sem mudar sua forma de uma estratégia para outra estratégia oposta.

O discurso do desenvolvimento é um terreno de disputa permanente. O empoderamento está entre os mais disputados “conceitos essencialmente contestados” do desenvolvimento (Gallie, 1956Gallie, W.B. Essentially Contested Concepts. Proceedings of the Aristotelian Society (56), 1956, pp.167-169.). E os domínios habitados pela indústria do desenvolvimento são aqueles em que a linguagem é importante. Palavras fazem mundos. Como Nancy Fraser (2009Fraser, Nancy. Feminism, Capitalism and the Cunning of History. New Left Review (56), 2009, pp.97-117.:117) escreve

Tendo assistido ao massacre neoliberal instrumentalizar nossas melhores ideias, temos agora uma abertura para recuperá-las. Ao aproveitar este momento, poderíamos apenas dobrar o arco da transformação iminente na direção da justiça – e não apenas em relação ao gênero.

Resgatar o empoderamento como uma estratégia feminista exige reformulá-lo de maneiras que reinscrevam uma preocupação em mudar as relações de poder estruturais que produzem desigualdade e opressão. Precisamos afiar ferramentas e conceitos para análise, e adotar táticas discursivas disruptivas que possam separar as narrativas popularizantes que tão poderosamente aproveitam o senso comum e os investimentos emocionais a serviço da contradição, parafraseando Stuart Hall. Isso, por sua vez, requer o reposicionamento do empoderamento de maneiras que possam combater a neutralização, da forma como o termo veio a ser apropriado, de sua associação com mudanças radicais nas relações de poder.

Embora Fraser aponte corretamente para a confluência perversa entre o antiestatismo neoliberal e feminista, há nesses mesmos elementos da prática feminista – especialmente na ação de construção de movimento e ação coletiva que tem sido parte tão poderosa de grande porção do ativismo feminista no Sul global – ponto de entrada para desacoplar os elementos que a apropriação neoliberal do empoderamento das mulheres tem costurado juntos. A educação popular e as práticas de conscientização feministas são essenciais para o ativismo feminista autônomo. Se uma característica difusa da atual conjuntura é a junção da mercantilização neoliberal, narrativas de autoconfiança e o triunfo do sujeito individual, as versões de empoderamento mobilizadas por muitos movimentos feministas no Sul global têm a capacidade de ruptura precisamente através de seu mantra da primazia da ação coletiva e conscientização na contestação das desigualdades incorporadas e naturalizadas. Esses e outros modos de resistência e ressignificação abrem a possibilidade de reivindicar o empoderamento como um processo de transformação das estruturas e relações de poder.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2018
  • Aceito
    05 Jun 2018
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