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O fim das humanidades: ensino e aprendizagem em época de crise

The end of the humanities: teaching and learning in time of crisis

La fin des humanités: enseignement et apprentissage en temps de crise

El fin de las humanidades: enseñanza y aprendizaje en época de crisis

RESUMO:

O objetivo do presente trabalho é meditar sobre o lugar do ensino das Humanidades no contexto de um modelo cultural em que predomina uma narrativa da utilidade e rentabilidade económicas. O principal eixo do trabalho é orientado por um questionamento: o que resta pensar quando “pensar sobre as Humanidades” se torna uma tarefa de resistência? O desenvolvimento da análise procurará testar a seguinte tese: há um “preço pesado” a pagar pelo recuo do espaço das Humanidades; esse preço é económico, político, cívico, democrático e antropológico. Resta formular a questão de saber o que fazer para obstar a tal “pesado” pagamento. Na via de uma tentativa de resposta, proporemos uma consideração de alguns aspetos do modo como P. Ricoeur (1983, 1986, 1988, 1998, 2000) recupera conceitos centrais do pensamento de R. Koselleck (1990).

Palavras chave:
Humanidades; Crise; Texto; Narrativa

ABSTRACT:

The aim of this study is to reflect on the role of Humanities education in the context of a cultural model in which a narrative of utility and economic profitability predominates. The main axis of this study is guided by a question: what is there to think, when thinking of the Humanities becomes a task of resistance? The development of the analysis will attempt to test the following thesis: there is a “heavy price” to pay for the gap in the study of the Humanities; this price is economic, political, civic, democratic, and anthropological. It remains to formulate the question what to do to prevent such a “heavy” price. In an attempt to answer this question, we will propose a consideration of some aspects of the way P. Ricoeur (1983, 1986, 1988, 1998, 2000) retrieves main concepts of the thought of R. Koselleck (1990).

Keywords:
Humanities; Crisis; Text; Narrative

RÉSUMÉ:

L’objectif de ce travail est de réfléchir sur la place de l’enseignement des Humanités dans le contexte d’un modèle culturel où prédomine un discours d’utilité et de rentabilité économiques. L’axe principal de ce travail est orienté par un questionnement: qu’est-ce qui nous appelle à penser encore et toujours - quand penser - les humanités devient une tâche de résistance? Le développement de cette analyse nous permettra de tester la thèse suivante : le recul de l’espace réservé aux humanités entraîne un lourd tribut à payer; ce coût est à la fois économique, politique, civique, démocratique et anthropologique. Il reste à savoir que faire pour éviter un tel prix. Comme tentative de réponse nous proposons considérer quelques aspects de la façon dont P. Ricoeur (1983, 1986, 1988, 1998, 2000) reprend des concepts centraux de la pensée de R. Koselleck (1990).

Monts Clés:
Humanités; Crise; Texte; Narrative

RESUMEN:

El objetivo del presente trabajo es meditar sobre el lugar de la enseñanza de las Humanidades en el contexto de un modelo cultural en el que predomina una narrativa de la utilidad y rentabilidad económicas. El principal eje del trabajo está orientado por un cuestionamiento: ¿qué llama todavía y siempre a pensar, cuando pensar las Humanidades se vuelve una tarea de resistencia? El desarrollo del análisis intentará probar la siguiente tesis: hay un “precio pesado” a pagar por el retroceso del espacio de las Humanidades; este precio es económico, político, cívico, democrático y antropológico. Es necesario formular la cuestión de qué hacer para impedir este “pesado” pago. En la vía de un intento de respuesta, propondremos una consideración de algunos aspectos del modo como P. Ricoeur (1983, 1986, 1988, 1998, 2000) recupera conceptos centrales del pensamiento de R. Koselleck (1990).

Palabras claves:
Humanidades; Crisis; Texto; Narrativa

UTILIDADE E RENTABILIDADE

Que chama hoje a pensar quando se trata das humanidades? Começamos por argumentar que pensar as Humanidades - o seu lugar e o seu alcance, a sua importância e a sua vocação - no tempo que é o nosso significa, antes de mais, assumir uma atitude de combate e de resistência em face de uma narrativa que ameaça tornar-se totalitária e se caracteriza por promover implicitamente o menosprezo pelas Letras: a narrativa da utilidade e da rentabilidade económicas.

Aplicada ao ensino das Humanidades, tal narrativa enviesada pode ser resumida, no seu fundo, do seguinte modo: vivemos numa época de competitividade global, em que apenas as economias mais desenvolvidas e actualizadas poderão porfiar; por isso, os países devem preparar os seus cidadãos para o êxito, sendo que tal putativo desiderato depende diretamente da capacidade de profissionais preparados para responderem aos desafios de um mercado de trabalho cada vez mais especializado e exigente tecnicamente. Ou seja, a narrativa de que assim falamos comporta a crença subjacente de que a vitalidade de um país resume-se à sua vitalidade económica e que esta, por seu turno, estará ligada à capacidade de “moldar” o respetivo sistema de ensino às necessidades técnicas de um supermercado laboral global. Nesta perspetiva, o sucesso do sistema educativo deverá medir-se, então, pela capacidade de formar para um “saber fazer” imediato, para a proficiência técnico-científica exigida pelo mercado, devendo portanto ser cortados os gastos inúteis com formações ineficazes à luz dos indicadores estatísticos de rentabilidade.

Esse “estado de coisas”, aqui resumido para servir apenas de indicador de um horizonte mental mais amplo e não menos tendencialmente totalitário que todos facilmente reconhecerão - pelo menos aqueles que trabalham no contexto das Humanidades -, merece ser questionado nos seus fundamentos. O presente trabalho a mais não almeja do que contribuir para tal interrogação necessária. Para tanto, assumirá a polémica e sustentará, logo de entrada, que “a narrativa da utilidade e da rentabilidade”, quando aplicada ao âmbito específico do ensino e da aprendizagem das Humanidades (sendo que tal aplicação se identifica imediatamente na consideração das Humanidades em geral, e de algumas muito em particular, como um luxo a que não nos podemos dar) (POSTMAN, 2002POSTMAN, Neil. O fim da educação. Lisboa: Relógio d’Água, 2002.), é teoricamente frágil e politicamente insensata.

FRAGILIDADE E INSENSATEZ

Comecemos por esclarecer em que medida sustentamos que a narrativa que apelidámos da “utilidade e da rentabilidade” é teoricamente frágil.

Essa fragilidade advém, antes de mais, do facto de muitos dos pressupostos sobre os quais assenta tal narrativa serem ou se tornarem, quando aplicados ao âmbito que aqui nos interessa, inevitavelmente falaciosos. Considere-se, para começar, o pressuposto de uma ligação causal entre produtividade da economia e formação técnica monolítica: a celeridade com que o mercado de trabalho se transforma, tornando obsoletos com inesperada rapidez trabalhos e tarefas que se julgavam “de futuro”, confirma a fragilidade de tal suposta ligação, hoje mais do que nunca dificilmente confirmável. Igualmente permanece em grande medida por demonstrar o pressuposto de que uma escola orientada para a proficiência de um determinado modelo de utilidade económica produza automaticamente um grande número de profissionais perfeitamente adequados para ocupar lugares em empregos interessantes e bem remunerados; na verdade, a diversificação do mercado de trabalho, cada vez mais capaz de integrar formas alternativas de organização das atividades profissionais e reclamando cada vez mais rapidez na adequação à mudança (trabalho parcial, temporário, constante formação e reciclagem em vista de adaptações das empresas a novos mercados e ramos de negócios, etc.), não garante hoje que a formação técnica demasiado específica seja o único, ou sequer o mais importante, critério de seleção profissional. Dito de outro modo, parece-nos um equívoco supor que as escolas devem “responder”, num frenesim interminável, às “exigências da economia”, já que se a própria “economia” não parece saber prever com rigor as suas próprias magnas convulsões, dificilmente saberá antecipar as suas necessidades futuras. É, pois, frágil a tese de que um “saber fazer técnico” de tipo especializado seja a grande condição de empregabilidade no presente e no futuro; na verdade, os factos vêm mostrando justamente o contrário, ou seja, que tal “condição de empregabilidade” apenas é realmente garantida pela formação da capacidade para analisar a própria vida, para tomar decisões inovadoras e criativas, para responder criativamente aos desafios, para um ajustamento crítico à mudança.

Ora, justamente, esse tipo de “perfil” é aquele que reclama o tempo paciente da reflexão, da leitura, da problematização, da diferença, da novidade e do inesperado, da autenticidade; e a formação que permite a emergência de tal “perfil” apenas as Humanidades a podem fornecer.

A narrativa da utilidade e da rentabilidade económica é, por outro lado, fundamentalmente insensata, desde logo, por não questionar os limites de uma conceção unidimensional de vitalidade económica; mas também e fundamentalmente por, aparentemente, não saber medir os desafios que lança a si própria. Em seu pequeno mas poderoso livro intitulado Not for profit. Why Democracy needs the Humanities, a filósofa da Universidade de Chicago, Marta Nussbaum (2010NUSSBAUM, Martha. Not for profit. Why democracy needs the Humanities. Princeton: Princeton University Press, 2010., p. 10), afirma claramente: os proponentes da chamada “educação para o lucro, ou educação para o crescimento económico”, adotam “uma conceção empobrecida do que é exigido para alcançar o seu próprio objetivo”. Pretende formar profissionais altamente especializados, tecnicamente competentes e produtivos, mas ignora o que realmente é necessário para que a tal perfil correspondam as ações e decisões reclamadas pelas situações concretas de um tempo contingente. É hoje defendido por investigadores das mais diversas áreas que alguns dos erros mais dispendiosos de gestão e decisão que conhecemos recentemente se devem amiúde à ausência de pensamento crítico, de capacidade informada para a dissenção, de competência de reflexão aprofundada e criativa - em suma, devem-se a uma cultura de seguidismo, de normalização e de uniformização acrítica, cultura essa promovida por modelos de educação que encerram os estudantes demasiado cedo em contextos de saber técnico-profissional excessivamente restritos.

A título de exemplo do que fica dito, poderia recordar-se que, de acordo com alguns especialistas, muitas das falhas de certas fases do projecto espacial americano poderiam ter sido evitadas, sabe-se hoje, se os processos de decisão tivessem sido suficientemente informados por um autêntico confronto de ideias e possibilidades teóricas, por uma real abertura a soluções imaginativas, fundamentadas criticamente e defendidas de modo autónomo. As desastrosas falências da Enron e da World.com, que romperam a bolha da especulação em redor das empresas da internet nos anos 1990, igualmente se explicam, pelo menos em parte, segundo certos analistas, por um acrítico modo de todos fazerem as coisas “porque toda a gente já as está a fazer”. A falência da Freddie Mac e da Fannie Mae, ícones da crise do crédito nos Estados Unidos, cujos efeitos desastrosos se repercutiram na crise global que ainda atravessamos, igualmente tem a sua raiz, para alguns estudiosos, numa cultura em que a autoridade, o costume, a pressão do grupo, a moda, a superficialidade de pensamento e a imposição acrítica de “tendências” cerceiam irreflectidamente o pensamento crítico e a dúvida, a reflexão serena e a capacidade de antecipação, o acolhimento da alternativa e da diferença, a defesa da decência e da justiça, a preservação do cuidado pelo outro (próximo ou longínquo) e a possibilidade de se colocar no seu lugar.

Nesse sentido, não será um acaso nem um destempero que o CEO de uma das mais importantes empresas de publicidade dos Estados Unidos, em entrevista com poucos anos, tenha afirmado que o campo de recrutamento do seu grupo empresarial é agora o dos licenciados em filosofia. Confrontado com a estranheza do entrevistador, ele esclareceu que a sua empresa não precisa receber mais profissionais que, nas Universidades, apenas aprenderam a fazer o que a sua própria empresa inventou há vários anos; o que agora precisa, conclui, é de gente capaz de “to think outside the box”. Sem o saber, o que esse empresário da indústria criativa afirma procurar nos seus profissionais não é senão um conjunto de qualidades que devemos associar à formação em Humanidades: pensar criticamente, reflectir de modo alternativo, imaginar criativamente, recordar livremente, antecipar na diferença, mudar e acolher informadamente o inesperado - em suma, no fundo, pensar filosoficamente, ou seja, agir conscientemente a partir de um horizonte teórico em que cada acto, sentimento e ideia guardam toda a sua força de antagonismo e diferença, de conflito e complexidade, de autenticidade e liberdade.

UM PREÇO ELEVADO A PAGAR

A ser verdade o que fica dito, poderíamos então argumentar que mitigar o espaço das Humanidades acarreta um preço elevado; desde logo, como vimos, há um preço económico a pagar pela incapacidade de tomar decisões aprofundadas por uma reflexão autêntica. Mas, em rigor, poderemos pagar um preço ainda maior, pois importa notar que as capacidades que acabamos de elencar - e que tendem a ser esquecidas pela narrativa da utilidade e da rentabilidade económicas - são igualmente aquelas que sustentam a vitalidade cívica, democrática e cultural de um país. Tais capacidades, de facto, apenas as Humanidades as podem fortalecer e não o coaching, as técnicas fugazes de motivação empresarial, ou outras propostas do mesmo género; a esse fast-food do pensamento opõem-se aquelas aptidões de pensamento crítico, criativo e radical, que reclamam, outrossim, o contacto longo e paciente com os grandes textos e as grandes obras de arte, com a pluralidade de línguas e culturas, com o pensamento complexo e o diálogo aprofundado. No vazio destas últimas aptidões, o que restará quando não o luto pelo dinamismo da participação cívica, do exercício da democracia saudável e da fruição da cultura viva?

Sem o contacto crítico e aprofundado com os grandes textos de filosofia social e política que permanecem matriciais do pensamento ocidental, por exemplo, de que modo poderemos verdadeiramente ser capazes de pensar politicamente para lá do lugar-comum ou do propagandisticamente repetido? Sem o encontro, sob o modelo paciente da leitura e da aplicação, com os grandes textos literários e religiosos como poderemos ser capazes de continuar a submeter à crítica informada todas as autoridades inquestionáveis e enganadoras? E como poderemos continuar a confrontar a tradição com a crise que a pode manter viva? Sem o contexto das várias línguas estrangeiras, com o quadro rico de diferentes literaturas e culturas que mantêm próximas na diferença, como seremos capazes - realmente - de continuar a reconhecer o outro na sua diferença? E como conseguiremos continuar a acolher a diferença como a ocasião e o motivo para nos conhecermos melhor a nós próprios? Sem esse encontro multilinguístico, cosmopolita e - no limite - inter-religioso, como saberemos preocupar-nos autenticamente com esse outro e reconhecer, nessa preocupação, o que nos une sob as diferenças de posição social, credo, raça ou nação? Sem as ocasiões de encontro transformador que as grandes obras de arte permitem, como seremos capazes de meditar imaginativamente os problemas complexos que fundam a raiz histórico-cultural do existir humano? Sem o encontro paciente e conflitual, aberto e radical com os grandes projectos filosóficos que são matriz do pensamento ocidental, como aprenderíamos genuinamente a pensar e manter actualizados, em termos complexos e no campo de um profícuo conflito de interpretações, conceitos fundamentais para orientar a existência, tais como os conceitos de bem e mal, justiça e moral, ética e política, belo e feio, tempo e espaço, memória e reconhecimento, culpa e perdão, autenticidade e valor, identidade e alteridade, etc.?

Com propriedade deveremos defender que pagaremos, sem dar conta, um preço cívico, democrático e cultural elevado sempre que se ensaie mitigar o espaço das Humanidades. E esse preço pode ser ainda maior, pois importa reconhecer também que a formação garantida pelo espaço das Humanidades é também aquela que torna qualquer vida humana uma vida examinada e não irreflectida, uma vida capaz de se relacionar consigo mesma e com os outros, uma vida capaz de se orientar e fortalecer no tempo de uma historicidade incontornável.

Se, como afirmava Sócrates, o velho mestre de Platão, só uma vida examinada vale a pena ser vivida, é o tempo lento das Humanidades, paradigmaticamente ilustrado pelo acto da leitura aprofundada, que abre o espaço adequado para que uma vida propriamente humana seja capaz de interrogar as suas ações à luz da sua irrevogável dimensão histórica. Será sempre ao serem retomados e assumidos, reditos e apropriados no acto de ler,1 1 “Lire, c’est en toute hypothèse enchaîner un discours nouveau au discours du texte. Cet enchaînement d’un discours à un discours dénonce, dans la reprise qui est son caractère ouvert. L’interprétation est l’aboutissement concret de cet enchaînement et de cette reprise” (RICOEUR, 1986, p. 170). que os grandes textos oferecem ao leitor de todos os tempos, como bem viu o célebre filósofo francês Paul Ricoeur (1986RICOEUR, Paul. Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II. Paris: Seuil , Points Essais, 1986.), um laboratório de possibilidades de sentido que são outras tantas ocasiões preciosas para esse leitor (que todos somos) encontrar modos alternativos de compreender a sua própria situação - aquela situação com a qual, em cada momento, chega aos textos à procura de um rumo para o seu agir inquieto. Por esta razão se deve sublinhar, de acordo com Ricoeur (1983, p. 85), que a compreensão de um texto se completa sempre (no espaço de refiguração da mimesis III2 2 Para um esclarecimento do aqui essencial, ver Maria Luísa Portocarrero (2005, 2006). ) na compreensão de si do sujeito que procura orientar a sua ação; e de nenhum outro modo tal se pode fazer melhor do que, precisamente, através do mundo que o texto oferece.

Na relação ao passado reassumido como possibilidade do presente que os textos tornam possível, intercetam-se a banalidade e a superficialidade, detêm-se o indiferenciado e o mesmo. Os grandes textos são aqueles que disponibilizam ao leitor inquieto que procura compreender- se melhor, compreender-se de outro modo ou, quem sabe, começar a compreender-se (RICOEUR, 1986RICOEUR, Paul. Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II. Paris: Seuil , Points Essais, 1986.) propostas de sentido polémicas e heterodoxas que o ajudarão a orientar e significar a sua ação de modo renovado. Do confronto - passivo, reticente, escandaloso ou cúmplice - com tais possibilidades de sentido, o leitor nunca sai o mesmo; o texto abre-o à diferença, ao que pode descentrá-lo, a experiências temporais possíveis que serão sempre para o leitor a ocasião de clarificar a textura temporal da sua própria vida. Dito de outro modo, tocado e transformado pela palavra dos grandes livros, o leitor acolhe o mundo do texto no caminho de via longa que lhe permite reapropriar-se de si de modo mais autêntico. Essa via oferecida pelo mundo do texto é, portanto, a do encontro com novas experiências de pensamento, com novas possibilidades da linguagem, com novas organizações de tempo, com novos valores, escolhas ou aspetos éticos, por vezes apenas como novas e subtis expressões que, por igual, segundo Ricoeur, portanto, o tempo lento da leitura questionante e inquieta é, de algum modo, a derradeira barreira protetora da nossa humanidade, já que aí se lutará sempre contra os sentidos empobrecidos, as razões vazias ou os discursos superficiais que povoam o espaço público contemporâneo. Porque, de facto, carecemos de narrativas complexas, de enredos e intrigas difíceis, de propostas de sentido vivas e suficientemente fortes para saber, em situações de indecisão profunda, de desorientação paralisante, de dúvida insuperável, de angústia ou crise, o que somos, o que podemos fazer e o que nos é legítimo esperar.

ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA E HORIZONTE DE ESPERANÇA

Os grandes textos, que albergam as grandes narrativas do sentido, abrem a um sujeito - cuja natureza é historial - as possibilidades mais radicais e inovadoras de compreensão de si no tempo. Esse tempo humano é, em certo sentido, justamente o tempo que as Humanidades enriquecem no paciente encontro com os grandes textos: com os grandes textos clássicos; com as grandes propostas da História que nos dão o tempo vivo do passado; com a hospitalidade da tradução que as línguas estrangeiras promovem; com as grandes obras de arte e propostas artísticas; com o saber da diversidade cultural e religiosa, europeia e mundial; com a experiência do aprofundamento fundamental, mas não fundamentalista, dos temas complexos que tocam a raiz do nosso existir e que fundam a nossa herança filosófica comum.

Só ilusoriamente nos julgamos capazes de orientar a nossa ação sem os outros; só equivocamente julgamos saber decidir sobre o que fazer sem ajuda; na verdade, não o conseguiremos nunca - realmente - se nos mantivermos no exterior desse grande colóquio humano mantido pelas Humanidades, se ignorarmos a importância dos grandes textos e correntes de pensamento, da variedade linguística, cultural e artística.

De que outro modo, de facto, podemos combater um mundo que - como escreveu Eça de Queiroz numa das suas Cartas de Paris - vai “tornando uma contrafação universal”? Desejamos ser justos e agir em nome da justiça; não o saberemos fazer se permanecermos na ignorância do que realmente é a justiça e se, presos a essa ignorância, permanecermos cativos de falsas conceções ou perigosos sucedâneos. Queremos ser criativos e diferentes: não o seremos jamais se desconhecermos o que realmente é a criatividade e a diferença, se sobre elas apenas formos capazes de exclamar “nem tenho palavras”, como parece ser agora moda responder a tudo o que se pergunta; a primeira condição para sermos criativos e diferentes, autónomos e livres, inovadores e felizes é saber criticamente o que se entendeu, pode entender e deverá entender por tais coisas (para além da última campanha publicitária ou do último slogan partidário). Projectamos ser cidadãos de pleno direito: não o conseguiremos ser se ignorarmos os sentidos autênticos da alteridade e da diferença cultural, história e religiosa, se ignorarmos o sentido do respeito pelo outro no encontro hospitaleiro em diferentes línguas, se ignorarmos que a raiz do diálogo se funda na complexidade filosófica que não elimina o conflito, mas o acolhe como via para alcançar lugares de encontro reforçado. Desejamos ser pessoas informadas: não o seremos se ignorarmos que, num mundo de sobre-informação, um inventário de factos de pouco serve sem a capacidade de os avaliar, hierarquizar e selecionar, sem a capacidade de, por meio de uma narrativa consistente, enfim, ligar aqueles que interessam e alijar os dispensáveis. Queremos ter um futuro: não o teremos se não formos capazes de fortalecer a dissensão e a novidade, a criação e a abertura de novas possibilidades. Esse ponto é decisivo.

Ao meditar as noções de “tempo histórico” e de “consciência histórica”, Paul Ricoeur (2000RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oublie. Paris: Seuil , 2000) ensinou-nos a importância do que Koselleck (1990KOSELLECK, Reinhart. Le futur passé, contribution à la sémantique des temps historiques. Paris: EHESS, 1990.) apelidou de “horizonte de espera” e “espaço de experiência”.3 3 Ver ainda, por exemplo, Ricoeur (1998). Nessa articulação, em que o aluno de Heidegger faz ressoar a distinção augustiniana entre presente do passado (a memória) e presente do futuro (a espera), as duas categorias históricas destacadas são assim ponderadas: por “espaço de experiência” deve entender-se o conjunto de heranças do passado cujos traços sedimentados constituem o nosso horizonte cultural (KOSELLECK, 1990KOSELLECK, Reinhart. Le futur passé, contribution à la sémantique des temps historiques. Paris: EHESS, 1990.). Esse espaço de experiência, na leitura de Ricoeur (1998RICOEUR, Paul. La crise de la conscience historique et l’Europe. In: ALVES, João Lopes (Coord.). Ética e o futuro da democracia. Lisboa: Colibri, Sociedade Portuguesa de Filosofia, 1998. p. 29-35. (Actas e Colóquios)., p. 13), não existe fora da relação com o seu polo oposto: “o horizonte de espera”, que se liga “ao que-ainda-não-é” mas já se espera, e sobre o qual projectamos as previsões, as antecipações, os medos e as esperanças que dão um conteúdo ao futuro histórico”. As relações entre espaço de experiência e horizonte de esperança, segundo Ricoeur, produzem-se no “presente vivo de uma cultura”, presente esse que não se confunde com um momento pontual, já que guarda todas as dialécticas entre passado vivo e futuro iminente. Esse presente vivo é, portanto, um movimento de temporalização que avança à medida da tensão entre o realizado no campo de experiência e o realizável no horizonte de espera.

Nessas categorias, Ricoeur (1998RICOEUR, Paul. La crise de la conscience historique et l’Europe. In: ALVES, João Lopes (Coord.). Ética e o futuro da democracia. Lisboa: Colibri, Sociedade Portuguesa de Filosofia, 1998. p. 29-35. (Actas e Colóquios)., p. 13) encontra uma chave para pensar um tempo de crise:

[...] quando o espaço de experiência se estreita por causa de uma negação geral de toda a tradição, de qualquer herança, e o horizonte de espera tende a recuar para um futuro cada vez mais vago e mais indistinto, apenas povoado de ‘ucronias’ sem influência sobre o curso efectivo da história, então a tensão entre horizonte de espera e espaço de experiência torna-se ruptura, sisma.

A crise seria como que uma “patologia do processo de temporalização da história”, que se pressente existencialmente como sentimento claustrofóbico, como vivência de uma ruptura bloqueadora do processo de temporalização pessoal, como abismo entre o realizado e o realizável. Pode ser dito de crise, pois um contexto social ou político em que as forças perseverantes do presente e as memórias do realizado não vislumbram, no horizonte de futuro, senão forças e narrativas de inércia, de repetição, de deserção, forças incapazes de pôr em marcha as promessas que se desenham no “presente do futuro”. A esse estado de coisas resta-nos a possibilidade de responder com narrativas renovadas, com propostas de sentido alternativo, suficientemente vigorosas para desbloquear o horizonte de espera. Essas mesmas que o espaço das Humanidades - pretendemos argumentar - nos disponibiliza enquanto enorme laboratório de possibilidades de sentido. O preço a pagar pelo recuo do espaço das Humanidades será, então, no limite pago a peso de humanidade.

REFERÊNCIAS

  • KOSELLECK, Reinhart. Le futur passé, contribution à la sémantique des temps historiques Paris: EHESS, 1990.
  • NUSSBAUM, Martha. Not for profit Why democracy needs the Humanities. Princeton: Princeton University Press, 2010.
  • PORTOCARRERO, Maria Luísa. Horizontes da hermenêutica em Paul Ricoeur Coimbra: Ariadne, 2005.
  • PORTOCARRERO, Maria Luísa. Narrativa e configuração de identidades em Paul Ricoeur. In: HENRIQUES, Fernanda (Coord.). A filosofia de Paul Ricoeur: temas e percurso. Coimbra: Ariadne , 2006. p. 269-283.
  • POSTMAN, Neil. O fim da educação Lisboa: Relógio d’Água, 2002.
  • RICOEUR, Paul. Temps et récit I Paris: Seuil, 1983.
  • RICOEUR, Paul. Du texte à l’action Essais d’herméneutique II. Paris: Seuil , Points Essais, 1986.
  • RICOEUR, Paul. La crise: un phénomène spécifiquement moderne? Revue de Théologie et de Philosophie, Lausanne, n. 120, 1988.
  • RICOEUR, Paul. La crise de la conscience historique et l’Europe. In: ALVES, João Lopes (Coord.). Ética e o futuro da democracia Lisboa: Colibri, Sociedade Portuguesa de Filosofia, 1998. p. 29-35. (Actas e Colóquios).
  • RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oublie Paris: Seuil , 2000
  • 1
    “Lire, c’est en toute hypothèse enchaîner un discours nouveau au discours du texte. Cet enchaînement d’un discours à un discours dénonce, dans la reprise qui est son caractère ouvert. L’interprétation est l’aboutissement concret de cet enchaînement et de cette reprise” (RICOEUR, 1986, p. 170).
  • 2
    Para um esclarecimento do aqui essencial, ver Maria Luísa Portocarrero (2005, 2006).
  • 3
    Ver ainda, por exemplo, Ricoeur (1998).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2017
  • Aceito
    07 Ago 2017
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