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Intercultura e movimentos sociais

RESENHAS

Celeida Maria Costa de Souza e Silva

Mestranda em Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

INTERCULTURA E MOVIMENTOS SOCIAIS

Reinaldo Matias Fleuri (org.)

Florianópolis: Mover, NUP, l998. 212p.

Os pesquisadores do tema educação intercultural na sua interseção com os movimentos sociais têm, em mãos, uma obra preciosa para consulta, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista analítico. Trata-se do livro "Intercultura e movimentos sociais", organizado por Reinaldo Matias Fleuri, que reúne artigos de pesquisadores, educadores e estudantes de algumas universidades italianas e brasileiras, apresentados no Seminário Internacional de Educação Intercultural e Movimentos Sociais, em Florianópolis, no período de 27 a 3l de outubro de l997.

De modo geral, os autores se preocuparam em situar as modificações que vêm ocorrendo no mundo do trabalho e as novas exigências e desafios às instituições educacionais, em especial à escola, que, diante das interações decorrentes do processo de globalização, enfrentam a tarefa de formar um novo perfil de profissional e de cidadão. O curioso é que, nesse processo, "o velho" se reveste de "novo", as desigualdades acentuam-se, tornando-se premente a necessidade de a escola se democratizar. Democratizar em que sentido? Nos aspectos administrativos e pedagógicos, a fim de superar as práticas burocráticas e disciplinares, muito presentes ainda na escola contemporânea.

Assim, a escola se depara com dois grandes problemas. Primeiro, a necessidade de se construir, no âmbito institucional, tanto instrumentos e estratégias de integração emancipatória entre diferentes sujeitos como a promoção de processos criativos de mediação entre os contextos sociais e culturais em que estes se inserem. O segundo problema consiste no desafio de estabelecer canais e dinâmicas de interação da escola com as forças sociais vivas, a exemplo dos movimentos sociais, que compõem uma rede diferenciada e conflitiva de processos de organização coletivos impulsionadores de transformações importantes no mundo atual.

Tendo em vista que a educação intercultural tem como objetivo criar mecanismos que favorecem a integração cooperativa de sujeitos situados em diferentes contextos sociais e culturais, os participantes do seminário se propuseram a discutir educação intercultural na perspectiva dos movimentos sociais de base.

Composta de quatro partes, as quais correspondem a quatro âmbitos de questões enfocadas no Seminário, que se interligam transversalmente, a obra aborda, na primeira parte, a concepção de educação intercultural, os desafios e as perspectivas que a intercultura assume no contexto das práticas educacionais e dos movimentos sociais. Os textos de Ilse Scherer-Warren, Paola Falteri e Reinaldo Matias Fleuri compõem esta parte do livro.

Ilse Sherer-Warren, ao tratar dos movimentos sociais e da dimensão intercultural, elege dois momentos na trajetória dos movimentos sociais recentes. O primeiro, entre as décadas de l960 e l980, quando ocorreram novos movimentos sociais de mulheres, ecológicos, regionais, étnicos, com o objetivo de defender direitos, afirmar identidades coletivas, exigir reconhecimento e respeito às diferenças culturais. O segundo, a partir de meados da década de oitenta e, sobretudo, da década de noventa, quando há uma interação dos movimentos entre si ou uma junção de seus ideais em movimentos mais clássicos (o sindical e o de moradores). É, nesse momento, que a idéia de defesa das identidades se funde com a necessidade de abertura ao outro e à reciprocidade nas trocas. A partir daí, constrói-se o respeito às diferenças.

Paola Falteri discute o interculturalismo e culturas no plural. Nesse estudo, comenta a questão da diversidade cultural na Itália nas últimas décadas e o conceito antropológico de cultura. Dá ênfase ao fato de que o conceito antropológico de cultura implica uma crítica ao pensamento ocidental, ao reconhecer que cada povo, cada grupo social ou indivíduo possui elementos de sua realidade a serem conhecidos. A idéia de que somente sociedades e classes dominantes seriam depositárias de cultura é deixada de lado. O termo cultura já não está mais ligado somente à produção das elites intelectuais. Salienta, ainda, que a globalização do mercado, do consumo e das comunicações parecem eliminar as antigas diferenças locais, diminuir as distâncias entre as classes, anular as diversidades e atenuar as desigualdades.

"Cultura" e "identidade" não são mais vistas como entidades monolíticas e estáveis, diz Falteri. Reconhecer a multiplicidade cultural evidencia a complexidade das relações de poder. Segundo a autora, a perspectiva intercultural começa quando se criam condições para a troca, quando há reciprocidade na relação e quando, no reconhecimento do "outro", nos tornamos conscientes da nossa cultura. Nesta perspectiva, a escola, como contexto institucional, desempenha um papel fundamental na interação com as forças sociais vivas.

Na segunda parte do livro, a temática em discussão são as migrações e os processos de integração cultural. Os autores buscam, com base no estudo de uma questão histórica — o encontro entre índios e imigrantes no Sul do Brasil —, lições para as práticas educativas atuais.

Silvio Coelho dos Santos, em seu estudo "Os Índios Xokleng e os Imigrantes", descreve a vida dos índios guaranis, caingangues e choclengues, habitantes do sul do Brasil no início da colonização e que foram afugentados pelos colonizadores. O autor procura enfatizar que, com a chegada do europeu na região, iniciou-se um processo de mudanças que se estende até os dias de hoje. Trata-se de um enfoque interessantíssimo em que se ressalta que tanto o índio como o colono foram vítimas do governo brasileiro e das companhias de colonização que incentivavam a imigração. Evidencia também a dificuldade em se reconstruir e compreender a história e a cultura dos povos indígenas, dizimados e subjugados nestes quinhentos anos de história do Brasil.

Constam ainda desta parte os textos de Roselys Corrêa dos Santos: "O País da Cocanha: Emigração Italiana e Imaginário" e de Piero Brunello: "Índios e Colonos Italianos no Sul do Brasil". Estudos de grande valor para se compreender o imaginário e as motivações que deram ensejo à vinda de imigrantes italianos para o Brasil.

Segundo Santos, o que incentivou a vinda de camponeses pobres do Norte da Itália no final do século XIX para o nosso país foi o Mito da Cocanha. Os jornais, as cartas dos párocos, as cartas dos primeiros colonos, as propagandas dos agentes de emigração (a serviço do Império brasileiro) corroboraram para a crença do "país da cocanha", da abundância, da fartura, onde a fome e a miséria eram "inexistentes". A perspectiva de se tornarem donos da terra, terem o que comer, não mais serem explorados, incentivou a "corrida" dos italianos. No imaginário desses imigrantes, predominava a esperança de encontrar no Brasil trabalho, abundância e liberdade. Cabe salitentar que as propagandas das companhias de colonização omitiram a presença dos nativos e das florestas. Diante disso, de que modo esses colonos perceberam os índios? É com essa indagação que Piero Brunello inicia o seu texto. Ao longo do estudo, destaca três procedimentos narrativos que influenciaram o imaginário dos imigrantes sobre os nativos. O primeiro, é o mito da fronteira: os povos nativos são identificados como selvagens, feras, bárbaros, que deveriam ser dominados e civilizados pelos brancos. No segundo, os povos nativos são considerados raça inferior, que deveria ser dominada e desapareceria com a ação dos brancos. No terceiro, evita-se falar na existência dos índios e nas relações entre colonos e índios, pois caberia aos missionários católicos civilizar e catequizar os índios.

Brunello salienta a necessidade de se pesquisar sobre as modalidades de contato cultural desenvolvidas entre os povos que se encontraram e interagiram no território brasileiro e sugere a elaboração de trabalhos focalizando os mal-entendidos, a idealização do índio, a presença ou não de mediadores, as trocas e sinais de pacto ditados pelo medo. Ressalta que é indispensável estudar e compreender os significados político-econômicos-sociais do processo de colonização, especialmente para as populações dizimadas, subjugadas ou marginalizadas. Como explicar que a população nativa que vivia no território brasileiro passou de, aproximadamente, seis milhões, no início da colonização, para dois milhões no final do século XX?

Na terceira parte do livro, são focalizadas as práticas de festa, buscando explicitar seu potencial educativo para a formação e a integração de diferentes identidades culturais. O primeiro texto é de Telma Anita Piacentini: "Festas Populares: Processos de Educação Intercultural". Nesse estudo, a autora, ao mesmo tempo que reconhece a dificuldade de se expressar a diferença no contexto da globalização, lembra que a afirmação da identidade cultural é fundamental para o processo educativo. Para construir propostas pedagógicas que resultem na relação harmoniosa e saudável entre os diferentes é preciso reconhecer e respeitar as diferenças. Com a finalidade de visualizar as diferenças, elege a Festa de Natal de Trento, na Itália, e a festa dos imigrantes trentinos, na cidade de Rodeio, em Santa Catarina, destacando as especificidades de cada comunidade que, em situações e contextos concretos, reelabora a festa como fator de afirmação da própria identidade.

Na análise de Fiorella Giacalone: "Festa e Percursos da Educação Intercultural", a festa reforça os processos de comunicação coletiva e de integração cultural, os quais têm uma função educativa, à medida que desenvolvem o domínio dos gestos, sons, palavras, representando uma modalidade articulada e condensada de transmissão cultural. Embora esteja sujeita a mudanças, transformações, perdas e hibridismos, como qualquer estatuto do viver coletivo, assume um papel aculturador importante, na medida em que transmite simultaneamente modelos cognitivos, valorativos, e comportamentais. Segundo a autora, a festa contribui para redescobrir a "diferença", que não pode ser e não é igual à desigualdade. Por isso, conclui que o projeto de intercultura pretende conjugar universalismo e relativismo, pois, ao se colocar no confronto real com o outro, é que se pode desvendar as diferenças e semelhanças, os valores universais e as particularidades étnicas, enfim, o "eu", o "outro" experimentando uma nova possibilidade de se tornar "nós".

O texto de Cristiana Tramonte "Na Cadência da História: Estratégias Pedagógicas Interculturais das Escolas de Samba de Florianópolis", descreve a trajetória histórica das escolas de samba, marcada inicialmente pela exclusão das camadas populares. Tal quadro começa a se reverter no final da década de quarenta, quando grupos liderados por negros vão conquistando espaço no carnaval e efetuam mudanças nos elementos europeus, incorporando o ritmo e a música de origem africana. As escolas de samba fazem a mediação com outros setores sociais, penetrando, pouco a pouco, nos espaços das elites. Aí está o seu caráter pedagógico. Nesse sentido, para fins analíticos, a pedagogia das escolas de samba de Florianópolis está configurada em pedagogia da ação social, da ação política, dos valores éticos e morais, da ação escolar, da ação cultural e da arte.

Por fim, o debate constante da quarta parte remete à marginalidade social, à educação e aos movimentos sociais. Maristela Fantin, Victor Vincent Valla e Riccardo Massa analisam complexos processos de marginalização e subjugação entre culturas diferentes, assim como as perspectivas e propostas educacionais que promovem formas emancipatórias de integração.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2010
  • Data do Fascículo
    Mar 1999
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