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Contra Aristóteles - Por uma narratologia nietzschiana* * Tradução de Jorge Waquim

Againt Aristotle: For a Nietzschean Narratology

Resumo:

Ao longo dos anos, as pesquisas no domínio dos estudos narratológicos convergiram para uma visão unitária da narratividade, que se funda em uma interpretação consensual da Poética de Aristóteles. O objetivo do nosso artigo é descrever as principais características de um modelo alternativo da narratividade, que sugerimos chamar de “narratologia nietzschiana”. Dedicamos uma atenção especial ao papel da noção de melancolia desempenhado no interior do modelo da experiência estética do Nascimento da Tragédia. Desejamos mostrar que, nessa obra, Nietzsche denuncia a artificialidade da catarse aristotélica, opondo a ela a naturalidade da “melancolia dionisíaca”, que se encontra no âmago da visão do drama ático.

Palavras-chave:
Narratologia; dionisíaco; melancolia; catarse; tragédia; mythos

Abstract:

Over the years, research in the field of narratological studies has converged towards a unitary vision of narrativity, which is based on a shared interpretation of Aristotle's Poetics. The object of this article is to describe the main characteristics of an alternative model of narrativity, which I propose to call “Nietzschean narratology”. In particular, I emphasize the role that the notion of melancholy plays within the model of aesthetic experience of The Birth of Tragedy. I wish to show that, in this work, Nietzsche criticizes the artificiality of the Aristotelian catharsis, by opposing to it the naturalness of the “Dionysiac melancholy” which, according to him, vivifies the Attic drama.

Keywords:
Narratology; Dionysiac; melancholy; Catharsis; Tragedy; Muthos

“Descubro com frequência na Poética tal elemento e digo a mim mesmo: aqui, Aristóteles se sente completamente estrangeiro e espantado, aqui ele nada pode ensinar porque lhe falta o acesso, o acesso natural” (KGW 2/4.527). As palavras que Nietzsche enuncia no curso que ele dispensou entre os anos 1874 e 1878, na universidade da Basileia, em torno do tema da Retórica de Aristóteles, são esclarecedoras sob mais de uma perspectiva. Em primeiro lugar, encontramos uma confirmação daquilo que vários especialistas, em particular, Gherardo Ugolini, enfatizaram em inúmeras ocasiões durante os últimos anos, a saber, que, de acordo com Nietzsche, Aristóteles não teria compreendido a verdadeira natureza da tragédia ática. As visões de Aristóteles e de Nietzsche a respeito do tema da tragédia se encontram, portanto, muito distantes uma da outra. A esse respeito, G. Ugolini afirma que “O nascimento da tragédia pode ser lido como uma espécie de anti-Poética” (2003UGOLINI, G. Nietzsche. La tragedia senza la “Poetica”. In: UGOLINI, G. (org.). La poetica di Aristotele e la sua storia. Pise: Edizioni ETS, 2003., p. 16). Em segundo lugar, poderíamos deduzir desse excerto que o tema sobre a origem e a essência da tragédia ática se situa, de acordo com Nietzsche, no plano da naturalidade. Em O nascimento da tragédia, Nietzsche opõe dois tipos de tragédia. Por um lado, há uma forma de espetáculo fundada na reconciliação de dois impulsos artísticos fundamentais, o apolíneo e o dionisíaco. Por outro, um tipo de drama que representa “a forma degenerada da tragédia”, o qual é a expressão do “socratismo estético” que dá vida, de acordo com ele, aos dramas de Eurípedes. No entanto, de acordo com Nietzsche, a primeira dessas duas formas de tragédia é mais natural do que a segunda, por duas razões. Para começar, ela é mais originária, no sentido de ser cronologicamente anterior à segunda. E, depois, essa forma de tragédia está centrada na união do que Nietzsche definiu como “duas pulsões artísticas da natureza”, tornando-a, portanto, mais fundamental do que a segunda. É à luz dessas considerações que poderemos compreender a razão pela qual, de acordo com Nietzsche, teria faltado a Aristóteles o acesso natural à tragédia ática. O modelo pelo qual o Estagirita expõe as principais características na Poética não exprime em definitivo a naturalidade do drama ático em sua versão original. Esse modelo descreve um tipo de espetáculo trágico próximo daquele que se funda sobre o socratismo estético, criticado por Nietzsche, e que reflete uma versão corrompida e degenerada da experiência estética fundamental.

Inspirando-nos no antiaristotelismo de O nascimento da tragédia, é nosso propósito traçar aqui as grandes linhas de um modelo da narrativa que não se fundamente nos princípios enunciados por Aristóteles na Poética. Essa operação se mostra tanto mais útil quanto a profunda influência que esse texto exerceu na evolução da narratologia, ao ponto de não se poder afirmar, tomando emprestadas as palavras de Florence Dupont (2007DUPONT, F. Aristote ou le vampire du théâtre occidental. Paris: Édition Flammarion, 2007. , p. 23), que nesse domínio de pesquisa “não é muito fácil ser não aristotélico”. Não estaríamos exagerando se disséssemos que Aristóteles representa o espírito tutelar da narratologia, desde suas origens até nossos dias, tanto na França quanto no exterior. No prefácio da edição da Poética publicada em 1980, na coleção fundada em 1970 por T. Todorov e G. Genette que leva o mesmo nome nas edições da Seuil e que tinha o propósito de reunir as principais obras de teoria literária, T. Todorov afirma: “Não seria um grande exagero dizer que a história da poética coincide, em suas grandes linhas, com a história da Poética (de Aristóteles)”1 1 Aristóteles, 1980, p. 5. . Esse ponto de vista é compartilhado por outros teóricos da literatura, dentre os quais Umberto Eco. Em sua obra intitulada De Superman au surhomme (O super-homem de massa), ele afirma: “A primeira teoria da narratividade nasce com Aristóteles. Não importa muito que Aristóteles a tenha aplicado à tragédia e não ao romance; isso é tão verdadeiro que, há muito tempo, todas as teorias dos textos narrativos fazem referência a esse modelo”2 2 Eco, 1993, pp. 13-14. . Mais recentemente, vários narratólogos influentes declararam sua dívida com a Poética. Estes afirmam que compartilham uma visão da narratividade que se inspira naquela de Aristóteles. No prefácio da obra coletiva Narrative Sequence in Contemporary Narratology, publicada em 2016, Raphaël Baroni resume em poucas linhas a concepção da narratividade dos narratólogos contemporâneos:

Nós partilhamos da mesma convicção de que a narrativa é uma “imitação” ou uma “representação” de ações (mimesis praxeos); de que essa “representação” suscita emoções, como o medo e a esperança; e que essas histórias “bem construídas” organizam um “todo” (holos) que possui um começo, um meio e um fim. Esses três aspectos da narratividade estão ligados à temporalidade, porque as ações contadas se desenrolam no tempo, o medo e a esperança orientam a atenção da audiência em direção a uma resolução incerta e a unidade da representação é garantida pela função catafórica do começo e a função anafórica do fim3 3 Baroni e Revaz, 2016, p. 2. .

Essa visão da narrativa exprime os princípios essenciais da Poética, atualizando-os à luz dos modelos teóricos recentes, os quais, contrariamente aos modelos “estáticos” da época do estruturalismo, visam apresentar o fenômeno narrativo em termos de processo dinâmico. A influência da Poética sobre a narratologia é tão forte que se poderia afirmar que a evolução desse domínio de pesquisa coincide, em grande medida, com aquela da tradição aristotélica que se formou progressivamente ao longo dos anos. Diante dessa situação, na esperança de esclarecer certos aspectos fundamentais da narratividade que foram negligenciadas pelos narratólogos ao longo dos anos, nós nos propusemos aqui a dar uma interpretação renovada de O nascimento da tragédia. Estamos convencidos de que o modelo da experiência estética exposto por Nietzsche no texto poderia também ser aplicado ao estudo das interações narrativas. Desta forma, seria possível conceber a experiência narrativa de uma maneira diferente. Desejamos, com efeito, traçar as grandes linhas de uma experiência narrativa mais natural do que aquela descrita pelos modelos teóricos neoaristotélicos contemporâneos. Em especial, desejamos pôr em evidência a importância que desempenha a noção de melancolia no interior de O nascimento da tragédia. A confrontação entre, por um lado, a interpretação de Nietzsche dos estados emocionais experienciados pelos espectadores do drama ático e, por outro, algumas reflexões expressas por diferentes autores na questão da melancolia ao longo dos séculos, pode ser duplamente útil. Em primeiro lugar, isso permitirá fornecer uma imagem diferente da disposição dionisíaca descrita por Nietzsche. Em segundo lugar, essa análise poderá ser útil para atualizar e aprofundar o modelo da experiência estética exposto por Nietzsche, aplicando-o em especial à experiência narrativa da época contemporânea. In fine, ao insistir sobre a naturalidade do modelo nietzschiano, desejamos destacar as vantagens que ele oferece na compreensão das interações narrativas do ponto de vista ético. O destaque dado às virtudes éticas da melancolia natural nietzschiana, contra a artificialidade da catarse aristotélica, pode ser útil para interpretar de uma maneira diferente certas narrações que circulam atualmente no espaço social e mediático, particularmente na França.

Na primeira parte deste artigo, ilustramos brevemente a história conceitual daquilo que podemos intitular de “aristotelismo narrativo” em narratologia. Uma segunda parte é dedicada à leitura da narratologia nietzschiana tal qual nós a concebemos ao tomar por base as teses expostas por Nietzsche e O nascimento da tragédia e em outros escritos de juventude. Nessa parte, associamos o binômio Apolo/Dionísio à melancolia tal qual foi descrita por diferentes autores ao longo da história. Uma terceira parte é dedicada à confrontação entre o modelo aristotélico e o modelo nietzschiano, insistindo nos pontos de afinidade e de divergência entre a catarse aristotélica e a melancolia nietzschiana. Em especial, apoiamo-nos nas teses de James Porter e de William Marx com o objetivo de definir a catarse aristotélica como uma forma de “melancolia artificial”, que se oporia à “melancolia natural” sobre a qual se funda a experiência estética, de acordo com Nietzsche. Na conclusão, desejamos expor algumas considerações a respeito de certas narrativas contemporâneas que circulam atualmente no espaço social na França.

Os conceitos fundamentais do aristotelismo narrativo

Antes de expor os traços gerais da narratologia nietzschiana, é preciso tratar brevemente das características principais do modelo aristotélico, tal como ele aparece aos olhos dos narratólogos. Gostaríamos de nos demorar principalmente na descrição de três conceitos: mimesis, mythos e catarse. Em primeiro lugar, no curso da história da narratologia, a narrativa foi frequentemente definida como uma “representação de eventos”. Encontramos essa concepção da narrativa em diferentes autores, a exemplo de Gérard Genette4 4 Genette, 1966, pp. 155-156. , Gerald Prince5 5 Prince, 1982, p. 1. , Horace Porter Abbott6 6 Abbott, 2002, p. 12. . A despeito de inúmeras discussões que foram criadas em torno da noção de mimesis e de suas relações com a diegese, parece que um acordo relacionado com a “representação” concebida como o elemento essencial da narrativa foi aos poucos se impondo no seio das disciplinas narratológicas ao longo dos anos. Esse acordo toma por base principalmente a interpretação da mimesis proposta por Gérard Genette em seu ensaio “Frontières du récit” (“Fronteiras da narrativa”). De acordo com Genette, a mimesis e a diegese representam duas maneiras de definir a narratividade:

O único modo que a literatura conhece enquanto representação é a narrativa, equivalente verbal de acontecimentos não verbais e também [...] de eventos verbais, a menos que, neste último caso, seja substituída por uma citação direta que suprime toda função representativa [...] A representação literária, a mimesis dos antigos, não é então a narrativa mais os “discursos”: é a narrativa e apenas a narrativa. Platão opunha a mimesis à diegese como uma imitação perfeita de uma imitação imperfeita; porém, a imitação perfeita não é mais uma imitação, é a própria coisa, pois, finalmente, a única imitação é o imperfeito. Mimesis é diegese7 7 Genette, 1966, pp. 155-156. .

A partir dessa perspectiva, a linha que separa a mimesis da diegese desaparece uma vez reconhecida a capacidade da narrativa de propiciar um “equivalente verbal” a “eventos não verbais”, ou seja, uma vez reconhecida a capacidade dos humanos de colocar sob a forma de narrativa o conteúdo de uma experiência.

Essa faculdade “representativa” ou “mimética” dos humanos coincide, de acordo com a tradição aristotélica da narratologia, com a aptidão para instaurar conexões de causalidade ou lógicas entre os acontecimentos representados, com o objetivo de formar um todo organizado. A mimesis necessita, então, como complemento essencial para ser corretamente formulada, do mythos, ou seja, do “agenciamento dos fatos em sistema”, como foi descrito por Aristóteles no capítulo VI da Poética. Esta é a opinião, por exemplo, de Seymour Chatman (1978CHATMAN, S. Story and Discourse: Narrative Structure in Fiction and Film. Ithaca, New York: Cornell University, 1978., p. 45): “Desde Aristóteles, os acontecimentos nas narrativas são radicalmente correlacionados, encadeados e entrelaçados”. A mesma visão da narrativa é encontrada formando um todo organizado igualmente em Paul Ricœur e em Meir Sternberg (1992STERNBERG, M. “Telling in Time (II): Chronology, Teleology, Narrativity”. In: Poetics Today, Tel Aviv, vol. 13, n. 3, p. 463-541, 1992., p. 475), que prefere, acima de tudo, destacar a solidez do modelo aristotélico: “Seja o cômico ou o trágico, seja a mudança (metabase) no mundo representado ‘da felicidade à infelicidade’ ou o contrário, o conjunto consistirá em uma sequência ‘necessária ou provável’ compreendida entre polos bem definidos da fortuna humana. Disso, resulta o mais forte encadeamento cronológico possível”. A partir do fim dos anos 1970, estimulados sobretudo pela influência das críticas neoaristotélicas da escola de Chicago, os narratólogos analisaram os aspectos pragmáticos do modelo aristotélico, a saber, a capacidade do par mimesis / mythos em perseguir certos objetivos e criar efeitos no leitor. Autores como Wayne Booth (1961BOOTH, W. The Rhetoric of Fiction. Chicago: The University of Chicago Press, 1961., p. 92) destacaram o papel crucial que desempenha a dimensão retórica na Poética: “Contrariamente a inúmeros estéticos modernos, Aristóteles jamais abandonou por completo a dimensão retórica da poesia. Ele reconhece que uma das coisas que o poeta faz é produzir efeitos sobre o público. Quanto aos sentimentos excitantes, como a compaixão, o medo, a cólera, etc., [...] a poesia é, na realidade, estreitamente ligada à retórica”. É dessa forma que o estudo das noções de mimesis e de mythos progressivamente foi acompanhada da análise da noção de catarse. Na edição da Poética da Seuil dirigida por Jean Lallot e Roselyne Dupont-Roc, publicada em 1980, a catarse é associada ao prazer mimético, fundado no reconhecimento das formas e ligado à arte de compor intrigas:

Se, então, a tragédia pode “depurar” as emoções que ela desperta no espectador e, dessa forma, lhe proporcionar o prazer e não a pena, isso é assim enquanto ela oferece ao seu olhar os próprios objetos depurados [...]. A catarse trágica é o resultado de um processo análogo: colocado em presença de uma história (mythos) em que ele reconhece as formas, sabiamente elaboradas pelo poeta, que definem a essência do lamentável e do assustador, o próprio espectador experimenta a pena e o terror, mas sob uma forma quintessenciada. A emoção depurada que o assim toma, que nós qualificaremos de estética, acompanha-se de prazer8 8 Aristóteles, 1980, p. 190. .

O prazer, em conexão com o reconhecimento das formas ou o reconhecimento daquilo que já é conhecido pelo leitor, é identificado pelos narratólogos como estando na base do “prazer do texto”. A narrativa se torna, assim, a melhor maneira de transmitir uma mensagem caracterizada pelo seu alto valor antropológico e social. O encadeamento dos fatos em sistema permite a transmissão de um conjunto de normas éticas que são apreendidas pelo leitor graças à identificação deste com o herói da narração. A catarse seria, então, interpretada nesse contexto como sendo a reação emotiva mais notável de um compartilhamento de ideias que teria lugar entre o autor e o leitor. Esta é, em todo caso, a opinião de Hans Robert Jauss:

Catarse designa um terceiro aspecto da experiência estética fundamental: na e pela percepção da obra de arte, o homem pode ser libertado dos liames que o acorrentam aos interesses da vida prática e disposto pela identificação estética a assumir normas de comportamento social […]. O desfrute catártico desempenha - para citar Freud - o papel de isca e pode induzir o leitor ou o espectador a assumir muito mais facilmente normas de comportamento e a se solidarizar mais com um herói, tanto em seus feitos quanto em seus sofrimentos9 9 Jauss, 1978, p. 163. .

Mais recentemente, Martha Nussbaum quis destacar a importância da catarse enquanto mecanismo que favorece a coesão social e que permite às coletividades bastante diversas estabelecer uma rede de trocas baseada na solidariedade e na empatia. Segundo ela, o termo catarse designaria o ponto culminante de um processo de “esclarecimento” das ideias e das emoções, próprio a toda “pessoa boa”: “Catarse não significa ‘esclarecimento intelectual’, mas apenas ‘esclarecimento’ [...]. A compaixão e o medo são em si elementos pertinentes a uma percepção prática de nossa situação. Aristóteles difere de Platão não apenas no que tange aos mecanismos de esclarecimento, mas também naquilo que é o esclarecimento na ‘pessoa boa’”10 10 Nussbaum, 2016, pp. 485-486. . Resumindo, a mimesis, o mythos e a catarse são três noções fundamentais do modelo neoaristotélico da narratividade. Elas são, todas as três, noções estreitamente interconectadas, tanto sobre um plano ideológico quanto sobre um plano funcional. A relação de troca que se instaura entre esses três componentes da narratividade é fundada no papel desempenhado pelo dispositivo do reconhecimento no interior do ato de leitura.

Os traços principais da narratologia nietzschiana

Chegou a hora de expor os traços de uma narratologia que se inspira nos princípios enunciados por Nietzsche em O nascimento da tragédia, ao mesmo tempo em que nos afastamos do paradigma aristotélico adotado pelos narratólogos. Antes de mais nada, a concepção de F. Nietzsche difere sensivelmente daquela de Aristóteles: de acordo com este, a tragédia não é uma representação de acontecimentos, mas antes uma espécie de visão. Mesmo que ela não seja totalmente excluída do modelo nietzschiano, a mimesis aristotélica perde a posição central que ela ocupa na Poética. F. Nietzsche descreve a representação aristotélica como estando transfigurada pelo elemento dionisíaco, este último princípio se revelando como a verdadeira matriz do espetáculo. É assim que a mimesis aristotélica chega a assumir, em O nascimento da tragédia, o caráter de uma pura aparência. A representação dos eventos é, segundo F. Nietzsche, transfigurada pela negatividade que sustenta toda expressão artística. Ao invés de utilizar a palavra mimesis para descrever a representação cênica, Nietzsche emprega a palavra Darstellung ou o verbo Darstellen, em especial quando se trata de descrever a presença do deus Dionísio no palco: “A tragédia está na origem apenas de ‘coro’ e não da palavra ‘drama’. Mais tarde, no entanto, vai-se tentar mostrar o deus e apresentar [darstellen] no palco, visível a todos os olhos, a própria figura da visão com a decoração que a exalta” (GT/NT 8, KSA 1.63). Essa é a razão pela qual propomos, com o objetivo de aplicar o modelo nietzschiano aos estudos narratológicos, seguir a sugestão de Wolfgang Iser concernente à possibilidade de substituir o termo mimesis pelo termo em alemão Darstellung no estudo do fenômeno narrativo. “Por essa razão, sou tentado a substituir o termo em inglês representação pelo termo em alemão Darstellung, que é mais neutro e não inclui todas as conotações miméticas do primeiro”11 11 Iser, 1989, p. 236. e, indo mais longe, “a representação é, assim, ao mesmo tempo performance e aparência. Ele evoca uma imagem do indescritível, mas, sendo uma aparência, ele lhe recusa também o estatuto de uma cópia da realidade”12 12 Iser, 1989, p. 243. . Na visão de Nietzsche do drama trágico, a representação, ou, antes, a apresentação dos acontecimentos concebida como Darstellung não constituiria mais do que uma via de acesso fornecida ao espectador, a fim de lhe permitir ter a experiência do dionisíaco por toda a duração do espetáculo. O princípio apolíneo, definido de outra forma por Nietzsche como uma “bela aparência”, seria, assim, uma espécie de ilusão capaz de encobrir o princípio dionisíaco: “E, por isso, a ilusão apolínea se mostra como ela é, uma maneira de encobrir continuamente, por toda a duração da tragédia, o efeito propriamente dionisíaco” (GT/NT 21, KSA 1.139). O dionisíaco, por sua vez, não é fácil de determinar. F. Nietzsche lhe atribui o caráter de embriaguez, de uma pulsão imprevisível e desprovida em si de qualquer sentido, possuindo uma carga de vitalidade desenfreada que se destaca do fundo de um sofrimento indizível. Aplicado à análise narratológica, o dionisíaco pode ser interpretado como um duplo princípio: por um lado, ele pode ser considerado como o motor do texto, o elemento que vivifica a ação ao lhe dar uma direção; por outro, ele pode ser concebido enquanto constituinte não formulado do texto, no qual o discurso se perde e quase desaparece. Ao longo da história da teoria narrativa, vários autores descreveram essa duplicidade do dionisíaco, destacando seja um ou outro traço distintivo desse princípio. Jacques Derrida, por exemplo, quis colocar em evidência a capacidade do dionisíaco de vivificar o texto, agindo como uma força “trabalhada pela diferença”:

O diferendo, a diferença entre Dionísio e Apolo, entre o ímpeto e a estrutura, não se apaga na história, pois ela não faz parte da história. Ela é também, em um sentido insólito, uma estrutura originária: a abertura da história, a historicidade em si. A diferença simplesmente não pertence nem à história nem à estrutura. Se for preciso dizer, com Schelling, que “tudo é Dionísio”, é preciso saber - isto é escrever - que como a força pura, Dionísio é trabalhado pela diferença13 13 Derrida, 1967, p. 47. .

Julia Kristeva, por sua vez, quis destacar os efeitos destruidores do dionisíaco, que é percebido pelo intérprete enquanto pura negatividade:

Neste outro espaço, no qual as leis lógicas são abaladas, o sujeito se dissolve e, no lugar do signo, o que se instaura é o choque de significantes se anulando um ao outro. Uma operação de negatividade generalizada, mas que não tem nada a ver nem com a negatividade que constitui o julgamento (Aufhebung) nem com a negação interna do julgamento (a lógica 0-1) que aniquila e que as antigas filosofias, a exemplo do budismo, entreviram ao designá-la pelo termo de sunyavada14 14 Kristeva, 1969, p. 212. .

Nesse contexto, a ópsis (o espetáculo) e o mélos (a melodia) dos elementos que Aristóteles julga como não essenciais na Poética, adquirem mais e mais importância, até chegar a constituir os elementos principais da tragédia, em oposição à lógica do mythos aristotélico, que se limita a desempenhar em O nascimento da tragédia um papel de importância secundária. Nietzsche, nas notas de preparação de O nascimento da tragédia, destaca por várias vezes tal aspecto, em especial nessa anotação do inverno de 1869-1870: “Contra Aristóteles, que leva em conta o ὄψις e o μέλος apenas entre os ἡδύσματα [os agradáveis ornamentos] da tragédia: e que garante já o drama a ser lido” (NF/FP 1869-1870, 3[66], KSA 7.78). De acordo com uma perspectiva que se inspira nos princípios nietzschianos, a análise narratológica deve, então, se concentrar na relação de troca que intervém entre o apolíneo e o dionisíaco durante o processo interpretativo, ou seja, ela deve inquirir a respeito das modalidades cuja força e negatividade (os dois aspectos do dionisíaco) agem sobre a apresentação (Darstellung) dos eventos, empurrando-a em direção aos seus limites e/ou até a autodestruição.

Como assinalamos mais acima, o verdadeiro efeito previsto pela tragédia consistiria para o espectador em fazer dela a experiência extática do dionisíaco. Essa sensação é descrita por Nietzsche como sendo o resultado da combinação de dois efeitos psicológicos diferentes: o espectador deveria experimentar sensações contrastadas, como um “prodigioso horror” por um lado e uma excitação febril por outro. A experiência do dionisíaco se afirma, assim, em primeiro lugar como um fenômeno ambivalente. Ademais, Nietzsche descreve a experiência do dionisíaco como uma espécie de perda da subjetividade, ou, melhor dizendo, como a instauração da discussão da subjetividade, tanto do artista quanto do espectador do drama. De acordo com o jovem Nietzsche, “no processo dionisíaco, o artista é destituído de sua subjetividade [...]. O ‘eu’ do poeta lírico ecoa, então, desde o abismo do ser; sua ‘subjetividade’, no sentido da estética moderna, é pura quimera” (GT/NT 5, KSA 1.44).

Considerando tudo o que foi dito até agora, gostaríamos de avançar a hipótese de que o efeito dionisíaco da tragédia descrito por F. Nietzsche pode ser considerado como uma espécie de disposição melancólica experimentada pelo espectador. A “bile negra” foi interpretada desde a Antiguidade como um estado depressivo de natureza ambivalente. De acordo com R. Klibansky, E. Panofsky e F. Saxl, o melancólico enfrenta dois estados de espírito opostos, que eles definem metaforicamente como dois abismos: “Até mesmo o melancólico talentoso adentrava por um caminho estreito entre dois abismos; era muito obviamente especificado que, se ele não prestasse atenção, poderia facilmente cair na melancolia mórbida, ser o objeto de uma terrível depressão (άθυμίαι ίσχυραί) e sofrer de crises de medo, ou, em vez disso, de desenfreada temeridade”15 15 Klibansky, Panofsky, Saxl, 1989, p. 79. . Além do mais, de acordo com Freud, a melancolia representa uma das principais reações que vêm no rastro do choque causado pela perda do objeto amado. O melancólico faria, dessa maneira, a experiência de uma espécie de “perda do eu”: “A sombra do objeto caiu, assim, sobre o eu, que pôde, então, ser julgado por uma instância especial, como um objeto, o objeto abandonado. A perda do objeto se transformou, desta feita, em uma perda do eu, e o conflito entre o eu e o ser amado se transformou em ruptura entre a crítica do eu e o eu modificado pela identificação”16 16 Freud, 2010, p. 56. .

A semelhança com o estado dionisíaco descrito por F. Nietzsche é impressionante. A afinidade entre as duas disposições não é arbitrária: O próprio F. Nietzsche, em sua juventude, dedicou alguns textos à melancolia, entre os quais um pequeno poema intitulado À Melancolia. No entanto, mesmo no texto de O Nascimento da tragédia, podemos encontrar várias referências à melancolia, sempre relacionando-a à natureza profunda do princípio dionisíaco, a exemplo da citação seguinte: “A tragédia está sentada em meio a esse transbordamento de vida, sofrimento e prazer: em êxtase sublime, ela escuta um cantar distante e melancólico - é um cantar que fala das Mães do ser, cujos nomes são: ilusão, vontade, dor...” (GT/NT 20, KSA 1.132). As múltiplas referências de Nietzsche à dança de São Guido, tanto em O Nascimento da tragédia quanto nas notas que precedem a publicação dessa obra, reforçam a hipótese de uma estreita ligação entre a melancolia e a disposição dionisíaca. Essa dança, fenômeno bastante comum na Idade Média alemã, que levava indivíduos a dançarem sem parar até à morte ou até à cura de seus males, é definida por Paracelso como uma “dança lasciva” e classificada por Robert Burton, em Anatomia da melancolia, entre as múltiplas variedades de delírio melancólico. Poderíamos também citar o projeto da obra que Nietzsche planejava redigir entre 1867 e 1868, dedicada a Demócrito, cuja figura exercia uma grande fascinação sobre o jovem filósofo e cuja melancolia tinha sido reconhecida por Nietzsche ao associá-lo ao Problema XXX de Aristóteles. Além disso, queremos também colocar em evidência a proximidade que existia, na Grécia antiga, entre a melancolia e o êxtase. Como destaca em especial László Földényi: “A característica da melancolia e a loucura do êxtase, o ser-fora-de-si, a recriação das leis da existência, no sentido lato. Além disso, na época de Aristóteles, o verbo μαίνομαι, relativo ao furor, à mania, estava relacionado à melancolia”17 17 Földényi, 2012, p. 28. . Enfim, nós poderíamos considerar as palavras do sábio Sileno, citadas por Nietzsche em O Nascimento da tragédia, com o objetivo de ilustrar a concepção trágica da vida dos gregos, enquanto visão melancólica da existência: “Miserável raça de efêmeros filhos do acaso e do sofrimento, por que me obrigas a dizer-te o que tens menos interesse em ouvir? O bem supremo é para ti absolutamente inacessível: é não ter nascido, não ser, nada ser. Em contrapartida, o melhor dos bens para ti é morrer com brevidade” (GT/NT 3, KSA 1.35). De acordo com Nietzsche, o que poderia ser definido como “a melancolia dionisíaca”, que dá vida ao drama antigo, leva o espectador a uma forma de conhecimento especial, o conhecimento trágico. Longe de toda espécie de reconhecimento de acordo com o modelo da Poética, essa forma de conhecimento surgiria logo que fossem reconhecidos os limites do mythos aristotélico e sua tendência a tudo englobar, suprimindo, assim, a negatividade que permeia a tragédia ática. A esse respeito, Nietzsche, em relação ao tema do espectador, afirma: “Tomado pelo medo, ele descobre que, nesse limite, a lógica se volta sobre si mesma e acaba por morder a própria cauda - então, surge uma nova forma de conhecimento, o conhecimento trágico” (GT/NT 15, KSA 1.101). Essa forma de conhecimento se caracteriza por um duplo movimento, afirmativo e negativo, do sentido dos episódios trágicos. O espectador seria conduzido a reconhecer e a ignorar simultaneamente as figuras que atuam na cena, como Nietzsche o demonstra em A visão dionisíaca do mundo ao se referir ao estado de embriaguez dionisíaco: “Esse estado só pode ser compreendido por analogia, se não for o caso de o termos nós mesmos experienciado: é algo parecido como quando sonhamos e que ao mesmo tempo sentimos que o sonho é um sonho. O servo de Dionísio deve estar em estado de embriaguez e, ao mesmo tempo, ficar na própria retaguarda como uma sentinela” (DW/VD, KSA 1.555-556). Se quiséssemos aplicar essa atitude dos espectadores trágicos descrita por Nietzsche à análise das interações narrativas, poderíamos associá-la a um procedimento típico da época da desconstrução, que consistia em colocar “sous rature” palavras ou proposições. Em Postmodenist Fiction, B. McHale descreve essa operação, exposta por Derrida em seus escritos, da seguinte maneira: "É evidente o objetivo de Derrida [...] de nos lembrar que certos conceitos-chave da metafísica ocidental - como, neste caso, a existência e a objetividade - continuam a ser indispensáveis ao discurso filosófico, mesmo que esse mesmo discurso demonstre sua ilegitimidade. Os dois não podem ser admitidos, mas não podem ser excluídos; assim, ele os coloca sous rature18 18 Mchale, 1987, p. 100. . Os leitores seriam, assim, convidados a reconhecer os conceitos expressos pelo texto, enquanto negam sua legitimidade. Essa operação, em nossa opinião, não deixa de ter ligação com a “ignorância sistemática” descrita por Lacan, em um quadro clínico, a propósito da causalidade essencial da loucura: “Qual é, então, o fenômeno da crença delirante? Afirmamos que ele é ignorância, com o que esse termo contém de antinomia essencial. Porque ignorar supõe um reconhecimento, como o manifesta a ignorância sistemática, onde é preciso admitir que o que é negado seja de alguma maneira reconhecido”19 19 Lacan, 1966, p. 165. . A ignorância dos elementos do texto narrativo, concebida dessa maneira, não deveria, em nossa opinião, ser interpretada como uma postura passiva adotada pelo leitor. Este tipo de atitude possui uma potência ativa, que se exprime pela adoção de um olhar mais lúcido em relação às sequências narrativas. Essa disposição pode ser, então, considerada como uma forma de presença de espírito, à maneira de R. Barthes. Este último, no Journal du deuil, o caderno de notas que ele redigiu após o falecimento de sua mãe, chama “presença de espírito” a faculdade de analisar lucidamente os objetos da experiência, malgrado a acuidade da dor experimentada. “O impressionante dessas notas é um sujeito devastado à mercê da presença de espírito”20 20 Barthes, 2009, p. 40. .

Resumindo, o modelo da narratividade que se inspira nas teses de O Nascimento da tragédia, que tem por objetivo valorizar o papel desempenhado pela melancolia no interior da experiência estética, pode representar uma alternativa àquele enunciado pelos narratólogos neoaristotélicos. O estudo do papel desempenhado pela melancolia no interior do ato narrativo pode permitir aos narratólogos analisar o fenômeno narrativo sem necessariamente se alinharem aos princípios do modelo da Poética.

A melancolia natural no centro da experiência estética nietzschiana

Gostaríamos agora de passar à confrontação dos modelos da experiência estética de Nietzsche e de Aristóteles, enquanto focalizamos nossa atenção unicamente nos pontos de afinidade e de divergência entre a catarse aristotélica e a melancolia nietzschiana. À primeira vista, Nietzsche parece distinguir claramente essas duas disposições. Em O Nascimento da tragédia, Nietzsche critica duramente não apenas a maneira pela qual, de acordo com ele, Aristóteles concebia as reações emotivas dos espectadores do drama ático, mas também a forma em que elas foram interpretadas ao longo da história da filosofia. Nietzsche critica, então, ao mesmo tempo a concepção de Aristóteles e aquela dos neoaristotélicos:

Nunca, desde Aristóteles, foi dada uma explicação do efeito trágico que permite relacioná-lo à existência de ouvintes: ora são o terror e a compaixão que, por meio das mais graves peripécias, devem alcançar uma descarga capaz de os aliviar; ora devemos nos sentir exaltados e engrandecidos pela vitória de nobres e grandes princípios ou por um sacrifício heroico de acordo com alguma concepção moral do mundo. Sem dúvida, estou bastante persuadido de que, para a maioria, é aí onde reside o único efeito que a tragédia poderia produzir - o que nem por isso prova que todas essas pessoas, e com eles seus estetas, tenham alguma vez experienciado o que quer que seja da tragédia enquanto forma de arte superior (GT/NT 22, KSA 1.142).

Nesse excerto, Nietzsche critica a concepção do efeito estético do drama de Aristóteles, afirmando que este não deve ser associado à esfera moral. Além disso, apoiando-se na concepção de Jacob Bernays a respeito da catarse, Nietzsche critica igualmente toda concepção do efeito trágico que se funda na purificação das sensações. Ao contrário, seu modelo da experiência estética se funda sobre uma intensificação das emoções trágicas, por uma adesão extática ao drama pelo espectador. As duas concepções da experiência trágica parecem, então, estar bastante distanciadas uma da outra. No entanto, como destaca em especial James Porter (2016PORTER, J. “Nietzsche, Tragedy, and the Theory of Catharsis”. In: Skenè. Journal of Theatre and Drama Studies. Milan, vol. 2, n. 1, 201-228, 2016.), devemos levar em conta as afinidades que aproximam o efeito dionisíaco de um prazer de tipo catártico. Com efeito, Porter põe em evidência o fato de que Nietzsche descreve a experiência dionisíaca de uma maneira que lembra o processo catártico que Aristóteles menciona no livro oito da Política. Nessa obra, Aristóteles utiliza o termo catarse para se referir ao poder particular do gênero musical do tipo “entusiasta”, que leva os ouvintes a experimentar um tipo de possessão delirante, à qual segue uma forma de alívio quando o estado extático atinge seu clímax. Da mesma maneira, Nietzsche mostra como a experiência estética do espectador do drama ático se funda sobre a sucessão entre a exaltação dionisíaca e o alívio apolíneo. Quando o êxtase dionisíaco atinge seu clímax, afirma Nietzsche, “irrompe a força apolínea, que, graças ao bálsamo salutar de uma deliciosa ilusão, visa restabelecer o indivíduo quase pulverizado” (GT/NT 21, KSA 1.136). A melancolia nietzschiana estaria, assim, próxima daquela que Aristóteles descreve em suas obras, entre as quais o Problema XXX, fundado sobre a mesotês, o equilíbrio entre dois extremos. A aproximação entre a melancolia e a catarse está, por outro lado, no centro da interpretação renovada da catarse que William Marx expôs em Le tombeau d’Œdipe. Por meio de uma comparação entre os textos aristotélicos da Poética e da Política, por um lado, e o Problema XXX do pseudo-Aristóteles, por outro, William Marx afirma que a catarse consiste em uma ação de reequilíbrio dos humores que concerne especialmente ao esquentamento e resfriamento da bile negra, um dos quatro humores do corpo, de acordo com a classificação clássica de Hipócrates. A bile negra é a tradução literal da melancolia. Em primeiro lugar, de acordo com essa interpretação, a compaixão que o espectador experimentaria em relação aos protagonistas da tragédia lhe causaria um esquentamento da bile negra. A evolução da intriga levaria o espectador a experimentar uma sensação de terror acompanhada de um resfriamento da bile negra. Por conseguinte, essa sucessão de compaixão e de terror, nessa ordem, produziria um reequilíbrio dos humores, que é o objeto da catarse. É assim que William Marx afirma, à guisa de conclusão: “Todos os elementos estão presentemente reunidos para definir com precisão o que é, de acordo com a Poética, a catarse trágica. Trata-se, nem mais nem menos, apenas de uma ação de equilíbrio da mistura humoral: a compaixão provocada pela tragédia acumula o calor na mistura de bile negra; o terror, em contrapartida, alivia esse excesso de calor”21 21 Marx, 2012, p. 105. . A catarse aristotélica e a melancolia dionisíaca nietzschiana reproduziriam, então, ao longo da visão do drama trágico, o mesmo processo de reequilíbrio dos humores. No entanto, Nietzsche afirma em vários momentos em seus escritos tardios, mas, em particular, no Crepúsculo dos ídolos, que o efeito dionisíaco deve ser diferenciado do efeito catártico descrito por Aristóteles. Onde, então, se situa a diferença fundamental entre a descarga catártica aristotélica e essa da qual se trata na visão do drama ático de Nietzsche?

Ao insistir na naturalidade da experiência trágica descrita por Nietzsche, gostaríamos de distinguir, por um lado, aquilo que poderíamos definir como a “melancolia artificial” descrita por Aristóteles, a saber, a catarse aristotélica e, por outro, a “melancolia natural” da qual se trata em O nascimento da tragédia. Com efeito, a diferença fundamental entre essas duas disposições concerne ao papel que o mythos desempenha no interior das visões de Nietzsche e de Aristóteles. Na Poética, o mythos ocupa o lugar fundamental: é do agenciamento dos fatos em sistema que dependem o medo e a compaixão experienciados pelo espectador. A evolução da ação trágica provoca, de acordo com Aristóteles, uma forte adesão emocional da parte do espectador, por sua identificação com a sorte dos personagens do drama acidentalmente caídos em desgraça. Em O nascimento da tragédia, a relação entre o dran e o páthos é inversa: o objetivo do artista dramático é produzir uma cena de páthos, e, para atingi-lo, o agenciamento das ações constitui apenas um dos meios estabelecidos pelo autor. Na parte dedicada à tragédia no âmbito do curso de história da literatura grega que Nietzsche lecionou entre os anos 1874 e 1876, ele expõe claramente sua concepção do drama trágico, opondo-o à estrutura dos dramas modernos. “O objetivo do autor é compor uma majestosa cena de páthos, com profundas repercussões: atingir um clímax da disposição afetiva lírica; o que se destaca da ação é apenas uma preparação desse objetivo. No drama moderno, a ação é ela mesma o objetivo; dela resulta uma estrutura completamente diferente; os apogeus do drama antigo começam nos nossos dias quando cai o pano” (KGW 2/5.82). Nietzsche, então, propõe sua concepção da melancolia trágica, que surge naturalmente tanto da melodia quanto da visão do deus Dionísio na cena, com o efeito catártico do drama aristotélico que, ao contrário, é produzido artificialmente pela evolução do mythos. Parece-nos que essa consideração se reveste de uma importante decisão vis-à-vis de uma possível aplicação da visão nietzschiana do drama aos estudos narratológicos. Ao invés de insistir, como o fazem certos narratólogos contemporâneos, sobre a naturalidade do efeito de tensão narrativa que é criado por algumas narrativas contemporâneas, deveríamos destacar a artificialidade desse processo e sobre a necessidade de recuperar uma adesão à narrativa mais natural. A esse respeito, se refletirmos sobre a amplitude que tomaram em nossos dias as narrativas elaboradas seguindo-se os princípios aristotélicos, difundidos em larga escala pelas potentes indústrias do audiovisual, como a Netflix ou a Amazon Prime, não podemos deixar de nos espantar pela difusão tentacular da catarse artificial. Contra esse verdadeiro regime catártico que as editoras pretendem criar em nossos dias, uma narratologia que se inspire nos princípios nietzschianos deveria antes insistir sobre a necessidade de encontrar um vínculo mais natural com os elementos narrativos. A narratologia nietzschiana, ao denunciar a artificialidade das narrativas catárticas contemporâneas, deveria antes focalizar sua atenção nas narrativas que visam reviver uma experiência estética próxima daquela teorizada por Nietzsche. Ao invés de elogiar as pretendidas virtudes éticas e pedagógicas das narrativas que implicam um vínculo do tipo catártico, como no caso de Hans Robert Jauss e de Martha Nussbaum, a narratologia nietzschiana deveria antes explorar o gênero de adesão estética que suscite narrativas em que a ação se coloca ao serviço do espetáculo e da melodia, unicamente “pela beleza do gesto”, como diz Denis Lavant em Holy Motors. É desta maneira que poderíamos redescobrir um tipo de experiência narrativa mais fundamental do que aquela exposta pelos modelos dos narratólogos neoaristotélicos.

Conclusão

À guisa de conclusão, gostaríamos de expor algumas considerações a propósito de certas narrações que circulam no espaço social e mediático da França de nossos dias. Como destaca Pierre Ronsanvallon em sua obra Le siècle du populisme (O século do populismo), assistimos em nossos dias à expansão de uma morale du dégoût (moral da aversão), alimentada pelas narrativas de certos políticos ditos “populistas”. Estes difundem narrativas fundamentadas na incessante repetição da mesma intriga, projetada em direção a uma mesma resolução: a catarse final que coincide com a tomada do poder do autor da narração. P. Rosanvallon destaca esse aspecto quando ele descreve o que ele chama de “política negativa” defendida por tais políticos: “Uma moral da aversão está enxertada nessa política negativa. Ela isenta as críticas de toda precisão, torna inútil o cuidado com a argumentação. Com ela, a cólera liga a violência ao incerto, a radicalidade à impotência [...] subsiste, com efeito, então, uma única, repetitiva e permanente acusação à espera de uma catarse final”22 22 Rosanvallon, 2020, pp. 78-79. . Diante da influência que exercem em nossos dias essas narrações fundadas na instilação de uma melancolia artificial, uma narratologia nietzschiana deveria antes encorajar a criação e a difusão da narração que impliquem uma adesão melancólica de tipo natural. Essa adesão implica o estabelecimento da distância entre o autor e o intérprete, à imagem da relação que se cria, de acordo com Nietzsche, entre o dramaturgo e o espectador do drama grego, como poderíamos deduzir da citação que se segue, tirada dos fragmentos póstumos do começo do ano de 1871: “O homem artístico, que deve interpretar por si mesmo a música mediante o simbólico das imagens e dos afetos, [...] nada tem a comunicar ao ouvinte [...] E como o poeta lírico canta seu hino, da mesma forma o povo canta a canção popular, para si mesmo, por um impulso interior” (NF/FP 1871, 12[1], KSA 7.369). Diante das narrações contemporâneas a narratologia nietzschiana nos encoraja a adotar um distanciamento crítico vis-à-vis de seus autores. É assim que, cultivando uma sã melancolia natural, esta poderia “se revelar profícua”, como a melancolia de esquerda descrita por Enzo Traverso, estimulando a ação “em um sentido consciente e autorreflexivo”23 23 Traverso, 2018, p. 23. . A narratologia nietzschiana se afirmaria, enfim, como um exercício de natureza ética que opera em favor de uma advertência dos cidadãos/intérpretes vis-à-vis das narrações catárticas contemporâneas, estimulando uma confrontação aberta e respeitosa com a alteridade.

Gostaríamos de concluir por uma citação tirada de O nascimento da tragédia, na qual Nietzsche coloca em evidência os efeitos positivos do dionisíaco, sob um ponto de vista ético. As narrações que inspiram uma melancolia natural possuem virtudes éticas próximas daquelas descritas por Nietzsche no tema do drama ático: “Sob a magia de Dionísio, torna-se a selar não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alienada [...] volta a celebrar sua reconciliação com seu filho perdido, o homem [...]. Agora, nesse evangelho da harmonia universal, não apenas cada um se sente unido, reconciliado, amalgamado a seu próximo, mas ele se faz um com todos” (GT/NT 1, KSA 1.29).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2022
  • Aceito
    15 Dez 2022
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