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A publicação de ciência em países em desenvolvimento: os novos atores

EDITORIAL

A publicação de ciência em países em desenvolvimento. Os novos atores

Mauricio Rocha-e-Silva, Editor

Hospital das Clínicas, São Paulo University Medical School - São Paulo/SP, Brazil. Email: mrsilva36@hcnet.usp.br

O desenvolvimento cultural humano deve muito a três momentos revolucionários: há três mil anos os Sumérios inventaram a palavra escrita; em 1447, Gutenberg inventou os tipos móveis e a palavra escrita se fez disponível; em 1991 Tim Berners-Lee deu ao mundo a World Wide Web (www) e a palavra virtual se universalizou.

Entretanto a frisa do tempo da palavra médica é diferente: entre Hipócrates (460-377 AC) e 1850 AD pouco foi escrito, embora há que notar que boa parte dessa escrita foi, e continua a ser da maior importância! Depois o passo acelerou: a United States Library of the Office of the Surgeon General of the Army (nascida em 1836) começou a publicar o Index Medicus em 1879 e aqueles que têm idade suficiente lembram-se das muitas horas passadas diante daqueles volumes enormes procurando a informação bibliográfica essencial; depois era escrever pedidos de separatas, levá-los ao correio, que por sua vez trazia de volta os preciosos textos, virtualmente impossíveis de serem copiados. Não, não havia Xérox, nem e-mail! Oitenta anos se passaram sem que isso mudasse muito, exceto, é claro, o tamanho do Index: em 1879, era apenas um bonito livrinho de capa vermelha, in-quarto, título em caligrafia gótica, com menos de 300 citações; em 1956, quando a Biblioteca do Exército foi rebatizada National Library of Medicine, as citações eram mais de 100.000. Oito anos depois, chegou a hora da automação, com a criação do Medlars (Medical Literature Analysis and Retrieval System), que depois virou Medline (Medlars Online). Em 1997 uniram-se o www e o Medline, e dessa união nasceu o PUBMED: de repente, a coleção da National Library of Medicine, de longe a maior biblioteca científica do mundo (5 mil periódicos, 16 milhões de citações) tornou-se universal e gratuitamente acessível.

Vale notar que a acessibilidade no PUBMED vem em 3 níveis diferentes: (i) os títulos das citações são universalmente disponíveis, (ii) os resumos, idem, desde que existam e (iii) o texto completo, disponível apenas se publicado no formato Free Open Access.

Não por mera coincidência, o mesmo ano de 1997 viu nascer a Scientific Electronic Library Online (SciELO). O endereço internet é www.scielo.br e o projeto nasceu com a meta de criar uma biblioteca virtual de publicações científicas da América Latina e Caribe que fosse visível e acessível. Para entrar na coleção SciELO, a revista deve oferecer free open access, com o que se concretiza a primeira meta da SciELO, ou seja acessibilidade e visibilidade. A credibilidade, outra das metas originais, é assegurada pelas outras regras de acesso: periódicos latino-americanos já indexados no PUBMED são automaticamente elegíveis, enquanto os postulantes devem respeitar um conjunto de regras semelhantes às que regem o acesso ao PUBMED. Ao longo dos anos a coleção, que inicialmente englobava periódicos do Brasil e do Chile expandiu-se e agora inclui também revistas de Cuba, Espanha e Venezuela, com quase 300 periódicos indexados. Revistas de outros países estão em fase de certificação: Argentina, Colômbia, México, Peru, Portugal e Uruguai devem se incorporar dentro em breve.

A coleção SciELO foi conectada ao PUBMED em 1999, e pode ser agora consultada via www.pubmed.gov. Este momento representa um salto de qualidade para a coleção que pode ser melhor apreciada no contexto dos hábitos e da etiqueta da publicação científica prevalente no terceiro mundo. Os periódicos locais sempre foram invisíveis para o resto do mundo. Mesmo quando impressos em inglês não podiam ser obtidos fora do país de origem. Conseqüentemente, cientistas terceiro-mundistas competentes jamais publicavam em casa. Violar esta regra de ouro enterrava a informação onde jamais sequer se ouviria falar dela. Não era apenas insensato, era degradante. Publicar no primeiro mundo era a coisa certa, era estar na moda, era essencial até mesmo para progredir na carreira. Era e ainda é! Estes conceitos elementares eram gravados no cerebelo, no tálamo, no hipotálamo e no córtex cerebral de todo o jovem aspirante a cientista.

O resultado lógico deste processo pedagógico foi enterrarem-se os periódicos locais num circulo vicioso infame, onde maus artigos compõem maus periódicos, que tem impacto baixo, ou nenhum, que atraem artigos piores, que rebaixam mais o periódico, etc. Como subprodutos inevitáveis, temos revisores incompetentes, ou permissivos, periódicos de baixa ou nenhuma rentabilidade que só sobrevivem subsidiados, ou de má qualidade, ou tudo isso junto.

Felizmente é possível dizer que o novo século traz uma luz no fim do túnel. A figura 1 mostra o efeito SciELO sobre a visibilidade e acessibilidade da coleção. No primeiro ano do século foram registradas 750 mil "downloads" de artigos completos, das quais apenas 52 mil em países do primeiro mundo. Em 2005, estes números aumentaram para 40 milhões, dos quais 16 milhões do primeiro mundo, um aumento de cinqüenta vezes. O ano corrente não mostra sinais de redução na velocidade de crescimento.


O impacto também aumentou, mas não tão dramaticamente: A Figura 2 mostra que as revistas SciELO do Brasil e do Chile quadruplicaram seu impacto. Muito menos que o aumento de visibilidade, mas vale notar que o impacto só pode aumentar mais devagar que a visibilidade. Vale também notar que o impacto médio, 0,6 é da mesma ordem de magnitude que o dos periódicos da Austrália (0,8).


Analisando-se os fatores associados a crescimento de impacto no terceiro mundo, chegamos a alguns resultados absolutamente esperáveis, mas também a outros, surpreendentes (tabela 1).

O aumento de impacto correlaciona-se fortemente com o número de novos registros de periódicos no catálogo ISI Web of KnowledgeTM, mas não com o número total de revistas ISI da região. Correlaciona-se também com a percentagem de revistas publicadas comercialmente. Correlaciona-se ainda com a percentagem de periódicos cujos nomes não revelam o país de origem; isto quer dizer que é melhor o periódico chamar-se "International Journal of Xxx" do que "Brazilian (ou Chilean, ou Chinese) Journal of Xxx". Ser publicado em inglês faz menos diferença do se poderia esperar, mas publicar muitos artigos "estrangeiros" (isto é, artigos de fora do país de origem da revista) gera correlação negativa.

A última figura analisa o impacto de CLINICS e de sua predecessora, a Revista do Hospital das Clínicas. Nem uma nem outra tem registro ISI, de modo que os valores apresentados foram calculados segundo a metodologia ISI, a partir de citações registradas no catálogo ISI. O efeito círculo-vicioso é claramente visível entre 1988 e 1995, com exceção de 1990, onde um único artigo bem sucedido "puxa" o impacto para cima. O efeito SciELO registra-se a partir 2001, dando início a um ciclo ascendente. Seria interessante estudar outras revistas latino-americanas ainda fora da coleção SciELO para determinar se este efeito se aplica generalizadamente a todas as revistas do continente.

Em resumo, pode-se afirmar que a união SciELO – PUBMED alterou radicalmente a visibilidade e a credibilidade dos periódicos regionais. O impacto ainda não é muito alto, nem mudaram ainda os hábitos de publicação. Mas a pergunta que se impõe é "para que queremos revistas locais, quando as do primeiro mundo são tão melhores? E continuarão melhores no futuro previsível!"

Há 10 anos, esta pergunta teria uma única resposta racional: "Não obrigado, não queremos revistas locais!" Mas com a nova visibilidade, que tem tudo para se manter, a resposta correta está mudando. No século XXI, o que for publicado numa revista SciELO-PUBMED estará tão visível quanto o publicado em Nature, Science, etc! É claro que não terá o mesmo efeito aos olhos do investigador. Mas vale lembrar que hoje, quase ninguém vai à biblioteca "folhear" Nature, Science, etc. As pessoas sentam-se diante de seus próprios computadores, abrem o PUBMED, teclam keywords e "entram": Se algum artigo SciELO aparecer na busca, mais dois toques do Mouse abrem o artigo inteiro na frente do consulente, quer ele esteja em São Paulo, Londres, Paris, Los Angeles, Moscow, Osasco, ou Osaka.

Por isso, hoje a resposta correta àquela pergunta é: "Sim, queremos revistas locais, pelos mesmos motivos que as querem os países do primeiro mundo." É uma questão de soberania. Nenhum país capaz de produzir ciência de qualidade deve ficar à mercê dos editores do primeiro mundo. Não se trata absolutamente de boicotar os periódicos internacionais, de iniciar um movimento xenófobo. Isso seria ridículo! A maior parte da boa ciência latino-americana deve continuar a ser publicada no primeiro mundo. Mas uma parte dela deve ser canalizada aos periódicos locais. Não a parte ruim, por favor, não o "lixo", mas uma parte da produção de qualidade. Esta ciência não desaparecerá; será lida, citada e criará por aqui periódicos com melhor impacto. E mais adiante, se formos perseverantes, teremos periódicos que funcionarão como alternativas verdadeiras para publicarmos aquilo que os editores do primeiro mundo podem relutar em publicar. Não é necessário atribuir-lhes más intenções, preconceitos, etc. O mais importante é pensar positivo. Precisamos autonomia editorial científica. Este deveria ser um aspecto essencial das nossas políticas científicas daqui para diante.

Um agradecimento especial deve ser dirigido a Tim Berners-Lee que tornou possível esta revolução e a SciELO que cada vez mais pode se tornar o instrumento deste ato de soberania.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Out 2006
  • Data do Fascículo
    Out 2006
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