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Um passo para trás para ver melhor a cidade: uma análise configuracional de crianças em Curitiba

A step back to better see the city: a configurational analysis of children in Curitiba

Un paso atrás para ver mejor la ciudad: un análisis configuracional de los niños y ninãs de Curitiba

Resumo:

Discute-se aqui como o referencial teórico-metodológico de Norbert Elias pode ajudar a pensar sobre a relação entre criança e cidade. Investiga-se, do ponto de vista teórico – mas também a partir de alguns resultados de pesquisa –, qual a influência da dimensão espacial nas redes de interdependência de crianças. Para tal, destaca-se três aspectos importantes para esse tipo de produção do conhecimento: o construto teórico-metodológico eliasiano que parte de configurações sociais; as implicações deste construto para pensar pesquisas com crianças; e as implicações disso para compreender como diferentes crianças podem viver em cidades tão excludentes, hierarquizadas e produtoras de desigualdades. Conclui-se que este referencial ajuda muito pois provoca um tipo de compreensão do espaço como sendo tecido a partir de diferentes gradientes de poder e status e de acordo com as posições que as crianças e suas famílias ocupam na configuração do bairro e da cidade. Por outro lado, como a criança age na sua própria rede, ela questiona, significa, tensiona e altera o território como qualquer outro cidadão.

Palavras-chave:
Criança; Bairro; Cidade; Curitiba; Norbert Elias

Abstract:

This paper discusses how Norbert Elias's theoretical-methodological framework may help to think about the relation between child and city. It investigates, from a theoretical view -but also from some research results-, what is the influence of spatial dimension in the networks of interdependencies of children. In order to do so, three important aspects for this type of knowledge production are highlighted: the Eliasian theoretical-methodological construct based on social configurations; the implications of this construct to think research studies with children; and the implications of it to understand how different children may live in such excluding cities, which are hierarchical and which produce inequalities. It is possible to conclude that this framework helps very much because it promotes a type of space comprehension as woven from different gradients of power and status, and as an element that relates the positions children and their families hold in the neighborhood and the city configurations. On the other hand, as children act in their own networks, they question, mean, tension, and change the territory such as any other citizen.

Keywords:
Child; Neighborhood; City; Curitiba; Norbert Elias

Resumen:

Este artículo discute cómo el marco teórico-metodológico de Norbert Elias puede ayudar a pensar en la relación entre los niños y la ciudad. Investiga, desde el punto de vista teórico -pero también a partir de algunos resultados de investigación-, cuál es la influencia de la dimensión espacial en las redes de interdependencias de los niños. Para ello, se destacan tres aspectos importantes para este tipo de producción de conocimiento: el constructo teórico-metodológico eliasiano que parte de las configuraciones sociales; las implicaciones de este constructo para pensar los estudios de investigación con niños y niñas; y las implicaciones de esto para entender cómo pueden vivir niños y niñas diferentes en ciudades tan excluyentes, jerarquizadas y que producen desigualdades. Es posible concluir que esta referencia es muy útil ya que provoca un tipo de comprensión del espacio como tejido a partir de diferentes gradientes de poder y estatus, y como elemento que relaciona las posiciones que los niños y sus familias ocupan en las configuraciones del barrio y de la ciudad. Por otro lado, los niños, al actuar en sus propias redes, cuestionan, significan, tensionan y cambian el territorio como cualquier otro ciudadano.

Palabras clave:
Niño y niña; Barrio; Ciudad; Curitiba; Norbert Elias

Objetiva-se aqui discutir como algumas das contribuições teórico-metodológicas de Norbert Elias podem ajudar a analisar a influência da dimensão espacial nas redes de interdependência de crianças em configurações urbanas.

Para tal, este texto está organizado em três seções. A primeira, discute alguns dos referenciais teórico-metodológicos eliasianos, começando pelo insistente problema apontado pelo autor, da separação entre indivíduo e sociedade nas análises sociais. Dentro dessa questão, busca-se pensar como os conceitos de configuração social, redes de interdependência e poder podem romper com essa dicotomia. Na sequência, problematiza-se como esse construto eliasiano pode contribuir para pesquisadores que estudam crianças e, para tal, dialoga-se com Prout (2010)Prout, Alan. 2010. Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de Pesquisa 40 (141): 729-50. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004.
https://doi.org/10.1590/S0100-1574201000...
, autor que desenvolve análises importantes para o campo dos estudos da infância.

Por último, parte-se de alguns desses conceitos para analisar a dimensão espacial das redes de interdependência de crianças na cidade, a partir de dados produzidos em uma pesquisa realizada em Curitiba com famílias e crianças moradoras de diferentes regiões da cidade.

Configurações sociais

Dentre as histórias de literatura juvenil do final do século 18, encontram-se as do Barão de Münchhausen, um hilário personagem que passeia pelo mundo enfrentando os mais diversos perigos e, em uma das histórias, quando ficou afundado em um pântano com o seu cavalo, consegue sair da situação, puxando os seus próprios cabelos. Este conto parece ilustrar bem a crítica feita por Elias (1994)Elias, Norbert. 1994. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar. aos tipos de explicação social que partem da ideia de que as ações de um indivíduo dependem apenas dele, independentemente do social. Este tipo de análise apresenta um homo clausus, solitário, que de “dentro” de si, se relaciona, com o que está lá fora, o “social”.

Em um sentido oposto, há explicações que partem de um ente genérico e abstrato chamado “sociedade”. Nesse caso, metaforicamente, é como se não se pudesse enxergar as pessoas em uma ilha, a partir de um barco, pois a bruma é espessa demais. O “Espírito da Grécia antiga”, a “mentalidade grupal” (Elias 1994Elias, Norbert. 1994. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar.,14) como forças anônimas e supraindividuais é que explicariam a situação analisada. Envoltos nessa espécie de névoa, os indivíduos em si quase não seriam implicados, não teriam força explicativa, sendo o lado “objetivo”, o “social”, o “todo”, as explicações mais aceitas.

Para escapar dessa dicotomia subjetivo versus objetivo, Elias (1994)Elias, Norbert. 1994. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar. propõe que se observe que todo ser humano está sempre imerso em relações e que estas não são nem somatórias, nem fixas, mas, móveis e interdependentes. As pessoas – dizia o autor –, não são como bolas de bilhar que se tocam e vão embora, elas produzem, ao contrário, processos interdependentes e reticulares, relações que se modificam o tempo inteiro, desde que nascem até a morte. Formam, portanto, configurações ou figurações sociais. Este conceito de figuração, nas palavras de Elias (1980Elias, Norbert. 1980. Introdução à Sociologia. Braga: Edições 70., 141), serve como “instrumento conceitual que tem em vista afrouxar o constrangimento social de falarmos e pensarmos como se o ‘indivíduo’ e a ‘sociedade’ fossem antagônicos e diferentes”. Para melhor entender o conceito, o autor propõe que se pense em pessoas jogando cartas. Nesta configuração (ou figuração), “elas constituem um jogo que nenhum jogador individual consegue controlar e, os planos, as jogadas, as perspectivas dos jogadores, são influenciadas pelo jogo” (Elias 1980Elias, Norbert. 1980. Introdução à Sociologia. Braga: Edições 70.,139). Assim,

por configuração entendemos o padrão mutável criado pelo conjunto de jogadores – não só pelos seus intelectos mas pelo que eles são no seu todo, a totalidade de suas acções nas relações que sustentam uns com os outros. Podemos ver que esta configuração forma um entrelaçado flexível de tensões. A interdependência dos jogadores, que é uma condição prévia para que formem uma configuração, pode ser uma interdependência de aliados ou de adversários. (Elias 1980Elias, Norbert. 1980. Introdução à Sociologia. Braga: Edições 70., 142).

A seguir, um exemplo de análise configuracional do autor, pode ajudar nessa compreensão.

Velázquez dá um passo para trás

Elias (1998)Elias, Norbert. 1998. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., em um de seus estudos sobre sociologia do conhecimento, observa que, muitas vezes, a pessoa está tão envolvida na sua configuração que não consegue compreender de maneira muito nítida o que se passa. É preciso então distanciar-se para, na sequência, voltar a se envolver, mas então, já em um outro nível de análise e compreensão dos fatos. Um exemplo que traz para compreender tanto esse movimento quanto os diferentes aspectos envolvidos no estudo de uma Configuração Social, é o de Diego Velázquez e de sua pintura intitulada As meninas.

Sobre a referida obra, de início, basta lembrar que retrata a filha pequena de Felipe IV, rei da Espanha, que aparece centralmente no quadro, em pé, olhando com determinação para o espectador. Mas, nele também há a representação de um segundo grupo de pessoas: o provável mestre de cerimônias da rainha, deixando a sala; um cachorro, outra criança, uma anã e duas amas em postura subserviente entretendo a menina; duas outras pessoas conversando; o próprio Velázquez retratado na cena, no canto esquerdo do quadro; e, por último, a incógnita da figura do próprio casal real retratado em um quadro também no centro da pintura, mas, na parede do fundo da sala. Sobre este último aspecto, especula-se se este seria mesmo um quadro, ou o reflexo deles em um espelho, o que provocaria a sensação, ao espectador, de que talvez eles estivessem então, de fora do quadro, olhando a cena pintada.

De início, Elias lança algumas questões figuracionais: qual a história da tela? Por que diferentes grupos foram retratados juntos, algo que não era comum à época? Qual foi a encomenda do rei para Velázquez? Pintar as pessoas que estavam no dia a dia do palácio? No quadro, é possível observar que cada grupo ou pessoa ocupa-se de seus afazeres sem muita relação com as demais, o que dá pistas de que pertenciam a diferentes classes sociais e experiências.

E como o quadro retrata uma monarquia absolutista do século 17, supõe-se que o rei e a rainha da Espanha estivessem muito acima, socialmente, de todas as pessoas de seu país e quase não tivessem contatos amigáveis iguais a eles fora do seu círculo familiar. Seria então compreensível se a encomenda do quadro tivesse sido para que Velázquez pintasse as pessoas com as quais a família real tivesse convívio íntimo e alguma amizade (tanto quanto pudessem ter, pessoas tão afastadas de sua posição social).

Mas, por que o rei e a rainha não aparecem representados na tela, ou ao menos, não nitidamente? Isso traz outra pista, a de que não havia, realmente, entre esses grupos, um sentimento de “nós”, já que “teria sido impossível mostrar o rei e a rainha em pessoa junto com indivíduos que, embora talvez fossem os únicos contatos próximos do casal real, eram incomensuravelmente inferiores a eles em posição” (Elias 1998Elias, Norbert. 1998. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., 93). Tal análise demonstra que as configurações podem ser estudadas também a partir de uma “teoria dos pronomes pessoais”:

A função que o pronome ‘eu’ desempenha na comunicação humana só pode ser compreendida no contexto de todas as outras posições relativamente às quais se referem os outros termos da série. As seis outras proposições são absolutamente inseparáveis pois não conseguimos imaginar um ‘eu’ sem um ‘tu’, um ‘ele’ ou uma ‘ela’, sem nós, vós ou eles. (Elias 1980Elias, Norbert. 1980. Introdução à Sociologia. Braga: Edições 70., 134).

Assim, no caso do quadro, embora todos vivessem juntos, existiria um “nós” bem nítido, para os membros da família real e um “eles” para as pessoas do serviço real; ou um “eu” para a infanta retratada centralmente e um “vocês” para as pessoas pintadas ao redor, em posição de solicitude. Mas, existiria também um “eu” Velázquez (pintor e, também, camareiro do palácio), retratado por ele mesmo e um “ele” para o outro mestre de cerimônias, que deixava a sala.

Desta forma, os pronomes pessoais permitem que se observe a própria “natureza perspectivacional das relações humanas” (Elias 1980Elias, Norbert. 1980. Introdução à Sociologia. Braga: Edições 70., 137), exprimem a função de quem fala e a posição da pessoa dentro da trama de relações. Assim, os conceitos de função (de pai, de amiga, de trabalhador, de estudante etc.) e de posição (de prestígio, de privilégio, hierarquizada, subalternizada, de proeminência, outsider etc.) são fundamentais para compreender as interdependências das pessoas na rede. Há pessoas que estão em posição de monopolizar certos bens, como o econômico, por exemplo, mas, é bom lembrar que para Elias, uma esfera (política, econômica, social etc.) está sempre ligada a outra, nunca é vista de forma isolada.

Outro elemento indissociável da análise é o poder. O poder é uma característica “de todas as relações humanas” (Elias 1980Elias, Norbert. 1980. Introdução à Sociologia. Braga: Edições 70., 81), não sendo, portanto, um objeto isolado “em estado de descanso” (Elias 1980Elias, Norbert. 1980. Introdução à Sociologia. Braga: Edições 70., 126) mas, em movimento, flutuante, como em uma balança, ora pendendo mais para um lado, ora para outro. Assim, ninguém tem total poder enquanto outra pessoa não tem nenhum.

É com todas estas pressões em sua rede que Velázquez percebe que não poderia pintar um retrato dos servidores do palácio sem indicar que o casal real era o centro do processo, então opta por mostrá-los até certo ponto vago, mas, ainda assim reconhecíveis no reflexo do espelho pendurado no alto da parede, “deste modo eles estariam no centro da cena, embora lá não estivessem em pessoa” (Elias 1998Elias, Norbert. 1998. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., 93).

Para Elias, Velázquez ter se representado na cena dando um passo para trás, afastando-se do seu cavalete para olhar para o espectador, representou, na verdade, um passo para trás dado na direção de compreender de modo mais afastado, qual era o jogo que estava jogando, qual a sua função e posição na corte e que relações de poder precisariam ser levadas em consideração naquela configuração e naquele trabalho que estava sendo chamado a executar. Foi distanciando-se “de si mesmo” (Elias 1998Elias, Norbert. 1998. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., 89) que, estrategicamente, se retratou de corpo inteiro, mas, no canto esquerdo da tela; jogou luz na infanta, no centro do palco, deixando o sombreado para si; se retratou orgulhoso, mas também, reservado.

Por outro lado, ao “voltar a envolver-se pessoal e intensamente na pintura” (Elias 1998Elias, Norbert. 1998. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., 82), incluindo-se na trama da maneira importante com que fez, mostrou também a sua ousadia e coragem, forçando a que o poder pendesse, um pouco mais a seu favor. Isso porque lutava contra a própria época em que vivia, pois se sabe que naquele período, todos os que, ao trabalhar, utilizavam as mãos, eram enquadrados, “aos olhos das classes alta e média alta, inescapavelmente na categoria dos artesãos” (Elias 1998Elias, Norbert. 1998. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., 97), o que era suficiente para excluí-los da “sociedade polida” (1998, 97). Tinham infelizmente, “uma alta categoria artística”, mas “uma relativamente baixa categoria social” (Elias 1998Elias, Norbert. 1998. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., 97). Assim, ao se pintar na obra, fez pender a balança de poder um pouco mais a favor da sua categoria social e artística, desequilibrando os grupos que tinham maior acúmulo de poder à época.

Possibilidades de uso do referencial teórico-metodológico eliasiano para o estudo das crianças

Os estudos de Elias podem contribuir para quem quer encontrar um caminho para estudar a infância que não incorra nessa oposição indivíduo/sociedade, tão destacada pelo autor. Um pesquisador que também vê dicotomias deste tipo é Prout, pesquisador renomado nos estudos da infância. Em um texto de 2010, analisando os problemas da Sociologia da Infância, pondera que “apesar do forte desenvolvimento e da alta produtividade”, o campo, nos últimos anos, “parece estar sem rumo” (Prout 2010Prout, Alan. 2010. Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de Pesquisa 40 (141): 729-50. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004.
https://doi.org/10.1590/S0100-1574201000...
, 729) pois situa-se dentro “e não além das oposições dicotomizadas da Sociologia moderna” (Prout 2010Prout, Alan. 2010. Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de Pesquisa 40 (141): 729-50. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004.
https://doi.org/10.1590/S0100-1574201000...
, 734). Dentre as diversas oposições que elencou, uma delas é, justamente, a oposição entre estrutura versus ação.

Segundo o autor, o campo parece opor, por um lado, a infância como parte da estrutura social e, por outro, a ação das crianças, vistas como atoras. Fala-se em Sociologia da Infância, no primeiro caso, e em Sociologia das Crianças, no segundo. Assim, “enquanto a Sociologia procurava metáforas para mobilidade, fluidez e complexidade, a Sociologia da Infância ia edificando a infância como uma estrutura” (Prout 2010Prout, Alan. 2010. Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de Pesquisa 40 (141): 729-50. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004.
https://doi.org/10.1590/S0100-1574201000...
, 733), homogeneizando-a e padronizando-a. Por outro lado, os estudos da criança, sendo “quase a imagem invertida disso” (Prout 2010Prout, Alan. 2010. Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de Pesquisa 40 (141): 729-50. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004.
https://doi.org/10.1590/S0100-1574201000...
,735), tiveram maior êxito, ao jogarem luz sobre a ação delas no processo, porém, na prática, muitas pesquisas acabaram ainda tratando apenas superficialmente delas como atoras. No geral, a criança “é vista como uma característica essencial e quase não mediada dos humanos, que não requer muitas explicações” (Prout 2010Prout, Alan. 2010. Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de Pesquisa 40 (141): 729-50. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004.
https://doi.org/10.1590/S0100-1574201000...
, 735).

O autor observa que pesquisas pós-estruturalistas têm procurado resolver a questão analisando ação e estrutura do mesmo modo: “tanto a idade adulta como a infância são vistas como efeitos produzidos no interior de atos discursivos” e se “descentra ambas para saber como elas se produzem mutuamente e sob que condições” (Prout 2010Prout, Alan. 2010. Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de Pesquisa 40 (141): 729-50. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004.
https://doi.org/10.1590/S0100-1574201000...
, 735). Mas, o autor também percebe alguns pontos a serem pensados sobre esta perspectiva que:

[…] garante ao discurso (narrativa, representação, simbolização etc.) o monopólio como meio pelo qual a vida social, consequentemente a infância, é construída. Relatos sobre a criança socialmente construída privilegiam sempre o discurso. Algumas versões são claramente idealistas sobre a infância, enquanto outras simplesmente silenciam sobre os componentes materiais da vida social. Na melhor das hipóteses, há uma equivocada e difícil omissão sobre a materialidade, seja ela pensada como natureza, corpos, tecnologias, artefatos ou arquiteturas. (Prout 2010Prout, Alan. 2010. Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de Pesquisa 40 (141): 729-50. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004.
https://doi.org/10.1590/S0100-1574201000...
, 736).

Concordando com Prout sobre o problema da dicotomia ação versus estrutura e lembrando que este ponto foi central no pensamento de Elias durante toda a sua vida, volta-se aqui à essa questão, desta vez, analisando-a com relação à pesquisa com crianças.

No campo da educação não é raro encontrar pesquisas que apresentam o modo das crianças de viver, brincar e pensar sobre o mundo, de forma geocêntrica. A imagem evocada às vezes é a de círculos concêntricos em que, no primeiro deles se coloca a criança, no segundo círculo a família, no terceiro a escola, depois o bairro etc., transmitindo-se a ideia de que primeiro existiria uma criança solitária e “natural” que depois ingressaria hierarquicamente no “social”.

Ao invés dessa criança-clausus seria necessário se pensar em uma criança-aperti, em uma analogia com a própria ideia de Elias de que, ao invés de se pensar em um homem solitário – como um “Adão primordial” que, inclusive, já nasceu adulto – deveria se pensar em um home aperti (Elias 1980Elias, Norbert. 1980. Introdução à Sociologia. Braga: Edições 70., 136), um ser humano que mantém ligações constantes com outros, desde que nasce.

Essa criança-aperti é uma criança-em-processo, uma criança-reticular, com laços (valências) que já mantêm, por exemplo, com seus pares e com seus pais, professores, avós (os vivos e os que já morreram) etc., mas também, com muitas outras ligações em aberto, prontas para se conectar com outras pessoas, grupos, ideias.

Todos os laços são tecidos pelas próprias crianças, embora isso aconteça em meio às pressões e às relações de poder próprias de suas configurações sociais. E, embora os gradientes de poder sejam bem desiguais entre adultos e crianças, uma criança também tem poder sobre os pais. Ela chora para ser atendida e os pais também necessitam do afeto dos filhos (Elias 2010Elias, Norbert. 2010. Au-delà de Freud: sociologie, psychologie, psychanalyse. Paris: La Découverte.). Desta forma, a criança atua na rede como qualquer outra pessoa, ainda que, infelizmente, na relação entre adultos e crianças – e embora isso tenha já melhorando muito, comparado a séculos anteriores –, elas ainda apresentem acúmulos de poder bem menores do que eles (Elias 2010Elias, Norbert. 2010. Au-delà de Freud: sociologie, psychologie, psychanalyse. Paris: La Découverte.).

Implicações eliasianas para o estudo das crianças na cidade

Elias considerava que a natureza não poderia ser compreendida como algo separado da sociedade ou da cultura e que o indivíduo também não poderia ser compreendido como se fosse somente a “parte” de um “todo”. Quando alguém aprende a língua de seu país, exemplificou o autor, não aprende parte da língua, aprende a língua inteira. Assim,

é caricaturalmente antropocêntrico e além do mais falso, de apresentar o universo ou a natureza como o ambiente da humanidade. Os níveis de integração explorados pelos físicos não existem somente no exterior dos seres humanos; eles fazem parte, integralmente, dos seres humanos. (Elias 2010Elias, Norbert. 2010. Au-delà de Freud: sociologie, psychologie, psychanalyse. Paris: La Découverte., 180).2 2 Este e outros trechos da obra de Elias (2010) foram traduções livres da autora.

Mas, essa relação integral homem-natureza-sociedade não é uma relação ingênua, os homens definem seus territórios a partir de seus acúmulos de poder, produzindo culturas, mas também, demarcando seus espaços e, muitos deles, afastando ou eliminando outros seres vivos (humanos ou não). Por outro lado, os territórios, organizados de determinada maneira, induzem a certas práticas, ensinam coisas, ao mesmo tempo em que provocam reações e resistências.

Se é ponto comum, então, que o espaço tanto é produzido por pessoas quanto imprime sua marca sobre elas (Remy 2015Remy, Jean. 2015. L'espace, un objet central de la sociologie. Toulouse: Éditions Erès.), hoje, essa marca tem sido pensada, provocativamente, como a própria atuação firme da natureza, da Terra – compreendida como um corpo, um ser político com uma potência de agir (Latour citado por Haesbaert 2021Haesbaert, Rogério, e Marcos Mondardo. 2021. A corporificação “natural” do território: do terricídio à multiterritorialidade da terra. GEOgraphia, 23 (50). https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2021.v23i50.a48960.
https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2021....
) – em relação à forma irresponsável com que o homo sapiens tem vivido no planeta.

No caso da pesquisa realizada em Curitiba (cidade que se tem desenvolvido estudos), também se partiu dessa concepção de território com um “foco nas relações de poder, seja o poder em seus efeitos mais estritamente materiais, de âmbito político-econômico […], seja em sua articulação cultural, mais simbólica” (Haesbaert e Mondardo 2010Haesbaert, Rogério, e Marcos Mondardo. 2010. Transterritorialidade e antropofagia: territorialidades de trânsito numa perspectiva brasileiro-latino-americana. GEOgraphia 12 (24): 19-50. http://dx.doi.org/10.22409/GEOgraphia2010.1224.a13602.
http://dx.doi.org/10.22409/GEOgraphia201...
, 30). Buscou-se ainda romper com as dicotomias discutidas nas seções anteriores que tanto poderiam induzir a uma análise genérica de Curitiba a partir de um universalismo discursivo sobre a “cidade ecológica” e “de soluções urbanas”, quanto levar a uma visão de criança desvinculada da cidade real vivida por ela.

Exercitando afastar-se desta dicotomia, aciona-se aqui alguns dados de uma pesquisa3 3 Nesta pesquisa, foram respeitadas as diretrizes e normas da ética em pesquisa com crianças. Foi solicitado a Secretaria Municipal de Educação de Curitiba uma autorização para entrar em contato com as escolas e perguntar à equipe pedagógica se estas gostariam de participar da pesquisa. Depois, foi explicado a todos os sujeitos envolvidos (professores das turmas, pais ou responsáveis e principalmente para as crianças) sobre a natureza e os objetivos da pesquisa e perguntado se estes gostariam de participar. E a todo o momento se conversou também com as crianças sobre a possibilidade de que, se não estivessem mais querendo participar, que poderiam parar a conversa, o desenho etc. que produziu tanto dados qualitativos (observações, fotografias, desenhos4 4 As crianças dos 4/5 anos, de 27 escolas realizaram desenhos sobre o bairro (Ferreira, 2022). e conversas5 5 Foram realizadas conversas com 32 crianças de diferentes bairros da cidade. com crianças) quanto quantitativos (questionários às famílias).6 6 Sobre os quantitativos, foram entregues 1600 questionários, a famílias de crianças dos 4/ 5 anos, de 27 escolas (três escolas em cada bairro; no mínimo um bairro para cada regional da cidade). E cada escola situava-se em um lugar distinto dentro de um mesmo bairro (uma escola na região central, outra em região afastada ou de vulnerabilidade social, e a terceira, intermediária dessas duas situações). Sobre esse material, diferentes análises já foram realizadas e permitem afirmar que há desigualdades sociais e territoriais nas experiências de crianças moradoras de diferentes regiões da cidade e mesmo dentro de um mesmo bairro. Mas, essas desigualdades precisam ser analisadas, dando-se um passo para trás, como fez Velásquez, ou – lembrando ainda de uma outra metáfora utilizada por Elias –, analisando esta realidade social, fusionando o olhar de aviador (olhar mais amplo, histórico) com o de nadador (do ponto de vista de quem está mergulhado no fluxo do momento vivido).

Assim, do ponto de vista do aviador, o que temos neste século, é que a pobreza tem crescido enormemente em todo o mundo, gerando desigualdades assustadoras e persistentes, relacionadas à falta de trabalho, habitação, comida, água, saneamento, entre outras. No caso do Brasil, a falta de políticas públicas habitacionais direcionadas às pessoas com baixa ou nenhuma renda, aliada a uma política imobiliária perversa, pressiona esses grupos a que morem cada vez mais distantes ou em regiões com pouca infraestrutura, em ocupações, ou ainda, em último caso, na rua.

Por outro lado, as periferias brasileiras, além de desigualdades de classe, apresentam também desigualdades étnico-raciais, o que indica uma herança colonizadora do território que foi, historicamente, ou dizimando determinadas populações, como no caso das indígenas, ou empurrando para fora das regiões centrais ou mais valorizadas a população negra pós processo de escravização (e, também, após processos sistemáticos de assassinato dessa população por longos séculos).

Quanto às questões de gênero, embora a diferença na balança de poder entre homens e mulheres tenha diminuído quando se olha na longa duração (Elias, 2010Elias, Norbert. 2010. Au-delà de Freud: sociologie, psychologie, psychanalyse. Paris: La Découverte.), são as mulheres as que ainda continuam tendo os menores salários, menos oportunidades de emprego e, mundialmente, são as que menos contam com moradia adequada, acesso à comida, água, sistemas de saúde etc., quando comparadas aos homens. E em termos espaciais, se por um lado, elas vieram sendo educadas desde pequenas a pensar que a rua não é lugar para elas, por outro lado, são as mulheres – e com destaque, as mulheres negras –, as que vêm forçando, ao longo destes mesmos séculos, ativamente, a que essa compreensão de realidade se altere.

Já sobre as crianças, se sabe que, tanto historicamente quanto na atualidade, são o grupo mais fragilizado. Hoje, no mundo, milhões de crianças passam fome. E em termos espaciais observa-se que, enquanto antigamente elas ainda circulavam pelas ruas e praças – brincando ou infelizmente, em muitos casos, trabalhando –, na atualidade, estão cada vez mais reclusas em suas casas ou em instituições, pois nas ruas, o tráfego de veículos é intenso, as calçadas são estreitas e as praças e parques, nem sempre locais seguros e adequados para elas.

Agora, sobrevoando um pouco mais baixo se chega em Curitiba e, a partir dos dados da pesquisa (mas os dados do IBGE, 2010, também comprovam), se vê que a desigualdade social e espacial se expressa, dentre vários outros aspectos, em uma polarização acentuada interbairros (entre as regiões norte e central por um lado e a sul e extremo sul, por outro). É na periferia sul-extremo sul (em comparação com a norte-central e, proporcionalmente) que os salários são mais baixos; os níveis de escolaridade são menores e a expectativa de vida também; o índice de famílias negras é maior e o índice de mulheres que sustentam sozinhas seus lares, tem aumentado. Mas, além dessa divisão centro-periferia, também se observou diferenças intrabairros, ou seja, morar na parte central ou mais valorizada faz toda a diferença na comparação com as regiões mais afastadas ou de vulnerabilidade social em um mesmo bairro.

E Curitiba é hoje a quinta capital brasileira com o maior PIB (Produto Interno Bruto Nominal) e a terceira capital com o melhor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), o que atrai cada vez mais pessoas (a cidade chega a 2 milhões de habitantes) em busca de trabalho, qualificação e também turismo, este último conquistado pelo forte investimento midiático das últimas décadas, acentuando a qualidade de vida da capital, os mais de 60 metros quadrados de área verde por habitante e suas soluções urbanas. Assim, a junção entre o novo capitalismo global (financeiro, patrimonial) e esses dados sobre a cidade (vendida como uma marca, um produto), tem gerado para alguns, sucesso, mas, para a maioria, cada vez mais desigualdade e exclusão.

Desta forma, não há como não concordar com o fato de que estas questões amplas e históricas são tecidas com os mesmos fios que tecem a vida cotidiana das famílias e das crianças, ainda que, quando se aproxima ainda mais a lente, se observe que estas desigualdades sociais vão se complexificando e se desdobrando de várias formas. Por outro lado, os atores sociais – e dentre eles, as crianças- tendo uma relativa autonomia na rede, também rompem certos fios, constroem outros, tensionam as redes de poder a todo o momento.

Assim, um primeiro dado importante da pesquisa é o de que havia diferenças nas experiências das crianças a depender da região da cidade em que moravam. Crianças moradoras de bairros da região norte-central da cidade, tinham à sua disposição, mais do que as do sul-extremo sul, uma variedade maior de espaços consolidados de lazer e cultura,7 7 Na parte dos questionários às famílias, se investigou tanto os espaços tidos como consolidados, conhecidos por boa parte dos curitibanos e propostos por adultos (shoppings, cinemas, teatros, circos, museus, parques, praças) como também locais específicos de cada bairro (por exemplo, feiras, farmácia, padaria, mercados, aviário, igrejas). E na conversa com as crianças, se conheceu vários espaços produzidos por elas mesmas, como: o estacionamento do mercadinho onde andavam de bicicleta no domingo; a rua onde brincavam de skate; o terreno baldio onde soltavam pipa. contavam com mais áreas verdes convertidas em parques (e, também, parques mais seguros e bem cuidados) e uma mobilidade espacial mais ampla para fora do bairro de moradia. Já as crianças do sul-extremo sul contavam com experiências mais amplas na parte do bairro em que moravam, mas, contavam com menos experiências em outros bairros e na cidade (Ferreira e Ferreira 2020Ferreira, Valéria M. R. e Solange P Ferreira. 2020. Configurações da infância na cidade: desigualdade interbairros e nos usos dos tempos e espaços por crianças curitibanas. Revista Eletrônica de Educação 14. https://doi.org/10.14244/198271993275.
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; Ferreira e Fernandes, prelo 2023Ferreira, Valéria M. R., e Sonia M. Fernandes. (prelo 2023). Infância e justiça espacial: desigualdades inter e intrabairros nas experiências das crianças na cidade. https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.3891.
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).

Os dados demonstraram também que as meninas se apropriavam da cidade de forma bem diferente dos meninos e, enquanto as meninas do norte-central, apresentavam um índice maior de realização de atividades mais supervisionadas pelos adultos, e também tranquilizadoras (yoga, meditação) e reforçadoras de um ideal tradicionalmente perpetuado do que seja o “feminino” (o ballet, por exemplo), as do sul e extremo-sul, algumas vezes morando em territórios com maiores tensões relacionadas ao tráfico etc., realizavam com maior frequência do que as do norte e central, esportes de defesa pessoal (judô, karatê, muay thai, MMA), “para aprender a se defender”. Mas, também, foram as meninas do sul-extremo sul, as que mais realizaram atividades que rompiam com estes estereótipos de gênero (por exemplo, mencionaram mais brincar de carrinho de rolimã, jogar futebol, andar de skate) (Ferreira e Ferreira 2020Ferreira, Valéria M. R. e Solange P Ferreira. 2020. Configurações da infância na cidade: desigualdade interbairros e nos usos dos tempos e espaços por crianças curitibanas. Revista Eletrônica de Educação 14. https://doi.org/10.14244/198271993275.
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).

Percebeu-se ainda que as meninas ficavam mais em casa do que os meninos, muitas vezes, assumindo o cuidado de irmãos e sobrinhos pequenos e, algumas vezes, também dos avós. Mas as avós também apareceram como figuras centrais, demonstrando um forte relacionamento intergeracional. E, embora as meninas saíssem menos pelo bairro, saiam mais para outros locais da cidade, ainda que acompanhadas. Já os meninos, caso fossem moradores do sul-extremo sul e das partes mais empobrecidas do bairro, isso restringia sobremaneira suas experiências às partes do bairro em que já eram exímios conhecedores. E as funções de irmão(ã) mais velho(a) ou de neto(a) (e ainda mais se a avó morasse perto), poderiam somar vantagens às saídas (Ferreira e Fiorese 2021Ferreira, Valéria M. R., e Sabrina Fiorese. 2021. “Elas ficam meio injustiçadas”: Infância, gênero e desigualdade em bairros de Curitiba. Educação em Foco 24 (44): 230-58. https://doi.org/10.36704/eef.v24i44.5542.
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).

E meninas negras, se morassem ao sul ou extremo sul da cidade e ainda na parte mais distante da parte valorizada do bairro (onde o índice de crianças negras também foi maior, pelos dados da pesquisa), apresentavam interdependências ainda mais tensas com relação à segurança para os deslocamentos (relatadas por elas na parte qualitativa da pesquisa). Isso demonstra que questões de raça e gênero “interferem na maneira como as crianças vivenciam a cidade e constroem suas relações sociais” (Santos, Fernandes e Ferreira 2019Santos, Marcia C., Sonia M. Fernandes, e Valéria M. R. Ferreira. 2019. Infância, raça e gênero em Curitiba. In Anais do V Seminário Luso-Brasileiro de Educação Infantil/ II Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Infâncias e Educação. São Paulo: USP.).

Observou-se também que o tempo de moradia no bairro e a origem geográfica das famílias influenciava nas relações sociais das crianças. As que moravam há mais tempo no bairro contavam com laços de parentesco e vizinhança já consolidados, o que propiciava que pudessem circular mais pelas redondezas, brincar na rua ou ir à padaria, pois sempre havia algum vizinho ou familiar “de olho”, o que lembra da importância dos “olhos atentos” da rua, tão importantes na concepção de Jacobs (2011Jacobs, Jane. 2011. Morte e vida nas grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes., 36). Já as crianças do extremo sul (mas não as do sul, moradoras mais antigas no bairro), vindas em maior percentual, de diferentes cidades do Paraná, e sendo, portanto, moradoras bem mais recentes no bairro, tinham menos redes de parentesco e vizinhança próximas (Ferreira, Ferreira e Santos 2018Ferreira, Valéria M. R., Solange P Ferreira, e Rojanira R. dos. Santos. 2018. Antiguidade de moradia no bairro, origem geográfica das famílias e sua relação com usos e vivências das crianças na cidade e no bairro. In Anais do Colóquio Internacional Crianças e Territórios de Infância. Brasília: UNB.).

As redes das crianças apresentaram-se também perpassadas por relações de poder e atores sociais como o vereador, a síndica do prédio, o pastor, o padre, o policial, foram figuras que apareceram tensionando, orientando, coibindo, influenciando os deslocamentos das crianças pelo bairro. Se observou ainda que, quanto mais para o norte-central da cidade se ia ou ao menos, para as partes mais valorizadas de cada bairro, mais as tessituras no espaço se davam também com outras pessoas que as crianças iam conhecendo quando realizam algum esporte (“meu amigo da natação”); durante os momentos de brincadeira (“conheci ele no parquinho”); ou mesmo visitando algum comércio (“meu amigo da loja”). E quanto mais para o sul-extremo sul, ou para o interior dos bairros, mais havia um índice maior de relações mantidas com pessoas relacionadas a ONGs, como professores filantrópicos (a professora de dança; o professor de violão da igreja; o mestre de capoeira); figuras religiosas (“o pastor da minha igreja que levou a gente para passear”); ou, ainda, policiais (“fomos visitar pelo projeto da Guarda Mirim”).

Assim, com relação às posições das crianças na configuração da cidade, percebe-se que as moradoras do sul e do extremo sul, estavam em uma posição geográfica hierarquizada, muitas em territórios longínquos e considerados de menor status. Abaixo, aproximando ainda mais a lente, se verá o caso de duas das crianças da pesquisa e, embora os exemplos tensionem lados extremos das diversas configurações de crianças das escolas da rede municipal de educação, de momento, podem ser úteis para conhecer um pouco de realidades bem distintas (maiores detalhes destas configurações estão sendo analisadas em outro texto).

Pedro e os diferentes esportes

Pedro, menino branco, 10 anos, morava em um bairro bem próximo do centro da cidade, em uma casa térrea, com a avó, o irmão menor e a mãe. Os pais, professores de educação física, o incentivavam a fazer esportes (“é que daí eles contam que eu emagreça”). Pedro negociava com os pais sempre que podia para fazer os esportes que estava interessado, mas, já tinha feito nos anos anteriores: tênis e xadrez na escola; natação; vôlei, futsal e basquete no clube do Círculo Militar; futebol no Ahú; e tinha participado de corridas (“é que daí meu pai também faz muita maratona, daí ele inventou de colocar eu também de maratona”).

O pai, separado (que tinha voltado a morar com a avó, a irmã e duas sobrinhas), buscava Pedro toda sexta-feira e aproveitava para levá-lo ao parque. Com a avó paterna, gostava de frequentar o Centro Espírita, pois o menino tinha perdido em um mesmo ano, o avô materno e mais dois tios, então, frequentar o Centro fazia bem “de coração”.

Sobre o bairro que morava durante a semana, Pedro contou que ia frequentemente a mercados e pizzaria (mas sozinho, só ao açougue). Contou que também andava de bicicleta em uma ciclovia da região e que brincava nas várias praças existentes próximas à escola.

Já sobre a cidade, frequentava a Rua 15, no centro, pois a avó materna estava fazendo fisioterapia ali perto e, também, mencionou ter ido: a um show no auditório Potty Lazzarotto (no Museu Oscar Niemeyer); ao Circo Stankowitz (“escreve com w e z no final”!); a campeonatos de vôlei em um ginásio central; a teatros e exposições em shoppings (sobre dinossauros; brinquedos; história ferroviária; teatro no Estação etc.); a cinemas; e a quase todos os parques turísticos da cidade. Mencionou também ter ido a praias e cidades da região metropolitana.

O cotidiano de Pedro durante a semana, era tomado, naquele ano, pelos estudos. O menino tinha tentado romper, várias vezes, com o compromisso de ter que acompanhar, depois do almoço, o cursinho Genius (para tentar passar em provas de colégios militares da cidade). As negociações com o pai foram intensas e, para isso, Pedro jogou com bons argumentos, como falar do cansaço que sentia ou da falta de lanche. Mas, resolvidas algumas questões como as do lanche, precisou continuar neste ritmo intenso de estudo. Quando voltava para casa, ainda fazia as lições e brincava um pouco de videogame.

Falando sobre o bairro que morava com a avó, avaliou que se pudesse, colocaria semáforo na esquina de casa pois “vem carro de cá, de cá e de cá” (mostrou com a mão a situação do tráfego e a sua dificuldade para atravessar). Sobre o que mais gostava na cidade, citou o Museu Oscar Niemeyer e sobre o que menos gostava, mencionou um determinado estádio de futebol. E quando perguntado sobre o que faria especificamente para as crianças, caso pudesse, Pedro disse que colocaria “fliperamas por toda a cidade”.

Ale, uma corredora que já ganhou prêmios

Ale, menina negra, de 10 anos, morava em um bairro muito distante, no extremo sul da cidade e em uma região do bairro superpopulosa. Ela morava em uma casa de prováveis trinta metros quadrados, com o pai (que trabalha no mercado), a mãe (diarista), as duas irmãs (uma de 17 e outra de 20 anos) e as duas sobrinhas pequenas (de um e três anos), filhas de uma das irmãs.

Ale usava pouco o bairro, só o comércio mais próximo e, sozinha, só ia ao mercadinho. Sobre as brincadeiras, negociava sempre com a mãe para poder andar em frente de casa com a bicicleta que recebeu por ter participado de uma competição de corrida de rua (“é que ganhei em primeiro lugar!”). Mas, de modo geral, brincar na praça, na rua ou na esquina de casa significava ter que disputar estes espaços com outras pessoas ou usuários de drogas (“só vou quando os ‘nóia’ não estão lá”), ou ainda, ter que negociar com a mãe: “ela tem medo que me rouba, porque tem muita gente maloqueira”.

A rotina de Ale era intercalada entre cuidar das sobrinhas à tarde e realizar atividades de capoeira, vôlei e corrida na escola, atividades estas, para ela, inegociáveis. Quando sobrava tempo, também brincava de escolinha no pátio de casa, com uma amiga.

Sobre a cidade, Ale conta que foi uma vez em um shopping em outro bairro, ao Parque Barigui, a um parque de diversão privado, à casa das tias e conta ter conhecido também alguns outros bairros por participar das competições esportivas. Contou ainda que ia à igreja com a mãe e que adorava frequentar os projetos desenvolvidos na escola nos finais de semana.

Sobre o bairro, Ale fez críticas aos buracos das ruas, à casa apertada e disse que, no geral, “não tem muita coisa para criança fazer”. Ale criticou também a falta de segurança, “tem que melhorar, porque lá na esquina tem os que […] ficam esquisito, mexendo com os outros”. Já sobre as coisas boas do bairro afirmou que se sentia bem quando saia para passear e sobre a cidade comentou: “tem muitas coisas boas pra gente ver”.

Considerações finais

Dando-se um passo para trás como Velázquez, para entender diferentes aspectos relacionados à dimensão espacial das redes de interdependência não só de Pedro e de Ale, mas de diferentes crianças da pesquisa e, depois, dando-se novamente um passo para frente, desta vez envolvendo-se já em um outro nível de análise, uma primeira questão se põe. No caso de muitos bairros periféricos, a Curitiba “ecológica” não chega, há poucos parques e muitas das praças são tomadas pelo tráfico de drogas, o que provoca uma dança de recuos e avanços, uma disputa de espaços entre “eu” criança, “nós” moradores (crianças, jovens, adultos e terceira idade) e “eles”, traficantes, usuários. Mas, se sabe também que bairros pobres não são sinônimo de violência, é preciso ver onde a violência está, pois, é nestes territórios que o uso dos espaços, pelas crianças, é prejudicado enormemente.

Assim, de modo geral, o que se constatou é que a cidade é produtora de desigualdade. Nela, as tensões e as relações de poder têm provocado: o incentivo ao uso de locais privados em detrimento dos públicos; a hierarquização e a segregação de determinados bairros e regiões do bairro; e a exclusão de determinados moradores do restante da cidade pelo sedentarismo (os bairros são distantes, as passagens caras, a ciclovia é incompleta).

As crianças dos diferentes bairros, e mesmo dentro de cada bairro, não utilizam os mesmos espaços e, como há um índice maior de crianças pobres e de crianças negras no sul e extremo sul, isso acentua ainda mais uma não mistura social, demonstrando que as interdependências das crianças têm se dado cada vez mais entre iguais, não havendo espaço para a alteridade, a diferença, o encontro como o “outro”, com o “eles”. E as crianças agem em suas redes, tendo que negociar a todo momento para poder sair de casa, brincar na rua, sair “mais longinho”.

Enfim, as interdependências espaciais se tecem, cada vez mais entrelaçadas com desigualdades múltiplas, complexas, interseccionais. E essas tensões configuracionais se agigantaram ainda mais com a pandemia de Covid-19 (Ferreira et al. 2021Ferreira, Valéria M. R., Flávia C. Silva, Márcia. C. Santos, e Solange P. Sonia. M. Fernandes. 2021. Crianças curitibanas em configurações pandêmicas: enlaces e desenlaces espaciais. In Pensar infâncias na cidade em tempos de Pandemia, organizado por Marcia Aparecida Gobbi, Maria Tereza Goudard Tavares, 143-74. Rio de Janeiro: NAU.), tornando a cidade ainda mais cindida (o grupo evidenciou isso ao voltar a alguns dos bairros da pesquisa, no momento da pandemia, em 2020/2021).

  • 2
    Este e outros trechos da obra de Elias (2010)Elias, Norbert. 2010. Au-delà de Freud: sociologie, psychologie, psychanalyse. Paris: La Découverte. foram traduções livres da autora.
  • 3
    Nesta pesquisa, foram respeitadas as diretrizes e normas da ética em pesquisa com crianças. Foi solicitado a Secretaria Municipal de Educação de Curitiba uma autorização para entrar em contato com as escolas e perguntar à equipe pedagógica se estas gostariam de participar da pesquisa. Depois, foi explicado a todos os sujeitos envolvidos (professores das turmas, pais ou responsáveis e principalmente para as crianças) sobre a natureza e os objetivos da pesquisa e perguntado se estes gostariam de participar. E a todo o momento se conversou também com as crianças sobre a possibilidade de que, se não estivessem mais querendo participar, que poderiam parar a conversa, o desenho etc.
  • 4
    As crianças dos 4/5 anos, de 27 escolas realizaram desenhos sobre o bairro (Ferreira, 2022Ferreira, Valéria M.R. 2022. Tecendo o território: paisagens de denúncia e “desmistura” social em desenhos de crianças sobre o bairro. Pro-posições 33:e20210037. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0037.
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    ).
  • 5
    Foram realizadas conversas com 32 crianças de diferentes bairros da cidade.
  • 6
    Sobre os quantitativos, foram entregues 1600 questionários, a famílias de crianças dos 4/ 5 anos, de 27 escolas (três escolas em cada bairro; no mínimo um bairro para cada regional da cidade). E cada escola situava-se em um lugar distinto dentro de um mesmo bairro (uma escola na região central, outra em região afastada ou de vulnerabilidade social, e a terceira, intermediária dessas duas situações).
  • 7
    Na parte dos questionários às famílias, se investigou tanto os espaços tidos como consolidados, conhecidos por boa parte dos curitibanos e propostos por adultos (shoppings, cinemas, teatros, circos, museus, parques, praças) como também locais específicos de cada bairro (por exemplo, feiras, farmácia, padaria, mercados, aviário, igrejas). E na conversa com as crianças, se conheceu vários espaços produzidos por elas mesmas, como: o estacionamento do mercadinho onde andavam de bicicleta no domingo; a rua onde brincavam de skate; o terreno baldio onde soltavam pipa.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação da autora antes da publicação.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2021
  • Aceito
    13 Set 2022
  • Publicado
    29 Maio 2023
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