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“Um presente de Deus”: a correlação entre memória e identidade no processo legislativo do Estatuto do Cigano

“A gift from God”: the correlation between memory and identity in the legislative process of the Statute of the Gypsy

“Un regalo de Dios”: la correlación entre memoria e identidad en el proceso legislativo del Estatuto del Gitano

Resumo:

Neste trabalho, descrevo e busco refletir acerca do papel desempenhado pela Associação Nacional das Etnias Ciganas (Anec) na articulação política do Projeto de Lei do Senado n.° 248, de 2015, que propõe a instituição do Estatuto do Cigano. Por meio do trabalho de campo, que envolveu a observação participante das articulações políticas em torno da tramitação do projeto do lei, análise de documentos, incursões na vida cotidiana do Acampamento Nova Canaã, sede da Anec, entrevistas semiestruturadas e diálogos abertos, assim como o acesso às narrativas existenciais e das estórias de vida dos atores sociais que constroem a Anec, compilei e interpretei os dados etnográficos à luz dos estudos envolvendo processos identitários e memória, para compreender de que forma os sujeitos envolvidos nesta trama interpretam e atribuem sentido acerca do seu papel no processo de criação do Estatuto. Notei que as narrativas mobilizadas pelo grupo não se restringem a reivindicar um marco normativo com a previsão de políticas públicas para os povos ciganos. Envolvem de forma preponderante o esforço em entrelaçar a trajetória do grupo à luta política dos povos ciganos de modo geral no Brasil, o que ocorre por meio de um ímpeto dicotômico na qual este experimenta seu processo de subjetivação e disputa politicamente a narrativa de atuar como protagonistas na luta por direitos e na proposição do Estatuto do Cigano no Senado Federal.

Palavras-chave:
Identidade; Memória; Criação de lei; Ciganos

Abstract:

This work is a description and analysis of the role played by the Associação Nacional das Etnias Ciganas (Anec) in the political articulation of the Senate Bill No. 248, of 2015, which proposes the institution of the Statute of the Gypsy. Through field work, which involves incursions into the daily life of the Nova Canaã camp, document analysis, semi-structured interviews and open dialogues, as well as the existential narratives and life stories of the two social actors who built Anec, we compile and interpret the ethnographic data, along with light two studies involving processes of identity and memory. The objective was to understand how the subjects involved in this plot attribute meaning to the creation of this law and to the political struggle for the affirmation of two blind rights. It is noted that the political action of this association is not restricted to the claim of a regulatory framework with the provision of public policies. It also involves an effort to intertwine the trajectory of the group with the history of the recognition of the gypsies rights at the Federal Legislative Power, a that occurs through a dichotomous impetus in which socials subjects experiences its process of subjectivity and dispute politically the narrative regarding the proposition of the Statute of the Gypsy in Brazil.

Keywords:
Identity; Memory; Process of law making; Gypsies

Resumen:

Este trabajo es una descripción y análisis del papel jugado por la Asociación Nacional de Etnias Gitanas (Anec) en la articulación política del Proyecto de Ley del Senado N° 248, de 2015, que propone la institución del Estatuto del Gitano. A través del trabajo de campo, que involucró la observación participante de los avances del proyecto de ley, análisis de documentos, incursiones en el cotidiano del Acampamento Nova Canaã, sede de la Anec, entrevistas semiestructuradas y diálogos abiertos, además de narrativas existenciales y relatos de vida de los actores sociales que construir la Anec, los datos etnográficos fueron recopilados e interpretados, a la luz de estudios que involucran procesos de identidad y memoria. El objetivo fue comprender cómo los sujetos involucrados en esta trama atribuyen sentido a la creación de esta ley ya la lucha política por la afirmación de los derechos de los gitanos. Se advierte que la acción política de esta asociación no se restringe a la reivindicación de un marco normativo con provisión de políticas públicas. Implica también el esfuerzo de entrelazar la trayectoria del grupo con la historia del reconocimiento de los derechos de los gitanos en el Poder Legislativo federal, lo que se da a través de un impulso dicotómico en el que experimenta su proceso de subjetivación y disputa políticamente la narrativa en torno a la proposición de el Estatuto del Gitano en Brasil.

Palabras clave:
Identidad; Memoria; Creación de leyes; Gitanos

Introdução

A proposição do “Estatuto do Cigano”, aprovado no Senado Federal, em 2021, onde tramitou por sete anos e que ainda depende de aprovação da Câmara de Deputados, não é o primeiro marco normativo voltado aos povos ciganos no Brasil. Além das dezenas de leis e decretos anticiganos no período colonial e, também, pós-colonial, passamos a ter, por outro lado, a partir de 2006, um decreto presidencial que reconhece o Dia Nacional do Cigano, assim como portarias e resoluções emitidas por ministérios prevendo políticas públicas nas áreas de educação, saúde e assistência social.2 2 Detalho no artigo “Gypsies, Coloniality and the Affirmation of Human Rights in Brazil” os primeiros marcos legais voltados para os povos ciganos no país desde o período colonial (Salloum e Silva 2020). Todavia, por não haver referência direta aos povos ciganos na Constituição Federal ou nas leis ordinárias, o PLS 248/2015, que reconhece direitos em diferentes âmbitos, como também moradia, acesso à terra e cultura, representa uma das principais articulações de afirmação dos direitos humanos destes povos tradicionais no país.

Inicialmente, o presente artigo3 3 Destaco que a presente produção decorre de parte das pesquisas que resultaram na tese de doutorado em Direito “A construção político-jurídica do Estatuto do Cigano: entre textos e tramas”, defendida por mim na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2021. foi permeado pela seguinte problemática: como surgiu no Congresso Nacional a proposta de criação de projeto de lei voltado para os povos ciganos, isto é, de que forma ocorreram as primeiras articulações políticas que contribuíram para a proposição do PLS 248/2015 no Senado Federal. Os próprios dados oficiais desta casa legislativa apontaram para a direção da Anec, indicada na justificativa do PLS como a “associação proponente”.4 4 Adotei as aspas duplas para destacar expressões e falas pronunciadas pelos interlocutores desta pesquisa que acionam significações que merecem definições contextualizadas. Todavia, a análise exclusiva dos documentos institucionais seria insuficiente para dar conta da problemática em tela, sobretudo quando existe a finalidade em entender o processo de criação desta lei a partir das narrativas e interpretações dos atores sociais envolvidos nesta trama.

Entre as múltiplas possibilidades de interlocutores para conduzir o trabalho de campo,5 5 Há diversos atores sociais que estão relacionados à criação de uma lei, sendo que, no caso do Estatuto, cito, além dos parlamentares e seus respectivos assessores, servidores públicos do Poder Executivo, do Ministério Público Federal, assim como representações ciganas, que atuam seja diretamente no Congresso Nacional seja em outras instâncias da burocracia estatal. optei neste artigo por dar ênfase aos sujeitos ciganos, especialmente, os que se organizam em torno da Anec. Para tanto, entre os anos de 2019 e 2020, realizei observações participantes nos espaços relacionados à tramitação do Estatuto do Cigano, análises de documentos e incursões na vida cotidiana do Acampamento Nova Canaã, sede da “associação proponente”, onde foram realizadas entrevistas semiestruturadas e diálogos abertos.

A partir, principalmente, das experiências etnográficas neste acampamento, afastei-me da ideia inicial e passei a propor o seguinte problema de pesquisa: qual a correlação entre o manejo da memória e os processos identitários na forma como os atores sociais da Anec compreendem a tramitação do Estatuto do Cigano? Isto porque, ao buscar respostas sobre as articulações políticas e institucionais em torno da proposição legislativa, deparei-me, na verdade, com a preponderância de narrativas existenciais e de estórias de vida dos próprios atores sociais que compõem a Anec, cujas memórias compartilhadas entrelaçam a trajetória do grupo e o processo legislativo à providência divina.

Ou seja, tanto a proposição do Estatuto, como a criação da associação e a própria conquista do território onde vive o grupo, absolutamente tudo é encarado como “um presente de Deus”. Porém, ao acessar outras lideranças e representações de diferentes associações ciganas, nas audiências e reuniões públicas sobre o Estatuto ou em atividades institucionais relacionadas à política cigana no Brasil, acessei distintas leituras sobre a origem e os sentidos da proposição do Estatuto que, de alguma maneira, divergiam das memórias e interpretações dos componentes da Anec.

Portanto, no primeiro tópico, refleti sobre a percepção de tempo e espaço dos atores sociais da Anec em face da tramitação do Estatuto, diante da ausência de linearidade no compartilhamento das memórias do grupo, e ao mesmo tempo devido à tentativa de construir uma narrativa de representatividade nacional e de todas as etnias ciganas, embora seja uma articulação em torno de vínculos familiares. No segundo tópico, parti das divergências entre outras lideranças ciganas em relação à proposição do PLS n.° 248/2015 para teorizar acerca da relação entre memória e identidade, uma vez que ambas dependem das diferenças e das disputas para coexistirem.

As narrativas dos interlocutores da Anec refletem suas concepções sobre si próprios e sobre sua relação com o mundo, tanto no aspecto temporal, como espacial, na medida que entrelaçam as suas respectivas trajetórias ao percurso do PLS n.° 248/2015, que corresponde a uma tentativa de legitimar esta proposta diante da existência de críticas quanto à iniciativa do Senador Paulo e ao papel desempenhado pela “associação proponente”. São narrativas que representam a construção da memória coletiva/familiar e, consequentemente, da identidade do grupo simultaneamente à defesa do Estatuto.

Tempo e espaço

Para refletir acerca da temática em questão, parto da perspectiva do pesquisador cigano da etnia calon Aluízio de Azevedo Silva Júnior que critica “a historiografia moderna ou as representações do senso comum, que permeiam a mídia e a literatura”. Segundo o autor, ao “mencionarmos ‘ciganos’, não estamos falando de personagens de lendas populares ou fantasias de carnaval ou pior ainda, de vagabundos, trambiqueiros, mendigos ou criminosos perigosos (ladrões, sequestradores, furtadores etc.)” (Silva Júnior 2018Silva Júnior, Aluízio de Azevedo. 2018. Produção social dos sentidos em processos interculturais de comunicação e saúde: a apropriação das políticas públicas de saúde para ciganos no Brasil e em Portugal. Tese em Informação e Comunicação em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz., 34). Mas, sim, de seres humanos que, no caso do Brasil, seus ancestrais começaram a chegar à Europa provavelmente “por volta do século 10, em sucessivas ondas migratórias, primeiro na Grécia e países Balcânicos e depois se espalhando por todo o continente, incluindo Portugal (século 15), de onde vieram, em sua maioria, deportados para o Brasil a partir do século 16” (Silva Júnior 2018Silva Júnior, Aluízio de Azevedo. 2018. Produção social dos sentidos em processos interculturais de comunicação e saúde: a apropriação das políticas públicas de saúde para ciganos no Brasil e em Portugal. Tese em Informação e Comunicação em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz., 34).

Como ressalta Silva Júnior, trata-se de incontáveis pequenas e médias comunidades pertencentes a três grandes grupos étnicos, os rom, os sinti e os calon que, por sua vez, formam inúmeros subgrupos que estão espalhados em quase todos os países e juntos somam cerca de 12 a 15 milhões de pessoas. Nas palavras do autor, apesar das diferenças e particularidades, são “populações que possuem em comum um histórico de sofrimento e de conflitos com sociedades majoritárias e estados-nações onde vivem, que sempre os trataram como estrangeiros ad eternum” (Silva Júnior 2018Silva Júnior, Aluízio de Azevedo. 2018. Produção social dos sentidos em processos interculturais de comunicação e saúde: a apropriação das políticas públicas de saúde para ciganos no Brasil e em Portugal. Tese em Informação e Comunicação em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz., 34).

Para diferentes grupos sociais, como os povos tradicionais ciganos, a criação de associações civis tem sido um importante instrumento para organizar lutas por direitos, reivindicando-se espaços na sociedade e pressionando o estado em prol de políticas públicas. Estas modalidades de organizações sociais surgem a partir dos anos 1980, entre outros motivos, para “atuar em áreas onde o estado é incipiente” (Gohn 2000Gohn, Maria da Glória. 2000. 500 anos de luta social no Brasil: movimentos sociais, ONGs e terceiro setor. Revistas Mediações 5 (1): 11-40. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2000v5n1p11.
https://doi.org/10.5433/2176-6665.2000v5...
, 21).

Moonen (2013)Moonen, Frans. 2013. Anticiganismo e políticas ciganas na Europa e no Brasil. 3. ed. Recife: [s/e]. destaca o surgimento de associações ciganas em diferentes partes do Brasil, a partir das décadas de 1980 e 1990, como um fenômeno que foi impulsionado pela redemocratização do Brasil, com o fim da ditadura militar e, sobretudo, diante da promulgação da Constituição de 1988.

Além disso, a partir de 2003, com a abertura de espaços institucionais de diálogo direto com as instituições no âmbito federal, em especial, com a ampliação significativa da criação de conselhos e realização de conferências nacionais com participação de entidades da sociedade civil, impulsionado pela criação da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial, órgão com status de ministério, ocorre também um aumento de associações ciganas que foram criadas nas décadas de 2000 e 2010.6 6 Importante ressaltar que são as movimentações de associações e comunidades ciganas dos diferentes grupos étnicos que resultaram no reconhecimento do Dia Nacional do Cigano que, desde 2007, passou a ser comemorado dia 24 de maio, por força do Decreto Presidencial de 25/05/2006. Ele representa a primeira política pública dirigida especificamente aos ciganos ao longo de toda a história nacional. E, desta vez, com uma forte presença de lideranças e grupos da etnia calon no país, como é o caso da Anec, criada em 2011 e presidida, desde 2015, por Wanderley da Rocha.7 7 Cigano da etnia Calon, Seu Wanderley, como é conhecido, nasceu no ano de 1966, natural do estado de Alagoas, evangélico e pai de seis mulheres adultas. Nas palavras de Daiane Rocha, uma de suas filhas, “é um homem que apesar de não ter conseguido estudar, é um homem muito sábio. Ele tem leitura de mundo. Ele aprendeu a ler mesmo, foi com a necessidade e a vontade em aprender com o livro sagrado, a Bíblia, que sempre foi uma forma de nos fortalecer como cristãos que somos. Como todos os jovens da nossa comunidade cigana sempre diz: ‘nós conhecemos a palavra de Deus através dos ensinamentos do sr. Wanderley da Rocha” (com. pess., acervo próprio). Diferentemente das primeiras entidades que eram mais mobilizadas por grupos da etnia rom.

Uma das conclusões que cheguei na pesquisa de doutorado sobre a construção político-jurídica do Estatuto do Cigano é que sua legitimação está entrelaçada não apenas ao surgimento e ascensão da Anec, assim como não se restringe à atuação do seu principal articulador, “seu Wanderley”, como é mais conhecido (Salloum e Silva, 2021Salloum e Silva, Phillipe Cupertino. 2021. A construção político-jurídica do Estatuto do Cigano: entre textos e tramas. Tese em Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro.). É fundamental levar em conta a conquista deste grupo pelo direito de permanecer em um território que foi concedido pela União na zona rural da região administrativa de Sobradinho, Distrito Federal, em uma área conhecida como “Rota do Cavalo”, para que pudesse residir, tendo se mudado para esta localidade em 24 de setembro de 2014.8 8 Trata-se de um terreno de 3,5 hectares que acabou sendo cedido ao grupo, formalmente, em 2015, pela União, por intermédio da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e do Governo do Distrito Federal, localizado na “Fazenda Sálvia, lote 274” (Silva 2019, 174). Isso, uma vez que os próprios interlocutores, nas nossas conversas, relacionavam a criação da associação, em 2011, em seguida à conquista do direito de estar no terreno, que passou a se chamar “Acampamento Nova Canãa”, e o início da tramitação do Estatuto, em 2015, como parte de uma mesma luta. Estes movimentos possibilitaram a este grupo participar de reuniões, atividades e articulações políticas em Brasília, isto é, permitiram à Anec conquistar o posto e atuar como “associação proponente” do Estatuto.

Na comunidade Canãa, durante a prática etnográfica que realizei, viviam em torno de 70 pessoas. É válido mencionar que outras pesquisadoras também realizaram trabalho de campo nesta localidade. Uma delas é a antropóloga Thayse Limeira Costa (2017Costa, Thayse L. 2017. Para onde ir? Por que ficar? Uma etnografia pelo direito de ir, vir e ficar dos povos ciganos. Monografia em Ciências Sociais, Universidade de Brasília., 36), que identificou que “havia 15 barracas visíveis no acampamento, distribuídas formando, propositalmente, um ‘C’ de Cigano no terreno”. Assim como a assistente social Maria Clara Silva (2019Silva, Maria Clara R. da F. 2019. Terra prometida: a análise da cessão de uso gratuito de terras à comunidade cigano calon de Nova Canãa. Monografia em Serviço Social, Universidade de Brasília., 55), que observou que a principal fonte de renda das famílias acampadas advém do “trabalho informal, por meio de vendas e trocas de carros e lotes, pelos homens, e pela fabricação e venda de artigos de cama, mesa e banho, pelas mulheres”.

Também pude presenciar aspectos da organização e do funcionamento social deste acampamento. Por exemplo, quando observei a entrada de outras pessoas no acampamento para tratar das transações comerciais ou quando aos domingos as mulheres se dirigiam às feiras da região para venderem mercadorias enquanto os homens permaneciam, sendo eles os responsáveis naquele dia pelo preparo da alimentação. Como notado pelas demais pesquisadoras, a comunidade Nova Canãa tinha como base fundamental os laços consanguíneos de parentesco, sendo que apenas alguns deles, em especial, Wanderley e seus irmãos, pareciam ser os mais interessados e atuantes nos assuntos da Anec e do Estatuto.

Lenilda Damasceno Perpétuo, que também fez pesquisa de campo com o grupo, em sua tese de doutorado, relata que em 02 de fevereiro de 2020 o acampamento Nova Canaã foi invadido, situação que causou a morte de 4 pessoas, obrigando o grupo, por medo e insegurança, “a abandonar a terra, onde já estava desde 2014, deixando para trás tudo que já haviam construído no local, inclusive suas plantações e criações de galinhas, fruto do trabalho para subsistência”. Além disso, “seis meses após o ataque a polícia prende sem provas concretas o líder do acampamento cigano calon, ou seja, foram punidos duplamente, com a invasão, ataque e perda do ente familiar e a prisão injusta da liderança” (Perpétuo 2021Perpétuo, Lenilda D. 2021. Quantas pedras no meio do caminho? Representações sociais acerca dos povos ciganos e a relação com o trabalho e a educação escolar na etnia calon. Tese em Educação, Universidade de Brasília., 56).

Para Perpétuo, essa realidade, marcada por violências, perseguições e abandono do estado, repete-se em muitas comunidades ciganas. Segundo a autora, seu Wanderley, que é conhecido em todo país e, também, na Europa pela sua militância,

é constantemente atacado, perseguido e vítima de racismo e preconceito. Foi preso e ficou encarcerado por seis meses, injustamente, sem provas, configurando perseguição e discriminação a esta minoria étnica. Foi solto devido a mobilização de coletivos populares de grupos juristas, grupos de pesquisas, professores/as universitários, pesquisadores ciganólogos, Comissão Pastoral da Terra, Comissão de Justiça e Paz, Comissão dos Direitos Humanos, Comissão de Justiça e Paz, Associações e Comunidades ciganas de várias localidades brasileiras. (Perpétuo 2021Perpétuo, Lenilda D. 2021. Quantas pedras no meio do caminho? Representações sociais acerca dos povos ciganos e a relação com o trabalho e a educação escolar na etnia calon. Tese em Educação, Universidade de Brasília., 56).

A saída do grupo do acampamento ocorreu alguns meses após as incursões de campo que realizei no local, quando dormi alguns finais de semana no local, entre os meses de junho e julho de 2019. Por fazer parte de grupos de WhatsApp relacionados à tramitação do Estatuto e outras pautas ligadas aos povos ciganos, me incorporei, por ser convidado, ao grupo de juristas articulados para ajudar na defesa de Seu Wanderley no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Colaborei na elaboração de uma espécie de memorial reunindo registros públicos de suas participações em reuniões institucionais relacionados a políticas públicas e direitos humanos, assim como enfatizando seu papel enquanto educador popular. Como registrado por Perpétuo (2021)Perpétuo, Lenilda D. 2021. Quantas pedras no meio do caminho? Representações sociais acerca dos povos ciganos e a relação com o trabalho e a educação escolar na etnia calon. Tese em Educação, Universidade de Brasília., Costa (2017)Costa, Thayse L. 2017. Para onde ir? Por que ficar? Uma etnografia pelo direito de ir, vir e ficar dos povos ciganos. Monografia em Ciências Sociais, Universidade de Brasília. e Silva (2019)Silva, Maria Clara R. da F. 2019. Terra prometida: a análise da cessão de uso gratuito de terras à comunidade cigano calon de Nova Canãa. Monografia em Serviço Social, Universidade de Brasília., e vivenciado por mim durante o doutorado, o acampamento Nova Canãa, especialmente a partir de seu Wanderley, tornou-se um espaço de educação popular, por ser acessado por pesquisadores de diferentes áreas, assim como escolas públicas da região e projetos de universidades.

Voltando à reflexão acerca da relação entre memória e identidade, menciono que em diversos momentos durante as conversas abertas que realizei no acampamento foi enfatizado o fato da Anec não ser apenas uma associação que representava um grupo, uma família específica ou os ciganos da etnia calon, mas sim, “os ciganos de todo o Brasil”, “os ciganos de todas as etnias”. Esta representatividade estaria expressa pela própria na razão social da Anec. Nas palavras de seu Wanderley, um dos “presidentes” da associação: “Deus, agora, diante de toda uma nação (cigana), levanta um pequeno grupo pra ser escolhido para construir a primeira ‘Associação Nacional das Etnias Ciganas’ para que através dessa fosse levada a proposta da constituição do ‘Estatuto dos Povos Ciganos’” (com. pess., jun. 2019).

As experiências que tive em outros espaços públicos em que atuam lideranças de associações ciganas me permitiu perceber que realmente é comum ouvir a reivindicação do “pioneirismo” ou de estar falando “em nome de todos ciganos” (Moonen 2013Moonen, Frans. 2013. Anticiganismo e políticas ciganas na Europa e no Brasil. 3. ed. Recife: [s/e]., 135). A referência à Deus, ao espiritual, para explicar as origens das coisas, para narrar as histórias, como mencionei no parágrafo anterior, foi também recorrente em outras experiências que tive em comunidades ciganas calons, como na Paraíba e Ceará desde 2015, grupos que se organizam igualmente a partir de associações. Em todas elas há um sentido que se aproxima, que apenas “Deus” seria capaz de proteger e garantir a sobrevivência do grupo, apesar das perseguições e da discriminação que os próprios e seus antepassados sofreram.

De todo modo, o trabalho de campo permitiu-me perceber que a atuação política da Anec no Senado Federal disputava poder com outras associações, anteriormente existentes, que já circulavam em espaços da burocracia estatal, inclusive o Congresso Nacional, antes do ano de 2015, quando iniciou a tramitação do PLS. Na verdade, a posição ocupada pela Anec é objeto de tensionamentos de outras associações e lideranças que promovem críticas e questionamentos públicos ao Estatuto proposto pelo senador Paulo Paim, que é acusado de ter privilegiado um grupo específico que não teria preparo para conduzir uma pauta desta magnitude, além de não representar todas as etnias ciganas e nem mesmo seu próprio grupo, os calons.9 9 Convivi um extenso período em diferentes espaços onde ocorreram debates que direta ou indiretamente envolviam a pauta do Estatuto proposto pelo senador Paim, interpretando que as críticas ao PLS n.° 248/2015 se direcionam muito mais à escolha da Anec do que necessariamente ao conteúdo da proposição.

Em outras palavras, o destaque dado pelo mandato do senador Paulo Paim e, ao mesmo tempo, conquistado pela Anec em relação ao PLS n.° 248/2015 suscitou questionamentos de outras lideranças quanto à representatividade e alcance da proposição legislativa. Quanto ao primeiro ponto, presenciei acusações de que a “associação proponente” estaria buscando benefício próprio e de que o autor do projeto não teria dado espaço a outras organizações. Em relação ao segundo ponto, utiliza-se o argumento que proposta de Estatuto não contempla as particularidades de outras etnias ciganas, uma vez que não teriam sido ouvidas, e pelo fato de o proponente do Estatuto ser da etnia calon.

Segundo os documentos oficiais, o senador Paulo Paim havia apresentado o projeto de lei de criação do Estatuto “após uma audiência pública em que representantes dos povos ciganos lamentaram a falta de atenção do estado” e alegaram serem “povos invisíveis”.10 10 Senado Federal. 2018. Projeto que cria o Estatuto do Cigano passa na CAS. Senado notícias, 9 maio 2018. Acessado em 20 mar. 2022. https://bityli.com/Aeq9R. Ao analisar os registros audiovisuais, assim como as atas das audiências públicas que antecederam a proposição do PLS, três ao total, respectivamente nos anos de 2011, 2012 e 2014, percebi a presença de outras diferentes representações ciganas que igualmente reivindicavam a criação de um Estatuto. O que pode significar, na verdade, que foi o referido parlamentar que escolheu politicamente a Anec para atuar como interlocutora da proposição legislativa.

Nos diálogos que ocorreram no acampamento, por outro lado, não houve menções às audiências públicas que ocorreram antes de abril de 2015, mês e ano em que o “PLS” foi proposto, justamente porque não ocorreu participação da comunidade Nova Canãa. A impressão que tive a partir das narrativas compartilhadas no acampamento é de que as movimentações pelo Estatuto do Cigano teriam se iniciado com a criação da Anec, em 2011, depois, com a mudança do grupo para Brasília, em 2014, com a instalação do Acampamento Nova Canãa, e, em junho de 2015, com a proposição formal do projeto de lei no Senado. Por isso, o não dito é igualmente revelador. Isto porque, nestes anos, outra pessoa, que não mais faz parte da Anec, mas que já foi sua presidente, fazia a interlocução no Senado na pauta da proposição do Estatuto – como está exposto no próximo tópico.

Transmitiu-se a ideia de que as trajetórias da comunidade Nova Canãa, da Anec e do Estatuto estão entrelaçadas, como se constituíssem uma única história. Nas palavras de seu Wanderley, “a Anec foi fundada e constituída no ano de 2011, porque nós ciganos entendemos que também somos cidadões de direitos e deveres, comum a todos, iguais a todos. […] Ela foi criada simplesmente com o fim e o propósito de levar a construção do Estatuto” (com. pess., jul. 2019). Ou seja, o manejo da memória do processo do Estatuto, relacionando a criação e a atuação da Anec, é essencial para o fortalecimento da identidade e da legitimidade política do grupo.

Nas palavras de Wanderley, a existência do “Acampamento Nova Canãa” e o surgimento da associação são o lugar e o grupo que “Deus”, assim como o “destino” reservaram para cumprir uma “missão”: de lutar pela “aprovação do Estatuto”, de representar toda uma “nação cigana”, para batalhar pelo “fim do sofrimento” que este “povo passa há séculos”. Ou seja, a trajetória e o sentido de existir da Anec estariam além do próprio processo legislativo, a noção de tempo é ampliada e remetida à origem dos próprios ciganos.

Esta narrativa do “povo escolhido” e da “terra prometida”, que tem inspiração bíblica, está associada também ao fato do acampamento ser um dos primeiros espaços concedidos pelo estado brasileiro para famílias e grupos ciganos viabilizarem suas moradias.

[…] esse lugar aqui, terra Nova Canãa, como tá na internet, na mídia, é o primeiro uso de terra, concessão gratuita, do governo federal,11 11 De acordo com o relatório do governo federal, “a comunidade de Etnia Calon, representada pela Anec – DF e cuja liderança atual é o Sr. Wanderley da Rocha, tem origem no sertão da Bahia. A partir de 1974 ganha mobilidade por Goiás e pelo Distrito Federal, com paradas mais frequentes nas imediações de Brasília, tendo acampado nessas áreas ao longo de 40 anos”. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. 2016. Relatório de Visita Técnica Território Calon no Distrito Federal. Acessado em 20 mar. 2022. https://bityli.com/O7Jek. se aproximando 500 anos de ciganos aqui no Brasil, segundo os relatos, que chegamos em 1574, primeira terra, exclusiva, especificamente do governo federal para o povo cigano. (Seu Wanderley, com. pess., jun. 2019).

Portanto, a experiência do Acampamento Nova Canãa é central para compreender a tramitação do PLS n.° 248/2015. Em diversos discursos do senador Paulo Paim em defesa da aprovação do Estatuto no Senado, foi mencionada a realidade deste território, destacando que vivem famílias acampadas, que preservam as tradições e a cultura cigana, assim como dando ênfase ao fato da família de seu Wanderley ter se mudado para Brasília para lutar pelo Estatuto.

A autora Virgínia dos Santos (2002)Santos, Virgínia dos. 2002. Espacialidade e territorialidade dos grupos ciganos na cidade de São Paulo. Dissertação em Geografia, Universidade de São Paulo. interpreta que para alguns grupos ciganos, a utilização de um espaço traduz suas concepções humanas, culturais, materiais e filosóficas, com base em concepções arquitetadas e abstratas de espaço e territórios adquiridos, tendo um valor social definido pelo grupo. Na perspectiva do autor Dimitri Rezende (2000Rezende, Dimitri F. de A. 2000. Transnacionalismo e etnicidade: a construção simbólica do romanesthàn (nação cigana). Dissertação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Minas Gerais., 86) “formam uma comunidade imaginada, a partir de um estilo cultural singular, que une simbolicamente aspectos essencialistas e epocalistas em uma forma de comunhão e de solidariedade, objetivada na relação entre parentesco e espaço”. Isso ficou muito claro nos diálogos com os interlocutores da Anec, onde a existência destes enquanto grupo transcende tanto a vida no acampamento Nova Canãa, como o próprio processo legislativo do Estatuto, uma vez que esses se fazem e resistem como ciganos desde sempre, seja em Minas Gerais, na Bahia ou em Goiás, por onde ainda costumam circular antes e mesmo após terem se mudado para o Distrito Federal.

Memórias e narrativas

Quando estive na sede da Anec pela segunda vez, já havia feito um levantamento e analisado todos os materiais disponíveis no banco de dados do Senado sobre a tramitação do PLS. O mesmo ocorreu em relação às audiências públicas que aconteceram no Congresso antes de 2015, eventos convocados para discutir os direitos e a cidadania cigana.

Este levantamento teve um papel fundamental para as incursões que fiz no acampamento, pois, me possibilitou formular as perguntas que permearam os diálogos, assim como comparar e integrar as narrativas e as memórias dos interlocutores da Anec às informações sobre o “Estatuto do Cigano”. Assim, foi possível notar nas lembranças de uns e de outros atores sociais não apenas narrativas explícitas, mas também zonas de sombra, silêncios e “não ditos”.

Ao retornar às anotações do caderno de campo, cujo registros se iniciaram a partir de maio de 2018, incluindo relatos sobre o processo legislativo de outros atores sociais, encontrei a seguinte anotação: “esse Estatuto aí foi escrito por uma cigana de espírito que saiu criando associações pelo Distrito Federal e pelo estado de Goiás”. Falar em “cigana de espírito” ou “cigano místico” aciona a seguinte significação: trata-se de pessoas que reivindicam “ser cigana” por uma ligação espiritual, e não por descender de famílias ciganas, ter descendência cigana. Esta afirmação foi feita por Letícia Carvalho,12 12 Adoto os pseudônimos “Letícia Carvalho”, “Marlete Queiroz” e “Susana Novisk” para referir-me a interlocutoras da presente pesquisa, de modo a preservar suas respectivas privacidades em caso de informações sensíveis. uma das lideranças ciganas que conheci em Brasília durante a IV Conferência Nacional da Promoção da Igualdade Racial, entre os dias 28 de maio e 1° de junho de 2018. Nesse mesmo sentido, trago à tona uma resposta que obtive, por e-mail, de Susana Novisk, outra representação cigana que foi identificada nas gravações e na ata da audiência pública de 2014 realizada no Congresso Nacional. Por isso, solicitei a ela uma entrevista sobre o processo legislativo do Estatuto.

Embora não tenha ocorrido a entrevista solicitada, a resposta ao convite trouxe alguns elementos relevantes para compreender as disputas de narrativas em torno da proposição do Estatuto, especialmente, por revelar como outras representações ciganas podem atribuir sentido ao processo do PLS n.° 248/2015. Em resumo, Susana alegou que o projeto é “palco de inúmeras preocupações”, pois violaria a Convenção 169 da OIT, classificou o projeto como “raso e visivelmente construído por gadjos13 13 Gadjos significa “pessoas não ciganas” em algumas línguas ciganas. especialistas no que supostamente se acredita ser o melhor para os coitadinhos” e, diferentemente de seu Wanderley, defende que “nada muda na história” com a proposição legislativa aprovada. Relacionou os integrantes da “associação proponente” ao “analfabetismo funcional e político”, em que o poder público estaria buscando “recuperar a imagem à custa dos ciganos para cobrir a enorme inoperância em relação às minorias nesse país”. E, por fim, avaliou que serão apenas beneficiados os “ciganos místico” e o próprio senador conhecido como o “rei dos Estatutos” (abr. 2019).14 14 O senador Paulo Paim é autor de diversos projetos de Estatuto aprovados no Brasil, portanto, esta fala também reflete a disputa de narrativa em relação às intenções do referido parlamentar em face da proposição do PLS n° 248/2015, com o objetivo de deslegitimá-lo, assim como as lideranças da Anec.

A resposta à solicitação de entrevista, assim como a fala da liderança cigana durante o IV Conapir, em conversa informal, convergem para a mesma informação: o projeto de lei apresentado ao Senado foi supostamente pensado por “ciganos de espírito” ou “gadjos especialistas”. E o que essa afirmação (insinuação) significa? O que ela quer dizer?

Quando se fala em “ciganos místicos”, “ciganos de espíritos” ou “gadjos especialistas”, entendo ser necessário observar o contexto e quem pronunciou. Neste caso, são representações ciganas que, além de atuarem na reivindicação de políticas públicas, disputam também o protagonismo desta luta. Por isso, interpreto o emprego destas expressões como uma forma e tentativa de deslegitimar a proposição do Estatuto, uma vez que supostamente teria sido pensado e formulado por pessoas não ciganas.

Ora, quem seria a “cigana de espírito” ou quem seriam os “gadjos especialistas” citados como os responsáveis pela proposição do Estatuto? Certamente, as supracitadas informantes se referiram à mesma pessoa, “Marlete Queiroz”, a primeira presidenta da Anec.

Durante os primeiros diálogos com os interlocutores do acampamento, não foi feita nenhuma menção à “Marlete Queiroz”. Estranhei esta omissão, pois, já sabia da sua existência e atuação em face do Estatuto nos anos que precederam a proposição do projeto de lei, com base nos documentos públicos acessados sobre o PLS n.° 248/2015. Inclusive, o primeiro registro de Marlete Queiroz no Congresso Nacional está datado em novembro de 2010.

Na segunda ida ao acampamento, questionei quem seria “Marlete”, tendo em vista sua presença nas audiências públicas de 2011 e 2012, que ocorreram no Senado sobre os “direitos ciganos”. Após o questionamento, notei que os interlocutores se olharam, não responderam imediatamente, até que seu Wanderley se pronunciou, explicando quem era “Marlete Queiroz”.

De maneira muito objetiva, informou que “Marlete” foi a primeira presidente da Anec, que inicialmente foi muito importante para a sua família, pois ninguém tinha conhecimento de como poderia criar uma associação. Além disso, afirmou que não houve grandes problemas com “Marlete” para ela sair da diretoria da Anec, que apenas não fazia sentido tê-la na presidência, uma vez que ela não é integrante da sua família, mas sim, uma parceira externa. Em nenhum momento também foi dito que “Marlete” não seria cigana, como foi insinuado por Susana e Letícia. Por outro lado, fizeram questão de ressaltar, mais de uma vez, que a ideia de propor o projeto foi de Wanderley junto com seus irmãos, e não da “Marlete”, embora tivessem tido ajuda de outras pessoas na produção do texto da lei.

Se não tivesse sido mencionada a existência de “Marlete”, provavelmente, nenhum dos interlocutores a teria mencionado, tendo em vista que, depois da conversa que aconteceu, nada mais foi falado sobre essa pessoa. O silêncio sobre ela já era um dado para esta pesquisa, que foi quebrado, uma única vez, por conta do meu questionamento.

A seleção das lembranças, a elucidação de fatos, assim como a omissão de outros relacionados ao surgimento da Anec ou à tramitação do Estatuto, tudo isso ocorre em um contexto de disputas políticas entre diferentes lideranças e associações que buscam ter destaque no âmbito das relações, sobretudo, com o estado. O que está em jogo para a “associação proponente” é a defesa da sua legitimidade política, que só ocorre pois há a existência de outros grupos que questionam o papel exercido pela Anec e que ao mesmo tempo pleiteiam este lugar.

Neste sentido, é importante ponderar que a memória não é constituída apenas pelo que se opta lembrar, pelo que é dito ou anunciado, mas, também, pelo que se opta por esquecer, pelo “não dito”. E é a partir da memória e de como esta é construída que se estabelecem as identidades. Segundo Pollak (1992Pollak, Michael. 1992. Memória e identidade social. Estudos Históricos 5 (10): 200-12., 2004), a memória constitui o sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, “na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”.

As fronteiras desses silêncios e não-ditos com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos. (Pollak 1989Pollak, Michael.1989. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos 2 (3): 3-15., 8).

Pollak defende que “a memória é seletiva”, nem tudo fica gravado, nem tudo fica registrado, sendo que as preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória. Dessa forma, ao concluir que a memória “é um fenômeno construído”, Pollak (1992Pollak, Michael. 1992. Memória e identidade social. Estudos Históricos 5 (10): 200-12., 203-204) quer dizer que “os modos de construção podem tanto ser conscientes como inconscientes. O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização”.

A preocupação dos atores sociais da Anec, que transpareceu durante os diálogos que tivemos, é justamente se pautar como um grupo único e indispensável para a criação do Estatuto do Cigano. Portanto, atribui-se à providência divina, ao fato de ser “um presente de Deus” a possibilidade de atuar como “associação proponente” diante de “tantos outros grupos”,15 15 Em muitas ocasiões, foram citadas as atuações de outras associações, principalmente, as que são aliadas da Anec, no sentido de respeito aos seus respectivos trabalhos, porém sempre enfatizando o caráter especial da família de seu Wanderley, como um exemplo de sacrifício e de luta pelos direitos ciganos. como sempre mencionou seu Wanderley, demonstra o esforço deste em ao mesmo tempo selecionar as memórias e construir uma identidade de “povo escolhido”, responsáveis por realizar a “missão divina” que significa “aprovar o Estatuto”. Seja por serem calon, por terem criado a Anec, assim como por terem tido acesso à terra via concessão pública, na Rota do Cavalo.

A etnicidade cigana “permanece imersa nas experiências cotidianas dos atores e nas memórias de um passado submerso que emerge reinterpretado e atualizado a todo o momento” (Rezende 2000Rezende, Dimitri F. de A. 2000. Transnacionalismo e etnicidade: a construção simbólica do romanesthàn (nação cigana). Dissertação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Minas Gerais., 72). Uma vez que os usos da memória permitem que as pessoas e os grupos deem algum sentido ao seu estar no mundo nos momentos em que ele se questiona sobre quem é e o que se realizou. Deste modo, claramente, nem tudo é lembrado, pois há uma seletividade das experiências recordadas.

Todavia, “a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros” (Pollak 1992Pollak, Michael. 1992. Memória e identidade social. Estudos Históricos 5 (10): 200-12., 204). A memória e a identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser entendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo. A seletividade da memória acontece porque a memória se estabelece no presente, e as pessoas fazem porque se busca sentido no presente. Na pesquisa de campo, ficou nítido que há uma disputa de narrativa quanto ao Estatuto proposto no Senado. Assim, “se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos” (Pollak 1992Pollak, Michael. 1992. Memória e identidade social. Estudos Históricos 5 (10): 200-12., 204).

Portanto, a correlação entre memória e identidades são as chaves para refletir sobre o processo legislativo do Estatuto a partir das perspectivas de seus principais articuladores no Senado Federal, que atuam por meio Anec. Pois, para estes, a trajetória política enquanto associação e comunidade Nova Canãa se entrelaçam à luta pela aprovação do Estatuto do Cigano no Brasil como parte de um mesmo processo. Da mesma forma como enxergam as demais organizações e lideranças ciganas, que confundem a atuação da Anec ao propósito do n.° PLS 248/2015, inclusive para criticá-lo.

Conclusão

O trabalho de campo que realizei permitiu-me perceber alguns diferentes olhares e compreensões sobre o processo legislativo do Estatuto, sob o ponto de vista dos atores sociais que acessei, que atuam em associações ciganas, em especial, na Anec. Foi justamente a partir das divergências entre estes grupos, na seletividade das memórias dos seus interlocutores, que eu pude perceber certa ordem nas coisas, quando algumas informações se transformaram em material significativo para permear o desenvolvimento da presente pesquisa. Nesse sentido, o artigo possibilitou lançar luzes sobre os bastidores da criação do Estatuto do Cigano, concluindo que a tramitação de um projeto de lei não diz respeito apenas sobre os aspectos institucionais e formais que demandam um processo legislativo. Mas, sobretudo, sobre as subjetividades das lideranças que se envolvem na trama.

A estratégia de deslocar meu olhar para compreender o processo a partir da perspectiva dos interlocutores da Anec permitiu-me observar e concluir que a comunidade Nova Canãa mostrou uma habilidade que nenhuma outra associação cigana mais antiga ou aparentemente melhor estruturada conseguiu: sensibilizar e fazer com que um dos parlamentares mais experiente do país propusesse o Estatuto do Cigano, até então inédito no país e no mundo, sendo determinante para o avanço da pauta no Congresso Nacional.

Por mais que os interlocutores da Anec atribuam à providência divina o fato de estarem na linha de frente do processo do Estatuto do Cigano, sendo essa a forma como atribuem sentido sobre seu papel enquanto “associação proponente”, não há dúvidas de que são uma peça-chave na mensagem que se busca passar na tentativa de aprovar o projeto de lei. A existência de ciganos no Brasil é marcada pela discriminação, violência e exclusão, mesmo assim resistem e encontram forças para lutar pelo reconhecimento de seus direitos e de sua importância para a formação histórica, cultural, social e econômica do Brasil.

“Um presente de Deus” nada mais é que uma metáfora que a própria comunidade Nova Canãa encontrou para explicar o que para eles parecia ser impossível acontecer. Um grupo composto por uma família extensa da etnia calon que, apesar de muitas restrições e vulnerabilidades, tem sido capaz de representar e articular no Congresso uma das pautas políticas mais relevantes para os povos ciganos brasileiros na atualidade, a aprovação do projeto de lei que institui o Estatuto do Cigano.

  • 2
    Detalho no artigo “Gypsies, Coloniality and the Affirmation of Human Rights in Brazil” os primeiros marcos legais voltados para os povos ciganos no país desde o período colonial (Salloum e Silva 2020Salloum e Silva, Phillipe Cupertino. 2020. Gypsies, coloniality and the affirmation of human rights in Brazil. Journal of Gypsy Studies 2: 55-80. https://journals.tplondon.com/jgs/article/view/933.
    https://journals.tplondon.com/jgs/articl...
    ).
  • 3
    Destaco que a presente produção decorre de parte das pesquisas que resultaram na tese de doutorado em Direito “A construção político-jurídica do Estatuto do Cigano: entre textos e tramas”, defendida por mim na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2021.
  • 4
    Adotei as aspas duplas para destacar expressões e falas pronunciadas pelos interlocutores desta pesquisa que acionam significações que merecem definições contextualizadas.
  • 5
    Há diversos atores sociais que estão relacionados à criação de uma lei, sendo que, no caso do Estatuto, cito, além dos parlamentares e seus respectivos assessores, servidores públicos do Poder Executivo, do Ministério Público Federal, assim como representações ciganas, que atuam seja diretamente no Congresso Nacional seja em outras instâncias da burocracia estatal.
  • 6
    Importante ressaltar que são as movimentações de associações e comunidades ciganas dos diferentes grupos étnicos que resultaram no reconhecimento do Dia Nacional do Cigano que, desde 2007, passou a ser comemorado dia 24 de maio, por força do Decreto Presidencial de 25/05/2006. Ele representa a primeira política pública dirigida especificamente aos ciganos ao longo de toda a história nacional.
  • 7
    Cigano da etnia Calon, Seu Wanderley, como é conhecido, nasceu no ano de 1966, natural do estado de Alagoas, evangélico e pai de seis mulheres adultas. Nas palavras de Daiane Rocha, uma de suas filhas, “é um homem que apesar de não ter conseguido estudar, é um homem muito sábio. Ele tem leitura de mundo. Ele aprendeu a ler mesmo, foi com a necessidade e a vontade em aprender com o livro sagrado, a Bíblia, que sempre foi uma forma de nos fortalecer como cristãos que somos. Como todos os jovens da nossa comunidade cigana sempre diz: ‘nós conhecemos a palavra de Deus através dos ensinamentos do sr. Wanderley da Rocha” (com. pess., acervo próprio).
  • 8
    Trata-se de um terreno de 3,5 hectares que acabou sendo cedido ao grupo, formalmente, em 2015, pela União, por intermédio da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e do Governo do Distrito Federal, localizado na “Fazenda Sálvia, lote 274” (Silva 2019Silva, Maria Clara R. da F. 2019. Terra prometida: a análise da cessão de uso gratuito de terras à comunidade cigano calon de Nova Canãa. Monografia em Serviço Social, Universidade de Brasília., 174).
  • 9
    Convivi um extenso período em diferentes espaços onde ocorreram debates que direta ou indiretamente envolviam a pauta do Estatuto proposto pelo senador Paim, interpretando que as críticas ao PLS n.° 248/2015 se direcionam muito mais à escolha da Anec do que necessariamente ao conteúdo da proposição.
  • 10
    Senado Federal. 2018. Projeto que cria o Estatuto do Cigano passa na CAS. Senado notícias, 9 maio 2018. Acessado em 20 mar. 2022. https://bityli.com/Aeq9R.
  • 11
    De acordo com o relatório do governo federal, “a comunidade de Etnia Calon, representada pela Anec – DF e cuja liderança atual é o Sr. Wanderley da Rocha, tem origem no sertão da Bahia. A partir de 1974 ganha mobilidade por Goiás e pelo Distrito Federal, com paradas mais frequentes nas imediações de Brasília, tendo acampado nessas áreas ao longo de 40 anos”. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. 2016. Relatório de Visita Técnica Território Calon no Distrito Federal. Acessado em 20 mar. 2022. https://bityli.com/O7Jek.
  • 12
    Adoto os pseudônimos “Letícia Carvalho”, “Marlete Queiroz” e “Susana Novisk” para referir-me a interlocutoras da presente pesquisa, de modo a preservar suas respectivas privacidades em caso de informações sensíveis.
  • 13
    Gadjos significa “pessoas não ciganas” em algumas línguas ciganas.
  • 14
    O senador Paulo Paim é autor de diversos projetos de Estatuto aprovados no Brasil, portanto, esta fala também reflete a disputa de narrativa em relação às intenções do referido parlamentar em face da proposição do PLS n° 248/2015, com o objetivo de deslegitimá-lo, assim como as lideranças da Anec.
  • 15
    Em muitas ocasiões, foram citadas as atuações de outras associações, principalmente, as que são aliadas da Anec, no sentido de respeito aos seus respectivos trabalhos, porém sempre enfatizando o caráter especial da família de seu Wanderley, como um exemplo de sacrifício e de luta pelos direitos ciganos.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

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    » https://doi.org/10.5433/2176-6665.2000v5n1p11
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2022
  • Aceito
    07 Mar 2023
  • Publicado
    12 Set 2023
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