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“Tudo é troca”: ensaio sobre a catira cigana em Minas Gerais

“Everything is exchange”: essay on gypsy catira in Minas Gerais

“Todo es intercambio”: ensayo sobre la catira gitana en Minas Gerais

Resumo:

O artigo trata da catira entre os ciganos calon, também chamada breganha, um sistema de trocas que coloca coisas e pessoas em constante movimento. Argumenta-se que toda a produção de relações entre ciganos, e entre ciganos e não ciganos, segue a lógica da catira, envolvendo sempre um jogo de negociações, um encadeamento de intercâmbios e a produção e atualização de vínculos entre os parceiros. Algumas regras e as margens de vantagem, no entanto, mudam, dependendo se o parceiro é outro cigano ou um não cigano; não se alterando, por outro lado, a importância em qualquer situação, de se manter a palavra.

Palavras-chave:
Ciganos; Troca; Catira; Movimento

Abstract:

The article deals with the catira, also known as breganha, among the Calon Romanies, a system of exchanges that puts things and people in constant movement. It is argued that the entire production of relations among Calon, and between Calon and non-Romani follows the logic of the catira, always involving a game of negotiations, a chaining of exchanges, and the production and actualization of bonds between exchange partners. Some rules and the margins of advantage are a subject of change, since they depend on whether the partner is a non-Romani or a relative. In any situation, however, keeping one's word (palavra) is of paramount important.

Keywords:
Gypsies; Exchange; Catira; Movement

Resumen:

El artículo trata de la catira entre los gitanos calon, también llamada breganha, un sistema de intercambios que pone las cosas y las personas en constante movimiento. Se argumenta que toda la producción de relaciones entre gitanos, y entre gitanos y no gitanos, sigue la lógica de la catira, implicando siempre un juego de negociaciones, una cadena de intercambios y la producción y actualización de vínculos entre socios. Sin embargo, algunas reglas y los márgenes de ventaja cambian, dependiendo de si la pareja es un no gitano o un familiar gitano; la importancia en cualquier situación de mantener la palabra dada permanece inalterada.

Palabras clave:
Gitanos; Intercambio; Catira; Movimiento

Introdução

Dois ciganos calon de acampamentos em municípios vizinhos iniciaram uma catira.2 2 Emprego o uso do itálico para termos, conceitos e expressões que possuem significados específicos para os calon. A negociação era em torno de dois carros – um dos produtos mais cobiçados por homens calon – e foi firmada quando chegaram ao seguinte acordo: o primeiro entraria com um veículo Fiat Palio e mais uma volta em dinheiro de 55 mil reais, com o prazo de pagamento de um ano; em troca, receberia um carro Ford EcoSport. Quando questionei ao primeiro se havia algum documento assegurando o compromisso firmado, ele me respondeu: “Não tem papel nenhum, está tudo na palavra”. A catira é um contrato baseado na oralidade e na confiança e, por isso, é importante escolher bem aqueles com quem se vai negociar e, ao mesmo tempo, sempre se preocupar em fazer o próprio nome, mostrar-se um parceiro de credibilidade. “O prazo nem venceu ainda, mas já vou mandar 40 mil para adiantar”, comentava o mesmo calon dez meses após a negociação, em uma demonstração de que era um homem de palavra.

O presente artigo3 3 A pesquisa é resultado do trabalho de campo realizado entre os anos de 2013, 2017 e 2018 entre vários acampamentos calon em Minas Gerais, dentre eles, com relações mais aprofundadas nos municípios de Belo Horizonte, Nova Lima, Conselheiro Lafaiete e Ibirité. pretende apresentar alguns aspectos do funcionamento da catira, um sistema de transações praticado pelos calon em Minas Gerais, que põe em conexão não ciganos e ciganos de diferentes turmas e acampamentos. Grande parte destes acampamentos se fixaram em terrenos de áreas públicas nos municípios em que se encontram há mais de uma década, abrigando uma quantidade variada de unidades familiares em cada um deles. Os acampamentos não são unidades encerradas em si mesmas, e sim interligados através de laços de múltiplas naturezas – parentesco, alianças, amizade, negócios –, formando uma espécie de rede. A breganha é, nesse sentido, um agenciador importante da ligação entre acampamentos. Um acampamento é uma unidade territorial onde é possível encontrar várias turmas de ciganos. De forma resumida, uma turma se refere a um agrupamento familiar geralmente composto por um grupo de irmãos homens e suas esposas e filhos. Cada unidade familiar – marido, esposa e filhos solteiros – vive em sua barraca ou, em períodos mais recentes, em casas de alvenaria. As moradias de uma mesma turma sempre são erguidas bem próximas umas das outras. Cada turma costuma ser chefiada pelo homem mais velho e forma um bloco unido que sempre se movimenta de maneira conjunta.

Os termos catira ou breganha são utilizados pelos calon para designar uma gama variada de transações entre dois ou mais parceiros – que pode se dar entre ciganos ou entre ciganos e gajons4 4 Gajon e gajin são termos em chibi – a língua usada pelos ciganos calon – que podem ser traduzidos como “homem não cigano” e “mulher não cigana”, respectivamente. envolvendo um extenso leque de coisas e pessoas (Gregory 1980bGregory, 1980b. Gifts and commodities. London: Academic Press.; Strathern 2006Strathern, Marylin. 2006. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora da Unicamp., 2014Strathern, Marylin. 2014. Sujeito ou objeto? As mulheres e a circulação de bens de valor nas terras altas da Nova Guiné. In O efeito etnográfico, 109-32. São Paulo: Cosac Naify.). As duas palavras contêm o mesmo sentido, a principal diferença em seu uso se dá em função do interlocutor: quando estão entre ciganos falam breganha e quando se dirigem a um gajon, o termo mais usado é catira. Tais palavras são usadas como substantivo, mas conjugadas também como verbo: catirar ou breganhar é o mesmo que fazer catira ou fazer breganha. Praticamente tudo pode fazer parte da catira: cavalos, galinhas, carros, celulares, eletrodomésticos, dinheiro. Ela pode começar com dois carros, mas ninguém sabe determinar o que mais irá entrar e sair até o ciclo terminar, tudo dependerá da negociação entre os parceiros. Pode envolver a permuta simples de uma coisa por outra; ou de duas coisas por uma; pode se dar por uma troca de mercadorias e mais uma volta (ou seja, o retorno de um valor em dinheiro); ou, ainda, resultar em uma transação direta de uma mercadoria por moeda. Por outro lado, é possível estabelecer regularidades em seu modo de funcionamento, sempre envolvendo estratégias de convencimento, senso de oportunidade e pressupondo a construção ou atualização de vínculos entre os parceiros da troca. Do ponto de vista calon, o que singulariza a catira em relação a outros tipos de transação também realizadas por eles é a pessoalidade da primeira, em contraponto ao caráter impessoal desses últimos, diferenciação similar àquela que afasta a troca-dádiva da troca-mercadoria (Mauss 2003Mauss, Marcel. 2003. Ensaio sobre a dádiva – forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In Sociologia e Antropologia, 183-314. São Paulo: Cosac Naify.; Strathern 2006Strathern, Marylin. 2006. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora da Unicamp.). Um ato de vender um pano de prato na rua para um gajon anônimo é considerado uma pura transação mercantil, ao passo que uma negociação de um cavalo com um gajon, mesmo que termine em uma troca direta de mercadoria por um valor monetário, será chamada de catira se houver a produção ou a atualização de uma vinculação entre esses parceiros.

Entre encontros e continuidades

Catira e breganha (e outras variantes, berganha, barganha) são também expressões utilizadas para designar redes de troca e comércio não ciganos no interior de Minas Gerais. Ribeiro e Galizoni (2007)Ribeiro, Eduardo. M. e Flávia M. Galizoni. 2007. A arte da catira: negócios e reprodução familiar de sitiantes mineiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais 22 (64): 65-74. https://doi.org/10.1590/S0102-69092007000200005.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200700...
mostram como tais transações movimentam a economia em muitas regiões rurais do estado, criando outra opção para a circulação de bens para além da comercialização mercantil baseada na troca direta e impessoal de mercadoria por moeda. A catira, segundo os autores, é uma rede de trocas de qualquer tipo de bens baseada em relações de confiança:

[…] pautadas por cálculos de longo prazo, cimentadas por relações sociais costumeiras, mediadas por um pecúlio vivo, formam um conjunto miúdo e contínuo de trocas de bens de pequeno valor que influem decisivamente no comércio de regiões rurais, e, portanto, na sua dinâmica. (Ribeiro e Galizoni 2007Ribeiro, Eduardo. M. e Flávia M. Galizoni. 2007. A arte da catira: negócios e reprodução familiar de sitiantes mineiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais 22 (64): 65-74. https://doi.org/10.1590/S0102-69092007000200005.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200700...
, 67).

Muitos dos princípios que regem as redes de troca entre moradores do interior de Minas Gerais são bem semelhantes aos da catira dos calon mineiros, sugerindo uma certa continuidade entre tais práticas, que se cruzam de maneira tanto sincrônica quanto diacrônica. No passado e no presente, ciganos e não ciganos mineiros sempre estiveram intimamente interligados por parcerias de catiragem. Se no caso dos sitiantes mineiros, como sugerem os autores, a catira é, em grande parte, uma alternativa ao comércio formal e/ou uma complementação na renda das famílias, para os calon mineiros, a prática é geralmente sua principal atividade econômica. O modo calon de ganhar dinheiro frequentemente pressupõe uma relação com o gajon, mas essa relação deve ser conscientemente proveitosa e não subordinada. Segundo os calons mineiros, o trabalho assalariado é por um lado desdenhado e, por outro, considerado fora de seu alcance. As etnografias de Florência Ferrari (2010)Ferrari, Florência. 2010. O mundo passa: uma etnografia dos calon e suas relações com os brasileiros. Tese em Antropologia, Universidade de São Paulo. e Martin Fotta (2018)Fotta, Martin. 2018. From itinerant trade to moneylending in the Era of Financial Inclusion: households, debts and masculinity among Calon gypsies of Northeast Brazil. Cham: Palgrave Macmillan. descrevem dinâmicas similares sobre a imersão estrutural dos calon no pano de fundo não cigano, ao mesmo tempo acompanhadas do desinteresse sobre qualquer tipo de proletarização ou submissão aos moldes do emprego formal.

A estreita relação dos ciganos com ofícios de negociadores informais é um dos focos da documentação histórica desses povos no Brasil. Rodrigo Teixeira afirma, a partir da documentação disponível, que as atividades comerciais envolvendo diversos tipos de mercadorias foram a principal fonte de renda dos ciganos desde sua chegada no país, “com destaque para cavalos e mulas” (Teixeira 2009Teixeira, Rodrigo C. 2009. História dos ciganos no Brasil. Belo Horizonte: Crisálida., 38). No período colonial, cronistas e viajantes descreveram a participação dos ciganos inclusive no comércio de escravizados “de segunda mão”, sobretudo na região centro-sul do Brasil (Teixeira 2009Teixeira, Rodrigo C. 2009. História dos ciganos no Brasil. Belo Horizonte: Crisálida., 42). Na obra do pintor Jean-Baptiste Debret, Boutique de la rue du Val-Longo, de 1853, é possível ver um cigano na cena de um famoso mercado de escravizados do Rio de Janeiro (Fotta 2018Fotta, Martin. 2018. From itinerant trade to moneylending in the Era of Financial Inclusion: households, debts and masculinity among Calon gypsies of Northeast Brazil. Cham: Palgrave Macmillan., 7). Estes e outros trabalhos, como o de Coutinho (2016)Coutinho, Cassi L. Reis. 2016. Os ciganos nos registros policiais mineiros (1907-1920). Tese em História, Universidade de Brasília., demonstram como o modo de vida e de subsistência cigano na história do Brasil sempre estiveram conectados com a vida econômica do seu entorno não cigano, construídos a partir de relações de simbiose e dependência. Por um lado, os ciganos preenchiam as lacunas deixadas pelo comércio formal, beneficiando-se delas e, ao mesmo tempo, oferecendo benefícios aos que com eles vinham negociar. Por outro, sublinha-se que os ciganos historicamente estiveram em uma posição desfavorável, em uma realidade econômica que, de modo geral, não dependia deles para sua manutenção e em um contexto macropolítico hostil à sua existência.

O modus operandi das negociações de ciganos retratados na documentação do século 19 é semelhante aos usados pelos calon mineiros na atualidade, sugerindo, assim como já argumentou Fotta (2018)Fotta, Martin. 2018. From itinerant trade to moneylending in the Era of Financial Inclusion: households, debts and masculinity among Calon gypsies of Northeast Brazil. Cham: Palgrave Macmillan., que as atividades de negócio empreendidas pelos coletivos ciganos do presente (cada qual com suas particularidades) têm ligação com seu passado: “nas barganhas os ciganos geralmente buscavam o lucro, mas além dele, a relação de troca envolvia também uma relação de prazer no ato da transação” (Teixeira 2009Teixeira, Rodrigo C. 2009. História dos ciganos no Brasil. Belo Horizonte: Crisálida., 84). Nota-se, também, a utilização de termos iguais aos dos calon atuais na documentação encontrada por Teixeira (2009Teixeira, Rodrigo C. 2009. História dos ciganos no Brasil. Belo Horizonte: Crisálida., 86) como barganha e volta:

A barganha com animais aceitava troca por qualquer objeto (espingarda, tacho de cobre, tecido etc.) ou mesmo por outros animais. Fundamental para o barganhista cigano era a ‘volta’, ou seja, a importância em dinheiro ou não, que ‘equiparava’ o valor dos bens negociados. Era nisto que consistia, via de regra, seu lucro. (grifo meu).

Na obra literária de Guimarães Rosa, o regionalismo nas expressões e práticas que a caracterizam, suas invenções linguísticas e neologismos, têm como substrato as pesquisas do autor sobre a vida rural na primeira metade do século 20, sobretudo de Minas Gerais. E, nesse interim, os ciganos aparecem com certa frequência em seus contos, muitas vezes, passando pela estória como coadjuvantes em constante relação com os protagonistas sertanejos. No conto “Corpo Fechado”, presente no livro Sagarana, o personagem Manuel Fulô narra suas aventuras no período em que viveu entre uma turma de ciganos para aprender a arte de negociar animais:

Foi por causa que eu estava sem gosto p'ra caçar serviço bruto, naquele tempo… Garrei a maginar: o que eu nasci mesmo p'ra saber fazer é negócio de negociar com animal. Mas eu queria ser o melhor de todos… E quem é que é mestre nessa mexida? Não é cigano? Pois então eu quis viajar no meio da ciganada, por amor de aprender as mamparras lá deles. Me ajustei com um bando… (Guimarães Rosa 2017Guimarães Rosa, João. 2017. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., 248).

O texto de Guimarães Rosa, ao descrever as negociações ciganas, também utiliza os termos barganha e volta, certamente coletados pelo autor em suas andanças pelo sertão:

Pegavam num pangaré pelado, mexiam com ele daqui p'r'ali, repassavam, acertavam no freio, e depois era só chegar p'ra o ganjão5 5 O itálico foi utilizado pelo próprio autor. O termo “ganjão”, coletado por Guimarães Rosa, é uma variação linguística do gajon, termo chibi. Também aparece em outras bibliografias como “gajão”. e passar a perna nele, na barganha E volta boa, em dinheiro, porque cigano só faz baldroca recebendo volta… Senão, também, como é que eles haviam de poder viver? Como é?! (Guimarães Rosa 2017Guimarães Rosa, João. 2017. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., 250, grifo meu).

Breganha grande e catirinha

Nos acampamentos mineiros, a catira representa uma das principais fontes de renda das famílias, afirmação que, no entanto, não pretende restringi-la nem a uma prática exclusivamente econômica, tampouco exclusivamente masculina. A divisão do trabalho calon entre os gêneros apresenta uma configuração geral em que os homens são responsáveis por grande parte do sustento da unidade familiar enquanto os cuidados com a barraca e com os filhos pequenos ficam a cargo das mulheres. Ainda que, em muitos casos, as calins empreendam atividades de venda, além de serem em grande parte as titulares de programas sociais governamentais para a população vulnerável, o que contribui fortemente na composição da renda familiar. Nesse sentido, o lugar masculino de garantir a maior parte da receita da família faz com que a catira constitua para os homens uma maior obrigação de efetividade, êxito e regularidade do que para as mulheres. Os homens fazem breganhas grandes, aquelas cujas transações envolvem itens mais valiosos (como carros, cavalos), onde circulam uma maior quantidade de dinheiro e, no geral, apenas eles catiram fora do acampamento. Muitos fazem viagens para breganhar: pequenas ou longas, para cidades próximas ou afastadas, levando toda a turma ou indo apenas em um grupo de homens – nunca sozinhos.

Entre os calons, há uma marcada diferenciação dos papéis de gênero e dos espaços ocupados por cada um deles no interior de um acampamento. Meu lugar em campo, como pesquisadora mulher, naturalmente me posicionou mais próxima ao universo das calins, com as quais eu tinha mais intimidade, conseguia conversar mais abertamente e ganhei mais liberdade para participar dos assuntos que rodeavam suas conversas e despertavam seu interesse. Nesse sentido, muitos aspectos da catira, que pertencem ao domínio dos homens, chegavam a mim a partir do ponto de vista das mulheres, através de relatos das esposas ou, ainda, nas oportunidades em que a catira acontecia de maneira pública, na frente de todos os presentes. Minha visão da catira, a partir de minha perspectiva parcial, terá certamente distinções e particularidades em relação à visão de pesquisadores homens (cf. Fotta 2012Fotta, Martin. 2012. The bankers of the Backlands: financialisation and the Calon-gypsies in Bahia. PHD Tesis in Social Anthropology, University of London., 2018Fotta, Martin. 2018. From itinerant trade to moneylending in the Era of Financial Inclusion: households, debts and masculinity among Calon gypsies of Northeast Brazil. Cham: Palgrave Macmillan.; Mancilha 2017Mancilha, Eduardo C. 2017. Pegando ritmo: uma experiência etnográfica entre os ciganos Calon do Bairro Céu Azul/BH. Dissertação em Antropologia, Universidade Federal de Minas Gerais.).

No caso das calins, suas saídas do acampamento são mais limitadas, principalmente, se envolver um contato próximo com o gajon, como demanda uma catira, algo considerado inapropriado para as mulheres. No interior dos acampamentos, por outro lado, as calins estão em constante negociação. As catiras protagonizadas por mulheres – também chamadas de catirinhas – costumam ser menores, envolvendo pequenos artigos pessoais, tecidos ou eletrodomésticos, e cuja volta em dinheiro, quando há, servirá principalmente para lhes garantir um dinheiro extra. As catirinhas femininas, apesar de serem transações que envolvem valores mais baixos, mais íntimas e corriqueiras no interior dos acampamentos, em contraposição às masculinas – compostas por bens mais valiosos e relações interlocais –, são importantes na composição do conjunto que forma esse circuito de trocas, complementando a renda da família e atualizando vínculos específicos através delas.

Luna, uma calin viúva, estava empenhada em catirar seu aparelho de som que, segundo ela, era muito grande: “um menor é mais fácil para estar lidando, trocando os panos” (Luna, com. pess., 27 nov. 2017) 6 6 Os panos a que ela se refere são os jogos de canto, conjunto de tecidos que as calins usam para cobrir todos os eletrodomésticos da casa. Todo filtro de água, fogão, estante, geladeira dentro de uma barraca são cobertos por um pano cuidadosamente bordado. Começou uma breganha com seu genro e, para convencê-lo de que faria um bom negócio, mostrava bastante conhecimento do produto: “te faço por mil e quinhentos, você sabe, ele tem seis caixas, fala alto, tem 1800 watts. O do Nandinho é de seis caixas também e foi três mil” (Luna, com. pess., 27 nov. 2017). Alguns dias depois, Luna me confirmou que havia fechado o negócio com o genro e comprado outro som menor e “mais simplesinho”. Menos de quatro meses após adquirir o novo aparelho, ele já estava entrando em uma nova breganha com um sobrinho. “Quanto você quer nele, Rafa?” Perguntou o sobrinho de Luna ao seu neto. Ela se adiantou e respondeu antes que o neto abrisse a boca: “ele é novinho. Está duzentos”. “Mas tu não deixou o Rafa falar”, provocou o sobrinho. E ela concluiu: “Mas ele ia falar a mesma coisa. Ele sabe que é duzentos. Mas a gente fecha por cento e cinquenta”.

Palavra e nome

O circuito de catireiros que acompanhei é composto por calons de vários acampamentos da Região Metropolitana de Belo Horizonte e, também, por gajons conhecidos, muitas vezes, vizinhos com quem eles estabelecem laços de confiança. A relação construída entre parceiros ciganos ou entre ciganos e gajons possui dinâmicas e éticas diferentes. Cumprir a palavra é um compromisso primordial feito em qualquer catira. No entanto, entre ciganos, há um maior compromisso de isonomia enquanto catirar com um gajon pressupõe tirar mais vantagem no negócio e os lucros costumam ser maiores, uma vez que os calons veem essa relação como mais assimétrica: “cigano é sempre mais esperto pra negociar que gajon”, dizem. “Já negociei um cachorro vira lata por 8 mil reais para um gajon”, debocha um calon. “Convenci ele de que o cão era caçador”. Eles frequentemente se gabam das boas jogadas que fizeram em uma breganha com gajons, graças à sua boa lábia e ao seu olhar preciso para reconhecer boas mercadorias e boas oportunidades. Por outro lado, o negócio com gajons possui menos garantias de cumprimento, o que é impensável quando se trata de negociações entre calons. “Cigano não dá o cano em outro não”, afirma a calin Valdinalva, reforçando que cumprir a palavra é o princípio ético fundamental da catira. Seu marido Itamar explica as diferentes dinâmicas entre breganhas envolvendo gajons ou só calons, mostrando que a negociação entre ciganos pressupõe menos lucro, por outro lado, mais garantia:

Se eu for vender um carro de 50 mil com prazo, cigano vai dizer – “faz por 40 mil, porque é para cigano”. Aí você sabe que pode fazer compromisso com aquele dinheiro. Porque se a pessoa morre, a família vai lá e paga. Se meu irmão morrer devendo 55 mil, eu e meus outros irmãos vamos lá e pagamos a dívida dele. Se fosse um gajon não, a gente ficaria no prejuízo. (Itamar Soares, com. pess., 13 ago. 2018).

A diminuição na confiança quando se trata de gajons justifica, assim, o aumento nos valores dos itens transacionados com eles. Itamar conta que os gajons bons pagadores fazem fama e ficam com bom nome entre os ciganos. Do contrário, um gajon que não paga direito fica com má fama, pois os calons fazem a notícia circular:

Ontem vieram uns três gajons a cavalo aí, comprar no Charlon, aí ele ligou para o meu irmão, a gente estava tomando uma cerveja ali. Meu irmão falou – “não entrega não”. A gente avisa. Uma vez, eu estava em Mateus Leme e tinha breganhado um carro com um rapaz que morava perto do acampamento do Capelinha. Um dia antes dele vir buscar o carro, outro primo me ligou – “esse rapaz que você vendeu, ele não paga não”. Eu tinha dado a ele um ano de prazo. Eu então liguei para ele e desfiz o negócio na hora. (Itamar Soares, com. pess., 13 ago. 2018).

Apesar de as catiras com os gajons gerarem mais desconfiança e demandarem mais cuidados, elas são essenciais para a circulação de dinheiro nos acampamentos e são muitas as estratégias usadas pelos ciganos para controlar os devedores e diminuir os riscos de prejuízo. Uma delas é a permanência no local onde as catiras foram feitas até que todos os pagamentos a receber sejam realizados.

No ano de 2017, acompanhei o movimento de Seu Jurandir e sua família, que moravam em casas de alvenaria recém-construídas no acampamento do São Gabriel, em Belo Horizonte. Naquele mesmo ano, a turma de Seu Jurandir resgatou as barracas que ficam guardadas para quando precisam se deslocar temporariamente, e foi viver uma temporada no acampamento de Nova Lima, um município vizinho, onde tinham parentes que os acolheriam. O motivo da mudança era a necessidade de catirar 24 cavalos que compraram na Bahia. Após se estabelecerem no novo acampamento, rapidamente negociaram todos os cavalos. A maior parte das breganhas foi feita com gajons conhecidos, com prazo de um ano de pagamento da volta. Mesmo após negociarem todos os cavalos, o plano da turma era ficar na cidade durante um ano, até findar o prazo para seus parceiros de catira quitarem o valor devido.

Neste intervalo temporal, em alguns casos, foram feitas renegociações a partir da catira inicial. Um comprador que havia prometido pagar 1200 reais livres no cavalo, vendo que não conseguiria cumprir o acordo, refez a proposta, oferecendo um porco e mais uma volta em dinheiro. O interstício entre o começo e o final de uma catira produz e estreita laços entre os parceiros da troca, que podem se procurar para renegociar os termos iniciais do acordo ou para passar segurança de que vão cumpri-lo, reafirmando sua palavra. No caso da turma de Seu Jurandir, um acontecimento inesperado produziu a necessidade de retornarem mais cedo para Belo Horizonte: ele ficou doente e precisou fazer um tratamento na capital. A volta precoce da família trouxe a preocupação de que os gajons devedores de Nova Lima não pagassem o restante da dívida, o que lhes deu um pouco de trabalho: os filhos de Seu Jurandir precisavam de tempos em tempos voltar à Nova Lima para cobrar a dívida. Por outro lado, havia parceiros bons de paga que prometeram ir até Belo Horizonte honrar com a dívida pessoalmente.

Entre as famílias ciganas que pude acompanhar, os homens bons de catira sempre possuíam dinheiro flutuante, a receber e a pagar. Um dos princípios fundamentais da catira é que os itens transacionados estão em constante movimento. Essa lógica da circulação acompanha e leva à outra, aquela do não acúmulo. Acumular dinheiro, bens, significa deixá-los parados e, da perspectiva calon, isso não é bom. As dívidas contraídas e os valores a receber quase nunca se resumem a uma única breganha e sim a uma série delas, feitas em períodos concomitantes e com diferentes parceiros, de modo que um calon sempre está vinculado a várias pessoas através dessas quantias a pagar e a arrecadar. Assim, é comum que o valor em espécie que entra, imediatamente saia das mãos daquele que o acabara de receber, seja para saldar o débito advindo de uma catira anterior ou para ser empregado em uma nova negociação. Seguindo a lógica de não deixar o dinheiro parado, os calons não gostam da ideia de depositar o dinheiro em contas bancárias. A dinâmica de receber e pagar as voltas da catira deve ser muito precisa para fazer funcionar a lógica de que o dinheiro sempre circula. “A gente não deixa dinheiro parado não, tem que sempre colocar ele para girar”, resume um calon. Assim como o dinheiro, os bens também circulam rápido. No momento em que o cigano do primeiro exemplo acabou de quitar a dívida do automóvel EcoSport que havia adquirido há um ano, o carro já não lhe pertencia mais, já havia sido colocado como parte de outra catira.

Manter uma boa quantidade de dinheiro circulando é um dos requisitos fundamentais para garantir a boa reputação de um homem calon. Martin Fotta (2016Fotta, Martin. 2016. Exchange, Shame and strenght among Calon of Bahia: a values-based analysis. In Gypsy economy: Romani livelihoods and notions of worth in the 21st century, organizado por Micol Brazzabenni, Manuela I. Cunha e Martin Fotta, 201-20. New York: Berghahn Books., 2018Fotta, Martin. 2018. From itinerant trade to moneylending in the Era of Financial Inclusion: households, debts and masculinity among Calon gypsies of Northeast Brazil. Cham: Palgrave Macmillan.) em sua etnografia sobre calons na Bahia, inspirado pela obra de Nancy Munn (1992)Munn, Nancy, D. 1992. The fame of Gawa. A simbolic study of value transformation in a Massim (Papua New Guinea) Society. London: Duke University Press., cunhou o termo força para designar uma espécie de valor cigano que agrupa um conjunto de habilidades que conferem prestígio e respeito a um homem, relacionados à sua capacidade de “criar movimento” – através da circulação de pessoas, objetos, riquezas, relações – e de “controlar a parte do ambiente em que vivem” (Fotta 2016Fotta, Martin. 2016. Exchange, Shame and strenght among Calon of Bahia: a values-based analysis. In Gypsy economy: Romani livelihoods and notions of worth in the 21st century, organizado por Micol Brazzabenni, Manuela I. Cunha e Martin Fotta, 201-20. New York: Berghahn Books., 205, tradução nossa). Um dos aspectos da força de um cigano é seu nome. O calon forte projeta seu nome sobre uma transação ou sobre um território. No contexto mineiro, a maneira como um calon ganha reputação através do controle sobre o mundo ao seu redor e sobre seus fluxos, encontra paralelos com a ideia de força e de nome usadas por Fotta. Os calons utilizam recorrentemente expressões como fazer o nome – aquele cigano tem bom nome ou boa fama –, para dizer sobre aqueles homens bons de catira, que sabem fazer o dinheiro circular, que cumprem a palavra em seus tratos. Os termos nome ou fama são também usados para as calins, ligados nesse caso à sua decência moral, à capacidade da mulher de demonstrar que possui vergonha. O nome de um calon ou calin pode ser feito e pode ser perdido, a depender de suas condutas e do resultado delas para a imagem da pessoa.

Fotta (2016)Fotta, Martin. 2016. Exchange, Shame and strenght among Calon of Bahia: a values-based analysis. In Gypsy economy: Romani livelihoods and notions of worth in the 21st century, organizado por Micol Brazzabenni, Manuela I. Cunha e Martin Fotta, 201-20. New York: Berghahn Books. mostra que entre os calons da Bahia, a percepção dos outros sobre a força de um cigano dentro do seu acampamento é sensível à sua postura diante do controle e da distribuição pecuniárias e das diferenças de atitude em relação a ciganos e não ciganos. Um homem forte deve, por um lado, obter o máximo de vantagens dos gajons e, por outro, oferecer ajuda financeira aos parentes, através de empréstimos com juros mais baixos e prazos mais longos.7 7 O trabalho de Fotta (2018) se debruça com detalhes sobre os empréstimos de dinheiro empreendidos pelos ciganos no contexto baiano. Fotta (2018, 5) afirma que na Bahia “a ascensão nas últimas décadas do empréstimo a juros como uma especialidade calon pode ser entendida como uma transformação da troca e da barganha, atividades que praticavam em tempos anteriores e hoje encontra-se diminuída naquele contexto”. Tal ajuda não é desinteressada, ela é confirmadora da reputação do calon e do seu controle sobre um ambiente (Fotta 2016Fotta, Martin. 2016. Exchange, Shame and strenght among Calon of Bahia: a values-based analysis. In Gypsy economy: Romani livelihoods and notions of worth in the 21st century, organizado por Micol Brazzabenni, Manuela I. Cunha e Martin Fotta, 201-20. New York: Berghahn Books., 204). A experiência dos calons baianos se assemelha aos calons mineiros no sentido de pressupor uma maior solidariedade nas negociações entre calons e uma maior obtenção de lucro e vantagens nas negociações com gajons. Isso não quer dizer, no entanto, que as catiras entre ciganos não sejam proveitosas, pelo contrário. Como já mencionei, em um acampamento nada fica parado por muito tempo e quase tudo é passível de breganha, assim, os calons e calins estão constantemente negociando entre si seus pertences, utilizando das mesmas artimanhas de convencimento que usam para catirar com os gajons. Além disso, demonstrarei a seguir que as catiras mais valiosas são feitas preferencialmente entre ciganos: aquelas que envolvem as trocas matrimoniais.

Casamento como catira

Entre os calons mineiros, a negociação de casamento é o ponto mais alto da catira. Os calons chamam de casamento a primeira união matrimonial de uma mulher, em que ela, ainda virgem, sairá da moradia de seus pais, para viver com a turma de seu marido, após o grande ciclo ritual que compõe a festa de casamento. As calins mineiras dificilmente empreendem uniões com não ciganos, enquanto do lado masculino é comum que algum de seus enlaces conjugais seja com gajins. O casamento, pilar do parentesco cigano, acontece a partir de uma negociação entre os pais dos noivos, cuja dinâmica gira em torno da ideia de dar a filha à turma do marido, sempre com o consentimento do casal de pretendentes. O casamento é, portanto, um negócio coletivo, sempre envolvendo duas turmas. Em situações em que as turmas possuem desavenças, não há espaço para negociações de casamento entre elas. Em casos de brigas entre turmas após já terem firmado um compromisso de casamento entre seus filhos, aquele noivado será desmanchado. Os calons e as calins crescem se preparando para o momento de se casar, ritual que lhes conferirá o primeiro passo para entrada no universo dos adultos. As separações são plenamente possíveis e, de fato, são muito corriqueiras. As novas uniões que ocorrem após uma separação serão denominadas juntamento.

Uma negociação de casamento pelas duas famílias envolve pessoas e coisas:8 8 Uma discussão detalhada sobre o casamento e o juntamento cigano, assim como o estatuto da troca envolvendo pessoas e coisas pode ser conferida em minha tese de doutorado (Campos 2020a). os noivos e suas virtudes, os itens e valores da festa e, ainda, os bens que farão parte da nova barraca ou casa que abrigará o recém-casal. O casamento também pode ser parte de uma negociação mais ampla entre essas turmas, que começou anteriormente e se fortalece através do arranjo matrimonial. Negociar um casamento é, portanto, o início ou a continuação de uma série de alianças e obrigações entre turmas, envolvendo trocas de diversas naturezas.

O fato de nas transações de casamento os noivos, e sobretudo, as mulheres – pois elas são dadas à turma do marido – entrarem no mesmo fluxo de negociação dos objetos, no entanto, não significa que o sentido que os calons estão dando às pessoas equivale ao status de mercadorias. A ideia maussiana de que em uma troca de dádivas, quando se dá algo a alguém se dá parte de si mesmo, é um giro fundamental para se descartar a suposição de que uma transação de casamento nesses contextos trata de uma transferência de propriedade da mulher. Como mostra Strathern (2014)Strathern, Marylin. 2014. Sujeito ou objeto? As mulheres e a circulação de bens de valor nas terras altas da Nova Guiné. In O efeito etnográfico, 109-32. São Paulo: Cosac Naify. no contexto melanésio, as mulheres são produzidas por seus clãs; no caso cigano, por suas turmas. São, conforme defendeu Christopher Gregory, “a dádiva suprema […] propriedade inalienável do clã que as produziu” (Gregory citado por Strathern 2014Strathern, Marylin. 2014. Sujeito ou objeto? As mulheres e a circulação de bens de valor nas terras altas da Nova Guiné. In O efeito etnográfico, 109-32. São Paulo: Cosac Naify., 122). Assim, apesar de serem dadas à família do noivo no momento do casamento, não são alienáveis como as mercadorias, são parte de um conjunto maior, a turma, uma parte destacável dela, mas com a qual nunca deixarão de ter vínculos de pertencimento. A concepção de que ao dar uma filha, um calon e sua família estão doando parte de si mesmos, se liga tanto à construção coletiva da pessoa calon, quanto à construção do parentesco – que pode ser pensado a partir da ideia de “mutualidade do ser” (Sahlins 2011Sahlins, Marshall. 2011. What kinship is? (part one). Journal of the Royal Anthropological Institute 17 (1): 2-19. https://doi.org/10.1111/j.1467-9655.2010.01666.x.
https://doi.org/10.1111/j.1467-9655.2010...
), ou seja, parentes são distribuições do eu entre múltiplos outros. Dito de outro modo, dar uma filha é conceder uma parte que compõe a pessoa cigana à turma do marido, ao mesmo tempo em que é a extensão do parentesco a esta outra turma.

Chegando perto da idade considerada boa entre os calons para se casar, Manu começou a receber vários pedidos de casamento, mas seu pai – um calon com boa fama em seu acampamento – recusava um a um, julgando que tais pretendentes não eram suficientemente bons para sua filha. “Meu pai era muito sistemático. Todo mundo que pedia para casar comigo ele não dava não” (Manu, com. pess., 21 jul. 2013), ela conta. Depois de várias recusas, veio o pedido de um jovem calon, pertencente a uma turma que agradava ao pai de Manu. Já mantinham outras catiras e ele considerava o pai do rapaz como detentor de um bom nome, um homem de palavra. Assim, finalmente aceitara um pedido. Manu também concordou e o casamento foi marcado com o prazo de um ano, de acordo com a negociação entre os pais dos noivos.

Ao longo desse ano, o pai de Manu juntou o dinheiro para a festa e para comprar a parte que lhe cabia na montagem da nova barraca dos noivos. Passados 11 meses, já às vésperas do casamento, Manu e o noivo tiveram um desentendimento e ela resolveu quebrar o acordo. Ao comunicar ao pai sua decisão de desmanchar o noivado, ele ficou furioso, pois, além de quebrar a palavra com a família do rapaz, ele já havia gasto quase 12 mil reais na montagem da barraca da filha, comprando eletrodomésticos, móveis, enxoval. Além de já ter pago a montagem do barracão que abrigaria a festa. O pai e a mãe tentaram convencê-la a mudar de ideia, mas já era tarde, nem o rapaz queria mais o casamento. A relação entre as turmas estremeceu.

Restava agora ao pai de Manu tentar recuperar parte do prejuízo e ele começou a breganhar o enxoval já comprado com um calon que casaria a filha em breve. Colocou todos os itens na catira, oferecendo um bom preço e um bom prazo de pagamento para que o cigano ficasse com o conjunto completo. Nesse ínterim, correu a notícia entre os acampamentos de que Manu havia desmanchado o noivado e novos pedidos de casamento começaram a aparecer. A essa altura, o grau de exigência do pai de Manu já havia abaixado. Além disso, caso Manu aceitasse rapidamente um novo pedido de casamento, haveria tempo para desistir da breganha de seu enxoval e reutilizá-lo no novo matrimônio, já que o negócio com o outro calon ainda não estava firmado. Daria para aproveitar também o dinheiro já pago no barracão, anulando seu prejuízo financeiro. Diante do primeiro pedido nessa nova situação, o pai de Manu resolveu dar uma chance ao rapaz e consultou a filha, ao que ela recusou. Então veio um segundo pedido.

O novo pretendente era Anderson, que havia recentemente se separado da primeira esposa quando comunicou a seu pai que gostaria de pedir Manu em casamento. O pai de Anderson então se prontificou a começar a negociação com a família da moça. Mas ele sabia, contudo, da fama de durão do pai de Manu, e resolveu falar primeiro com a avó dela. As ciganas mais velhas são sempre vistas com respeito e sabedoria e por isso, imaginou, ela poderia ajudar na mediação e no convencimento do filho. A velha cigana o encorajou: “chama meu filho para um bar e conversa com ele”. O pai de Anderson, então, mandou um recado para o pai de Manu para que se encontrassem aquela noite em um bar próximo ao acampamento da turma da pretendente. Na conversa, ele transmitiu o desejo do filho de se casar com Manu, garantindo ao pai dela suas boas intenções. Este, por sua vez, não disse que sim nem que não, prometendo, no entanto, pensar no caso e dar uma resposta depois de conversar com a esposa e a filha.

Chegando em casa, o pai de Manu contou do novo pedido à esposa, colocando-lhe a par de toda a situação para que ela conversasse com a filha. Depois de tanta confusão e prejuízo, ele estava disposto a aceitar o pedido. Tinha receio de que todos esses desarranjos impactassem sua fama, sua palavra, bem como a fama de sua filha. A mãe conversou com Manu, que aceitou se casar com Anderson. Após o consentimento da jovem, seu pai tratou rapidamente de negociar o restante dos detalhes com a família do noivo para garantir que o casamento saísse, o que incluía um prazo pequeno para a realização do mesmo. Ele desfez a catira do enxoval do primeiro casamento e o reaproveitou para este novo, o que possibilitou marcar a cerimônia para dali a dois meses.

Vergonha9 9 Para uma discussão detalhada sobre os significados da vergonha como um valor cigano ver: Campos (2020a, 2020b). e nome são os principais valores de troca em jogo em uma breganha de casamento. Nesse sentido, conseguir um bom casamento para os filhos está intimamente ligado à força do nome de seus pais, ao mesmo tempo em que o êxito no casamento contribui para o aumento de seu nome. Como mostra Martin Fotta para os calons baianos “os casamentos bem-sucedidos dos filhos se tornam a prova definitiva da eficácia de um calon como um prestamista” (Fotta 2018Fotta, Martin. 2018. From itinerant trade to moneylending in the Era of Financial Inclusion: households, debts and masculinity among Calon gypsies of Northeast Brazil. Cham: Palgrave Macmillan., 19, tradução nossa). Mas, conforme ilustra o caso de Manu, a negociação de casamento, seguindo a lógica da catira, nunca é fácil. Seu êxito pressupõe talento, artimanhas, se conecta a uma série de outras negociações e depende da qualidade do histórico de relações entre as turmas envolvidas.

Palavras finais: catira, valor, perspectiva e movimento

O cigano Carlos tinha uma carroça e um sujeito ofereceu um cavalo magro em troca dela.10 10 Este ciclo de breganhas foi narrado por Carlos Rezende, durante uma aula ministrada por ele em uma disciplina de Antropologia Econômica na UFMG, em 8 de junho de 2018, a convite da professora Deborah Magalhães Lima. Apesar de muito franzino, Carlos aceitou, pensando que seu baixo peso se devia ao período de seca e quando chegasse o período de chuva, o pasto iria crescer e o cavalo engordaria, dobrando também seu valor. Mas, logo após adquiri-lo, outro sujeito apareceu com um vistoso peru, querendo breganhá-lo em algum cavalo. Carlos então o levou ao pasto e mostrou-lhe alguns de seus cavalos mais fortes e, portanto, mais caros, propondo trocar um deles pelo peru e uma volta em dinheiro. O homem achou os cavalos muito caros e perguntou se não haveria algum mais barato, para que pudessem negociar o peru e uma volta menor. Carlos então teve a ideia de lhe oferecer o raquítico cavalo que acabara de conseguir, diminuindo o valor da volta em dinheiro e o negócio foi firmado. A princípio, Carlos havia ficado satisfeito com o resultado da catira: adquirira um vigoroso peru e, ainda, uma satisfatória volta em dinheiro. Porém, tempos depois, seu antigo cavalinho passara na porta de sua barraca, irreconhecível. Estava forte, robusto, carregando em seu lombo o novo dono, quando antes, mal parava em pé de tão fraco. Aquela cena gerou uma ponta de arrependimento em Carlos por ter breganhado o cavalo antes de esperá-lo engordar. Dias depois, outro rapaz fora até sua barraca interessado em fazer uma oferta no peru. Carlos então breganhou o animal por uma televisão e um aparelho de som. Para sua sorte, o dono do seu antigo e agora cobiçado cavalo, passou novamente por ali. Carlos o convidou para entrar na barraca e aproveitou as mercadorias que acabara de adquirir, mostrando-lhe o novo som e vangloriando-se da qualidade do aparelho. Ao sentir o forte interesse do gajon pela mercadoria, Carlos ofereceu breganhar o som em troca do cavalo e pediu ainda uma volta. A jogada deu certo e, ao final, Carlos conseguiu recuperar seu cavalo, agora forte e valorizado, além de receber uma volta em dinheiro.

Se retornarmos ao início desse ciclo de catiras, o cavalo franzino, adquirido por Carlos após trocá-lo por uma carroça, saiu de sua mão em uma segunda catira, agora trocado pelo peru e mais uma volta. Ou seja, os parceiros chegaram a um consenso de que o cavalo, mesmo que bem magro, valia mais do que o peru. Ao longo das próximas catiras, Carlos conseguiu uma negociação vantajosa no peru, trocando-o por dois eletrodomésticos. Se analisarmos o valor do peru em todo o conjunto de catiras, ele sofreu uma alta valorização nas mãos de Carlos, já que a metade das mercadorias recebidas em sua troca foram dadas ao próximo parceiro (o aparelho de som), em troca do mesmo cavalo (agora engordado) e mais uma volta. Ou seja, o valor do peru, definido primeiramente como menor que o do cavalo, ao longo das transações, mais que duplicou, uma vez que apenas a metade dos produtos oriundos de sua troca foram utilizados para recuperar o cavalo, com direito ainda ao recebimento de uma diferença em dinheiro. É claro que esse cálculo só ficou claro para Carlos, já que o parceiro que negociou com ele duas vezes o cavalo não participou das breganhas intermediárias entre o som e o peru. Do ponto de vista de Carlos, que acompanhou todo o seu ciclo de trocas, ele foi fortemente beneficiado. Mas pode ser que o parceiro que terminou com o som – que não conhece todo o ciclo de catiras de Carlos, mas que conhece o seu próprio ciclo, o qual não conhecemos – possua uma visão positiva dos seus ganhos nas breganhas com Carlos.

A história de Carlos ilustra bem como a catira não se constitui como uma transação isolada. Cada troca é parte de um processo de concatenação de outras trocas, cada uma delas atualizando vínculos anteriores, demonstrando as estratégias dos parceiros, as oportunidades e as reviravoltas que podem surgir a cada nova transação. Mostra, ainda, como a catira é um jogo de assimetrias parciais, no qual ganhar ou perder são termos relativos, dependem da perspectiva dos jogadores; e essa também pode mudar a depender do contexto e dos acontecimentos posteriores. A catira é um ciclo que não tem começo nem fim, já que tudo está em constante circulação, no qual bens que vão podem voltar a qualquer momento, tudo é uma questão de ocasião. Como resume Carlos “negócio não é escolhido. Negócio é achado” (Carlos Rezende, com. pess., 8 jun. 2018).

Segundo Carlos, “tudo é negócio, tudo é troca”. Toda a produção de relações entre os calons mineiros entre si e com não ciganos é atravessada pela lógica da catira. Conforme mostrado, a ética envolvida na maneira como catiram internamente ou com não ciganos, possui suas diferenças. Mas em todos os casos, o objetivo é que, da perspectiva de cada envolvido, entrar em uma catira seja sempre um negócio vantajoso para todos que dela participam. Como afirma novamente Carlos, ao narrar algumas das catiras que realizou: “por que eu quis fazer negócio? Pelo gosto. A catira, a troca, é gosto. Todo mundo tem que sair satisfeito” (Carlos Rezende, com. pess., 8 jun. 2018).

  • 2
    Emprego o uso do itálico para termos, conceitos e expressões que possuem significados específicos para os calon.
  • 3
    A pesquisa é resultado do trabalho de campo realizado entre os anos de 2013, 2017 e 2018 entre vários acampamentos calon em Minas Gerais, dentre eles, com relações mais aprofundadas nos municípios de Belo Horizonte, Nova Lima, Conselheiro Lafaiete e Ibirité.
  • 4
    Gajon e gajin são termos em chibi – a língua usada pelos ciganos calon – que podem ser traduzidos como “homem não cigano” e “mulher não cigana”, respectivamente.
  • 5
    O itálico foi utilizado pelo próprio autor. O termo “ganjão”, coletado por Guimarães Rosa, é uma variação linguística do gajon, termo chibi. Também aparece em outras bibliografias como “gajão”.
  • 6
    Os panos a que ela se refere são os jogos de canto, conjunto de tecidos que as calins usam para cobrir todos os eletrodomésticos da casa. Todo filtro de água, fogão, estante, geladeira dentro de uma barraca são cobertos por um pano cuidadosamente bordado.
  • 7
    O trabalho de Fotta (2018)Fotta, Martin. 2018. From itinerant trade to moneylending in the Era of Financial Inclusion: households, debts and masculinity among Calon gypsies of Northeast Brazil. Cham: Palgrave Macmillan. se debruça com detalhes sobre os empréstimos de dinheiro empreendidos pelos ciganos no contexto baiano. Fotta (2018Fotta, Martin. 2018. From itinerant trade to moneylending in the Era of Financial Inclusion: households, debts and masculinity among Calon gypsies of Northeast Brazil. Cham: Palgrave Macmillan., 5) afirma que na Bahia “a ascensão nas últimas décadas do empréstimo a juros como uma especialidade calon pode ser entendida como uma transformação da troca e da barganha, atividades que praticavam em tempos anteriores e hoje encontra-se diminuída naquele contexto”.
  • 8
    Uma discussão detalhada sobre o casamento e o juntamento cigano, assim como o estatuto da troca envolvendo pessoas e coisas pode ser conferida em minha tese de doutorado (Campos 2020aCampos, Juliana M. Soares. 2020a. O nascimento da esposa: movimento, casamento e gênero entre os calons mineiros. Tese em Antropologia, Universidade Federal de Minas Gerais.).
  • 9
    Para uma discussão detalhada sobre os significados da vergonha como um valor cigano ver: Campos (2020aCampos, Juliana M. Soares. 2020a. O nascimento da esposa: movimento, casamento e gênero entre os calons mineiros. Tese em Antropologia, Universidade Federal de Minas Gerais., 2020bCampos, Juliana M. Soares. 2020b. Sangue e honra: fluidos femininos entres os calons mineiros. Aceno-Revista de Antropologia do Centro-Oeste 7 (14): 137-56. https://doi.org/10.48074/aceno.v7i14.9743.
    https://doi.org/10.48074/aceno.v7i14.974...
    ).
  • 10
    Este ciclo de breganhas foi narrado por Carlos Rezende, durante uma aula ministrada por ele em uma disciplina de Antropologia Econômica na UFMG, em 8 de junho de 2018, a convite da professora Deborah Magalhães Lima.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação da autora antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2022
  • Aceito
    28 Nov 2022
  • Publicado
    12 Set 2023
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