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Narrativas identitárias e construções subjetivas: Considerações teóricas e análise empírica de identificações entre jovens das classes populares

Identity narratives and subjective construction: Theoretical considerations and empirical analysis of identification processes among youngsters from popular classes

Resumo:

Nesse artigo, abordarei como processos identitários e suas conexões com o estudo das construções narrativas vêm sendo analisados na Sociologia das últimas décadas. Mais especificamente, o desenvolvimento identitário na juventude será discutido, especialmente no que se refere a questionamentos sobre a conclusão desse processo na idade adulta e sobre a sua relação com características de gênero. Além de uma breve reflexão teórica, serão também apresentadas considerações empíricas sobre juventude e identidade. Aqui serão enfocadas construções sobre ser mulher bem como representações de gênero e sexualidades.

Palavras-chave:
identidade; narrativa; juventude

Abstract:

This article aims at clarifying the connections between identity processes and narrative constructions as analyzed in the recent sociological literature. More specifically, the identity development among youth will be discussed, especially concerning its closure or not with the advent of adulthood and its linkages with gender characteristics. After a brief theoretical reflection, empirical findings on youth and identity will be presented. The focus is on the constructions of being a woman as well as representations of gender and sexuality.

Keywords:
identity; narrative; youth

Identidade e construções subjetivas na alta modernidade

Em seu artigo sobre as políticas identitárias da atualidade e suas limitações, Hobsbawm aponta a surpreendente multiplicação de abordagens sobre identidade nas últimas décadas: “ao consultar a ‘Enciclopédia de Ciências Sociais’ internacional publicada em 1968 – o que significa que foi escrita em meados da década de 1960 – não se encontra nenhum artigo sobre identidade a não ser um único que aborda a identidade psicossocial, de Erik Erikson, que estava preocupado principalmente com algo referente à chamada ‘crise de identidade’ dos adolescentes tentando descobrir quem eles são” (Hobsbawm, 1996HOBSBAWM, Eric. Identity politics and the left. New Left Review, v. 217, n. 1, p. 38-47, 1996., p. 38)1 1 Em um dos mais populares modelos de desenvolvimento psicossocial, Erik Erikson (1963) afirma que a principal tarefa de desenvolvimento e desafio do período da juventude é a construção e desenvolvimento da identidade, somente possível ao se reconhecer a exterioridade dos outros e os limites do próprio eu. . Desde essa anterior vinculação de identidade com desenvolvimento adolescente, a dificuldade da análise do termo identidade reside, especialmente, na multiplicidade de contextos onde esse é empregado. Nas áreas da filosofia, psicologia e ciências sociais, o termo identidade não apenas assume múltiplas definições e nuances como também é sujeito de inúmeros e extensos debates.

Perante a impossibilidade de discutir aqui todos os múltiplos aspectos dos debates em torno da questão identitária, a ênfase será dada à intersecção dos temas desenvolvimento da identidade subjetiva, juventude e diferenças de gênero. Antes, porém, de aprofundar essa intersecção convém delinear uma divisão frequente nas diversas abordagens possíveis sobre identidade. Essa distinção constrói as categorias de autoidentidade e de identidade social ou cultural, embora não seja possível nem desejável uma distinção clara entre esses âmbitos. Expressa de maneira extrema, diferencia-se que “auto-identidade refere-se ao entendimento que as pessoas desenvolvem sobre si mesmas enquanto identidade social refere-se às caracterizações que outros nos impõem” (Budgeon, 2008BUDGEON, Shelley. Couple culture and the production of singleness. Sexualities, v. 11, n. 3, p. 301-325, 2008., p. 301). Assim, a identidade social enfoca elementos comuns aos indivíduos de um grupo, sendo por vários autores analisada em conexão com as esferas intersubjetivas preexistentes dos grupos sociais e mundos da vida, que elaboram, para usar a terminologia de Alfred Schutz (1972)SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia del mundo social: introdución a la sociologia compreensiva. Buenos Aires: Paidós, 1972., códigos de referência2 2 Para uma discussão sobre as instâncias de alteridade e seu papel para a construção dos substratos da individualidade ver Santos (2009, p. 105-107). . Por sua vez, a autoidentidade realça as diferenças e suas construções através do processo psicossocial de reconhecimento próprio. Jenkins afirma que, apesar da divisão teórica entre os aspectos individualmente únicos e aqueles compartilhados com um grupo social do conceito de identidade, os próprios indivíduos são “inteiramente individuais e intrinsicamente sociais” (Jenkins, 1996JENKINS, Richard. Social identity. London: Routledge, 1996., p. 50). Isso significa que o indivíduo forma-se através da interação social, na dialética da identificação social entre externo e interno.

Devido a essa retro-alimentação entre mecanismos de diferenciação social e singularidade individual, faz-se necessário abordar como a construção histórica das identidades culturais é vista como determinante para as construções identitárias pessoais na atualidade. Stuart Hall (1999) reconstrói a trajetória das concepções de identidade tomando como ponto de partida os modelos estáticos baseados na divisão de papéis sociais encontrada em sociedades menos diferenciadas do que as atuais. Segundo esses modelos, categorias sociais como profissão e grupo social, família ou casta de origem seriam, anteriormente, fortes referências de identificação, sujeitas a poucas transformações durante o curso da vida. Atualmente, porém, modelos mais flexíveis seriam necessários devido à pluralização das identidades culturais e de desenvolvimentos e interesses políticos recentes. Esses processos históricos teriam culminado no recente processo que Hall denomina fragmentação do sujeito, que estaria vinculada à existência de antagonismos em um indivíduo e a impossibilidade atual de uma identidade fixa e única.

A conexão do nível de identidade cultural e social com o de identidade individual na atualidade é discutida por Hall no contexto de sua análise dos processos históricos da modernidade. Sua conclusão é que seria necessário renunciar a definições semelhantes a blocos monolíticos e ontológicos. Mais ainda, ao invés do termo identidade, “deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento” (Hall, 1995HALL, Stuart. A questão da identidade cultural in textos didáticos. Campinas: IFCH, 1995. n. 18., p. 30). Com base em tal elaboração de identificações, pode-se identificar como tais processos estão presentes no âmbito das interações sociais ou naquele da reflexividade subjetiva a respeito do próprio curso da vida.

No que se refere ao primeiro âmbito de construção identitária mencionada acima, recentes desenvolvimentos de uma abordagem interacionista caracterizam-se por analisar as “múltiplas formas de construção identitária como ‘trabalho identitário’ diário, efetuado nos diversos domínios do mundo da vida” (Lucius-Hoene e Deppermann, 2002LUCIUS-HOENE, Gabriele; DEPPERMANN, Arnulf. Rekonstruktion narrativer identität. Ein arbeitsbuch zur analyse narrativer interviews. Opladen: Leske + Budrich, 2002., p. 49). Esse tipo de análise prima por considerar a origem intersubjetiva do modo como papéis e identidades sociais são vividos e transformados entre e pelos indivíduos, o que corresponde a um posicionamento teórico que remonta ao interacionismo simbólico e à sociolinguística interacional.

Por outro lado, para os teóricos da reflexividade na alta modernidade, os processos de construção interativa de identidades são considerados secundários em relação ao potencial individual de determinar a própria identidade conscientemente diante das possibilidades sociais. Destacam-se, nessa perspectiva, as formulações de Giddens:

a identidade de uma pessoa não pode ser encontrada em comportamentos, nem – por mais importante que seja – nas reações dos outros, mas sim na capacidade de dar continuidade a uma narrativa. A identidade individual, para que seja possível manter interações diárias com outros no mundo cotidiano, não pode ser totalmente fictícia. Ela deve continuamente integrar eventos que ocorram no mundo externo, e organizá-los em uma contínua história sobre si mesmo (Giddens, 1991GIDDENS, Anthony. Modernity and self-identity: self and society in the late modern age. Stanford: Stanford Univ. Press, 1991., p. 54)3 3 Essa analogia entre história de vida e autoidentidade, baseada no argumento de que ambas são construções internas e constantemente abertas a reformulações, já que se baseiam no ponto de vista do presente, assemelha-se a sugestão de Fischer-Rosenthal (1999) sobre usar o conceito de história de vida ao invés de identidade para analisar como sujeitos se definem. Isso se daria através da contínua organização narrativa das experiências de vida e dos pertencimentos sociais, bem como do uso, para tal, de identificações e modelos sociais pré-estabelecidos. .

Giddens vai mais longe ao priorizar a participação individual na construção da própria identidade e no estabelecimento de continuidade ao longo do curso da vida a despeito de flexibilização e fragmentação das experiências sociais: “autoidentidade, portanto, não é um conjunto de traços e características observáveis, mas sim o entendimento reflexivo da própria pessoa sobre a sua biografia” (Giddens, 1991GIDDENS, Anthony. Modernity and self-identity: self and society in the late modern age. Stanford: Stanford Univ. Press, 1991., p. 53), portanto um projeto reflexivo, similar a uma narrativa. Deve-se ressaltar, porém, que a figura utilizada da narrativa autobiográfica refere-se a um ato de comunicação através de uma linguagem compartilhada; mesmo que a ênfase de Giddens seja nas possibilidades individuais de construção pessoal na alta modernidade, essas se localizam no âmbito da linguagem e, portanto, da comunicação, o que mais uma vez remete ao aspecto interativo das construções identitárias.

Em que pese a importância de combinar ao estudo da reflexividade individual o das construções interativas da identidade, há um grande consenso sobre a adequação das considerações de Giddens sobre a construção de identificações na atualidade. Não obstante, King (2002)KING, Vera. Die entstehung des neuen in der adoleszenz. Wiesbaden: VS Verlag, 2002. alerta que, na análise sociológica da alta modernidade, a proclamada multiplicação de possibilidades biográficas não é abordada de maneira que faça jus ao fato que, para os indivíduos concretos, mesmo uma grande abertura de opções estaria sujeita às limitações psicossociais individuais. Essa crítica está ligada a uma perspectiva sobre a formação identitária individual não como projeto voluntário dos sujeitos, mas sim como um desafio para o desenvolvimento subjetivo. Principalmente na juventude, período em que os indivíduos são confrontados com novos papéis, bem como com um acréscimo de oportunidades e responsabilidades sociais, esse desafio seria especialmente intenso. Como consequência do amadurecimento físico e social, novos posicionamentos seriam gradativamente assumido pelos jovens. Ademais, a chamada identidade de gênero (masculina ou feminina) se concretizaria nessa fase. O confronto entre teorias atuais de construção identitária e as clássicas concepções sobre a ligação entre juventude e identidade será exposto a seguir.

Juventude e gênero nas narrativas identitárias

Em sua discussão sobre o atual uso do termo identidade, King (2002)KING, Vera. Die entstehung des neuen in der adoleszenz. Wiesbaden: VS Verlag, 2002. argumenta que, por um lado, o conceito clássico de identidade, ligado aos processos de desenvolvimento psicológico e social (como formulado por Erikson) deva ser reavaliado por uma perspectiva sociológica que dê conta das transformações e dinamizações da alta modernidade. Por outro lado, porém, os processos de formação social como as mudanças relativas à pluralização e individualização na sociedade atual não podem ser analisados, segundo ela, sem se diferenciar entre os níveis sociais e psíquicos desses: “para analisar de maneira diferenciada a relação entre liberdade e limitação, concomitante ao processo de modernização, necessita-se de abordagens teóricas e metodológicas que possam complementar a análise de realidades externas com suas correspondentes realidades internas” (King, 2002KING, Vera. Die entstehung des neuen in der adoleszenz. Wiesbaden: VS Verlag, 2002., p. 84).

Para King, as limitações impostas aos processos identitários expressam-se em tendências regressivas adquiridas na infância e no âmbito familiar, que, por sua vez, frequentemente estão ligadas a limitações materiais e culturais. Essas limitações poderiam, por um lado, ser superadas no ato de desligar-se das convenções e das expectativas do próprio meio social, algo que King, citando Habermas, caracteriza como a potencialmente criativa “perda de apoios convencionais”. Por outro lado, esse desligamento está sujeito a uma “tensão entre tendências regressivas e capacidades de superação progressivas, entre mecanismos de defesa e capacidades criativas” (King, 2002KING, Vera. Die entstehung des neuen in der adoleszenz. Wiesbaden: VS Verlag, 2002., p. 88). Tais processos podem ser claramente identificados nas construções de jovens, já que o desligamento de contextos familiares constitui tema central em suas construções subjetivas, o que contribui para que esses frequentemente façam livre uso das múltiplas possibilidades da alta modernidade.

No caso de jovens, esta tensão estaria presente em momentos como o de escolha profissional, que encerra tanto um potencial criativo como está limitado por fatores ligados a estruturas externas, sistemas educativos e mercado de trabalho. Em menor escala e ainda relativamente às limitações biográficas, os padrões familiares representam intricadas interdeterminações entre sujeitos que podem restringir o desenvolvimento da individualidade. Para King, a totalidade do potencial criativo jovem só teria possibilidades concretas de se realizar quando acompanhado de uma visão objetiva e externa sobre a própria trajetória, de uma capacidade de construção de uma narrativa coerente sobre o próprio curso da vida. Essa capacidade seria crucial por permitir aos indivíduos que naveguem as múltiplas possibilidades biográficas e identitárias da atualidade durante o restante de suas vidas, ou seja, possibilitados de contemplar a própria trajetória de modo descentralizado o suficiente a ponto de poder alterá-la e construí-la reflexivamente.

O desenvolvimento de tal capacidade na juventude e sua importância para a construção identitária são temas controversos, em especial dentro de uma literatura preocupada com as diferenças de gênero. Um tema polêmico para a teoria feminista se refere a como a vinculação entre identidade e o desenvolvimento psicossocial humano e seus possíveis estágios se configura de maneira diferente para homens e mulheres. Com foco principal voltado para o desenvolvimento de uma identidade de gênero, nas últimas décadas travaram-se debates dentro da teoria feminista sobre os diferentes padrões de desenvolvimento supostamente detectados entre os sexos femininos e masculinos. O emprego em tais pesquisas das categorias identidade feminina e masculina é tão ou mais controverso do que o uso do termo identidade atualmente.

Dentro desse debate, uma das mais populares obras foi elaborada por Gilligan (1990)GILLIGAN, Carol (ed.). Making connections: the relational worlds of adolescent girls at Emma Willard School, Cambridge: Harvard University Press, 1990. com base em pesquisa com adolescentes, no qual as autoras ressaltam a especificidade do desenvolvimento identitário de jovens mulheres em contraposição com o modelo supostamente androcêntrico de Erik Erikson, no qual a aquisição de uma identidade adulta necessariamente requer uma visão objetiva e externa de si próprio. Em um argumento que se tornou clássico na crítica feminista ao modelo eriksoniano, o desenvolvimento da identidade feminina é tido como intimamente ligado aos laços e relacionamentos com pessoas significantes, compondo uma imagem de si na qual a capacidade de manter ligações é central, diferentemente dos requisitos de externalidade e objetividade postulados por Erikson para a construção da identidade.

Apesar da originalidade desses estudos feministas, nas últimas décadas, várias deficiências foram detectadas e criticadas nos métodos de tais pesquisas sobre as diferenças de gênero no desenvolvimento da identidade e do senso moral. A principal crítica refere-se a como “os fundamentos para a dicotomia (...) relativa ao sexo apóiam-se excessivamente em elementos biológicos, sendo, portanto, considerados universais e delimitadores dos efeitos da socialização” (Bernardes, 1993BERNARDES, Nara M. G. Autonomia/submissão do sujeito e identidade de gênero. Caderno de Pesquisa, v. 8, p. 43-53, 1993., p. 47). Ademais desse traço comum, as limitações dessa linha de pesquisa mostram-se, entre outros, em um enfoque unilateral dado aos segmentos médios da população branca, na ênfase em dicotomias e pouca atenção às diferenças e na priorização das fases inciais da vida como constitutiva para a identidade de gênero em detrimento da idade adulta. Discussões teóricas mais recentes ressaltam como a multiplicidade de experiências de homens e mulheres dificilmente pode ser apreendida em categorias como identidade feminina ou masculina e que modelos culturais como os encontrados por Gilligan baseiam-se, no máximo, em distinções locais sujeitas a mudanças históricas.

Através dessa curta discussão do conceito de identidade, especialmente no que se refere a suas conexões com os processos juvenis e ao gênero, duas consequências teóricas podem ser realçadas para a análise de construções identitárias e de gênero entre jovens: a primeira refere-se à noção de identidade em fluxo, ao processo de construção de uma narrativa sobre si mesmo que não se concentra apenas na juventude e que é, essencialmente, interativa e situada. Em outras palavras, identidade não seria “algo que se ‘possui’ em forma de um produto estável e descritível, resultado de um desenvolvimento encerrado de maneira mais ou menos satisfatória com o advento da idade adulta, mas sim como um processo aberto, para a vida toda” (Lucius-Hoene e Deppermann, 2002LUCIUS-HOENE, Gabriele; DEPPERMANN, Arnulf. Rekonstruktion narrativer identität. Ein arbeitsbuch zur analyse narrativer interviews. Opladen: Leske + Budrich, 2002., p. 48), o que justifica a predileção por termos como identificação ou construção identitária. A segunda, por sua vez, está ligada à necessidade de uma perspectiva sobre o que se consideram traços masculinos e femininos que não universalizem construções de gênero e sim as analise em seu contexto histórico e social original.

O próximo segmento apontará conceitos necessários para uma perspectiva sobre desenvolvimento e posicionamento identitário que os contemple como narrativos e interativos, o que ao mesmo tempo delimitará o instrumento da abordagem qualitativa considerado aqui correspondente às reflexões teóricas apresentadas anteriormente.

Narrativas identitárias e análise narrativa

Uma das principais maneiras de realizar construções sociais identitárias é através da comunicação verbal, que “dá acesso aos recursos culturais de atribuição de significado, encontrados em um mundo da vida. Esses recursos alimentam o trabalho identitário e possibilitam a apreensão das experiências próprias e alheias” (Lucius-Hoene e Deppermann, 2002LUCIUS-HOENE, Gabriele; DEPPERMANN, Arnulf. Rekonstruktion narrativer identität. Ein arbeitsbuch zur analyse narrativer interviews. Opladen: Leske + Budrich, 2002., p. 49). Em outras palavras, através de uma linguagem e de um sistema simbólico compartilhado, é possível elaborar construções identitária compreensíveis em um determinado mundo da vida, que se caracteriza por possuir níveis de conhecimentos locais4 4 Como afirma Geertz, o senso comum assume diferentes formas em diferentes locais, similarmente a sistemas culturais como a religião e a arte, sendo, portanto, uma ordem “passível de ser descoberta empiricamente e formulada conceitualmente” (Geertz, 1997, p. 140). ou tácitos compartilhados pelos indivíduos que nele vivem. A linguagem, por outro lado, não apenas promove a conformidade e inteligibilidade em um meio específico, mas também permite que construções identitária sejam compartilhadas, negociadas, rejeitadas ou afirmadas em situações comunicativas concretas. Para a análise desses processos, Deppermann e Lucius-Hoene recomendam a utilização do conceito de narrativas identitárias, que seriam “o modo como um indivíduo em uma interação concreta realiza trabalho identitário em forma de exposição e construção dos aspectos de sua identidade relevantes para a situação” (Lucius-Hoene e Deppermann, 2002LUCIUS-HOENE, Gabriele; DEPPERMANN, Arnulf. Rekonstruktion narrativer identität. Ein arbeitsbuch zur analyse narrativer interviews. Opladen: Leske + Budrich, 2002., p. 55).

As construções sobre si mesmo vem sendo frequentemente vinculadas a processos narrativos na fase atual da modernidade, o que se vincula ao paradigma interpretativo e sua postulação que “sociedades, culturas e as expressões da experiência humana podem ser lidos como textos sociais, isso é, como estruturas de representação” (Denzin, 1989DENZIN, Norman K. Interpretive biography. London: Sage, 1989., p. 9). Narrativas podem ser descritas como estruturas cognitivas ou modos de conferir sentido à experiência, sendo prioritariamente analisadas em relação a seus aspectos vistos como estruturais, bem como em relação ao conteúdo narrado ou às situações interativas das quais surgem (elaboradas por sujeitos desempenhando papeis sociais)5 5 Um dos teóricos mais influentes nesse campo, Goffman, “contribui para esclarecer particularmente a natureza situacional das narrativas, revelando como narrativas estão imersas em (em outras palavras, estruturam e também são estruturadas por) processos comunicativos complexos e multidimensionais” (Herman 2009: 40). . Dentro do estudo das estruturas da narrativa, os traços definidores seriam relativos à forma, como sequencialidade e enredo, como apontam os princípios para a análise de narrativas a serem expostos a seguir.

Um dos autores que teorizou de maneira mais sistemática os aspectos formais de narrativas biográficas, principalmente entrevistas narrativas, estabelecendo suas relações com os conteúdos interpretados, foi Fritz Schütze (1981)SCHÜTZE, Fritz. Prozeßstrukturen des Lebensablaufs. In: MATTHES, Joachim et al (Eds.). Biographie in handlungswissenschaftlicher perspektive. Kolloquium am sozialwissenschaftlichen Forschungszentrum der Universität Erlangen-Nürnberg, 1981. p. 67-156.. Baseando-se na sociolinguística de Labov (1972)LABOV, William. Studies in the black English vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972., seus postulados incluem o enfoque na cadeia sequencial dos segmentos presentes na narrativa (que revelariam o modo do entrevistado conceber sua biografia) tanto quanto categorias analíticas para os trechos iniciais e finais de uma narrativa6 6 No que se trata da passagem inicial, Labov (1972) declara que essa muitas vezes é uma sinopse dos eventos mais relevantes a serem narrados. Ademais, podem marcar como uma situação de interação entre dois interlocutores transfere-se para o ponto de partida de uma narrativa autobiográfica. . No que se refere à análise da sequencialidade do curso de uma entrevista, atenção especial é dada para como diferentes segmentos (distintos em relação a temas, tempos ou tipos narrativos- narração de eventos, argumentação ou descrição) sucedem-se uns aos outros e conferem uma sequencialidade específica à narrativa. A partir dessa sequencia e da configuração de outros aspectos constitutivos da narrativa, pode-se identificar, segundo Schütze, vários tipos de construções biográficas, denominados por ele de figuras cognitivas, tendo como objetivo “apreender o encadeamento de eventos biográficos apresentados na narrativa e a (mutável) atitude do entrevistado em relação a esses eventos, a sua história e a si mesmo” (Dausien, 1996DAUSIEN, Bettina. Biographie und geschlecht. Zur biographischen konstruktion sozialer wirklichkeit in frauenlebensgeschichten. Bremen: Donat, 1996., p. 129)7 7 As figuras cognitivas identificadas por Schütze são: sujeito da biografia, estruturas processuais, enquadramento social e configuração global do curso da vida. .

Adicionalmente ao modo como o narrador refere-se ao curso de sua vida, a análise da maneira como outros personagens inserem-se nos eventos narrados pode prover ricas informações sobre as práticas para organizar o conhecimento sobre si mesmo no contexto em que a narrativa é feita. Para tal, o posicionamento próprio em relação a outros significantes dentro da narrativa seria um recurso frequente.

Além de analisar os aspectos estruturais da narrativa, é necessário lembrar que “prestar atenção ao contexto significa realmente que o pesquisador toma a história de vida/texto como o ponto de partida para reconstruir em toda sua amplitude a estrutura social e o momento histórico que limita e confere perspectiva ao significado individual polissêmico” (Corradi, 1991CORRADI, Consuelo. Text, context and individual meaning: rethinking life stories in a hermeneutic frame. Discourse and Society, v. 2, n. 1, p. 105-118, 1991., p. 109). Corradi sugere como frutífera uma perspectiva que contemple o “enredamento” entre a construção de uma narrativa sobre experiências vividas, o contexto no qual essas experiências aconteceram e a situação na qual a narrativa é construída.

Esses três níveis também estão presentes no modelo de Dausien (2002DAUSIEN, Bettina. Sozialisation-Geschlecht-Biographie. Theoretische und methodologische untersuchng eines Zusammenhangs. Habilitationsschrift Universität Bielefeld, 2002., p. 117) das relações entre texto e contexto para a interpretação de entrevistas narrativas. Os três níveis de contexto diferenciados por ela são: (1) enquadramento sociocultural, na qual são compreendidas as condições sociais e de pertencimento a um grupo que antecedem a narração de um sujeito. Isso se reflete nos modos de contar histórias presentes nas narrativas colhidas. (2) Enquadramento interativo, que descreve a comunicação na situação, tempo e lugar da entrevista, bem como os processos comunicativos e relações de poder presentes nessa. (3) Finalmente, o enquadramento biográfico inclui, semelhante às figuras cognitivas de Schütze (1981)SCHÜTZE, Fritz. Prozeßstrukturen des Lebensablaufs. In: MATTHES, Joachim et al (Eds.). Biographie in handlungswissenschaftlicher perspektive. Kolloquium am sozialwissenschaftlichen Forschungszentrum der Universität Erlangen-Nürnberg, 1981. p. 67-156., os aspectos formais da estrutura narrativa sequencial, bem como a conexão entre esses modos de contar histórias e as estruturas sociais que os geram, expressas em referências a contextos institucionais e grupos sociais (institucionalização do curso da vida).

Tendo em mente os aspectos estruturais das narrativas de vida e os níveis de análise necessários para que essas sejam propriamente apreendidas em seus contextos de origem, na próxima seção tentaremos reconstruir como mecanismos da construção narrativa de identificações podem ser analisados em material empírico relativo a experiências juvenis nas classes populares de uma metrópole paulista.

O sujeito e seus posicionamentos: exemplo de uma construção narrativa

As reflexões teóricas e metodológicas em torno de identidade e narrativa serviram como base para pesquisa cujos resultados serão parcialmente expostos a seguir. Essa tem como tema as construções narrativas sobre gênero e sobre si mesmas de um grupo de jovens em Campinas, SP. Antes de demonstrar os mecanismos de construção identitária presentes em uma narrativa de vida através de um exemplo empírico, algumas informações sobre o contexto do universo pesquisado são necessárias.

A escolha de um grupo de jovens estudantes do ensino médio público em Campinas baseou-se no interesse por pesquisar como as novas gerações das classes populares urbanas, cujas famílias frequentemente são provenientes de áreas rurais e remotas, lidam com as novas chances educacionais e profissionais do meio urbano e se posicionam quanto aos valores e representações de suas famílias. Principalmente no que se refere ao papel da mulher na família e na sociedade, as mudanças nos comportamentos e concepções dessas duas gerações fizeram-se notar tanto no âmbito da organização familiar dos entrevistados quanto no de suas construções biográficas e identitárias. Mesmo que a inserção da mulher no mercado de trabalho, para várias famílias pesquisadas e em conformidade com a literatura sobre o tema, fosse utilizada como um recurso no caso do homem não lograr ser o único provedor, uma grande mudança se delineava para as jovens gerações. Apoiadas pelos pais, essas eram incumbidas de levar adiante o projeto de melhorar de vida que motivara tantas famílias a migrar para os grandes centros urbanos. No caso do grupo pesquisado, no qual certa segurança social havia sido alcançada, essa incumbência significava uma ênfase na base educacional e formação profissional que possibilitariam empregos qualificados8 8 Referindo-se aos jovens de classes populares- em sua pesquisa frequentemente provindos de famílias migrantes do campo- Fraga (2000) cita como os grandes perigos da adolescência, temidos por pais e escolas, a sexualidade desregrada, o uso de drogas e a violência urbana. Deve-se notar que os dois últimos são associados prioritariamente aos jovens de sexo masculino. . Enquanto esses planos apontavam significativas mudanças para o curso de vida das jovens mulheres entrevistadas em relação aos de suas mães, muitas atribuições tradicionais de gênero mostraram-se persistentes. Tampouco parecia haver uma concepção de juventude como um período de moratória no qual os jovens poderiam experimentar livremente com suas novas possibilidades criativas, relacionais e identitárias. Se a definição da juventude como período destinado à formação educacional muitas vezes isentava os jovens de exercer trabalho remunerado, algo considerado como um grande ganho em famílias marcadas pela luta por sobrevivência, a experimentação, em especial no âmbito sexual, era vista como um grande perigo para as jovens desse meio social9 9 De acordo com essas representações, os temas gravidez na juventude e papel social da mulher como mãe ou profissional mostrarem-se centrais para o grupo pesquisado, conforme resultados da discussão em grupo realizada, em ambiente escolar, com vinte meninas da mesma classe do terceiro ano do ensino médio. Tendo enfoque temático nas desigualdades entre homens e mulheres, pode-se observar como as jovens referiam-se a representações coletivas que compartilhavam. .

Para expor como, dentro desse contexto de representações e experiências intersubjetivas, construções pessoais caracterizadas pela simultaneidade de mudança e persistência desses padrões sociais são possíveis, enfocaremos aqui as construções de Michelle. Aos dezessete anos, essa não apenas participou ativamente da discussão em grupo como também se mostrou disposta a participar de entrevistas em dois anos consecutivos, no ambiente escolar como em sua própria casa. A primeira entrevista foi realizada nas primeiras semanas do ano letivo em que Michelle cursava o terceiro ano do ensino médio e concentrou-se em sua história de vida e familiar. Um dos temas narrados de modo mais abrangente e contendo ricas informações sobre sua construção identitária foi o do relacionamento de Michelle com José Mauro, que já durava alguns anos. Um dos traços marcantes desse relacionamento era seu entrelaçamento com a família de Michelle, já que seu namorado era um amigo de seu irmão que se tornara quase um membro da família devido, principalmente, a sua proximidade com a mãe de Michelle. Esse fato vinha a calhar com a extrema ligação de Michelle com sua mãe, como ressaltada em sua narrativa. Esse posicionamento dentro dos relacionamentos com o namorado e com a mãe torna-se claro em uma passagem na qual Michelle discute sua intenção de casar-se com José Mauro na igreja. Apesar de alegar que essa cerimônia não seria um objetivo seu, Michelle narra como sua mãe sonharia com esse ritual que ela própria não tivera, já que ao se casar com o pai de Michelle as diferenças religiosas entre ambos impediram a realização de tal rito.

A definição identitária de Michelle mostra-se, assim, fortemente ligada ao desenvolvimento de seu relacionamento com José Mauro e à intensa comunicação mantida com sua mãe. À medida que Michelle ganha autonomia, mecanismos de negociação com sua mãe conferem maior plasticidade ao uso de padrões familiares em sua construção identitária subjetiva. Um ano mais tarde e já frequentando uma faculdade noturna, Michelle narra os mais recentes desdobramentos de seus relacionamentos com a mãe e com o namorado:

M: A gente conversa bastante ... eu e minha mãe sempre conversou sobre tudo. Tudo que eu faço conto pra ela ... aí tudo que eu tive dúvida eu conto... A gente vai junto, até todo mundo acha estranho, minha mãe ... Minhas amigas falam que a mãe delas não falam nada tal e minha mãe não, minha mãe conversa pra caramba. Aí a gente vai no médico juntas ... Aí ela fala: se você quer entrar sozinha ... Daí eu falei: não, a gente entra, e todo mundo conversa junto: a médica, eu, ela (...) Assim, agora eu já não sou mais virgem ... Então antes eu sempre conversei com ela, falava tudo assim né ? Daí eu falava: aí mãe, o que você acha? E ela falava assim: não, eu gostaria que fosse depois do casamento, mas eu acho que se você achar que não, então tudo bem, só tem cuidado. Aí ela me levou na médica porque eu já tomava anticoncepcional por causa de hormônio; daí ela levou na médica (e) aí perguntou se continuava com esse. Continuou normal. Daí depois conto tudo pra ela, tiro dúvida com ela.

I: E como foi falar com ela sobre isso?

M: Não eu falei assim: mãe... Eu falei assim: ah mãe, a gente, vai acontecer ... eu falei pra ela: tá? Mais ou menos ... daí normal ... Tinha vez que ela deixava eu sozinha com ele e a gente não fazia nada. Assim aí ela ligava lá: Michelle, você tomou o remédio direito esses dias? Aí eu falava: ai mãe, calma! Não porque cuidado, não sei o que lá, e também fica assim. Lógico que não quer que eu engravide de jeito nenhum, mas ela fica também assim por causa da mãe dele assim, entendeu? Às vezes eu vou na casa dele e a mãe dele sai. Aí ela fica: ó, não fica lá não porque a mãe dele não gosta.

O trecho acima apresenta construções interessantes de Michelle sobre si mesma e sobre a díade mãe e filha, um espaço no qual a comunicação e esclarecimento de dúvidas sobre assuntos íntimos faz-se possível. Esse espaço conecta-se fortemente com questões de sexualidade e saúde reprodutiva, como na visita a uma médica, provavelmente uma ginecologista, no qual as três podem tratar livremente de temas muitas vezes tabuizados nesse meio social. O fato da mãe de Michelle possibilitar essa comunicação se conecta à decisão de Michelle de conversar com ela sobre sua eminente iniciação sexual com José Mauro.

Essa conversa é apresentada como uma negociação na qual a mãe de Michelle tentaria, em vão, convencê-la a postergar o intercurso sexual para depois de casada, de acordo com valores tradicionais. Mesmo no que se refere a questões nas quais mãe e filha discordariam, uma atitude distinta daquela associada com a autoridade tradicional materna delineia-se na narrativa de Michelle. Nesse relato, a jovem ressalta o apoio emocional e prático (em forma da facilitação para obter métodos anticoncepcionais) que esta propiciaria. Michelle destaca a disponibilidade dessa atitude materna de apoio mesmo que argumentações seriam eventualmente necessárias para que ambas cheguem a um acordo e o entendimento mútuo seja preservado.

Se esse posicionamento comunicativo no qual Michelle constrói sua trajetória ativamente e, ao mesmo tempo, conectada com sua mãe favorece, na primeira parte do relato, a decisão de romper com as expectativas maternas e iniciar a vida sexual antes de um casamento, na segunda parte do relato outras dimensões dessa construção vêm à tona. O fato da mãe de Michelle estar ciente sobre a atividade sexual da filha assume uma conotação de controle na narrativa sobre as recomendações e telefonemas vigilantes com as quais a mãe expressaria sua preocupação.

A posição mais conservadora atribuída à mãe de José Mauro compõe um dos vários pontos de referência presentes na narrativa de Michelle sobre o processo de tomada de decisão em sua trajetória. Mesmo implicando a aceitação de alguns comportamentos mais tradicionais de discrição e comedimento em relação à sexualidade adolescente, o posicionamento descrito como interativo em relação a sua mãe possibilita Michelle uma maior flexibilidade em suas escolhas. Além de sua mãe, que desempenhe um papel de destaque na construção identitária de Michelle, seu posicionamento em relação a outras pessoas próximas mostra-se central em sua narrativa:

I: E como foi quando você e seu namorado tomaram essa decisão?

M: Então a gente ficou bastante tempo ... Ele falou assim: não, só quando você tiver vontade. Ele também era virgem. Então foi assim e o dia que eu achei que ... E ai meu pai perguntava pra minha mãe: o que você acha? E minha mãe não falava. E eu falava: mãe pode falar pra ele, eu queria contar pra ele ... Daí ela falava assim: não, não sei ... Mas ele falava: mas fala pra ela se prevenir e tal. Daí teve um dia que ele chegou e falou: o que você acha? E ela falou: acho que não ... e ficou meio assim. Daí teve outra vez que ele perguntou e ficou insistindo, insistindo ... Daí ela pegou e falou: ah tá bom, vou te contar, e contou. E ele: nossa, não acredito! Mas, né, tinha que acontecer que não sei o que lá, fala pra ela se prevenir ... Essas coisas ... E ela me contou né? Ela falou: não conta pro José Mauro que eu contei pra ele. Daí eu contei Né? Ele falou: ah meu Deus, agora seu pai vai querer me matar! Ficou morrendo de vergonha, mas meu pai não me chegou pra me falar nada. Eu acho que tem que aceitar, que nem a mãe do José Mauro pensava que a irmã dele nossa só namorava, porque ele ía na casa dela a noite e ficava só no portão, porque ele não entrava na casa dela..

Os múltiplos níveis de posicionamento presentes nessa narrativa identitária mostram como a interação com pessoas significantes é por vezes fundamental para a construção de um relato biográfico sobre a maneira individual de refletir e apresentar a si mesmo. A importância desse processo na juventude torna-se também clara ao considerarmos que os novos níveis de experiência alcançados nessa fase alteram radicalmente os relacionamentos familiares primários que anteriormente moldavam a visão infantil sobre si próprio.

Ao distanciar-se dos pais e valer-se de novos relacionamentos para a construção de um posicionamento identitário próprio, Michelle evidencia a presença de mecanismos de externalidade e de conexão. Ao contrário do argumento de Gilligan (1990)GILLIGAN, Carol (ed.). Making connections: the relational worlds of adolescent girls at Emma Willard School, Cambridge: Harvard University Press, 1990. apresentado anteriormente, parece ser contraproducente associar o desenvolvimento de uma posição distanciada e externa como característico da formação identitária masculina e a ênfase em conexões como própria da feminina. Uma perspectiva que contemple a presença de ambos processos para a construção de identificações na juventude pode ser considerada mais frutífera.

A importância de mecanismos de posicionamento subjetivo para a construção de identificações, como apontada por Lucius e Deppermann (2002)LUCIUS-HOENE, Gabriele; DEPPERMANN, Arnulf. Rekonstruktion narrativer identität. Ein arbeitsbuch zur analyse narrativer interviews. Opladen: Leske + Budrich, 2002. torna-se clara nesse trecho. Esses posicionamentos em relação a múltiplos sujeitos se sobrepõem e se chocam, fazendo com que o sujeito em questão possa marcar convergências e delimitações em suas identificações sociais. No caso de jovens, a presença de outros jovens como sujeitos perante os quais posicionamentos são construídos vem a ampliar as interações sociais determinantes para suas identificações, antes confinadas prioritariamente ao âmbito familiar. Assim, as interações entre sujeitos podem ser vistas como base para processos de identificação e construção subjetiva.

Diferenciar os níveis em que essas ocorrem é alvo da pesquisa qualitativa, sendo instrumento privilegiado para tal a análise dos posicionamentos presentes em narrativas autobiográficas. O breve exemplo aqui apresentado, porém, seria insuficiente para aprofundar a discussão no que se refere aos outros níveis da análise biográfica úteis ao estudo das construções da subjetividade. Cabe aqui apenas ressaltar que um estudo da sequencialidade presente em relatos narrativos, bem como o uso dos três níveis de análise narrativa previamente citados, propicia interpretações dos processos de construção identitárias ricas em detalhes e com claras ligações ao contexto social de origem.

  • 1
    Em um dos mais populares modelos de desenvolvimento psicossocial, Erik Erikson (1963)ERIKSON, Erik H. Childhood and society. New York: Norton, 1963. afirma que a principal tarefa de desenvolvimento e desafio do período da juventude é a construção e desenvolvimento da identidade, somente possível ao se reconhecer a exterioridade dos outros e os limites do próprio eu.
  • 2
    Para uma discussão sobre as instâncias de alteridade e seu papel para a construção dos substratos da individualidade ver Santos (2009SANTOS, Hermílio. Interpretations of everyday life: approximations to the analysis of lifeworld. Civitas, v. 9, n. 1, p. 103-117, jan.-abr. 2009., p. 105-107).
  • 3
    Essa analogia entre história de vida e autoidentidade, baseada no argumento de que ambas são construções internas e constantemente abertas a reformulações, já que se baseiam no ponto de vista do presente, assemelha-se a sugestão de Fischer-Rosenthal (1999)FISCHER-ROSENTHAL, Wolfram. Melancholie der identität und dezentrierte biographische Selbstbeschreibung. Anmerkung zu einem langen abschied aus der selbstverschuldeten zentriertheit des subjekts. BIOS – Zeitschrift für biographieforschung und oral history, v. 12, n. 2, p. 143-168, 1999. sobre usar o conceito de história de vida ao invés de identidade para analisar como sujeitos se definem. Isso se daria através da contínua organização narrativa das experiências de vida e dos pertencimentos sociais, bem como do uso, para tal, de identificações e modelos sociais pré-estabelecidos.
  • 4
    Como afirma Geertz, o senso comum assume diferentes formas em diferentes locais, similarmente a sistemas culturais como a religião e a arte, sendo, portanto, uma ordem “passível de ser descoberta empiricamente e formulada conceitualmente” (Geertz, 1997GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 140).
  • 5
    Um dos teóricos mais influentes nesse campo, Goffman, “contribui para esclarecer particularmente a natureza situacional das narrativas, revelando como narrativas estão imersas em (em outras palavras, estruturam e também são estruturadas por) processos comunicativos complexos e multidimensionais” (Herman 2009HERMAN, David. Basic elements of narrative. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009.: 40).
  • 6
    No que se trata da passagem inicial, Labov (1972)LABOV, William. Studies in the black English vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972. declara que essa muitas vezes é uma sinopse dos eventos mais relevantes a serem narrados. Ademais, podem marcar como uma situação de interação entre dois interlocutores transfere-se para o ponto de partida de uma narrativa autobiográfica.
  • 7
    As figuras cognitivas identificadas por Schütze são: sujeito da biografia, estruturas processuais, enquadramento social e configuração global do curso da vida.
  • 8
    Referindo-se aos jovens de classes populares- em sua pesquisa frequentemente provindos de famílias migrantes do campo- Fraga (2000)FRAGA, Alex B. Corpo, identidade e bom-mocismo. Cotidiano de uma adolescência bem-comportada. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. cita como os grandes perigos da adolescência, temidos por pais e escolas, a sexualidade desregrada, o uso de drogas e a violência urbana. Deve-se notar que os dois últimos são associados prioritariamente aos jovens de sexo masculino.
  • 9
    De acordo com essas representações, os temas gravidez na juventude e papel social da mulher como mãe ou profissional mostrarem-se centrais para o grupo pesquisado, conforme resultados da discussão em grupo realizada, em ambiente escolar, com vinte meninas da mesma classe do terceiro ano do ensino médio. Tendo enfoque temático nas desigualdades entre homens e mulheres, pode-se observar como as jovens referiam-se a representações coletivas que compartilhavam.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2011
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