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Ciganos como povos e comunidades tradicionais: reconhecimento e direitos territoriais

Gypsies as traditional peoples and communities: recognition and territorial rights

Los gitanos como pueblos y comunidades tradicionales: reconocimiento e derechos territoriales

Resumo:

Neste artigo apresentamos uma reflexão sobre o processo de visibilização e o reconhecimento de direitos para povos ciganos no Brasil a partir de casos etnográficos junto aos calon de Minas Gerais. Intenta-se mostrar que o reconhecimento dos ciganos como povos e comunidades tradicionais deu sentido às demandas práticas dos ciganos, especialmente, em relação a direitos territoriais, o que representa uma conquista inédita para os povos ciganos no Brasil.

Palavras-chave:
Ciganos calon; Povos e comunidades tradicionais; Reconhecimento; Direitos territoriais

Abstract:

In this article we present a reflection on the process of visibility and recognition of rights for Romani peoples in Brazil from ethnographic cases with the calon of Minas Gerais. It is intended to show that the recognition of romanies as traditional peoples and communities gave meaning to practical demands of romanies, especially in relation to territorial rights, which represents unprecedented achieve for the romani peoples in Brazil.

Keywords:
Calon romanies; Traditional peoples and communities; Recognition; Territorial rights

Resumen:

En este artículo presentamos una reflexión sobre el proceso de visibilización y reconocimiento de derechos del pueblo gitano en Brasil a partir de casos etnográficos con el calón de Minas Gerais. Se pretende mostrar que el reconocimiento de los gitanos como pueblos y comunidades tradicionales dio sentido a las demandas prácticas de los gitanos, especialmente en relación a los derechos territoriales, lo que representa un logro sin precedentes para los pueblos gitanos en Brasil.

Palabras clave:
Gitanos calón; Pueblos y comunidades tradicionales; Reconocimiento; Derechos territoriales

Apresentação

Dia 21 de março de 2013. Audiência pública convocada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Minas Gerais (CDH/CMBH) para tratar da “questão territorial da Comunidade cigana do Bairro São Gabriel”. Às 10h o Plenário “Amynthas de Barros” já está praticamente todo ocupado. A presença maciça de homens, mulheres, jovens e crianças ciganas destaca-se dentro do ambiente físico configurado para a prática da política tradicional. Do lado direito da entrada principal, estão assentados os ciganos mais velhos portando chapéus de vaqueiro. Neste mesmo lado, na bancada mais à frente, os jovens homens calon, todos com idade entre 20 e 30 anos. As mulheres e meninas calin, portando longos e coloridos vestidos, se acomodam nas cadeiras dispostas do lado esquerdo, no fundo da sala, com os filhos menores. Esta configuração espacial evidencia uma separação entre gêneros e o protagonismo dos homens adultos na esfera política estatal.2 2 Esta configuração espacial tende a mudar ao longo do tempo com a emergência, mais recente, de lideranças ciganas femininas na cena política.

Homens e mulheres, jovens e crianças ciganas seguram vários cartazes coloridos, escritos à tinta, com enunciados que expressam a reivindicação da comunidade por direitos e reconhecimento. “Por favor. Queremos melhor reconhecimentos para os ciganos”. “Queremos limpeza no acampamento depois da Igreja”. “Queremos ser incluídos na sociedade e que nos trate como seres humanos”. “Mais respeito para os ciganos. Getúlio”. “Queremos mais respeito na escola”. “Um barracãozinho. Um banheiro. Soares”. “Queremos direitos sobre a nossa terra”. “Queremos limpeza do terreno. Ciganos”. “Cigano também é gente e merece respeito”. No fundo da sala, do lado direito, dois ciganos de meia idade seguram uma faixa com o símbolo internacional do movimento cigano, na qual se lê: “Associação Guiemos Kalon”. Deste mesmo lado, uma grande faixa de pano branco, com escritos em verde e azul, enuncia: “A Luta pela Nossa Terra. Um Novo Recomeço para os Ciganos Kalons de São Gabriel”.

Neste dia, é a performance coletiva que chama a atenção do público composto por funcionários da casa legislativa, membros da sociedade civil organizada e diversas instituições públicas. Pela primeira vez a CMBH recebeu uma comunidade cigana, da etnia calon, em demanda pública pelo direito à permanência no espaço-território que ocupam há mais de 30 (trinta) anos no bairro de São Gabriel. Na mesa de debate público localizado à frente da plateia, Carlos Amaral, presidente da Associação Guiemos Kalon (AGK), está sentado no centro.

Entre discursos políticos e técnicos, a linguagem comum gira em torno do reconhecimento da existência de direitos de “moradia” ou “territorial” para as famílias calon. Dois discursos principais são operacionalizados: uma ideia de direitos humanos que visa combater qualquer forma de “preconceito” e discriminação baseada em aspectos de “raça”; e a inclusão dos ciganos na categoria de “povos e comunidades tradicionais” (PCT), e, portanto, portadores de direitos específicos.

Ao lado da liderança calon, o antropólogo do Programa Cidade e Alteridade da UFMG é o primeiro profissional a se apresentar após os pronunciamentos dos membros da Casa Legislativa. Ele apresenta um panorama histórico sobre os ciganos no mundo. No Brasil, o contexto atual de reconhecimento étnico é situado a partir da criação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.3 3 O Decreto n.º 6.040, em 7 de fevereiro de 2007, criou a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Este enquadramento jurídico-institucional incorpora os “povos ciganos” na agenda política instituída pelo governo federal, o que amplia os espaços públicos de participação política para representantes ciganos e a discussão sobre políticas específicas para PCT, entre elas, o direito ao território tradicional.

Em sua fala, Amaral ressalta as dificuldades relacionadas à ausência de regularização da área pública onde vive a comunidade calon de São Gabriel, como a ausência de endereço oficial e saneamento básico e, logo em seguida, questiona a noção de nomadismo: “É uma ilusão”. Em sua justificativa ele contrapõe uma perspectiva nativa sobre as expulsões de ciganos dos municípios onde buscam apoio e, eventualmente, se fixam. No fim, ele pede para que os ciganos sejam apoiados pelas autoridades públicas.

Este fragmento etnográfico do espaço e da performance coletiva da comunidade cigana calon de São Gabriel enquadra vários aspectos que perpassam o tema que será tratado neste artigo. O processo de visibilização das comunidades ciganas no Brasil está atrelado a um contexto mais amplo de reconhecimento étnico e de direitos para PCT. Neste caso específico, e como tentaremos demonstrar ao longo da nossa explanação, é o englobamento da etnia cigana pela categoria de povos e comunidades tradicionais que irá permitir, pela primeira vez, que uma disputa fundiária envolvendo povos ciganos seja tratada como direito coletivo ao território.

Há que se mencionar, a título comparativo, que as lutas pelo reconhecimento étnico de grupos culturalmente diferenciados chamados de povos tradicionais também são encontradas em outros contextos latino-americanos, como no caso da Colômbia. A perspectiva aqui apresentada decorre da particularidade do caso brasileiro no qual o processo de reconhecimento étnico perpassa a trajetória de construção de uma categoria política de caráter amplo, fruto da mobilização social, que será posteriormente institucionalizada.

No Brasil, o conceito de PCT traz em seu cerne a proteção de uma forma de organização social diferenciada e a sua relação com o território e os bens naturais (Cunha e Almeida 2001Cunha, Manuela, e Márcio Almeida. 2001. Populações indígenas, povos tradicionais e preservação na Amazônia. In Biodiversidade na Amazônia brasileira. Avaliação e ações prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição de benefícios, organizado por João P. R. Capobianco, Adalberto Veríssimo, Adriana Moreira, Donald Sawyer, Iza dos Santos e Luiz P.Pinto, 184-93. São Paulo: Instituto Socioambiental e Estação Liberdade.). Compreender como os ciganos puderam se enquadrar neste arcabouço jurídico-conceitual, e os efeitos para a o surgimento de demandas coletivas pela regularização fundiária de áreas onde vivem os calon mineiros é o objetivo central deste artigo.

Este trabalho foi desenvolvido, majoritariamente, a partir da pesquisa documental e etnográfica realizada no período entre 2013 e 2019. As experiências etnográficas vivenciadas pela autora como mediadora entre mundos – calon, de um lado, e não cigano/ burocrático estatal, do outro – estão na base dessa proposta analítica. Trata-se, portanto, de um recorte temporal específico, mas que reverbera processos históricos de reconhecimento étnico de mais longo prazo, na medida em que abre uma perspectiva de interrelações entre esses dois mundos suportada por uma nova ordem jurídico institucional. As três comunidades acompanhadas in loco foram: calons de São Gabriel, calons de Nova Lima e calons de Ibirité, todas no estado de Minas Gerais. Nestes três casos já houve alguma proposta de resolução jurídica dos conflitos fundiários.

Processo de visibilização: narrativas ciganas

Alguns estudos acadêmicos destacam os marcos institucionais do processo de reconhecimento étnico dos povos ciganos (Ferrari 2010Ferrari, Florencia. 2010. O Mundo passa: uma etnografia sobre os calon e suas relações com os brasileiros. Tese em Antropologia, Universidade de São Paulo.; Dolabela 2019Dolabela, Helena. 2019. Palavra e catira: orientações cosmológicas e práticas de negociação calon em contexto de reconhecimento e direitos no Brasil (2013–2018). Tese em Antropologia, Universidade Federal de Minas Gerais.; Dolabela e Fotta 2021Dolabela, Helena, e Martin Fotta. 2021. Ciganos as a traditional people: romanies and the politics of recognition in Brazil. Ethnopolitics 1-20. https://doi.org/10.1080/17449057.2021.2008671.
https://doi.org/10.1080/17449057.2021.20...
). O documento oficial da ABA, elaborado pelos antropólogos Marco Antônio da Silva de Mello e Felipe Berocan Veiga,4 4 Mello, Marco A. da Silva e Felipe B. Veiga. 2008. Os ciganos e as políticas de reconhecimento: desafios contemporâneos. Documento da Associação Brasileira de Antropólogos. Acessado em 22 fev. de 2023. https://bityli.com/s00gy. cita como marco institucional da política de reconhecimento cigano a publicação do Decreto de 25 de maio de 2006 que institui o Dia Nacional do Cigano:

A criação de uma efeméride singularizando os ciganos revela um gesto positivo de reconhecimento público inédito no concerto das nações modernas, destacando sua importância na formação histórica e cultural da identidade brasileira. Teve como grande artefato simbólico, na ocasião da primeira celebração da data, em 24 de maio de 2007, o selo comemorativo lançado oficialmente no Salão Negro do Palácio da Justiça, diante de líderes ciganos vindos de todas as regiões do Brasil.

Por outro lado, a participação de lideranças ciganas nos espaços participativos antecede a sua institucionalização. A partir dos anos 2000, e o seu recrudescimento com a criação da Secretaria Especial de Proteção da Política de Igualdade Racial (Seppir) no ano de 2003, a “questão cigana” foi incorporada na agenda pública nacional.5 5 Não há um estudo aprofundado sobre o processo de visibilização cigana no Brasil que se proponha a recuperar e articular o conjunto de informações esparsas e provenientes, principalmente, de etnografias e registros oficiais sobre os espaços de participação e diálogo (conferências, conselhos, audiência públicas etc.) envolvendo agentes públicos e representantes ciganos que proliferaram no âmbito nacional – e, gradativamente, regional e local – nas últimas duas décadas.

Um dos poucos trabalhos sobre este tema foi desenvolvido pelo antropólogo de referência nos pioneiros estudos ciganos no Brasil, Franz Moonem. No ano de 2012, este autor publicou o livro Anticiganismo e políticas ciganas na Europa e no Brasil em que apresenta um balanço sobre os novos arranjos participativos de inclusão das minorias étnicas pós-CF/88 (CNDH, Conappir, PNDH, CNPPT etc.), no qual destaca as propostas referentes aos ciganos em diversas áreas temáticas: educação, cultura, saúde, terra e habitação, segurança e justiça.

Moonem (2012) mostra a existência de um processo gradativo de incorporação da pauta cigana no âmbito federal por meio da atuação de membros de associações ciganas de várias regiões do país. A análise documental mostra a inclusão, pela primeira vez, de demandas específicas dos povos ciganos em uma normativa nacional – o II Programa Nacional de Direitos Humanos (II PNDH). No entanto, o autor sublinha a marginalização institucional das etnias ciganas comparativamente a outros grupos, e a inaplicabilidade prática de normas programáticas na formulação de “políticas pró-ciganos” e de “combate ao anticiganismo”.

Neste artigo, privilegio a análise de três narrativas nativas sobre a origem da mobilização cigana reproduzidas por lideranças com expressividade na esfera pública nacional: Mio Vacite, Cláudio Ivanovitch e Miriam Stanescon. Este recorte se justifica porque, como observou Moonem (2012), foram lideranças da etnia rom com posição destacada nos grandes centros urbanos que primeiro ocuparam os espaços de interlocução com o estado e influenciaram a (re)construção de uma imagem pública dos povos ciganos, além de terem contribuído para a elaboração de normativas e materiais de difusão – como cartilhas e guias – que se tornaram referência no âmbito dos direitos e das políticas públicas para povos ciganos.

Na 81ª Audiência Pública no Senado Federal (2013), Cláudio Ivanovich, presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana (Apreci), liderança kalderash, aponta o “I Seminário nacional sobre questões ciganas”, realizado em Curitiba no ano 2000, como uma referência para a abertura do diálogo e ampliação do debate público sobre questões ciganas no Brasil:

No ano de 2000 fizemos o I Seminário Nacional de Questões Ciganas, em Curitiba, fato inédito até então. Antes do Seminário Nacional, falar de ciganos era um atentado ao pudor, falar ciganos, muitos outros, grupos vulneráveis durante muito tempo, essa era a fala. Daí fizemos o nosso seminário. O Luciano presente, Frans Moonen, Rodrigo Correia Teixeira, antropólogo de Minas Gerais, excelente, Paulo Sergio Adolfo e outros. E ali, se começou o olhar do cigano para a antropologia e para o estado como um todo. E sentimos que o estado tem uma grande ignorância com relação aos ciganos, a ignorância é completa. Lendas e mitos nos atrapalham. Dizem que nós ciganos roubamos criança, galinha, roupa de varão e botijão de gás.

Então, aquele seminário serviu, era governo FHC, fizemos aquele primeiro seminário. E aí, sim, fomos excluídos do Plano Nacional de Direitos Humanos. E eu falei com José Gregori na época: “Escute, o que houve com os ciganos?”. “Ah, eu não conheço ciganos”. Eu digo: “Uai, me desculpe, mas sua cadeira exige que o senhor conheça”. Era Secretário Nacional de Direitos Humanos. E daí, depois de muita briga, muita coisa, fomos, o Luciano me ajudou, letra minha, caligrafia dele, e nós fomos contemplados no Plano Nacional de Direitos Humanos 2.6 6 Explanação de Ivanovich na 81ª Audiência Pública no Senado Federal (2013), registrada em ata.

Já Mirian Stanescon, advogada e liderança rom do Rio de Janeiro, vincula o início do processo de visibilização cigana ao primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ressaltando a sua temporalidade tardia e a relação com outros movimentos étnicos, especialmente, indígenas e quilombolas:

O movimento cigano é um dos movimentos mais novos deste país. O povo cigano saiu da sua invisibilidade no Governo Lula, e nós somos muito gratos ao Lula. Trabalhamos para a nossa Presidente com a certeza maior de que ele não iria deixar que o trabalho social até então desenvolvido pelo nosso querido Lula não tivesse prosseguimento. E eu digo isso com muito orgulho, porque se hoje o povo cigano está aqui representado, agradeço a meus irmãos negros – digo sempre isso nas minhas falas – aos meus irmãos índios, porque na realidade quando chegamos na Conferência de Direitos Humanos, em 2003 ou 2004, os ciganos ainda não tinham sido comunicados que tinham direitos a políticas públicas. (Comissão de Direitos Humanos e Minorias, Evento: Audiência Pública Nº 0480/12 – 08 de maio de 2012).

Miriam Alves de Souza (2013)Souza, Mirian de Alves. 2013. Ciganos, roma e gypsies: projeto identitário e codificação política no Brasil e Canadá. Tese em Antropologia, Universidade Federal Fluminense. desenvolveu a sua tese de doutorado sobre a construção de um “projeto identitário” dos ciganos no Brasil. A sua pesquisa enfatiza a visão de uma das lideranças rom de maior expressividade nacional, o rom horarano Mio Vacite. Como mostra a autora em sua tese doutoral junto à associação União Cigana do Brasil (UCB), o então presidente da UCB Mio Vacite relaciona a origem do “Movimento Cigano”7 7 De acordo com Míriam Alves de Souza (2013, s.p.), Mio Vacite utiliza a categoria “movimento cigano” com uma definição específica: “esta categoria utilizada por ele para se referir a associações e agentes políticos que, como ele e sua associação, procuram “modificar as representações negativas sobre os ciganos, buscando seu reconhecimento como nação, assim como garantir seu acesso a direitos e serviços no Brasil”. à criação do Centro de Estudos Ciganos (CEC), em 1987, no Rio de Janeiro.8 8 O CEC era formado por profissionais liberais autores de composições, poemas, livros e artigos sobre ciganos.

Para Mio Vacite, o livro O povo cigano (1986) escrito por Cristina Pereira, então integrante do CEC, foi um marco para a construção de um movimento cigano no Brasil por trazer a ideia de uma unidade cigana, reforçando a existência de “denominadores comuns” entre os diferentes clãs como vítimas do holocausto e como uma nação transnacional:

No discurso de Mio, os ciganos devem reconhecer que, apesar de existirem diferenças entre eles, também existem elementos comuns (como um histórico de perseguição, hostilidade e preconceito baseado em estereótipos) que justificam a afirmação de uma identidade compartilhada. Assim, mesmo que a “comunidade imaginada” cigana no Brasil seja marcada por um forte pluralismo étnico, existem elementos culturais comuns que a unificariam. (Souza 2013Souza, Mirian de Alves. 2013. Ciganos, roma e gypsies: projeto identitário e codificação política no Brasil e Canadá. Tese em Antropologia, Universidade Federal Fluminense., s. p.).

Mio Vacite foi o primeiro presidente do CEC, tendo se desvinculado alguns anos depois e criado a União Cigana do Brasil (UCB) em 1993. Diferentemente de outras associações ciganas que as precederam, mas mantiveram uma forma de atuação limitada aos interesses familiares, o CEC e a UCB tiveram forte influência na produção de discursos e no desenvolvimento de ações voltadas para o reconhecimento da cultura cigana no espaço público.

A partir das três narrativas ciganas, fica evidenciado que há diferentes visões quanto ao início do processo de visibilização cigana no Brasil, especialmente em relação ao momento inicial do surgimento de um movimento cigano; no entanto, também é possível encontrar similaridades. O ponto comum destas narrativas é o destacamento do processo tardio de reconhecimento estatal dos povos ciganos, e da institucionalização de direitos e políticas específicas para os povos ciganos.

Para estas lideranças, o processo de reconhecimento étnico passa pela (re)construção de uma imagem cigana mais unificada e apartada de preconceitos e estereótipos negativos. A perseguição universal e secular sofrida pelos ciganos se atualiza em formas de tratamento discriminatórias e negligentes do estado brasileiro que podem ser superadas pela ideia de uma nação cigana transnacional que têm cultura e modo de vida próprios.

Na última década, é a categoria política de povos e comunidades tradicionais que será incorporada nos discursos dessas lideranças ciganas, com atuação política nos espaços institucionais, para a promoção de direitos e políticas específicas para os povos ciganos. Dessa forma, passaremos ao entendimento da trajetória conceitual da categoria PCT antes de abordar os seus efeitos na demanda territorial dos calon de Minas Gerais.

Povos e comunidades tradicionais: categoria de proteção jurídica

A trajetória conceitual da noção de povos e comunidades tradicionais remonta ao início da década de 1970 com a implantação do plano nacional de desenvolvimento na Amazônia. À época, grupos de habitante locais foram – como ainda são – forçados a saírem das suas terras pelo próprio estado e, também, por fazendeiros de gado, mineiros, madeireiros e outros intrusos. Diante da expulsão e do deslocamento, iniciaram-se as mobilizações socioambientais de resistência que tinham como finalidade a proteção dos territórios florestais e os modos de vida de quem neles habitavam (Cunha e Almeida 2001Cunha, Manuela, e Márcio Almeida. 2001. Populações indígenas, povos tradicionais e preservação na Amazônia. In Biodiversidade na Amazônia brasileira. Avaliação e ações prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição de benefícios, organizado por João P. R. Capobianco, Adalberto Veríssimo, Adriana Moreira, Donald Sawyer, Iza dos Santos e Luiz P.Pinto, 184-93. São Paulo: Instituto Socioambiental e Estação Liberdade.; Silva 2019Silva, Ana T. R. da. 2019. Áreas protegidas, populações tradicionais da Amazônia e novos arranjos conservacionistas. Revista Brasileira de Ciências Sociais 34 (99). https://doi.org/10.1590/349905/2019.
https://doi.org/10.1590/349905/2019...
).

Paralelamente, um novo movimento ambientalista começa a surgir em âmbito global, mais apartado de uma visão que rejeitava a presença de grupos humanos no interior das áreas de proteção ambiental. Nesse novo entendimento, às comunidades tradicionais que viviam em áreas florestais e exerciam formas específicas de manejo florestal era reconhecido o “direito de ficar”, ainda que os termos sobre o uso e a conservação das áreas de proteção ambiental tenham continuado em disputa (Silva 2019Silva, Ana T. R. da. 2019. Áreas protegidas, populações tradicionais da Amazônia e novos arranjos conservacionistas. Revista Brasileira de Ciências Sociais 34 (99). https://doi.org/10.1590/349905/2019.
https://doi.org/10.1590/349905/2019...
).

No Brasil, a articulação do movimento social dos seringueiros e o movimento ambientalista levaram à criação da primeira reserva extrativista (Resex) no ano de 1990, inspirado no modelo territorial de terras indígenas. Outras unidades de conservação de uso sustentável foram criadas desde então, com o objetivo de proteger os “povos e comunidades tradicionais” e promover o uso sustentável dos recursos naturais pelas comunidades.

A noção de povos e comunidades tradicionais surge, portanto, como uma categoria de proteção jurídica às populações locais que vivem em áreas florestais, seus modos de vida e relação com bens naturais. Sobretudo, esta categoria encampa uma enorme diversidade territorial e identitária, como mostra Silva (2019Silva, Ana T. R. da. 2019. Áreas protegidas, populações tradicionais da Amazônia e novos arranjos conservacionistas. Revista Brasileira de Ciências Sociais 34 (99). https://doi.org/10.1590/349905/2019.
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, 7):

Justamente por ser ampla, essa categoria é permanentemente entendida como sendo ressemantizada por grupos que, historicamente invisibilizados, ousam agora reivindicar designação territorial e o direito de se autonomear (Castro 2013Castro, Fábio F. 2013. A identidade denegada: discutindo as representações e autorrepresentações dos caboclos da Amazônia. Revista de Antropologia, 56 (2). https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2013.82538.
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). Essa postura se expressa também na emergência de novas reivindicações. Ao apontarem os limites dos modelos atuais das unidades de uso sustentável, inicialmente pensadas para seringueiros, indígenas e quilombolas, traduzem a necessidade de formas de designação territorial, zoneamentos e planos de manejo mais compatíveis com as condutas de territorialidade praticadas por diferentes povos e comunidades tradicionais (Nogueira 2017Nogueira, Mônica. 2017. Gerais a dentro e a fora: identidade e territorialidades entre gerazeiros do norte de Minas Gerais. Brasília: IEB.). Sendo assim, a identidade PCTs funciona como uma categoria jurídica genérica, isto é, como uma identidade legalmente constituída em torno da defesa de interesses comuns, mas dentro da qual se expressa uma enorme diversidade territorial e identitária.

No arcabouço jurídico-brasileiro, a primeira regulamentação legal que insere a noção de “povos tradicionais” regulamenta as florestas nacionais, e prevê a hipótese de autorização de permanência para os habitantes com ocupação anterior a este decreto datado de 1994.9 9 Decreto n.º 1.298/1.994 aprova o regulamento das Florestas Nacionais. “Art. 8° O Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal regulamentará a forma pela qual poderá ser autorizada a permanência, dentro dos limites das Flonas, de populações tradicionais que comprovadamente habitavam a área antes da data de publicação do respectivo decreto de criação”. Posteriormente, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), criado no ano 2000, amplia as áreas de proteção ambiental sobre as quais a presença de populações tradicionais deveria ser permitida, e garantido o reconhecimento legal de seus modos de vida, formas de ocupação do solo, uso sustentável dos recursos naturais e conhecimento tradicional.

Inicia-se, nesta mesma época, uma abertura institucional para a participação de lideranças ciganas nos espaços de diálogo sobre direitos humanos, promovendo uma maior visibilização da pauta cigana, e sua progressiva inclusão na agenda nacional. Ainda que retardatário, o processo de reconhecimento estatal dos povos ciganos é contemporâneo à consolidação do arcabouço jurídico-institucional para PCT no âmbito nacional formado por dois pilares: a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNDSPCT) e a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNDSPCT).

A CNDSPCT foi criada em 2004 com a finalidade de coordenar e acompanhar a implementação da PNDSPCT. Desde o ano de 2006, tem em sua composição a presença de representantes ciganos. À época, como titular, constava a Associação de Preservação da Cultura Cigana (Apreci), presidida por Cláudio Ivanovich e, como suplente, o Centro de Estudos e Discussão Romani.

A PNDSPC foi institucionalizada pelo Decreto n.º 6.040/2007 e estabelece princípios e objetivos, além de definir juridicamente a noção de povos e comunidades tradicionais:

Art. 3º - I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

Este arcabouço jurídico-institucional dos PCT encampou os processos de reconhecimento étnico já consolidados, como comunidades de seringueiros, indígenas e quilombolas, mas também daqueles ainda em andamento, como ribeirinhos, gerazeiros, pescadores artesanais, catadoras de babaçu, vazenteiros, ciganos, entre outros. Dessa forma, ampliou-se o sistema de proteção jurídica e de direitos para PCT, incluindo os povos ciganos. Outro efeito foi a descentralização das ações de desenvolvimento sustentável para PCT que têm se desenvolvido de forma diferenciada nos contextos regionais.

No caso dos calon de Minas Gerais, a institucionalização jurídica da política estadual de desenvolvimento sustentável para povos e comunidades tradicionais (Lei n.º 21.147, de 14 de janeiro de 2014, posteriormente regulamentada pelo Decreto n.º 47.289/2014) foi fundamental para reforçar a argumentação jurídica dos relatórios antropológicos que subsidiaram as demandas ciganas pela regularização territorial.

Por fim, como importante instrumento na mediação de conflitos fundiários envolvendo grupos vulnerabilizados, mas não exclusivo a comunidades tradicionais, foi criada no ano seguinte a Mesa de Diálogo e Negociação do estado de Minas Gerais (Decreto n.º 203/2015), que será acionada em um dos casos de demandas por direitos fundiários – a comunidade calon de Ibirité – apresentado mais adiante.

Entendendo a demanda cigana por direitos fundiários

Entre os calon de São Gabriel, Nova Lima e Conselheiro Lafaiete há semelhanças na forma dicotômica de uma memória coletiva que separa os períodos “de andança” e “passagem” no “tempo dos antigos” e “de parar” e “fixar” no “tempo de hoje”. A fala do Sr. Custódio, um calon ancião que vive com a parentela no município de Conselheiro Lafaiete ilustra o modo de circulação cigana no passado. Em um pernoite na barraca da sua filha Sueli para a construção de um relatório antropológico ele contava sobre a relação com o município:

Aqui antes chamava Queluz de Minas. Eu nasci meus dentes aqui. Desde os meus 17 anos. Fui nascido lá no Espírito Santo. Meu pai andava no Espírito Santo. Andava de tropa e de cavalo. Da divisa de Goiás para cá. Andei tudo a cavalo. Valadares. Tanhumirim, Teófilo Otoni, Itambacuri [...]. Já andei tudo. Esse mundo e um pedaço do outro. Só tive um pouquinho de sossego aqui. Só sete anos que eu descansei de andar no mundo. Só não fui dentro de São Paulo. Bahia, Goiás, Diamantina, Capelinha. Minha vida foi andando no mundo. Andando a cavalo, sofrendo e andando no mundo. (Sr. Custódio, com. pess., jul. 2017).

No “tempo de andança” havia uma maior intensidade na dinâmica socioespacial calon, ainda que majoritariamente circunscrita ao estado de Minas Gerais. Conselheiro Lafaiete fazia parte da rota de lugares por onde a família do Sr. Custódio passava e acampava antes de se fixarem. A escolha pela “fixação” naquele município está relacionada pelo conhecimento da área e a já vivenciada “boa relação” com os não ciganos.

Não há, portanto, um elemento de aleatoriedade no modo de circulação cigana. O prévio conhecimento da região, a informação sobre as relações com não ciganos e, também, a possibilidade de apoio de parentes na região são aspectos que aparecem, recorrentemente, para explicar as estratégias de deslocamento e pouso. A centralidade da relação com não ciganos tem mais de uma perspectiva: os calon avaliam tanto a potencialidade comercial como a interação com as autoridades locais – mais ou menos amistosa.

A narrativa calon é repleta de referências sobre a busca por “alvarás” nas cidades em que os ciganos passavam. Os chefes das turmas chegavam primeiro e procuravam os delegados ou juízes locais para pedir “autorização” para pouso durante dias ou mês, a fim de não serem perseguidos e surpreendidos pela polícia. Entretanto, o padrão dessas negociações com as autoridades locais ou fazendeiros estaria baseada em relações pessoais.

Vários fatores podem ser indicados para justificar a passagem de um modo de vida itinerante para a “fixação” por parte dos calon de Minas Gerais. Um desses, e o mais estrutural e exógeno, é a crescente expansão urbana, e a consequente ausência de espaços para pouso nas cidades. Essa nova configuração espacial levou à redução da itinerância nas últimas décadas. A escolha pela permanência em Conselheiro Lafaiete, há mais de 25 anos, é contemporânea ao momento de fixação de outras comunidades ciganas na região metropolitana de Belo Horizonte – como nos casos dos ciganos calon de São Gabriel (Lima e Dolabela 2016Lima, Deborah, e Helena Dolabela. 2016. Dilemas da diversidade em um processo de regularização fundiária: o caso de Ciganos calon em Belo Horizonte. Revista da Universidade Federal de Minas Gerais 22 (1-2): 80-103. https://doi.org/10.35699/2316-770X.2015.2739.
https://doi.org/10.35699/2316-770X.2015....
), dos ciganos calon do Céu Azul (Mancilha 2017Mancilha, Edurado. 2017.“Pegando ritmo”: uma experiência etnográfica entre os ciganos calon do Bairro Céu Azul-Belo Horizonte. Dissertação em Antropologia, Universidade Federal de Minas Gerais.) e dos ciganos calon de Nova Lima e de outras partes de Minas Gerais.

Não há, contudo, a erradicação de uma mobilidade socioespacial das diferentes turmas que compõem uma comunidade cigana, e que, em tempos distintos, continuam a (re)produzir relações comerciais e sociais (especialmente festas de casamento e batizados) em outras localidades. De outra forma, como me foi explicado pelo Carlos, trata-se, na atualidade, de defender o direito a um pouso estável onde as turmas ciganas podem sair por um curto período e retornar de forma segura, sem o temor da perda do seu espaço na cidade.

Pelas razões estruturais expostas logo acima, mas também pelas novas formas de recebimento de benefícios sociais, como o Programa Bolsa Família – condicionado à comprovação de matrícula escolar –, justificam-se as demandas coletivas pelo direito à permanência nos espaços-territórios, e a manutenção do modo de vida cigano. A essa nova realidade jurídico-institucional de reconhecimento de direitos fundiários contrapõe-se a existência – e persistência – de um imaginário nômade sobre o modo de vida cigano que sempre levou a deslocamentos ou expulsões de comunidades ciganas por parte do poder público.

No caso emblemático dos calon de São Gabriel não foi diferente. Desde o início do processo no âmbito administrativo, a principal disputa jurídica quanto à existência ou não de direitos coletivos para as famílias ciganas envolveu uma interpretação emitida pela Consultoria Jurídica da União de Minas Gerais

O curso da defesa administrativa dos direitos ciganos se iniciou com a expedição de uma recomendação da Defensoria Pública da União no sentido de garantir e valorizar os direitos coletivos dos ciganos, incluindo o direito de permanência naquele espaço-território. Entretanto, na argumentação da CJU/MG,10 10 A Consultoria Jurídica da União é o órgão responsável pela avaliação jurídica de todos os processos que envolvem a competência da União. No caso de São Gabriel, uma vez que as áreas não operacionais da extinta RFFSA foram transferidas para a União, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal e a Secretaria de Patrimônio da União são os órgãos competentes para o acompanhamento institucional desta disputa fundiária. a verificação da presença de pessoas, na mesma localidade, durante 20 anos, estaria relacionada a uma única forma de morar – “residência fixa”, o que afastaria “seu enquadramento como cigano que culturalmente são povos nômades”. Dessa forma, foi negado o pertencimento étnico subjacente à demanda.

Para contrapor a interpretação da CJU/MG, a DPU solicitou ao Núcleo de Estudos sobre Populações Tradicionais e Quilombolas (NUQ) a elaboração de um relatório antropológico sobre a situação dos calon de São Gabriel. Em junho de 2011, foi elaborado o primeiro relatório antropológico – “Justificativa do pleito de permanência do grupo cigano calon no Bairro de São Gabriel, Belo Horizonte” – pelos pesquisadores do NUQ/UFMG, sob a coordenação da Profa. Deborah Lima. Este documento técnico tratava do histórico de ocupação prolongada na região de São Gabriel e das dinâmicas socioculturais e espaciais desta comunidade cigana. Ficava demonstrado ali uma forma de mobilidade espacial cigana que vinha se alterando ao longo das três gerações, com uma tendência para a diminuição da itinerância entre os mais jovens. Concluiu-se que o acampamento de São Gabriel é um local de segurança para as famílias calon que ainda vivem da negociação comercial em Belo Horizonte e outras cidades mineiras. É para lá que as famílias ciganas voltam após a realização das atividades comerciais. Apoiada neste relatório antropológico, a DPU entrou com um pedido de reconsideração do posicionamento da CJU/MG.

Comunidade calon de São Gabriel e direitos territoriais

No final da audiência pública que foi mencionada no início do texto, as autoridades e a liderança calon acordaram como encaminhamento a criação de uma Comissão de Regularização Fundiária para acompanhamento do processo pelo órgão legislativo. Pouco tempo depois, esta comissão indicou a necessidade da realização de um segundo laudo antropológico para “concluir a real área de terreno necessária para a instalação regular da comunidade”.

O segundo relatório antropológico foi realizado pelo NUQ/UFMG quase dois anos após o primeiro laudo, em 2013, e foi intitulado: “Avaliação da Demanda de Ocupação dos Ciganos calon do Bairro de São Gabriel”. Este relatório propõe a inversão da lógica aplicada ao cálculo da fração inicial indicada pela SPU de 17.500m2 baseada no modelo canônico de área mínima - 250m2 por família – para 70 famílias calon, entre turmas fixas e deslocadas temporariamente. De acordo com o laudo antropológico, a proposta de 17.500 m2 “era adequada para 70 famílias, porém não ciganas, pois não assegura a sobrevivência integral de um grupo fluido, organizado em rede e de composição variável, como são os acampamentos calon” e, ainda, indicava que, pela particularidade do pleito cigano, seria necessário “um exercício de compreensão para, a partir de uma disposição inventiva, acomodar o modelo canônico. de habitação urbana ao modo de ocupação do espaço dos ciganos” (Lima et al. 2013Lima, Débora, Helena Dolabela, Juliana Campos, Fernanda Gonçalves, e Alexandre Sampaio. 2013. Relatório antropológico: avaliação da demanda de ocupação dos ciganos calon do bairro São Gabriel, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Belo Horizonte, NuQ-UFMG. Justiça Federal: sétima vara da Seção Judiciária de Minas Gerais processo 5736709 2013.4.01.3800., 2)

De forma inovadora, a proposta do relatório antropológico se fundamentava no seguinte argumento: “ao invés de o número de famílias ciganas determinar a necessidade de espaço, no contexto atual de acampamentos ciganos na cidade, é o espaço disponível que determina o número de famílias acampadas” (Lima et al. 2013Lima, Débora, Helena Dolabela, Juliana Campos, Fernanda Gonçalves, e Alexandre Sampaio. 2013. Relatório antropológico: avaliação da demanda de ocupação dos ciganos calon do bairro São Gabriel, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Belo Horizonte, NuQ-UFMG. Justiça Federal: sétima vara da Seção Judiciária de Minas Gerais processo 5736709 2013.4.01.3800., 3). Tendo em vista as formas de organização social no espaço, a parcela de área para uso coletivo, as taxas de reprodução endógena e de demanda reprimida foi indicado no trabalho técnico uma fração de 35.000m2 – correspondente à soma dos dois acampamentos onde já estavam instaladas as barracas ciganas.

No entanto, a existência de uma fundamentação antropológica para justificar a extensão da área para a manutenção do modo de vida calon não representou a construção de um consenso. Desde a entrega do segundo relatório antropológico, passaram-se mais de seis meses de negociações intensas – entre reuniões institucionais e audiência judicial – até a aparição pública do Superintendente da SPU com a proposta de cessão de 21.750m2, com acréscimo de uma extensão de área coletiva.

O que foi possível perceber ao longo desse processo é que o enquadramento de uma demanda envolvendo uma comunidade tradicional calon, e a sua consequência – o reconhecimento da existência de direitos territoriais específicos – não foi consensual. No caso de São Gabriel, desde o início da disputa fundiária os órgãos institucionais de proteção dos direitos de povos e comunidades tradicionais – MPF e DPU – reconheceram a existência de uma demanda de direitos de uma comunidade tradicional cigana. Entretanto, a SPU manteve uma posição baseada na lógica individualista da propriedade, não reconhecendo o caráter coletivo da demanda, e a existência de uma territorialidade específica para manutenção da reprodução física, social, cultural e econômica da comunidade calon.

A proposta de concessão de área total de 35.000m2 foi acordada após longo processo de negociação, e envolveu questões de ordem físico-territorial e jurídica, uma vez que ficou comprovado que parte significativa da referida área não era utilizável em função de risco geológico, e parte da área não estava regularizada.11 11 Estudos técnicos comprovaram que a área utilizável para uso das famílias calon era de apenas 11.000m2 do total de 21.750m2. Esse argumento foi fundamental para a revisão da proposta inicial. Em meados de 2014, foi realizado um termo de conciliação em âmbito judicial no qual a União garantiu a cessão da área de 35.000m2 para estabelecimento definitivo da comunidade calon.

O caso dos calon de São Gabriel é emblemático na medida em que, pela primeira vez, uma demanda de reconhecimento de direitos territoriais envolvendo famílias calon estava fundamentada no arcabouço jurídico-institucional dos PCT. Dessa forma, o reconhecimento dos calon como comunidade tradicional e a existência de uma territorialidade específica foram reforçados pelo relatório antropológico, no qual ficou demonstrado a existência de uma organização social que se (re)produz no espaço físico-territorial, além de estabelecem relações com o meio circundante, fundamental para a manutenção do modo de vida calon nas cidades.

Outros casos de demandas calon por regularização fundiária

O caso de São Gabriel levou à multiplicação das demandas coletivas pela regularização fundiária de áreas onde comunidades calon de Minas Gerais vivem “fixas”. Três comunidades na região metropolitana de Belo Horizonte tiveram o suporte do NUQ/UFMG para a elaboração de laudos antropológicos para consubstanciar as demandas coletivas por regularização fundiária: São Gabriel, Nova Lima e Conselheiro Lafaiete (caso ainda em andamento).12 12 O caso de Ibirité também teve o apoio do NUQ/UFMG, mas não foi produzido laudo.

Os aspectos comuns a esses casos são a titularidade pública (municipal ou federal) da área onde vivem as famílias calon e a ausência de regularização jurídica. Essas situações de irregularidade se tornaram visíveis pela própria atuação estatal em virtude do interesse pela mudança na destinação das áreas onde vivem as famílias calon – ver no Quadro 1 a seção Conflito. O quadro abaixo apresenta as principais diferenças entre os casos de São Gabriel, Nova Lima e Ibirité.

Quadro 1
Demandas fundiárias de comunidades calon (MG)

Como é possível perceber, as negociações envolvendo demandas pela regularização fundiária são de médio a longo prazo e envolvem diferentes atores. As soluções jurídicas também são variáveis. No caso de São Gabriel, a segurança jurídica da posse foi acordada na via judicial até que a regularização da área total permita a conclusão da promessa de cessão de uso da área por meio do instrumento da concessão real de uso.

Já em Nova Lima, a atuação do NUQ/UFMG junto a órgãos de habitação e planejamento da prefeitura municipal foi fundamental para a construção de uma proposta jurídica que garantiu a transferência da titularidade do imóvel de forma gratuita, mas em caráter inalienável. Dessa forma, as famílias calon são titulares do bem e podem usufruí-lo para a manutenção do seu modo de vida, mas não podem revendê-lo a terceiros.

O caso de Ibirité é importante tratar de forma um pouco mais detalhada, uma vez que a solução proposta – a realocação das famílias para uma outra área, desde que garantido o consentimento da parte interessada – está se repetindo em outros casos. No final do ano de 2017, a comunidade cigana calon do bairro São Pedro recebeu uma ação de reintegração de posse, com a finalidade de retirar as famílias calon de onde se encontram há mais de 10 anos. Sob a atuação da Defensoria Pública da União, esta ação foi suspensa, e iniciou-se o processo de negociação entre a comunidade e os agentes municipais.

Após iniciado o processo de negociação com a Prefeitura, o caso dos Calon de Ibirité foi encaminhado para a Mesa Estadual de Diálogo do Governo de Minas Gerais. Foi acordado ali a indicação de nova área para pouso da comunidade cigana. Foram realizadas visitas em duas localidades. Na primeira delas, não houve o acordo em relação à localização do imóvel disponibilizado. Uma segunda rodada de negociações levou à sugestão de outro imóvel, dessa vez, com o consentimento da comunidade após visita in loco.

O Termo de Cessão de Uso do imóvel municipal foi celebrado entre o Município de Ibirité e a Associação Estadual Cultural de Direitos e Defesas dos Povos Ciganos. Este documento não apenas “autoriza a utilização do imóvel para as atividades voltadas à reprodução física, econômica, social e cultural da comunidade cigana, incluindo moradia, atividades de geração de renda e atividades culturais, voltadas ao público interno e externo”, pelo prazo de 20 anos (prorrogável) como assegura serviços públicos atinentes às Secretarias de Meio Ambiente, Saúde, Obras e Educação, a serem implementadas em diálogo com os representantes da Comunidade Cigana, consoante os seus processos deliberativos próprios.

A partir do ano de 2018, a presidente da Associação Estadual Cultural de Direitos e Defesa dos Povos Ciganos, Valdinalva Barbosa, tem assessorado outras demandas de comunidades calon em Minas Gerais pela regularização territorial. Estão em andamento demandas de famílias calon que vivem nos municípios de Conselheiro Lafaiete, Juiz de Fora, Barbacena, Santa Bárbara, Ribeirão das Neves e Pedro Leopoldo. No ano de 2020, sob a coordenação da referida associação cigana foi elaborado o primeiro Protocolo de Consulta dos Povos Ciganos – Etnia Calon, no Brasil, englobando os municípios que estão em processo de negociação junto aos órgãos governamentais.

Considerações finais

“Povos e Comunidades Tradicionais” é uma categoria de luta política pelo reconhecimento de um modo de vida diferenciado e direitos específicos. Os ciganos no Brasil têm uma forma de organização social e uma dinâmica territorial variável, marcada pelas relações socioeconômicas e dinâmicas interpessoais e culturais que extrapolam uma territorialidade delimitada espacialmente. Desta forma, tive a intenção de demonstrar, de forma exemplar, mas sem o objetivo de construir um único modelo, como essa particularidade da dinâmica territorial cigana calon foi contemplada para fins de reconhecimento de direitos coletivos territoriais no estado de Minas Gerais

Os ciganos são, hoje, reconhecidos pelo estado brasileiro como PCT e participam dos espaços colegiados e eventos que discutem políticas e direitos para povos e comunidades tradicionais no âmbito nacional, regional e local. O arcabouço jurídico dos PCT deu sentido às demandas práticas dos ciganos calon de Minas Gerais que, de forma inédita: (1) garante o direito a serem consultados de forma culturalmente adequada; (2) organização de demandas pelo reconhecimento de direitos territoriais; (3) torna possível que situações fundiárias envolvendo povos tradicionais ciganos sejam consideradas dentro do aparato jurídico nacional como direitos coletivos específicos.

Com a ampliação do suporte jurídico-institucional, há o aumento da demanda pelo reconhecimento de direitos fundiários para famílias calon em Minas Gerais na última década. Em vários casos, os direitos já são adquiridos pelo prazo prolongado, mas a sua efetivação é dependente da mobilização de diversos agentes políticos em âmbito institucional e comunitário.

Finalmente, é importante ressaltar que não existe um único modelo de garantia dos direitos fundiários dos povos ciganos, uma vez que esses possuem territorialidades diferenciadas. Dessa forma, construções jurídicas devem ser pensadas caso a caso, a fim de que seja mantida a finalidade deste direito: garantir a reprodução e o modo de vida específico dos povos ciganos.

  • 2
    Esta configuração espacial tende a mudar ao longo do tempo com a emergência, mais recente, de lideranças ciganas femininas na cena política.
  • 3
    O Decreto n.º 6.040, em 7 de fevereiro de 2007, criou a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais.
  • 4
    Mello, Marco A. da Silva e Felipe B. Veiga. 2008. Os ciganos e as políticas de reconhecimento: desafios contemporâneos. Documento da Associação Brasileira de Antropólogos. Acessado em 22 fev. de 2023. https://bityli.com/s00gy.
  • 5
    Não há um estudo aprofundado sobre o processo de visibilização cigana no Brasil que se proponha a recuperar e articular o conjunto de informações esparsas e provenientes, principalmente, de etnografias e registros oficiais sobre os espaços de participação e diálogo (conferências, conselhos, audiência públicas etc.) envolvendo agentes públicos e representantes ciganos que proliferaram no âmbito nacional – e, gradativamente, regional e local – nas últimas duas décadas.
  • 6
    Explanação de Ivanovich na 81ª Audiência Pública no Senado Federal (2013), registrada em ata.
  • 7
    De acordo com Míriam Alves de Souza (2013Souza, Mirian de Alves. 2013. Ciganos, roma e gypsies: projeto identitário e codificação política no Brasil e Canadá. Tese em Antropologia, Universidade Federal Fluminense., s.p.), Mio Vacite utiliza a categoria “movimento cigano” com uma definição específica: “esta categoria utilizada por ele para se referir a associações e agentes políticos que, como ele e sua associação, procuram “modificar as representações negativas sobre os ciganos, buscando seu reconhecimento como nação, assim como garantir seu acesso a direitos e serviços no Brasil”.
  • 8
    O CEC era formado por profissionais liberais autores de composições, poemas, livros e artigos sobre ciganos.
  • 9
    Decreto n.º 1.298/1.994 aprova o regulamento das Florestas Nacionais. “Art. 8° O Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal regulamentará a forma pela qual poderá ser autorizada a permanência, dentro dos limites das Flonas, de populações tradicionais que comprovadamente habitavam a área antes da data de publicação do respectivo decreto de criação”.
  • 10
    A Consultoria Jurídica da União é o órgão responsável pela avaliação jurídica de todos os processos que envolvem a competência da União. No caso de São Gabriel, uma vez que as áreas não operacionais da extinta RFFSA foram transferidas para a União, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal e a Secretaria de Patrimônio da União são os órgãos competentes para o acompanhamento institucional desta disputa fundiária.
  • 11
    Estudos técnicos comprovaram que a área utilizável para uso das famílias calon era de apenas 11.000m2 do total de 21.750m2. Esse argumento foi fundamental para a revisão da proposta inicial.
  • 12
    O caso de Ibirité também teve o apoio do NUQ/UFMG, mas não foi produzido laudo.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação da autora antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2022
  • Aceito
    07 Mar 2023
  • Publicado
    04 Nov 2023
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