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Ciganos no Brasil: o olhar dos viajantes do século 19 e início do século 20

Gypsies in Brazil: the look of 19th and early 20th century travelers

Gitanos en Brasil: la mirada de los viajeros del siglo 19 y principios del 20

Resumo:

O objetivo deste artigo é investigar como seis viajantes do século 19 e início do século 20, por meio dos seus relatos de viagens, descrevem a prática comercial dos ciganos do Brasil e, de forma etnocêntrica, a relacionaram a estereótipos como o roubo. O percurso metodológico desta pesquisa foi de cunho quanti-qualitativo, a partir de uma análise documental e bibliográfica. Nos resultados, constatou-se a recorrência de temas como: comércio, aparência, linguagem, nomadismo, roubo, religião, práticas culturais, educação e origens, estando o comércio ligado diretamente ao roubo em uma tentativa de desqualificar o sujeito quando comparado à cultura de quem os observou. Constata-se que, já nos séculos 19 e 20, estereótipos que hoje são recorrentes, foram amplamente usados e divulgados pelos viajantes, o que nos remete a identificarmos a importância desta fonte histórica para a divulgação e a construção de olhares etnocêntricos e estereotipados.

Palavras-chave:
Ciganos; Viajantes; Representações; Séculos 19 e 20

Abstract:

The purpose of this article is to investigate how six travelers from the 19th and early 20th centuries, through their travel reports, describe the commercial practice of gypsies in Brazil and, in an ethnocentric way, relate it to stereotypes such as theft. The methodological route of this research was quantitative and qualitative based on a documental and bibliographical analysis. As a result, the recurrence of themes such as: commerce, appearance, language, nomadism, theft, religion, cultural practices, education and origins, with commerce being directly linked to theft in an attempt to disqualify the subject when compared to culture of those who observed them. It appears that already in the 19th and 20th centuries, stereotypes that are recurrent today were widely used and disseminated by travelers, which leads us to identify the importance of this historical source for the dissemination and construction of ethnocentric and stereotyped views.

Keywords:
Gypsies; travelers; Representations; 19th and 20th centuries

Resumen:

El objetivo de este artículo es investigar cómo seis viajeros del siglo 19 y principios del 20, a través de sus relatos de viaje, describen la práctica comercial de los gitanos en Brasil y, de manera etnocéntrica, la relacionan con estereotipos como el robo. El recorrido metodológico de esta investigación fue cuantitativo y cualitativo a partir de un análisis documental y bibliográfico. Como resultado, se verificó la recurrencia de temas como: comercio, apariencia, lengua, nomadismo, hurto, religión, prácticas culturales, educación y orígenes, vinculándose directamente el comercio al hurto en un intento de descalificar al sujeto frente a la cultura. de quienes los observaron. Parece que ya en los siglos 19 y 20, los estereotipos que hoy son recurrentes fueron ampliamente utilizados y difundidos por los viajeros, lo que nos lleva a identificar la importancia de esta fuente histórica para la difusión y construcción de miradas etnocéntricas y estereotipadas.

Palabras clave:
Gitanos; Viajeros; Representaciones; Siglos 19 y 20

Introdução

Os ciganos estão no Brasil desde o século 16. Cartas de degredos mostram que eles vieram expulsos da metrópole, por não se enquadrarem aos ditos costumes dá época. A mesma discriminação que na Europa sofreram, no Brasil não foi diferente. Suas características, como cultura e linguagem, causavam estranhamento, discriminações. A própria palavra cigano, foi utilizada para descaracterizar (e homogeneizar) a pluralidade cultural de povos que foram associados a práticas consideradas, por aqueles que os observaram, como desviantes.

Tamanha excepcionalidade cultural fez com que estes grupos fossem observados ao longo da história, ora com curiosidade, ora com temor, ora com repulsa. Foram expulsos das metrópoles com o objetivo de higienizar os reinos. Foram perseguidos tanto pelo clero, que desconfiava de suas práticas religiosas, quanto pelo estado, que a partir de políticas de saneamento associava estes grupos a epidemias e calamidades. A premissa era “Purgar para Deus e Sanear para o Rei” (Souza 1993Souza, Laura de Mello e. 1993. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 89). Assim, esse olhar julgador e discriminatório que acompanha os grupos ciganos desde os primeiros contatos com os europeus, permanece no Brasil.

Neste sentido, este artigo busca apresentar como seis viajantes do século 19 e início do século 20, por meio dos seus relatos de viagens, descrevem a prática comercial dos ciganos do Brasil e, de forma etnocêntrica, a relacionaram a estereótipos como o roubo. Sendo assim, os objetivos que norteiam este trabalho são: apresentar as possibilidades da fonte literatura de viagem2 2 Sobre literatura de viagem ver obras: a) Lisboa, Karen Macknow. 2000. Olhares estrangeiros sobre o Brasil do século XIX. In Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias, 2. ed., organizado por Carlos Guilherme Mota, 265-99. São Paulo: Editora. b) Barreiro, José Carlos. 2002. Imaginário e viajantes no Brasil do século XIX: cultura e cotidiano, tradição e resistência. São Paulo: Editora UNESP. c) Noal, Valter Antônio Filho, e Sérgio da Costa Franco. 2004. Os viajantes olham Porto Alegre: 1754-1890. Santa Maria: Anaterra. d) Noal, Valter Antônio Filho, e Sérgio da Costa Franco. 2004.Os viajantes olham Porto Alegre: 1890-1941. Santa Maria: Anaterra. para compreensão das representações dos ciganos; apresentar e analisar como os ciganos foram vistos e representados pelos viajantes do século 19 e 20 no Brasil com destaque para as práticas comerciais. Para tanto, esta pesquisa foi de cunho quanti-qualitativo, de caráter exploratório e descritivo. O corpus analisado foram os relatos de seis viajantes – Jean Baptiste Debret, Auguste de Saint-Hilaire, Maria Graham, Henry Koster, Daniel Parish Kidder e James W. Wells – que percorreram o Brasil durante os séculos 19 e início do século 20.

O artigo está dividido em três partes. Na primeira parte, apresentam-se as possibilidades da fonte literatura de viagem como uma forma de análise do contexto histórico estudado. Na segunda parte, delineia-se o percurso metodológico, juntamente com a coleta e a análise das fontes. Na terceira parte, são indicadas e analisadas as categorias recorrentes no discurso dos viajantes, dando ênfase para as palavras que apareceram com mais frequência nos relatos, o comércio.

Literatura de viagem como fonte histórica

Os relatos de viagens foram importantes documentos que divulgaram e despertaram interesse dos europeus pelo Brasil. Ângela Domingues (2008)Domingues, Ângela. 2008. O Brasil no relato dos viajantes ingleses do século 18: produção de discursos sobre o Novo Mundo. Revista Brasileira de História 55 (28): 133-52. https://doi.org/10.1590/S0102-01882008000100007.
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afirma que, com a chegada da família real ao Brasil (1808) intensificou-se a circulação de viajantes e estudiosos pela colônia com atrativos diversos: científicos, comerciais, econômicos, teológicos, morais e estéticos, que serviram de impulso à visitação, exploração e estudos do solo brasileiro (Domingues 2008Domingues, Ângela. 2008. O Brasil no relato dos viajantes ingleses do século 18: produção de discursos sobre o Novo Mundo. Revista Brasileira de História 55 (28): 133-52. https://doi.org/10.1590/S0102-01882008000100007.
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).

Domingues (2008)Domingues, Ângela. 2008. O Brasil no relato dos viajantes ingleses do século 18: produção de discursos sobre o Novo Mundo. Revista Brasileira de História 55 (28): 133-52. https://doi.org/10.1590/S0102-01882008000100007.
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também informa que estudos e relatos produzidos ao longo dos séculos 18 e 19, tiveram interesses específicos, os quais podem ser definidos por: desejo de corrigir a geografia do globo terrestre, diminuir os perigos da navegação e tornar mais conhecidos os costumes, artes e produtos da colônia brasileira. Despertavam curiosidades inclusive nas elites cultas e nos políticos, que viam nos estudos a possibilidade de obter informações preciosas sobre os trópicos de além-mar, os quais favoreciam estratagemas políticos, comerciais e científicos exitosos.

Estes documentos, criados, em sua maioria, por estrangeiros, são riquíssima fonte de análise para os historiadores, pois registram de forma minuciosa aspectos múltiplos da vida social, econômica e política do país, deixando um vasto leque de possibilidades de pesquisas. Em suas anotações, os viajantes abarcaram temas diversos, desde a fauna e a flora até a organização das cidades, costumes e culturas locais, todos carregados de detalhes, possibilitando a [re]construção tanto da paisagem local como dos aspectos sociais e culturais. No entanto, não só questões políticas, comerciais e científicas foram abordadas pelos viajantes. A população que vivia nos trópicos também despertou interesse. E, em meio a descrições de paisagens, solos, montanhas, clima, encontra-se a representação do estrangeiro frente ao “outro”. O olhar corre e desperta curiosidade ao ver o diferente, o autóctone, o negro, o mestiço, os imigrantes e, dentre estes muitos, os ciganos.

Embora as fontes contenham detalhes ímpares, ampliando possibilidades, necessitam de análises cuidadosas, pois carregam a impressão do tempo histórico vivido, bem como os interesses e os valores de seus observadores. Para que façamos uma pesquisa criteriosa a partir destes documentos, se faz necessário considerar que os relatos fazem parte de um amplo quadro, onde as ideologias e o posicionamento do observador, no caso o viajante, estão quase sempre presentes. É neste sentido que destaco a diferença conceitual entre o “ver” e o “olhar” que, em um primeiro momento, nos parecem sinônimos. No entanto, conforme Sérgio Cardoso, com base em Merleau-Ponty, o “ver” e o “olhar” configuram campos de significações distintos (Cardoso 1988Cardoso, Sérgio. 1988. O olhar viajante (do etnólogo). In O Olhar, organizado por Adauto Novais, 348-58. São Paulo: Companhia das Letras.).

O “ver”, representa um comportamento discreto de quem olha, demonstra uma passividade do observador ou até uma reserva. É um olhar dócil, quase desatento, que parece deslizar sobre as coisas que visualiza, de forma a refleti-las apenas registrando-as, como o reflexo de um espelho. O “ver” é ingênuo, espontâneo, abstrai quase que por completo a subjetividade do sujeito. A visão supõe um mundo pleno, hermético, pode-se dizer maciço – mesmo que consciente de suas limitações – ele crê no seu acabamento e totalidade. Tudo se compõe em uma coesão compacta e indelével, pois o ver desconhece lacunas e incoerências, já que acolhe e integra com naturalidade. Ele opera por soma buscando expandir-se de forma a fluir e restituir a sua integridade. A simples visão, supõe e expõe um campo de significações. No universo do ver o vidente é rejeitado para o domínio da exterioridade em relação a si (Cardoso 1988Cardoso, Sérgio. 1988. O olhar viajante (do etnólogo). In O Olhar, organizado por Adauto Novais, 348-58. São Paulo: Companhia das Letras.).

Já o “olhar”, nos remete de imediato às atividades e às virtudes do sujeito, mostrando de pronto sua interioridade. O “olhar” averigua minuciosamente, indaga, investiga para além do que se vê, como se contivesse o desejo de olhar cada vez mais profundo. É sempre atento, tenso e está sempre alerta a qualquer sinal de “mistério”. No “olhar” há sempre um ar de malícia, o sujeito posiciona-se claramente e com plenos poderes. O “olhar” nunca descansa, mas se enreda em constantes estranhamentos. O olho, quando tomado pelo “olhar”, defronta-se constantemente com limites, lacunas e alteridades, buscando sempre a descontinuidade e o inacabamento do mundo. No universo do “olhar”, o observador mistura-se e confunde-se com as modulações do mundo, o visível se enreda no observador, que carregado de latência e interrogação, se faz misturar fazendo-se, constantemente, interrogar-se pelo pensamento que é escavado e penetrado pelo olhar. Para Cardoso, com base na obra de Merleau-Ponty o olhar pensa, é a visão feita interrogação (Cardoso 1988Cardoso, Sérgio. 1988. O olhar viajante (do etnólogo). In O Olhar, organizado por Adauto Novais, 348-58. São Paulo: Companhia das Letras.).

As diversas formas de captar o outro, ora “vendo”, ora “olhando” estão presentes nesta rica fonte historiográfica. A representação feita pelos viajantes do século 19 e início do século 20, através de seus relatos, nos possibilita perceber como esses grupos étnicos foram vistos e quais características são mais destacadas por seus observadores.

Percurso metodológico da pesquisa

As fontes analisadas foram selecionadas a partir de uma ampla coleta de relatos na biblioteca da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Museu Hipólito José da Costa, Biblioteca Nacional e em sites de busca com livre acesso aos dados. Nem todos os viajantes do século 19 e 20 foram contemplados, devido a vastidão de obras, autores e acervos.

Após leitura das fontes brutas encontradas analisou-se, separadamente, somente os viajantes que faziam menção aos grupos ciganos. Esta pesquisa foi de cunho quanti-qualitativo, de caráter exploratório e descritivo. A procura foi feita nas obras dos viajantes que passaram pelo Brasil durante o século 19 e, devido ao número pequeno de relatos que continham a narrativa sobre os ciganos, ampliou-se para o início do século 20, encontrando mais um viajante, conforme Tabela 1.

Tabela 1
Percepção dos viajantes sobre os ciganos

Cabe registrar que o conjunto de viajantes selecionados traz em seus relatos representações sobre os ciganos do seu tempo, que estavam inseridos dentro do seu contexto histórico, bem como das províncias por onde estes viajantes passaram, portanto, a perspectiva analítica que se pretende é de caráter histórico.

A análise dos dados foi obtida a partir da seleção e categorização dos relatos de viagens. Quantificou-se as palavras recorrentes para então fazer a leitura minuciosa, de forma a compreender o contexto, a subjetividade e o discurso que cada autor deu a sua narrativa. As palavras de análise foram destacadas de acordo com a recorrência dos temas. Após esta seleção estruturou-se a pesquisa o artigo a partir destas categorias, cotejando as fontes à luz da literatura e do contexto histórico, observando o sentido e o significado das representações. Para este artigo, analisaremos a categoria mais recorrente nos discursos, o comércio, que será aprofundada junto com o roubo, englobando uma série de outras características.

Representações dos ciganos sob o olhar dos viajantes

O trabalho dos ciganos sob o olhar dos viajantes

A prática comercial foi a principal característica destacada pelos viajantes como forma de sobrevivência dos ciganos. O roubo, de que são com frequência acusados, está ligado diretamente com o comércio e, nos relatos, aparecem juntos, ou fazem menção ao roubo como característica intrínseca à profissão que exercem, a de comerciantes. O comércio, profissão exercida pelos grupos ciganos desde a chegada no Brasil no século 16, intensificou-se ainda mais no século 19 e foi a forma de sobrevivência da grande maioria dos grupos. O olhar etnocêntrico dos viajantes distorce o comércio e a forma como os grupos fazem suas negociações, caracterizando o roubo como uma prática recorrente. O Comércio aparece de maneira recorrente nos relatos – cinco dos seis viajantes analisados o mencionam como uma característica intrínseca dos grupos. Já o roubo, aparece em quatro dos seis relatos analisados.

O roubo caracteriza-se como uma representação construída historicamente desde o primeiro contato dos ciganos com os ocidentais. Ainda no século 15, logo após a chegada dos primeiros grupos à Europa, os relatos informam sobre a prática do roubo por grupos com características iguais aos ciganos (Martinez 1989Martinez, Nicole. 1989. Os ciganos. Campinas: Papirus., 15). Já a prática do comércio entre os ciganos é observada das mais distintas formas: no comércio ambulante, na troca e venda de produtos, no contrabando, no mercado formal e informal. Enfim, a forma de sobrevivência destes grupos, desde que chegaram no Brasil, foram as práticas comerciais, principalmente a de cavalos e mulas, e durante o final do século 18 e o início do século 19, passam também a ser a do comércio de escravos. Rodrigo Teixeira (2009)Teixeira, Rodrigo C. 2009. Ciganos no Brasil: uma breve história. Belo Horizonte: Ed. Crisálida. destaca que a versatilidade dos ciganos para as atividades econômicas foi o principal fator de sobrevivência deles ao longo do tempo, possibilitando sua inserção em comunidades extremamente hostis que os toleravam devido aos serviços prestados pelo comércio.

No Brasil, os ciganos destacam-se com a prática comercial a partir do século 19, com a chegada da corte ao Rio de Janeiro, em 1808, e com as mudanças ocorridas na sociedade e na economia do país. Os ciganos ascendem social e economicamente, pois passaram a dominar o comércio de escravizados que, na época, era uma atividade reconhecida como útil para a sociedade (Moraes 1981Moraes, Mello Filho. 1981. Os ciganos no Brasil e cancioneiro dos ciganos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia., 30-32). Estes grupos, ao observarem a falta de mão de obra nas plantações menores e a ausência de interesse dos grandes comerciantes de escravizados em atender a esta demanda. Assim, iniciam a comercialização de escravizados de segunda mão, de forma a suprir o mercado (Schwarcz 1993Schwarcz, L. Moritz. 1993. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras., 14-15).

Os ciganos comercializam escravizados na Rua do Valongo, no Rio de Janeiro, e por todo o interior do país, circulando, vendendo e revendendo negros, suprindo a ausência desta mão de obra nos lugares mais distantes, onde o grande comerciante não chegava (Teixeira 2009Teixeira, Rodrigo C. 2009. Ciganos no Brasil: uma breve história. Belo Horizonte: Ed. Crisálida. 14-15).

O viajante Jean Baptiste Debret (1768-1848), em sua obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil – publicada entre os anos de 1834 a 1839 –, traz uma descrição dos ciganos e da prática comercial. Já na introdução do referido trabalho é possível observar o olhar do viajante frente ao “outro”. Ele descreve o contato com os ciganos: “A casta dos ciganos caracteriza-se tanto pela capacidade como pela velhacaria que põe no seu comércio exclusivo de negros novos e de escravos civilizados, conseguidos por intermédio de agentes que os seduzem e raptam” (Debret 1972Debret, Jean Baptiste. 1972.Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, vol.3. São Paulo: Martins., 191).

Debret demonstra um “olhar” carregado de juízo de valor frente aos ciganos. Em sua primeira frase já é possível constatar o etnocentrismo do autor em seu contato com o diferente. Observemos, também, que o primeiro ponto mencionado pelo viajante é o comércio, e esse será lembrado mais três vezes ao longo de sua descrição. O comércio é descrito como característica principal dos ciganos, pois estes dominam o mercado do tráfico negreiro no Rio de Janeiro. Em outra passagem, o autor relata que os ciganos, por dedicarem-se exclusivamente ao comércio, abandonam por completo a educação de sua prole:

Os ciganos, dedicam-se exclusivamente ao comércio, abandonam por completo a educação de seus filhos; os mais ricos contentam-se com fazê-los aprender a ler, escrever e contar mais ou menos, deixando-os entregues aos seus caprichos sem nenhum preceito de moral; por isso, desde criança se encontram de cigarro na boca e caixa de rapé na mão, exercitando-se impunemente, e as vezes mesmo com o encorajamento culpado dos seus, na trapaça, no jogo, no roubo, e dirigindo a seus pais os mais revoltados insultos. [...] A educação das filhas é também muito abandonada, raramente se elevando até a simples leitura. Desde pequenas tocam violão e, sempre à janela, empregam em trabalhos de agulha o tempo exclusivamente necessário a seus adornos; por outro lado, preguiçosas e faceiras bárbaras para com os escravos, só pensam em agradar aos homens. Se o irmão mais velho seduz a mãe, elas encontram idêntica ternura junto de seus pais, mas são severamente fiscalizadas pela progenitora. As mulheres velhas ajudam os filhos nos trabalhos domésticos. (Debret 1972Debret, Jean Baptiste. 1972.Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, vol.3. São Paulo: Martins., 192, grifo da autora).

Debret também descreve o roubo como uma das características da “raça” cigana. Afirma que esta prática entre os ciganos é cultural, que não só a praticam como a incentivam. Salienta o “espírito” de lucro e afirma que utilizam até mesmo as filhas em suas negociações de forma a obterem maior vantagem nos negócios:

Esta raça desprezada tem por hábito encorajar o roubo e praticá-lo; roubam sempre alguma coisa nas lojas onde fazem compras e, de volta à casa, se felicitam mutuamente por sua habilidade repreensível. [...] O espírito do lucro está a tal ponto enraizado neles, que aproveitam a beleza de suas filhas, recusando-as aos primeiros que se apresentam, a fim de que o obstáculo, aguçando os desejos, lhes permita casamentos vantajosos. [...] Vaidosos de sua riqueza, gastam de bom grado importâncias consideráveis com joias por causa de suas fraudes, a frequentes penhoras, possuem apenas um mobiliário muito simples, composto em geral de algumas canastras e de rede, objetos indispensáveis e de pouco embaraço nas mudanças urgentes. (Debret 1972Debret, Jean Baptiste. 1972.Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, vol.3. São Paulo: Martins., 192-4).

A representação que Debret faz dos ciganos é a de um povo com aparência rústica, supersticioso; são hábeis comerciantes e ávidos por lucros. A riqueza não lhes iguala aos demais habitantes. Eles são concebidos como “castas”, não como parte integrante da população do Rio de Janeiro. Cabe destacar que Debret, além da obra escrita, possui pelo menos três representações iconográficas sobre os ciganos. Não faremos a análise destas imagens, mas cabe a menção devido à importância e destaque que o autor dá a estes grupos. Também importa salientar que o termo raça aparece como uma categoria nativa utilizada pelo próprio viajante.

Outro viajante que faz menção aos ciganos é Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), viajante francês, botânico, cuja presença no Brasil data de 1816 a 1822. Durante sua viagem, ele depara-se com um grupo de ciganos e inicia a narrativa apontando para a prática do comércio entre os grupos. Destaca que os ciganos estão espalhados por todo o país praticando a permuta de muares e cavalos, como é de costume da sua “raça”. Informa que os ciganos, principalmente no Rio de Janeiro, eram os responsáveis pelo tráfico de escravos de segunda mão, existindo entre eles, inclusive, ciganos muito ricos. Conforme vimos, esta mesma informação, referente ao tráfico de escravos, fora antes descrita por Debret.

Em outro momento de seu relato, o autor retorna à questão do comércio e afirma que os ciganos passavam o dia inteiro tentando fazer trocas com as caravanas com as quais eles se deparavam: “Os ciganos de Urussanga passaram um dia inteiro procurando fazer trocas com os proprietários das duas caravanas que, comigo, estavam abrigados no rancho” (Saint-Hilaire 1976Saint-Hilaire, Auguste de. 1976. Viagens à província de São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia., 139).

Saint-Hilaire, assim como Debret, descreve a prática do roubo. Sobre o assunto, narra uma brincadeira que fez com um cigano acerca de sua honestidade:

Em tom de brincadeira, falei a um deles da pouca probidade de que é acusada a sua raça. ‘Eu engano tanto quanto posso, - respondeu -me seriamente -; mas todos os que comigo negociam fazem o mesmo. A única diferença que existe entre nós, é que eles dão altos gritos quando se vêem embrulhados, ao passo que se me embrulham, nada digo a ninguém’. (Saint-Hilaire 1976Saint-Hilaire, Auguste de. 1976. Viagens à província de São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia., 139).

Esta brincadeira de Saint-Hilaire nos faz refletir sobre a representação que se fazia destes grupos, já que eram acusados constantemente. Da mesma forma, nos coloca a pensar sobre a postura do próprio cigano, que não discute sobre o tema, tampouco se defende dizendo que não só a “raça” deles rouba, mas todas as outras, salientando apenas as diferenças existentes entre os que com ele comerciam. Cabe aqui destacar que o relato deste viajante reflete a sociedade da sua época. Ou seja, não se tem neste contexto, estudos e escritos dos próprios ciganos, por isso, a perspectiva que se narra é unilateral. Os estudos e textos escritos pelos próprios ciganos são recentes, portanto, a visão que se tem é única e está sob a ótica e o olhar apenas do viajante que a descreve. Visto desta forma, este episódio nos remete à reflexão sobre a importância que o “fazer-se cigano” tem para eles, suscita a interpretação de que para os ciganos, pouco importa o que os brasileiros pensam a seu respeito, o importante é a aprovação e o reconhecimento dentro do próprio grupo. Desta forma, parafraseando Florência Ferrari (2002Ferrari, Florência. 2002. Um olhar oblíquo: contribuições para o imaginário ocidental sobre o cigano. Dissertação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo., 79) a construção de uma identidade ocorre a partir do choque e da relação com o outro, com o diferente, sendo assim, para nos darmos conta da nossa cultura precisamos, necessariamente, nos defrontarmos com a cultura do outro, é através deste choque que se constitui a identidade.

Outro viajante é Henry Koster. Em sua descrição ele narra o que lhe dizem, pois, segundo afirma “ouvi assiduamente citar esse povo, mas nunca me foi possível avistar um só desses homens”, no entanto, “em que pese a importância e assiduidade com que são citados, não os poderia deixar de mencioná-los.” (Koster 1942Koster, Henry. 1942. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional., 488). Koster fala sobre o comércio, característica que aponta como peculiar a estes grupos. Destaca a compra e a venda de cavalos e objetos: “[...] vão errando, de lugar em lugar, em grupos de homens, mulheres e crianças, permutando, comprando e vendendo cavalos e ninharias de ouro e prata.” O viajante não faz menção sobre o roubo, prática tão destacada pelos outros observadores até aqui analisados (Koster 1942Koster, Henry. 1942. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional., 488).

O quarto viajante a descrever os ciganos é a inglesa Maria Graham (1785-1842). Em seus relatos, ela faz uma menção curta sobre os ciganos, porém importante. Ao falar do comércio destaca a riqueza de muitos deles. Sua descrição justifica-se pelo contexto da época. Maria Graham esteve no Brasil no período de maior opulência para os ciganos. A família Real, inclusive, fez uso dos serviços prestados por estes grupos (Teixeira 2009Teixeira, Rodrigo C. 2009. Ciganos no Brasil: uma breve história. Belo Horizonte: Ed. Crisálida., 41) e concomitante a isto, o tráfico de escravos estava em alta. No entanto, mesmo diante desse contexto promissor, os ciganos eram estereotipados, tidos por ladrões e trapaceiros. Conforme o relato de Graham: “Alguns deles dedicam-se ao comércio e muitos são extremamente ricos, mas são ainda considerados ladrões e trapaceiros, e chamar um homem Zíngaro [cigano] equivale a chamá-lo de velhaco” (Graham 1956Graham, Maria.1956. Diário de viagem ao Brasil e de uma estada neste país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823. São Paulo: Cia Editora Nacional., 383). Percebe-se, no relato de Maria Graham, uma narrativa simples, porém precisa. A autora não se detém em minúcias a respeito dos ciganos, informa o que “vê” e relata as representações da sociedade da época sobre os ciganos.

O último viajante a descrever a prática do comércio entre os ciganos é James William Wells. Ele inicia sua descrição acerca dos ciganos pela curiosidade de que é tomado ao ver moradias em forma de barracas. Resolve, então, tomar conhecimento aprofundado sobre o assunto. O viajante depara-se com homens de aparência perversa que contrapõe com uma beleza exótica. De início, percebe-se o olhar desconfiado, o medo pelo perigo iminente que se mostra contrário aos bons tratos recebidos do anfitrião. Acentuando a sua desconfiança, recebe a dica cautelosa do companheiro de tropa que lhe informa para tomar cuidado, pois se tratava de ciganos. Percebe-se que o estrangeiro está em meio a uma realidade que desconhece, ora afirma a aparência bonita dos ciganos, ora descreve as caras de criminosos que aparentavam. Ora é cortejado em demasia, ora tem medo de um contato mais efetivo, por se tratar de ciganos. Segue descrição do contato inicial:

Em um terreno ascendente do lado oposto do rio, surgiram umas poucas casas e certa quantidade de barracas brancas. Curioso para descobrir que acampamento era aquele, cavalguei até as barracas, onde me vi cercado por um certo número de sujeitos, os de aspecto mais facínora que eu já vira fora do palco de um teatro. Eram os ciganos. [...] Senti que entrara como que em um ninho de vespas e que precisava por em ação a diplomacia para safar-me com segurança, com meus animais e pertences. [...] Um homenzinho idoso e confortavelmente vestido veio em minha direção, fazendo, enquanto se aproximava chapéu na mão, uma série das mais profundas reverências. Ele se dirigiu a mim como o muito ilustre e excelente Senhor estrangeiro e, apontando para a melhor das casas, informou-me que ela era pobre morada do humilde servo do mais ilustre senhor (referindo a mim) e, colocando sua mão no freio do burro, levou-me até sua porta, onde, com cortesia exagerada, segurou meu estribo e convidou-me a desmontar e entrar. Minha tropa chegava neste momento, e o animal foi consignado a Chico, que aproveitou a oportunidade para sussurrar, ‘Esta gente são ciganos, toma cuidado’. Meu efusivamente amável anfitrião fez-me entrar, com mais uma reverência, em um aposento pequeno, bem mobiliado até, e bastante limpo, e informou-me que era o capitão da tribo, mas sendo agora um homem idoso, tinha abandonado a vida nômade e finalmente se estabelecido aqui, onde alguns dos ‘meninos’ tinham vindo fazer-lhe uma visita. (Wells 1995Wells, James W. 1995. Explorando e viajando três mil milhas através do Brasil – do Rio de Janeiro ao Maranhão, vol. I. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos Históricos e Culturais., 294, grifos da autora).

Para aplacar o medo, o viajante encontra como solução propor ao anfitrião um negócio, diz ao cigano que pretende adquirir dele algumas mulas: “Exprimi minha satisfação em encontrar um cavalheiro tão distinto nestes ermos e a esperança de poder congratular-me pela oportunidade de adquirir algumas mulas” (Wells 1995Wells, James W. 1995. Explorando e viajando três mil milhas através do Brasil – do Rio de Janeiro ao Maranhão, vol. I. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos Históricos e Culturais., 294-5). A proposição da transação o deixa mais tranquilo, pois vê no anfitrião a satisfação gerada pela possibilidade de negociarem.

Logo pela manhã, depois de uma noite não muito calma, iniciaram-se as negociações. Para surpresa do viajante, o chefe do grupo de ciganos apareceu com um número elevado de mulas, algumas excelentes. Tendo selecionado as mais fortes, inicia-se a pechincha em torno do preço. Entre altos e baixos valores, inclusão de serviços extras, chegou-se a um consenso que, para surpresa do viajante, fora de bom tamanho.

Percebe-se durante todo tempo o “olhar” sempre atento e desconfiado do viajante, mesmo que todo o contexto colaborasse para sua despreocupação. A todo o momento ele esperava alguma reação, ou de briga ou de roubo, ou qualquer outra coisa que fugisse ao seu controle, isso tudo pelo fato de estar na presença de ciganos. Ao final do seu contato, mesmo com a sensação de que os ciganos não eram tão nefastos assim, o viajante sai feliz e ao mesmo tempo desconfiado, esperando que a qualquer momento, o verdadeiro dono da sua mula a pudesse confiscar, pois havia pago um preço reduzido por um produto, aparentemente, tão bom, e pelo produto ter sido adquirido de um comerciante cigano.

James Wells (1995Wells, James W. 1995. Explorando e viajando três mil milhas através do Brasil – do Rio de Janeiro ao Maranhão, vol. I. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos Históricos e Culturais., 295-6), quanto ao roubo, dá destaque às mulheres, que apesar de bonitas, eram megeras. Além de pedirem um pouco de tudo que possuía na barraca, aproveitavam toda a oportunidade para roubar o que estivesse pela frente: “A parte feminina da tribo vinha agora visitar-me – moças bonitas e megeras emurchecidas. Logo seguiram-me os pedidos de um pouco de açúcar, um pouco de café, feijão [...] ou qualquer coisa que eu pudesse fornecer.” Quanto aos homens, reafirma o que os outros viajantes descreveram sobre o domínio do comércio de escravos pelos grupos ciganos e, com um “olhar” apurado, relata que eles são conhecidos, no interior, como negociantes de cavalos, ou melhor, como “ladrões de cavalos”: “No interior, são conhecidos como negociantes de cavalos, mas ladrões de cavalos seria provavelmente mais correto. Eles são muito temidos pela gente do interior como povo misterioso.”

Aqui é possível perceber que o tipo de comércio exercido pelos ciganos possibilita aos grupos não só a sobrevivência, em termos financeiros, mas a continuidade de suas tradições que se faz muito presente através do nomadismo. Com a lei Euzébio de Queiróz, em 1850, ocorre o que se chamou de “a crise de braços”, pois a lei proibiu o tráfico de escravizados e tornou a mão de obra negra mais cara (Pesavento 1994Pesavento, Sandra Jatahy. 1994. História do Rio Grande do Sul. 7. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto.). No entanto, mesmo com a proibição, o número de escravizados não diminuiu, devido ao incentivo à natalidade e ao tráfico interno de escravizados.

A partir da abolição da escravatura e da instauração da República dá-se início a uma nova política de modernização há uma reordenação do espaço físico das cidades, as vias públicas e os centros urbanos passam a ser “higienizados” de todos os indivíduos que não fazem parte da nova ordem. Os ciganos, desprovidos do comércio de escravos, retomam as antigas práticas de comercialização, a de cavalos e mulas, tecidos, roupas, joias, enfim, comercializam tudo que o mercado oferecia e que possibilitaria algum tipo de ganho. Dentre as práticas de comercialização entre ciganos e não ciganos, é importante destacar a barganha e a possibilidade do escambo, essa prática os diferenciava dos tradicionais vendedores de porta em porta, os mascates, que tinham a vantagem de negociar a prazo e a partir de encomendas, tática não aplicada pelos ciganos devido ao nomadismo (Teixeira 2009Teixeira, Rodrigo C. 2009. Ciganos no Brasil: uma breve história. Belo Horizonte: Ed. Crisálida.).

Constata-se que, dentre os seis relatos dos viajantes trabalhados aqui, apenas dois mostram ser relativamente imparciais, Henry Koster e Maria Graham. Ambos mantêm o foco na narrativa, descrevendo o que veem ou o que ouvem dizer, mas não emitem julgamento próprio acerca dos grupos e, da mesma forma, não descrevem sobre a prática do roubo entre os ciganos. Os outros quatro viajantes – Jean Baptiste Debret, Saint-Hilaire, Daniel P. Kidder e James W. Wells emitem juízos de valor baseados em sua própria cultura e criam e reproduzem estereótipos.

Baseando-se em tais relatos, observa-se um forte etnocentrismo, explicitado a partir do contato com o “outro”. Os autores carregam no “olhar”, relatam não apenas descrevendo, mas emitindo julgamentos frente à cultura observada. Este “olhar” sobre o “outro”, descrito pelos viajantes, nos permite refletir acerca das representações que foram descritas durante o século 19 e que ainda permeiam o século 20. O comércio, prática utilizada como forma de sobrevivência pelos ciganos, na maioria das vezes, estava ligado ao roubo, e esses eram tidos como parte integrante de sua cultura. Para além de observar, os viajantes carregam o olhar sobre o outro permeando suas narrativas com julgamentos sobre a cultura observada.

Considerações finais

Analisar a forma como os viajantes observaram e descreveram os ciganos ao longo do século 19 e início do século 20, nos possibilitou refletir sobre os efeitos que estes contatos podem ter interferido na construção da identidade cigana, que se forma a partir de diferentes olhares, tanto o olhar dos próprios ciganos, que se constituem por eles mesmos através de um mosaico étnico, como a partir do olhar dos outros, neste caso dos viajantes aqui descritos, que em consequência da diversidade e, ao mesmo tempo, singularidade cultural, os classificaram e definiram de forma inadequada, sem o cuidado de observar as singularidades de cada grupo e, tão pouco o respeito à diversidade cultural e étnica.

Este artigo teve como problema central o olhar dos viajantes sobre os ciganos durante o século 19 e início do século 20. Tal questão surgiu ao nos depararmos com a necessidade de analisar como estes grupos foram vistos e descritos aos longos dos séculos. Pode-se afirmar que ao escrever suas impressões sobre os ciganos e ignorar as particularidades de sua cultura, os viajantes fizeram uso de uma série de elementos: sua formação, suas convicções ideológicas, seu contexto histórico, entre outros fatores. De certa forma, seus escritos são o resultado do olhar direcionado e cheio de significado e interpretações, derivando em um tipo de representação sobre o “outro”, de uma (re)construção do real, tratada, como a tradução mental de uma realidade exterior que foi percepcionada, e que foi evocada – por escrito.

Os relatos dos viajantes, portanto, são importantes veículos portadores de sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Transmitem estereótipos de grupos dominantes, generalizando temas de acordo com os preceitos da sociedade de sua época.

A análise dos relatos dos viajantes, mesmo que parcial, nos possibilita inferir sobre o quanto a representação feita por estes viajantes pode ter influenciado na forma como construiu-se um imaginário negativo acerca destes grupos, tendo em vista que tais relatos eram oficialmente aceitos e lidos por parte da elite brasileira e europeia e que estes conteúdos eram considerados como documentos oficiais, uma vez que estes viajantes representavam seus países.

As interpretações de seus hábitos e modo de ser – feitas sob o prisma de quem desconhece os porquês de tais manifestações –, facilmente tangenciavam a imprecisão, a distorção e o erro, de modo a semear desconfiança e medo naqueles que tinham contato com tais manifestações culturais. As representações elaboradas sobre os ciganos ao longo do tempo, evidenciaram, por fim, a continuidade do olhar carregado de juízo de valor sobre o outro, e engendram imagens distorcidas, simplificações, estereótipos e discriminações.

Com isso, foi possível compreender como tais representações foram descritas e construídas ao longo do século 19 e início do século 20. Esses relatos nos permitiram refletir sobre a forma como o comércio praticado pelos ciganos foi associado a um estereótipo negativo – o roubo –, que até hoje permeia o imaginário coletivo daqueles que não conhecem minimamente a cultura destes povos. Portanto, os relatos de viagem nos permitem constatar que a imagem dos ciganos se constitui de um conjunto de representações que permeiam séculos e continuam no imaginário de quem desconhece tal cultura.

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    Sobre literatura de viagem ver obras: a) Lisboa, Karen Macknow. 2000. Olhares estrangeiros sobre o Brasil do século XIX. In Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias, 2. ed., organizado por Carlos Guilherme Mota, 265-99. São Paulo: Editora. b) Barreiro, José Carlos. 2002. Imaginário e viajantes no Brasil do século XIX: cultura e cotidiano, tradição e resistência. São Paulo: Editora UNESP. c) Noal, Valter Antônio Filho, e Sérgio da Costa Franco. 2004. Os viajantes olham Porto Alegre: 1754-1890. Santa Maria: Anaterra. d) Noal, Valter Antônio Filho, e Sérgio da Costa Franco. 2004.Os viajantes olham Porto Alegre: 1890-1941. Santa Maria: Anaterra.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

Referências

  • Cardoso, Sérgio. 1988. O olhar viajante (do etnólogo). In O Olhar, organizado por Adauto Novais, 348-58. São Paulo: Companhia das Letras.
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    » https://doi.org/10.1590/S0102-01882008000100007
  • Ferrari, Florência. 2002. Um olhar oblíquo: contribuições para o imaginário ocidental sobre o cigano. Dissertação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.
  • Graham, Maria.1956. Diário de viagem ao Brasil e de uma estada neste país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823 São Paulo: Cia Editora Nacional.
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  • Koster, Henry. 1942. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
  • Saint-Hilaire, Auguste de. 1976. Viagens à província de São Paulo Belo Horizonte: Itatiaia.
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  • Martinez, Nicole. 1989. Os ciganos. Campinas: Papirus.
  • Pesavento, Sandra Jatahy. 1994. História do Rio Grande do Sul. 7. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto.
  • Souza, Laura de Mello e. 1993. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII São Paulo: Companhia das Letras
  • Schwarcz, L. Moritz. 1993. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras.
  • Teixeira, Rodrigo C. 2009. Ciganos no Brasil: uma breve história. Belo Horizonte: Ed. Crisálida.
  • Wells, James W. 1995. Explorando e viajando três mil milhas através do Brasil – do Rio de Janeiro ao Maranhão, vol. I. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos Históricos e Culturais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2022
  • Aceito
    7 Mar 2023
  • Publicado
    04 Nov 2023
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