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O feminismo negro contra a injustiça epistêmica: um estudo das abordagens de Sueli Carneiro e Patricia Hill Collins

Black feminism thought against epistemic injustice: a study of the approaches of Sueli Carneiro and Patricia Hill Collins

El feminismo negro contra la injusticia epistémica: un estudio de los enfoques de Sueli Carneiro y Patricia Hill Collins

Resumo:

O artigo discute as contribuições do feminismo negro para a crítica da injustiça epistêmica – aqui entendida como uma das faces da injustiça social global. Particularmente, são analisadas as abordagens da filósofa brasileira Sueli Carneiro e da socióloga estadunidense Patricia Hill Collins. Cada qual em seu contexto pós-colonial, as duas autoras (a) teorizam a respeito dos mecanismos de opressão/sujeição das mulheres negras e suas lutas por emancipação; (b) formulam sua crítica tendo em vista as matrizes teóricas e epistemológicas do conhecimento hegemônico; (c) apresentam horizontes alternativos existentes, que emergem a partir do feminismo negro. O artigo conclui positivamente quanto ao vigor e a importância da crítica social formulada por ambas e argumenta quanto à relevância de enquadrar o debate sob os termos das reivindicações por justiça social.

Palavras-chave:
Pensamento feminista negro; Justiça epistêmica; Interseccionalidade; Epistemicídio; Justiça social

Abstract:

The article discusses the contributions of black feminism thought to the critique of the epistemic injustice – here understood as one of the faces of social injustice, globally considered. This work analyzes, particularly, the approaches of the Brazilian philosopher Sueli Carneiro and the American sociologist Patricia Hill Collins. Each in its post-colonial context, the two authors (a) theorize about the mechanisms of oppression/subjection of black women and their struggles for emancipation; (b) formulate their critical theories considering the theoretical and epistemological matrices of hegemonic knowledge; (c) present some existing alternative horizons, which emerge from black feminism thought. The article draws positive conclusions as to the vigor and importance of social criticism formulated by both authors and argues in defense of the relevance of framing the debate under the terms of the claims for social justice.

Keywords:
Black feminist thought; Epistemic justice; Intersectionality; Epistemicide; Social justice

Resumen:

El artículo discute las contribuciones del pensamiento feminista negro a la crítica de la injusticia epistémica – aquí entendida como uno de los rostros de la injusticia social, globalmente considerada. Este trabajo analiza, en particular, los planteamientos de la filósofa brasileña Sueli Carneiro y de la socióloga estadounidense Patricia Hill Collins. Cada una en su contexto poscolonial, las dos autoras (a) teorizan sobre los mecanismos de opresión/sujeción de las mujeres negras y sus luchas por la emancipación; (b) formulan sus teorías críticas considerando las matrices teóricas y epistemológicas del saber hegemónico; (c) presentan algunos horizontes alternativos existentes, que emergen del pensamiento del feminismo negro. El artículo extrae conclusiones positivas en cuanto al vigor e importancia de la crítica social formulada por ambas autoras y argumenta en defensa de la pertinencia de enmarcar el debate en los términos de las reivindicaciones de justicia social.

Palabras clave:
Pensamiento feminista negro; Justicia epistémica; Interseccionalidad; Epistemicidio; Justicia social

Introdução

Quando se trata de discutir a condição das mulheres negras nas sociedades contemporâneas, bem como as lutas do feminismo negro, é bastante comum que alguma concepção normativa de justiça social seja articulada (Carneiro 2003Carneiro, Sueli. 2003. Mulheres em movimento. Estudos Avançados 17 (49): 117-132. https://doi.org/10.1590/S0103-40142003000300008.
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; Collins 2017Collins, Patricia Hill. 2017. Se perdeu na tradução? Parágrafo 5 (1): 6-17.; 2022Collins, Patricia Hill. 2022. Bem mais que ideias. São Paulo: Boitempo., 347-387; Crenshaw 1992; Gonzalez 2020Gonzalez, Lélia. 2020. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar., 183-190). Sob esse guarda-chuva, encontra-se um debate fundamental aos grupos subalternizados em geral, e ao feminismo negro em particular: o problema da injustiça epistêmica, mediante a qual se nega a determinados grupos e sociedades a expressão legitimada de suas próprias biografias, narrativas históricas e conflitos sociais segundo considerações imanentes, categorias pertinentes e caminhos autônomos e autodeterminados (ainda que não sectários) de produção do conhecimento.

No que tange à produção da explicação social, um dos elementos que se tem colocado em questão é o eurocentrismo socioteórico, através do qual é reificada e universalizada a experiência social de uma amostragem pequena, porém globalmente dominante, da humanidade (Connell 2012Connell, Raewyn. 2012. A iminente revolução na Teoria Social. Revista Brasileira de Ciências Sociais 27 (80): 9-20. https://doi.org/10.1590/S0102-69092012000300001.
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); experiência que serve de padrão normativo e referencial analítico para o estudo de todo fenômeno social supostamente análogo, não obstante as realidades concretas de seus sujeitos e suas autointerpretações. Não se pretende, com isso, afirmar que existe apenas uma forma de experiência social em todo “norte global”, mas sim que um projeto social emancipatório não pode desprezar o risco de que tais teorias não deem conta de apreender e traduzir outras conjunturas político-econômicas, formas não hegemônicas de interpretação e significação da realidade e concepções de justiça referentes a grupos e povos subalternizados.

É diante desse debate que Boaventura de Sousa Santos (2010)Santos, Boaventura de Sousa. 2010. A Gramática do tempo. São Paulo: Cortez. cunha o conceito de epistemicídio para designar a destruição de conhecimentos alternativos que poderiam pôr em causa o privilégio epistemológico do sujeito ocidental dito moderno. Não se trata apenas de uma problemática geopolítica, mas também, e necessariamente a ela concatenada, de um processo racializado e generificado: a injustiça epistêmica opera por mecanismos de dominação e opressão que relegam uma racionalidade inferior a mulheres, grupos racialmente subjugados e outros marcadores. Particularmente, a ideia de raça, em sua dimensão ideológica de legitimação das relações mundiais de poder estabelecidas desde a aurora da modernidade capitalista (Amin 1989Amin, Samir. 1989. El eurocentrismo. México-D.F.: Siglo 21 Editores.; Quijano 2005Quijano, Aníbal. 2005. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América latina. In Pensamento crítico e movimentos sociais, organizado por Roberto Leher e Mariana Setúbal, 35-95. São Paulo: Cortez.; Dussel 1993Dussel, Enrique. 1993. 1492, o encobrimento do outro. Petrópolis: Vozes.), é fundamental à afirmação dominadora do sujeito hegemônico.

Tendo isso em vista, a proposta do artigo é discutir o problema da injustiça epistêmica sob a perspectiva do pensamento feminista negro, com foco nas abordagens de Sueli Carneiro e Patricia Hill Collins. Ainda que a expressão “injustiça epistêmica” não se encontre com grande frequência em seus textos, entendemos que o tema é central às autoras e que suas formulações podem enriquecer o debate ao colocarem ênfase sobre a incidência específica dessa injustiça sobre as mulheres negras, vislumbrando caminhos para sua superação.

Analiticamente, o texto propõe uma diferenciação dos processos de injustiça epistêmica em duas dimensões: uma socioinstitucional, referente aos obstáculos ao ingresso e permanência de mulheres negras nas instituições de produção do conhecimento legitimado, bem como os constrangimentos informais que se impõem sobre elas nesses espaços; e outra epistemológica, referente ao caráter androcêntrico e eurocêntrico dos temas, conceitos e matrizes teóricas predominantes, que fixam o universo possível de experiências sociais cognoscíveis. Essa distinção se encontra presente no argumento de Collins quando afirma que “as instituições sociais que legitimam o conhecimento, bem como as epistemologias ocidentais ou eurocêntricas que elas sustentam, constituem duas partes inter-relacionadas dos processos dominantes de validação do conhecimento” (Collins 2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo., 438). Assim, este trabalho discutirá, primeiro, a problemática socioinstitucional e, depois, a dimensão epistemológica. Em seguida, será discutida a concatenação entre as duas dimensões.

A dimensão socioinstitucional

Em linhas gerais, a dimensão socioinstitucional da injustiça epistêmica se refere a como as principais instituições de ensino e produção do conhecimento operam de forma discriminatória em relação a diferentes grupos sociais. Tendo em vista que racismo e heterossexismo se constituem para além das relações interpessoais, configurando-se institucional e estruturalmente (cf. Almeida 2019Almeida, Silvio. 2019. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen.; Collins 2015Collins, Patricia Hill. 2015. Em direção a uma nova visão. In Reflexões e práticas de transformação feminista, organizado por Renata Moreno, 13-42. São Paulo: Sempreviva., 2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo.), faz-se importante compreender os mecanismos discriminatórios específicos que atravessam as instituições. Ademais, deve-se considerar também que as formas de subjetivação vigentes não operacionalizam suas discriminações raciais e de gênero/sexualidade enquanto instâncias separadas, mas de modo imbricado: conforme mostra o pensamento interseccional (Crenshaw 1991Crenshaw, Kimberle. 1991. Mapping the Margins. Stanford Law Review 43(6):1241–79. https://doi.org/10.2307/1229039.
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; Collins 2022Collins, Patricia Hill. 2022. Bem mais que ideias. São Paulo: Boitempo.), a subalternização das mulheres negras trabalhadoras não é “apenas” um somatório das opressões oriundas da classe, da raça e do gênero, mas adquire um caráter sui generis, cujo funcionamento opera conforme contingências espaço-temporais.

Quanto à dimensão institucional, também se encontram contribuições notáveis na obra de Carneiro, que toma a escola e a universidade como espaços estruturantes de relações sistêmicas de dominação e opressão. Ou, para usar o jargão foucaultiano da autora, instituições que operacionalizam dispositivos biopolíticos de racialidade (e sexualidade), sujeitando corpos femininos e não brancos a um exercício específico de poder. De modo a melhor apresentar essa crítica, convergente entre as duas autoras, pode-se sintetizar quatro pontos fundamentais.

O primeiro se exprime na sintética proposição de Collins (2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo., 438):

“raça, classe e gênero posicionam mulheres asiático-americanas, homens nativo-americanos, homens brancos, mulheres afro-americanas e outros grupos em nichos institucionais distintos, que têm graus variados de punições e privilégios”

O que está em questão é a identificação, dentro das instituições do conhecimento, de imposições discriminatórias, conformando diferentes níveis de exigência acadêmica e comportamental, expectativas de sucesso e mecanismos de punição/recompensa em função da classe, do gênero, da “raça” e das subjetividades coercitivamente constituídas a partir da intersecção desses marcadores. Não raro, esse elemento discriminatório da instituição opera também como mecanismo desqualificador da resistência (cf. Carneiro 2011Carneiro, Sueli. 2011. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro., 38-41), construindo e reproduzindo discursos que ridicularizam ou inferiorizam práticas sociais ou contradiscursos.

Um segundo aspecto é a “exclusão social dos negros, sobretudo no que tange ao acesso, permanência e sucesso no sistema educacional do país” (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 9). Embora Carneiro e Collins estejam tratando de formações nacionais distintas, a leitura das duas autoras revela uma convergência quanto a este aspecto: a distribuição desigual de vantagens e privilégios acaba por promover a exclusão das mulheres negras de experiências educacionais de qualidade, ou mesmo do letramento básico – o que, somado a outros aspectos da discriminação sexual e racial, limita seu acesso às mais altas posições acadêmicas (Collins 2017Collins, Patricia Hill. 2017. Se perdeu na tradução? Parágrafo 5 (1): 6-17., 440). Entretanto, ambas rejeitam limitar o problema à questão da “desigualdade de oportunidades”: o caráter da opressão estrutural das mulheres negras, ou de sua sujeição biopolítica (para aludir a Carneiro) transcende a configuração formal dos arranjos institucionais, sendo também atravessado por estratégias discursivas e normativas complexas, constitutivas do caráter simbólico-discursivo do racismo/sexismo.

Em terceiro lugar, as autoras partilham da avaliação que, sob “instituições controladas por homens brancos” (Collins 2017Collins, Patricia Hill. 2017. Se perdeu na tradução? Parágrafo 5 (1): 6-17., 437), os procedimentos discriminatórios e os modos de subjetivação subalternizantes incididos sobre determinados grupos têm garantido a primazia dos interesses e concepções ideológicas de um grupo humano restrito. Em geral, é desse recorte (homens brancos de elite) que provêm os ocupantes dos principais postos acadêmicos e editorais, responsáveis pelo controle sobre processos de atribuição de credibilidade. Dois resultados são bastante evidentes: a presença de critérios (bio)políticos subjacentes aos processos de validação do conhecimento,2 2 A discussão da validação do conhecimento é particularmente importante para se compreender historicamente a constituição dos dispositivos de racialidade no Brasil. Na República Velha, sobretudo, o racismo científico em voga e as campanhas sanitaristas (ainda que estas deslocassem o problema para o campo da doença) foram centrais para a validação do que poderia ser tido como humano e digno de constituir a nação que se formava. Se a Abolição garantia a liberação do trabalhador negro para a nova realidade econômica que se buscava consolidar, os novos dispositivos biopolíticos visavam controlar a “degeneração da população”, mediante uma tecnologia de racismo cujo discurso se difundia nas instituições políticas, judiciais, científicas e educacionais. A esse respeito, ver: Lima e Hochman 1996; Roitberg e Faggion 2021. ironicamente contrariando a autocompreensão normativa da academia hegemônica (de uma ciência neutra e alheia à experiência corporificada de seus sujeitos), e a supressão do pensamento feminista negro (bem como de outros referenciais teóricos e epistemológicos subalternos).

O quarto aspecto se refere a como esses obstáculos conduziram historicamente mulheres negras a

“usar a música, a literatura, as conversas cotidianas e o comportamento cotidiano como dimensões importantes para a construção de uma consciência feminista negra” (Collins 2017Collins, Patricia Hill. 2017. Se perdeu na tradução? Parágrafo 5 (1): 6-17., 437).

A configuração institucional dos espaços de construção do saber legítimo, em geral hostil a subjetividades não masculinas e não brancas, relegou o pensamento feminista negro a outras instâncias de produção e enunciação de saber por muitas décadas. Apenas recentemente, destaca Collins, o ensino superior e os meios de comunicação passaram a se abrir um pouco mais para a atividade intelectual feminista negra.

É com vista a estes aspectos da injustiça epistêmica, em sua dimensão institucional, que Collins nos apresenta a metáfora da “antebellum plantation” na discussão das instituições sociais norte-americanas, tendo como referência as relações sociais sob a grande propriedade escravocrata no sul dos Estados Unidos. Para desenvolver essa analogia, a autora começa indicando que a escravidão não foi apenas uma instituição racista, mas que entrelaçou raça, classe e gênero: além de comportar o evidente componente da desumanização calcada na ideia de raça, foi também uma instituição patriarcal, controladora da sexualidade e promotora de um regime específico de propriedade.

Dessa forma, a propriedade escravocrata conformava diferentes graus de proteção institucional oferecidos às mulheres brancas abastadas, mulheres brancas trabalhadoras e pobres, e às mulheres negras escravizadas. Na cadeia geral de comando na plantation, observa-se: o senhor branco como patriarca; sua esposa branca que o serve e lhe auxilia a cuidar da propriedade e criar seus herdeiros; mulheres e homens negros, desempenhando desumanamente trabalhos de produção e reprodução conforme a demanda da economia política capitalista. Fora da fazenda, sem deter propriedade: trabalhadores “livres”, homens e mulheres brancas, inseridos na economia política capitalista mediante diversas formas, embora sem os mais duros tratamentos legados aos escravizados. Estavam sujeitos à opressão de classe e mantinham também em suas relações recíprocas formas generificadas de subordinação.

O argumento de Collins é que a estrutura geral dessa cadeia de poder é mantida em diversas instituições contemporâneas. A autora questiona, assim, se a universidade atual não constituiria uma espécie de plantation moderna, com: (a) recursos materiais controlados por homens brancos de elite; (b) uma sobrerrepresentação desse grupo entre os altos administradores da instituição, acompanhada de uma sub-representação de outros grupos; (c) a presença, embora não tão majoritária e poderosa, de mulheres brancas de elite que dão respaldo ao trabalho dos homens brancos de elite; (d) o perfil majoritariamente branco e masculino dos professores, que além de figuras de autoridade são os responsáveis pela produção do conhecimento e formação das próximas gerações; (e) o perfil majoritariamente negro de trabalhadores de baixa qualificação das universidades (manutenção, alimentação, limpeza etc.), cuja divisão do trabalho também responde a critérios sexuais.

Essa estrutura de poder não é substancialmente distinta nas instituições brasileiras. É o que indica o estudo de Sueli Carneiro quanto ao processo epistemicida incidido sobre comunidades negras e indígenas no Brasil, remontando aos primeiros séculos da colonização. Sua obra discute como se deu, desde então, a

“tentativa de supressão do conhecimento nos processos de controle, censura e condenação da disseminação de ideias” (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 102).

Constata a filósofa que, mesmo após a descolonização, a abolição oficial da escravatura e a instauração do regime republicano, o processo epistemicida não cessou. Antes, adquiriu novas características: junto da recepção do racismo científico entre aclamados pensadores nacionais, entraram em cena

“os procedimentos de contenção, exclusão, assimilação na relação dos negros com os processos educacionais frente a sua nova condição de liberto indesejável como cidadão” (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 102).

As mesmas instituições que, durante quatro séculos, operaram para validar e justificar a escravidão negra, agora passam a se reconfigurar: desqualificam os sujeitos através da desqualificação de seus saberes. No limite, o discurso hegemônico permaneceria operando pelo dispositivo da racialidade, em um contexto de absorção de horizontes iluministas pela intelectualidade local. Seguia-se sustentando a perspectiva de que

“verdadeiros negros são incapazes de civilização e, se civilização houve na África, não pode ser atribuída aos povos negros e sim a um ramo da raça branca” (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 107).

Como se vê, a dinâmica colonial e a perpetuação de uma estrutura de relações institucionais que configura desigualmente vantagens, violências e privilégios, conforme critérios de raça, classe e gênero, é tema comum entre as duas autoras – não obstante a diferença terminológica e teórica. No que se refere às estratégias de resistência, nota-se também algumas convergências importantes. Por exemplo, ambas contrariam o discurso hegemônico, que tende a se reduzir à crítica da sujeição institucional a reivindicações por igualdade de oportunidades. Essa tendência se refletiria na opção preferencial dos poderes públicos por políticas de caráter universal, em detrimento de políticas focalizadas de ação afirmativa ou ações que favorecessem transformações efetivas na valoração ética vigente e nas práticas institucionais que reproduzem padrões discriminatórios.

Carneiro, identificando que as políticas universais empreendidas por décadas não foram capazes de abalar as desigualdades raciais e de gênero nas instituições educacionais brasileiras, coloca-se em defesa da focalização. Segundo ela, cumpre reconhecer que as políticas universalistas, em sua efetividade, abandonaram o “princípio de solidariedade, o que resultou na apropriação por não pobres de recursos destinados aos pobres.” (Carneiro 2011Carneiro, Sueli. 2011. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro., 98).

Deve-se assinalar que a reivindicação de políticas focalizadas não implica, para ela, uma visão particularista ou diferencialista de justiça social. A política focalizada é reivindicada sob um princípio universal de solidariedade e enquanto medida de superação de desigualdades e formas de discriminação. Trata-se de reconhecer que a complexidade dos dispositivos biopolíticos da racialidade (e da sexualidade) – constituídos de tecnologias, normas, estratégias e discursos que atravessam as instituições modernas – não pode ser dissolvida se ignorados os modos específicos de subjetivação e as práticas específicas de discriminação, instaurados por esses dispositivos e promotores de exclusões institucionais pautadas na raça, no gênero, na classe e em suas intersecções.

Em contraste, a visão liberal de política antirracista (pautada, na melhor das hipóteses, na igualdade de oportunidades) não deixa de coadunar com certa acepção liberal para a interseccionalidade, não raro presente em estudos sociológicos que reclamam uma abordagem interseccional. Quanto a isso, Collins (2017Collins, Patricia Hill. 2017. Se perdeu na tradução? Parágrafo 5 (1): 6-17., 2022Collins, Patricia Hill. 2022. Bem mais que ideias. São Paulo: Boitempo.) entende que, no movimento de tradução de uma interseccionalidade construída nas bases do movimento feminista negro para o espaço acadêmico, pode-se verificar a tendência de uma incorporação pelo discurso acadêmico hegemônico, de matriz positivista e hoje sob influência neoliberal, de esvaziar o conteúdo emancipatório das lutas. Em contraste, coloca-se em defesa de um feminismo constituído explicitamente por ideias centrais de liberdade, equidade, justiça social e democracia participativa.

A discussão de Collins a respeito da ressignificação do pensamento interseccional é bastante emblemática para a exposição das concatenações entre a problemática institucional e a questão epistemológica, aqui separadas para fins analíticos. De fato, conforme se encontra subjacente ao pensamento de ambas as autoras, as relações de poder que condicionam nas instituições acadêmicas vantagens e desvantagens, privilégios e obstáculos, oportunidades e violências também atravessam as possibilidades epistemológicas, teóricas e metodológicas que encerram o conhecimento legítimo. Antes de discutir tais imbricações, cabe melhor analisar a dimensão epistemológica do problema.

A dimensão epistemológica

Costuma-se compreender epistemologia como o campo da Filosofia que se dedica às condições de validação do conhecimento. Historicamente, a epistemologia discute, por exemplo, o que e como podemos conhecer, e quais são os procedimentos mais adequados para a averiguação e demonstração da Verdade. Esta, em geral, foi tomada de modo atemporal e universal pelas principais teorias modernas do conhecimento; sua busca foi, segundo certa compreensão que remonta a Descartes (2004)Descartes, René. 2004. Meditações sobre filosofia primeira. Campinas: Editora Unicamp., concebida como um caminho intelectual para o qual as experiências corporificadas do sujeito cognoscente seriam indiferentes ao conhecimento produzido. Assim, o dualismo psicofísico cartesiano conduziu a outro dualismo: uma separação radical entre o sujeito e o objeto do conhecimento (Horkheimer 1980Horkheimer, Max. 1980. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In Walter Benjamin, Max Horheimer, Theodor Adorno, Jürgen Habermas. Textos escolhidos, organizado por Zeljko Loparic e Otília B. Fiori, 117-60. São Paulo: Abril Cultural.). De tal visão derivou o horizonte científico de uma ciência pretensamente livre de valorações ou de contaminações subjetivas, políticas, ideológicas etc. Trata-se, em sua forma mais representativa, do positivismo, conforme desenvolvido no século 19 e ainda influente.

Essa tradição foi questionada no seio da própria “modernidade ocidental” por, no mínimo, dois caminhos, os quais se entrelaçam entre si. Um remonta ao pensamento dialético hegeliano, que foi repensado por Marx e inspirou a Escola de Frankfurt e sua compreensão de Teoria Crítica (Horkheimer 1980Horkheimer, Max. 1980. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In Walter Benjamin, Max Horheimer, Theodor Adorno, Jürgen Habermas. Textos escolhidos, organizado por Zeljko Loparic e Otília B. Fiori, 117-60. São Paulo: Abril Cultural.). Outro alude à crítica da modernidade de Nietzsche e sua investigação genealógica dos valores e concepções predominantes no mundo ocidental, cuja influência sobre Foucault (2014Foucault, Michael. 2014. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes., 2020Foucault, Michael, 2020. História da sexualidade (vol.1). São Paulo: Paz e Terra.) resultou em um vasto estudo crítico das instituições modernas e seus regimes de saber-poder. Não surpreende, assim, que importantes referências do feminismo negro tenham travado interlocuções com Marx e Foucault: as abordagens fornecidas por essas duas linhagens, assim como o vasto acúmulo intelectual construído pelas mulheres negras fora da academia, são capazes de indicar que “longe de ser um estudo apolítico da verdade, a epistemologia indica como as relações de poder determinam em que se acredita e por quê” (Collins 2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo., 437).

Entretanto, não são essas tradições que Collins e Carneiro identificam como hegemônicas na academia contemporânea. Na melhor das hipóteses, autores como esses podem funcionar como “mediadores razoavelmente confiáveis” (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 22) para uma interlocução entre o feminismo negro e o conhecimento hegemônico. Antes, um tipo de epistemologia ainda muito enraizada no positivismo é que seguiria em voga, fornecendo os principais critérios e orientações à construção do conhecimento legítimo. Reconhecendo que ele não é único, nem exclusivo, nem homogêneo nas universidades estadunidenses, Collins (2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo., 442-443) nos oferece uma descrição estilizada de suas suposições epistêmicas:

Em primeiro lugar, os métodos de pesquisa geralmente exigem que quem a realiza tenha distanciamento de seu ‘objeto’ de estudo, definindo quem pesquisa como um ‘sujeito’ com plena subjetividade humana e objetificando o ‘objeto’ de estudo. Um segundo requisito é a ausência de emoções no processo de pesquisa. Em terceiro lugar, a ética e os valores são considerados inadequados no processo de pesquisa, seja como motivo da investigação científica, seja como parte do próprio processo de pesquisa. Finalmente, os debates formados por ideias contrárias, escritos ou orais, são o método preferido de averiguação da verdade: argumentos capazes de resistir aos ataques e sobreviver intactos se tornam as verdades mais fortes.

Assim, tais abordagens criam “descrições científicas da realidade por meio da produção de generalizações objetivas” (Collins 2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo., 442), supondo que a verdadeira ciência só é alcançável mediante uma descorporificação do sujeito congoscente: sua experiência enquanto ser situado no mundo, inserido em relações de classe, gênero e raça, é indiferente ao conhecimento produzido. Isso é garantido pelo seguimento a regras metodológicas rigorosas, capazes de isolar os valores e interesses condicionados pela situação específica do pesquisador no mundo e constituí-lo como autêntico “observador e manipulador da natureza”.

No seio dessa crítica às premissas epistêmicas hegemônicas da modernidade, Sueli Caneiro procura construir uma interpretação da sujeição racial no Brasil mediante um diálogo com Foucault. A primeira parte de sua tese de doutoramento se dedica a apresentar sua compreensão de epistemicídio como dispositivo de biopoder; mais precisamente, como dispositivo de racialidade. Um primeiro ponto a ressaltar é o aparente intercâmbio que se lê no texto da autora, em que ora o epistemicídio aparece referido ao “biopoder”, ora à “racialidade”. Isso se dá porque a racialidade, na compreensão da autora, é tida como uma “noção relacional”, que “

emerge da interação de grupos racialmente demarcados sob os quais pesam concepções históricas e culturalmente construídas acerca da diversidade humana” (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 34).

Na qualidade de noção, a racialidade é um elemento do saber e, portanto, uma construção fundada em relações de poder. Mas não estão em questão quaisquer relações de poder. Trata-se de relações de biopoder, do poder institucional exercido sobre a vida (e sobre a morte): os dispositivos das sociedades disciplinares definem perfis específicos para a sujeição à vida e à morte, em uma dinâmica que articula modos de subjetivação vinculados às ideias de racialidade e à sexualidade. Isso é particularmente notável quando se observa as tecnologias de controle sobre a reprodução, que se incidem sobre os corpos das mulheres, em geral, mas de modo diferenciado de acordo com a racialidade (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 72).

Um segundo aspecto é seu caráter de dispositivo, uma complexa formação de discursos, instituições, normas, proposições científico-filosóficas que cumpre função estratégica dominante em dado momento histórico. Trata-se de um campo de racionalidade, uma rede heterogênea formada por elementos discursivos e institucionais, práticas e saberes, que se reproduz mediante a estratégia de dominação que a move. É nessa condição que a racialidade não apenas demarca relações interpessoais, mas produz

“um campo ontológico, um campo epistemológico e um campo de poder, conformando, portanto, saberes, poderes e modos de subjetivação cuja articulação institui um dispositivo de poder” (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 56).

Em terceiro lugar, assumir a racialidade (e a sexualidade) enquanto modalidade do biopoder significa enxergar nela um mecanismo produtivo do saber, particularmente de um saber legitimado que se impõe sobre os corpos assujeitados. O conhecimento, dito de outro modo, é tomado por Foucault como necessariamente vinculado às relações institucionais de poder que o produzem. Não haveria assim um “ponto zero” do saber, um conhecimento produzido de modo apartado das relações socioinstitucionais concretas e alheio às dinâmicas de dominação e resistência nelas presentes.

A partir dessas considerações, temos que o entendimento do epistemicídio como dispositivo de racialidade, e desta como modalidade do biopoder exercido sobre corpos assujeitados nas sociedades disciplinares, faz com que Carneiro vá além da compreensão de Santos (2010)Santos, Boaventura de Sousa. 2010. A Gramática do tempo. São Paulo: Cortez.. O sociólogo apresenta-o como elemento fundamental da violência colonial, ao lado do genocídio dos povos originários. O epistemicídio, segundo o autor, promoveu a subalternização, ou mesmo eliminação, de práticas e grupos sociais capazes de ameaçar a expansão capitalista – considerando que esta envolve também a forçada universalização de uma determinada epistemologia científica e, ao lado dela, uma determinada divisão social do trabalho intelectual. Para Carneiro, porém, o epistemicídio é também um processo produtivo, pelo qual a indigência cultural é sistematicamente construída. Isso ocorre, segundo a autora,

pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento ‘legítimo’ ou legitimado. (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 97).

É nessa desqualificação dos sujeitos subalternizados que reside o processo relacional que intitula a tese da autora: “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”. A europeidade, enquanto atributo provedor de vantagens, poder e privilégios nas sociedades ditas modernas, tem como mediação necessária de sua constituição identitária a negação ontológica do ser-negro, ser-indígena etc., assim como a masculinidade constitui-se pela negação ontológica do ser-mulher. Não se nega, evidentemente, que mulheres e negros existam, mas sim que eles existam integralmente como humanos, que partilhem integralmente das propriedades ditas humanas.

Tal negação se operacionaliza por mediações que podem ser mais ou menos sutis ou sofisticadas: atravessam discriminações mais ou menos explícitas, desigualdades abissais de acesso a recursos, modos de subjetivação que formam e deformam a autopercepção dos sujeitos, sua autoestima e seus horizontes de expectativas. Longe de ser circunstancial, a negação da humanidade integral a esses sujeitos é elemento essencial à manutenção das relações vigentes de poder e dominação. Precisamente por isso é desenvolvida, reproduzida e aprimorada uma complexa tecnologia de dominação, para as quais as instâncias educacionais e instituições de produção do conhecimento são fundamentais.

Como visto, um elemento importante da crítica aos princípios epistemológicos dominantes dessas instituições é a rejeição de uma concepção decorporificada de sujeito cognoscente. Daí que, ao apontarem os limites da epistemologia vigente, as autoras identifiquem também o sujeito hegemônico que o produz – suas experiências, sua situação no mundo – e a relação deste com as condições socioinstitucionais que seu conhecimento sustenta, reproduz e legitima. Essa contraposição do feminismo negro ao sujeito hegemônico é representada com brilhantismo na “Introdução” da tese de Sueli Carneiro. O texto, que constitui uma espécie de carta ao Eu Hegemônico, é iniciado com a autora identificando seu lugar de enunciação – o lugar dos “excluídos da res (pública)”, dos “destituídos do direito à educação”, do “paradigma do Outro” (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 20) – e convidando seu interlocutor a um diálogo reconciliatório da humanidade de ambos. Uma das marcas do pensamento hegemônico, cuja corporificação a autora se empenha em desnudar, é a autoatribuição de universalidade, concomitante ao enclausuramento do Outro no domínio do particular.

Embora desterrada para o domínio das particularidades, das contingências, ou exterioridades do ser no qual me confinastes, pulsa em mim, em repulsa a esse ôntico ao qual me reduzistes, um resto ontológico que busca um diálogo restaurador dessa dupla mutilação que empreendestes em relação a ambos. Tu te encontras encastelado na contemplação da Ideia que tens do mundo e eu, anjo caído, residente nesse mundo te convido a olhá-lo com olhos que te permitam ver nele a tua face refletida. Só eu posso te ofertar esse olhar no qual a plenitude do teu ser se manifesta. (Carneiro 2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 21).

Há uma série de aspectos notáveis nesse excerto. Destaquemos dois. Um primeiro é a distinção conceitual entre o ôntico e o ontológico, trazida de Heidegger, segundo a qual o ontológico diz respeito ao ser enquanto tal (o Ser Humano em sua integralidade), enquanto o ôntico é uma referência a determinações particulares do ser. De tal modo que, diz Carneiro (2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 27),

“raça, cor, cultura, religião e etnia seria da ordem do ôntico, das particularidades do ser. Ser, e especificamente Ser Humano, escreve-se na dimensão ontológica”.

Os dispositivos de racialidade e sexualidade, nesse sentido, atuam para reduzir o ser a sua dimensão ôntica, enclausura sua valoração a uma determinação particular – de ser mulher, negra, selvagem, macumbeira, ou outros marcadores da subalternização – mas lhe nega a condição ontológica, a completude humana. O sujeito hegemônico, conforme o processo histórico que o forjou, atribui a si próprio a condição de universalidade e aos outros trancafia na particularidade. A implicação epistêmica é clara: o conhecimento produzido por esse “sujeito universal” – a partir de um método de validade “universal”, segundo uma epistemologia que lhe encaminha à verdade “universal” – é sintetizado como o conhecimento universal.

Não é objetivo da tese de Sueli Carneiro apresentar horizontes epistêmicos alternativos, mas discutir o epistemicídio no contexto educacional, bem como algumas experiências de resistência. É em Patricia Hill Collins que podemos encontrar uma sistematização mais clara de uma epistemologia outra que emerge das experiências e tradições culturais cultivadas pelas mulheres negras. Não se trata de um novo referencial epistemológico geral para a Filosofia e as Ciências Sociais. A epistemologia feminista negra descrita por Collins se refere a critérios e procedimentos de validação do conhecimento desenvolvidos pelas mulheres negras nos espaços extra-acadêmicos, constituídos a partir de suas condições históricas, seu trabalho, sua práxis, sua experiência.

Não por acaso, o primeiro ponto da epistemologia feminista negra que a autora indica é a experiência vivida como critério de significado. O acúmulo de experiências de objetificação das mulheres negras, as quais não encontram as mesmas proteções institucionais conferidas “pela pele branca, pela masculinidade e pelo dinheiro” (Collins 2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo., 445), resultou na construção de uma sabedoria específica para a vida e sobrevivência. Tomar a experiência vivida como critério de significado, diante disso, não significa torná-la critério de verdade universal, mas encontrar na experiência um ponto de encontro entre essa sabedoria e aquilo que a filosofia costumou chamar de conhecimento.

Sucintamente, diz Collins (2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo., 446),

“a experiência como critério de significado com imagens práticas como veículo simbólico é um princípio epistemológico fundamental para os sistemas de pensamento afro-americanos”.

A tese de Sueli Carneiro expressa essa relevância: entre uma primeira parte de qualificada discussão socioteórica, e uma terceira parte conclusiva a respeito da dinâmica epistemicida na educação formal, o centro do corpo argumentativo é constituído de quatro depoimentos de resistência aos dispositivos de biopoder identificados. Os relatos dessas “testemunhas” não servem apenas para corroborar conceituações foucaultianas, mas para um processo de produção de conhecimento no qual a experiência vivida é critério de significado.

Um segundo ponto destacado por Collins é o uso do diálogo na avaliação de reivindicações de conhecimento. Fundamentado por valores socioculturais que remontam a concepções comunitárias de vida e tradições africanas, o diálogo é tido pelas mulheres negras como componente fundamental da validação. É elemento humanizador e conector de pessoas, reforçando uma compreensão de ciência como construção colaborativa, não individual e autocentrada. Subjaz ao procedimento, portanto, uma relação entre sujeito e objeto – e entre sujeitos entre si – bastante distinta da visão consagrada na modernidade e sintetizada pelo positivismo. Nem o solipsismo cartesiano, nem o ideário baconiano de dominação da natureza, mas uma concepção de autonomia baseada na conexão, que é mais própria do tipo de socialização que forma as mulheres do que os homens no contexto ocidental.

O terceiro ponto é o que Collins chama de Ética do cuidar. Trata-se da admissão da sensibilidade como critério de significado: “a expressividade pessoal, as emoções e a empatia são centrais para o processo de validação do conhecimento” (Collins 2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo., 453). O primeiro ponto resgata uma tradição do humanismo africano, que fundamenta a valorização da vida individual e sua concatenação à vida universal. O segundo desafia o binarismo emoção-intelecto na indicação de que a expressividade afetiva se vincula à validade do argumento, no que tange à credibilidade e às finalidades últimas colocadas pelo sujeito congnoscente. O terceiro componente, a empatia, não se refere apenas à responsabilidade quanto aos usos do conhecimento produzido, mas também à relação entre o sujeito cognoscente e aqueles com os quais lida em seu empenho investigativo. Estes devem ser concebidos também como sujeitos, não objetos. O sentido do cuidado, da conexão, do respeito à personalidade dos membros do grupo e do entendimento coletivo devem atravessar o processo do conhecer.

Finalmente, o quarto elemento é a ética da responsabilidade pessoal: a responsabilidade assumida pelo sujeito sobre as próprias reivindicações de conhecimento. Mais uma vez, estamos diante da recusa do sujeito do conhecimento enclausurado em uma torre de marfim: não há separação entre o pesquisador e o cidadão; o sujeito carrega em sua vida social cotidiana a responsabilidade pelo conhecimento que produz. Por isso,

“as reivindicações de conhecimento de indivíduos que são respeitados por suas conexões morais e éticas com suas ideias terão mais peso que as de figuras menos respeitadas” (Collins 2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo., 456).

Em todos esses pontos se encontra a marca histórica da construção do pensamento feminista negro: das margens para o centro; das expressões artísticas, tradições orais, estratégias cotidianas de subsistência e práxis nos movimentos sociais para a academia. Ele não nasce das exigências e critérios endógenos ao mundo científico e sua compreensão de ciência. Nasce da necessidade de sobrevivência, das demandas por justiça, dos vínculos comunitários orientados por valores longevos, das articulações solidárias entre pessoas sujeitas a processos de violência, exclusão, objetificação e discriminação em comum.

Conclusões

Ao longo do artigo, abordei de modo diferenciado as dimensões socioinstitucional e epistemológica dos processos de injustiça epistêmica, incidida sobre as mulheres negras, bem como as respostas oferecidas a ambos às dimensões. Mas, de modo a concluir o argumento, é indispensável considerar a concatenação necessária entre os dois pontos, conforme é reconhecida pelas duas autoras em tela.

Sueli Carneiro (2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 32) não tarda a apresentar essa imbricação, ao tratar do conceito foucaultiano de poder: “

todo poder institui um campo de saber, e todo saber é expressão de uma dimensão de poder. […] os discursos produzidos sobre as relações raciais seriam elementos privilegiados de decodificação dos poderes neles inscritos, das disputas neles presentes, das correlações de forças que os animam”.

Com efeito, as relações institucionais de poder carregam relações intrínsecas para com a forma e o conteúdo do saber a partir delas produzidas. Daí que Carneiro (2005Carneiro, Sueli, 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 32) compreenda “a constituição de um campo de pesquisa como instância de reprodução de um poder específico”.

Também destrinchando a imbricação entre a estrutura institucional da produção de conhecimento e seu conteúdo, Collins (2019Collins, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo., 441-442) nos lembra que “os métodos usados para validar as reivindicações de conhecimento também devem ser aceitáveis para o grupo que controla o processo de validação do conhecimento”. Desse modo, identifica a coerção institucionalizada para a adesão de um enquadramento metodológico/epistemológico de matriz positivista. Essa coerção é discutida pela autora no caso das estudiosas feministas negras que se inserem na pesquisa sociológica sob a condição de outsiders within: sujeitos que, devido às relações vigentes de poder, não constituem o público acadêmico típico e hegemônico, mas que, devido a circunstâncias particulares ou políticas públicas, se inserem nas instituições de pesquisa.

É inevitável, portanto, que a condição de outsider within das pesquisadoras negras provoque tensões – seja porque seu pensamento prévio é reavaliado mediante o encontro com a epistemologia hegemônica, seja porque essas contribuições “de fora” trazem novos temas, conceitos e perspectivas analíticas para a investigação sociológica já desenvolvida no interior da instituição. Algumas pesquisadoras, diz Collins, tentam resolver essa tensão abdicando da Sociologia e permanecendo como outsiders. Outras, por sua vez, reprimem sua diferença e marginalizam seu pensamento anterior para se tornarem insiders, jogando o jogo tradicional. Nenhuma das duas escolhas é vista com bons olhos pela autora: ambas “espoliam a sociologia de sua diversidade e, em última instância, enfraquecem a disciplina” (Collins 2016Collins, Patricia Hill. 2016. Aprendendo com a “outsider within”. Revista Sociedade e Estado 32 (1): 99-127. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006.
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, 123). Uma terceira alternativa consiste na manutenção da tensão criativa, buscando institucionalizar suas perspectivas, o que exige uma interlocução com o sujeito hegemônico pela qual as outsiders within construam “um equilíbrio poderoso entre os pontos fortes de seu treinamento sociológico e as contribuições de suas experiências pessoais e culturais” (Collins 2016Collins, Patricia Hill. 2016. Aprendendo com a “outsider within”. Revista Sociedade e Estado 32 (1): 99-127. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006.
https://doi.org/10.1590/S0102-6992201600...
, 123).

Esse ponto é relevante e esclarecedor do horizonte normativo da autora: não se trata de demolir todo o edifício epistemológico construído pela filosofia ocidental. Nem de recusar de pronto as possibilidades que ele propicia para o conhecimento do mundo social, inclusive suas relações de poder, seus processos de dominação e opressão etc. Menos ainda de reivindicar uma mera substituição da epistemologia hegemônica pela epistemologia feminista negra nos espaços institucionais de produção do conhecimento. Trata-se de uma expansão de horizontes de pesquisa, métodos, temas, conceitos e matrizes epistemológicas. De enriquecer a produção do conhecimento, diversificá-lo metodologicamente para torná-lo mais bem capacitado ao tratamento de aspectos da vida social que lhe escapam. De ensejar sua autocrítica, pelo desvelamento de seus limites. Trata-se, também, de encontrar maiores pontos de concatenação entre a pesquisa acadêmica e a busca pela justiça social, pela expansão participativa da democracia, pela superação das desigualdades, em suma, pela superação de toda forma institucionalizada de opressão e dominação. E essa natureza institucional do problema é fundamental para se compreender a formulação de Collins, que afirma enfaticamente a necessidade de ir além “dos argumentos ‘maçãs podres’ sobre indivíduos tendenciosos”; no lugar, “a opressão epistêmica e a injustiça epistêmica nomeiam as dimensões estruturais do poder epistêmico conforme organizado por meio das comunidades interpretativas […] que são essenciais para a produção de conhecimento” (Collins 2022Collins, Patricia Hill. 2022. Bem mais que ideias. São Paulo: Boitempo., 185).

Por isso, e considerando os perigos da absorção da luta feminista negra por um discurso neoliberal – que individualiza as relações de subalternização, ignora os elementos estruturais da discriminação e os mecanismos simbólicos de sua reprodução –, que as duas autoras contribuem para abrigar essa crítica sob um horizonte normativo de justiça social. Em suma, afirmar que estamos diante de uma forma de injustiça epistêmica, significa enquadrar o debate de modo a: (a) indicar a existência de mecanismos que promovem assimetrias de poder, recursos e valoração entre sujeitos; (b) vislumbrar uma sociedade justa, orientada por princípios éticos de equidade, democracia e solidariedade universal; (c) considerar que a construção da justiça social passa pela condição dos diversos grupos e comunidades interpretarem suas experiências de modo autônomo e autodeterminado (ainda que não sectário), e produzirem conhecimento legítimo a partir dessa interpretação.

É verdade que entre as autoras estudadas não há apenas convergências. Isso se verificou ao longo do texto pelo deslizamento do quadro conceitual utilizado – ora trazendo o jargão mais próprio do argumento de Carneiro (sujeição, dispositivo, racialidade, epistemicídio, subjetivação, biopoder etc.), ora o arcabouço mais específico de Collins (interseccionalidade, racismo estrutural, opressão etc.). Ainda que não caiba neste artigo um estudo minucioso das significações em questão, o teor geral dos argumentos apresenta uma maior aproximação do que distanciamento, seja em termos socioanalíticos ou normativos.

O artigo, por fim, procurou defender que as lutas pela superação das desigualdades raciais e de gênero, no que tocam às condições de produção do saber legítimo e de enunciação do discurso público, são condição sine qua non para almejar uma justiça social efetiva e ampliada. E para que esta seja razoavelmente vislumbrada, urge, de um lado, intensificar políticas transformativas capazes de superar os constrangimentos institucionais impostos às mulheres negras nos espaços de construção do saber legítimo; de outro, contribuir para uma crítica cada vez mais apurada à epistemologia dominante, a qual não deixa de tomar sua parte na reprodução das formas vigentes de opressão e dominação social.

  • 2
    A discussão da validação do conhecimento é particularmente importante para se compreender historicamente a constituição dos dispositivos de racialidade no Brasil. Na República Velha, sobretudo, o racismo científico em voga e as campanhas sanitaristas (ainda que estas deslocassem o problema para o campo da doença) foram centrais para a validação do que poderia ser tido como humano e digno de constituir a nação que se formava. Se a Abolição garantia a liberação do trabalhador negro para a nova realidade econômica que se buscava consolidar, os novos dispositivos biopolíticos visavam controlar a “degeneração da população”, mediante uma tecnologia de racismo cujo discurso se difundia nas instituições políticas, judiciais, científicas e educacionais. A esse respeito, ver: Lima e Hochman 1996Lima, Nísia Trindade, e Gilberto Hochman. 1996. Condenado pela raça, absolvido pela medicina. In Raça, ciência e sociedade, organizado por Marcos C. Maio, e Ricardo V. Santos, 23-40. Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB.; Roitberg e Faggion 2021Roitberg, Guilherme Prado, e Melline Ortega Faggion. 2021. A ciência do melhoramento racial. Reveduc 15: 1-15. https://doi.org/10.14244/198271995348.
    https://doi.org/10.14244/198271995348...
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2023
  • Aceito
    26 Set 2023
  • Publicado
    05 Mar 2024
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