Acessibilidade / Reportar erro

Theodor Adorno e as tendências fascistas na democracia

Theodor Adorno and the fascist tendencies within democracy

Theodor Adorno y las tendencias fascistas en la democracia

Resumo:

A partir da reconstrução de aspectos da teoria social de Theodor Adorno, o objetivo deste artigo é uma interpretação de sua crítica à mecânica de sedução fascista em democracias. Se elementos de continuidade entre o nazifascismo e o imediato pós-guerra nos países centrais já foram ressaltados em Dialética do esclarecimento, Adorno aprofunda suas reflexões sobre condições objetivas e os pressupostos subjetivos que mantinham o fascismo como uma tendência imanente nas chamadas décadas de ouro do capitalismo. Mais do que uma tradicional historiografia das ideias, o propósito deste artigo é também sublinhar contribuições que as interpretações do frankfurtiano podem trazer ao debate sobre a ascensão de líderes e movimentos de direita radical contemporâneos.

Palavras-chave:
Theodor Adorno; Fascismo; Capitalismo tardio; Democracia de massa; Ressentimento

Abstract:

Through a reconstruction of aspects of Theodor Adorno's social theory, this paper aims to analyze his interpretation of the mechanics of fascist seduction in democracies. If Dialectics of Enlightenment had drawn attention to elements of continuity between the Nazi-fascism the immediate post-war period at the core countries of capitalism, Adorno shed light on the objective conditions and subjective assumptions that maintain the fascism as an immanent tendency of the so-called golden age. Rather than a traditional historiography of ideas, my objective is also to highlight contributions that the Frankfurt scholar could bring to the current debate on the rise of contemporary far right leaders and movements.

Keywords:
Theodor Adorno; Fascism; Late capitalism; Mass democracy; Resentment

Resumen:

Reconstruyendo aspectos de la teoría social de Theodor Adorno, el objetivo del artículo es una interpretación de la mecánica de seducción fascista en las democracias. Si aspectos de continuidad entre el nazi fascismo y la posguerra en los países centrales ya fueran subrayados en Dialéctica de la ilustración, Adorno profundiza sus reflexiones sobre las condiciones objetivas y los elementos subjetivos que mantuvieron el fascismo como una tendencia inmanente en los llamados años dorados del capitalismo. Al revés de una tradicional historiografía de las ideas, el propósito de este artículo es hacer hincapié de las contribuciones que las interpretaciones del frankfurtiano pueden agregar al análisis de la ascensión de líderes y movimientos de derecha radicales contemporáneos.

Palabras clave:
Theodor Adorno; Fascismo; Capitalismo tardío; Democracia de masas; Resentimiento

Introdução2 2 Agradeço à Rafaela Pannain e aos pareceristas anônimos pela leitura e comentários ao texto.

Em Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985)Adorno, Theodor e Max Horkheimer. 1985. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. sublinharam elementos de continuidade entre um amplo conjunto de aspectos do nazifascismo e fenômenos culturais e políticos no imediato pós-guerra no centro do capitalismo tardio. Nas décadas seguintes, Adorno aprofundou suas reflexões tanto em termos teóricos quanto em pesquisas empíricas. Perscrutando uma constelação de fenômenos que deu à mecânica de sedução de agitadores fascistas após a derrota militar dos países do eixo, o frankfurtiano lança luzes sobre a permanência de condições objetivas e pressupostos subjetivos que frustrariam a completa e substantiva democratização das sociedades na modernidade tardia. Tal como durante a ascensão do nazifascismo, a recaída na barbárie não seria um perigo externo, mas uma tendência imanente que, cedo ou tarde, poderia novamente eclodir.

Todavia, em vez da simples replicação dos mesmos personagens, rituais e performances, haveria uma intrincada dialética entre elementos autoritários próprios ao nazifascismo e os peculiares às democracias de massa. Enquanto grande parte das correntes hegemônicas da sociologia demonstrava demasiada esperança com o que viria a ser celebrado como as décadas de ouro do capitalismo, Adorno se voltou à interpretação de padrões de dominação e figuras ideológicas – simultaneamente próximas e distantes do nazifascismo – que então emergiam. Apesar de grupos neonazistas terem se mantido ativos nas ruas e no aparato estatal, pretendendo restaurar o modelo de poder do Führer, a sobrevivência de tendências fascistas na democracia seria mais ameaçadora do que daquelas que se organizam contra a democracia (Adorno 2011Adorno, Theodor. 2011. O que significa elaborar o passado. In Educação e Emancipação, organizado por Theodor Adorno, 29-50. São Paulo: Paz e Terra., 29-30).

O objetivo deste artigo é uma reconstrução das interpretações de Adorno sobre a mecânica de sedução de agitadores fascistas nas democracias. Diferentemente da leitura de Honneth (1993)Honneth, Axel. 1993. The critical of oower. Massachusetts: The MIT Press., o frankfurtiano não compreendia o fascismo como o ápice de um inelutável processo de decadência da civilização, e nem a suscetibilidade do público às performances de seus líderes como a manipulação administrada de suas fraquezas psíquicas. Em ambos os casos, trata-se da exacerbação de tendências inscritas na forma da sociedade e em processos normais de formação subjetiva no capitalismo tardio. Se, em certa medida, o prisma da dissolução de modelos abertamente autoritários de dominação poderia ser legítimo para analisar o pós-guerra no centro do capitalismo, esse período é melhor e criticamente compreendido a partir do entrecruzamento de rupturas e continuidades com a barbárie imediatamente anterior.

Em um primeiro momento, reconstruirei aspectos das interpretações de Adorno e Horkheimer sobre o antissemitismo moderno e sobre sua sobrevivência na lógica que estrutura a competição entre partidos políticos nas democracias do pós-guerra. Em seguida, apresentarei a crítica de Adorno à mecânica de sedução fascista nas democracias, centrando-me na análise de seu ensaio sobre o pastor estadunidense Martin Luther Thomas. Por fim, trago as discussões do frankfurtiano sobre a temática do ressentimento e seu conceito de complexo de usurpação, categoria central para o estudo da estrutura da personalidade autoritária.

Os pressupostos antissemitas das democracias de massas

A última seção do capítulo sobre os elementos do antissemitismo na Dialética do esclarecimento inicia-se com uma colocação desconcertante: “mas não há mais antissemitas” (Adorno e Horkheimer 1985Adorno, Theodor e Max Horkheimer. 1985. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor., 186). Publicada logo após a derrota militar do nazifascismo, a frase possuía uma intenção irônica. Contudo, como ensina Cohn (1998)Cohn, Gabriel. 1998. Esclarecimento e ofuscação: Adorno & Horkheimer hoje. Lua Nova: Revista de Cultura e Política 43: 5-25. https://doi.org/10.1590/S0102-64451998000100002.
https://doi.org/10.1590/S0102-6445199800...
, o trecho revela outra constelação de fenômenos quando entendido literalmente. Sob princípios democráticos e em estado de direito, a mentalidade antissemita é capaz de se reinventar abstraída de seu objeto de ódio favorito, mostrando plasticidade para compor a lógica que estrutura a competição entre partidos políticos. Entretanto, antes de abordar essa questão mais a fundo, convém reconstruir aspectos da interpretação dos frankfurtianos sobre as razões e os desvarios da eleição dos judeus como bode expiatório com o nazifascismo.

Mais do que a persistência de uma barbárie atávica, o antissemitismo moderno emerge por meio da síntese de aspectos religiosos, econômicos e políticos, articulados pelos mais recentes desenvolvimentos da razão ocidental. Se, tal como posto por Weber, o judaísmo antigo dera início a um processo de longuíssima duração de desencantamento do mundo, os judeus se tornaram o alvo de um conjunto reencantado de preconceitos e práticas compulsivas na modernidade tardia. Aqueles que, primeiramente, buscaram eliminar a magia de seus rituais sagrados e doutrinas teológicas eram acusados de uma inflexível adesão às suas práticas e condutas de vida religiosa.

Na verdade, segundo Adorno e Horkheimer (1985)Adorno, Theodor e Max Horkheimer. 1985. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor., os adeptos da religião do pai se distinguiam por não fazerem o sacrifício do intelecto, mantendo a salvação de suas almas como um destino incerto. Ressuscitando o encanto animista de uma religião natural, o cristianismo fez reviver a magia espiritualizada, e a promessa da salvação voltou a ser supostamente assegurada por meio da igreja e de sua doutrina. Desmentindo cotidianamente essa fraudulenta ideologia, os judeus foram transformados em um meio para confirmar o ritual da fé cristã pela ruína intramundana e pela destruição física de quem se recusava a partilhar daquela farsa.

Do ponto de vista econômico, as fontes de riqueza material apenas raramente estavam disponíveis aos judeus. Mesmo nas situações em que dispusessem da posse dos meios de produção, os seus direitos de propriedade dependiam da menor ou maior precariedade de seus direitos de cidadania. Se o batismo era o pressuposto oficial ou não oficial para conquistarem a propriedade de indústrias na história europeia, a suposta ausência de devoção ao seu novo status religioso sempre foi um pretexto mobilizado para tentar diminuir a sua participação na distribuição da mais-valia. Embora não tenha impedido alguns judeus de acumular capital, a particularidade de sua posição os expunha ante os seus concorrentes e outros segmentos da população.

Assim, com a exploração em bases capitalistas camuflada na esfera da produção, a identificação do judeu com a circulação de mercadorias serviu de motivo para que fossem responsabilizados pelo baixo poder de compra dos salários. Aspergindo a ofuscação objetiva da forma-salário, os antissemitas concentram a culpa pela injustiça econômica de uma sociedade de classes no povo eleito – as pessoas gritam: “pega ladrão” e apontam para os judeus (Adorno e Horkheimer 1985Adorno, Theodor e Max Horkheimer. 1985. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor., 162).

Porém, o aspecto mais crucial talvez seja a ambígua imagem criada para descrever as relações dos judeus com o poder. Tomados ao mesmo tempo como conspiradores astutos e um grupo desamparado, os perseguidores projetavam sentimentos de medo e sede de vingança sobre os judeus. Uma ordem social que venera a dominação não tolera quem pareça satisfeito com a falta de poder. Apresentando uma agressão bárbara e gratuita como uma forma de reação a supostas ameaças, as fantasmagorias que assombram os antissemitas acusam as suas vítimas dos crimes e das infâmias que eles mesmos se articulavam para praticar – os judeus são estigmatizados pelo mal absoluto como o mal absoluto.

Instigado dia após dia, o ódio nazista não se satisfaz com ataques isolados de fúria – tal como no conceito de capitalismo moderno em Weber (2004), havia uma espécie de temperamento racional desse impulso irracional. Como uma falsa projeção, o moderno antissemitismo aprende seus métodos com os últimos desenvolvimentos da razão ocidental. Se um cientista positivista manipula suas cobaias para preservar a abstração de seus conceitos, a instrumentalização antissemita da razão apenas confere alguma coerência a um conjunto de clichês e julgamentos enviesados. A inadequação empírica entre os preconceitos antissemitas e a realidade não surge como uma oportunidade para reavaliação de crenças e de convicções, mas como subterfúgio para reforçar ideias fixas e desencadear práticas compulsivas. Por meio de suas lentes oblíquas e mal-intencionadas, a efetividade é deturpada para ser reconhecida como uma simples duplicação das tresloucadas categorias da mentalidade antissemita.

Para cumprir esses disparates, a tentação de mimetizar e ridicularizar suas vítimas em comícios nazistas, o linchamento de judeus em cada esquina, a pilhagem de suas propriedades, o planejamento industrial como método de morticínio e a solução final como política pública se entrelaçam mutuamente. Por meio de demonstrações abertas de violência simbólica e real, esses rituais antissemitas agem como uma regressão ao natural. Os judeus não são apenas o inimigo público número um, mas a raça culpada de tudo e em qualquer circunstância. Diferentemente dos cínicos ou dos liberais de então, não se trata de convencer os incautos sobre o significado dos dogmas religiosos e das convenções culturais dos judeus. Alienado de propósitos humanos, o próprio esclarecimento se tornou um instrumento de poder e dominação. O antissemitismo moderno revela a real e objetiva violência de uma falsa sociedade que, petrificada em uma segunda natureza, permite aos seus membros desempenharem tão somente dois papeis – o de opressor cruel e suas vítimas.

Eles saem a pilhar e constroem uma ideologia grandiosa para isso, e falam disparatadamente da salvação da família, da pátria, da humanidade. Mas como continuam a ser os logrados – o que já pressentiam secretamente –, seu mísero motivo racional, o roubo, ao qual devia servir a racionalização, desaparece inteiramente, e esta ideologia torna-se involuntariamente sincera. A obscura pulsão, com que desde o início tinham maior afinidade do que com a razão, toma conta deles totalmente. A ilha racional é inundada e os desesperados aparecem agora unicamente como os defensores da verdade, os renovadores da terra, que têm de reformar até o seu último recanto. Tudo o que vive converte-se em material de seu dever atroz, que nenhuma inclinação mais vem prejudicar. A ação torna-se realmente um fim em si e autônomo, ela encobre sua própria falta de finalidade. O antissemitismo conclama sempre a ir até o fim do trabalho. Entre o antissemitismo e a totalidade havia desde o início a mais íntima conexão. A cegueira alcança tudo, porque nada compreende (Adorno e Horkheimer 1985Adorno, Theodor e Max Horkheimer. 1985. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor., 160-161).

Posto isto, é oportuno retornar à discussão sobre o súbito desaparecimento dos antissemitas. Não que o diagnóstico dos frankfurtianos se fiasse na expectativa de que a derrota militar do nazifascismo levaria consigo as regressões que, poucos anos antes, haviam pavimentado a sua cavalgada ao centro do poder político. Face aos processos de concentração e centralização de capital anteriores e posteriores à guerra, a era dos grandes monopólios parecia elidir a própria possibilidade de um antissemita escolher, com certo grau de independência, pensar e se portar como um racista – a sua estereotipia típica se emancipava, tornando-se modelo para as produções espirituais em geral.

Se o rádio servira como meio para a ascensão de Hitler e outros movimentos fascistas, os novos colossos da exploração industrial de cultura replicavam a expertise da propaganda nazista pelo universo cintilante de seus cenários, enredos e star system, assumindo as formas de uma autoridade interessadamente desinteressada. Com o sucesso de suas produções garantido por sua presença ostensiva, a Indústria cultural prende a atenção de seus espectadores com a promessa de um desejo sempre postergado. Logrado a se contentar com a leitura do cardápio, o venerável público não cumpre um papel meramente passivo, porém, tal qual qualquer consumidor de mercadorias, ele é castrado. Privados de sua capacidade de estabelecer uma relação concreta com as coisas, os indivíduos são coagidos a devotar ardorosamente suas paixões a um esquematismo que passa a presidir a produção seriada do espírito. Se, em Kant, as categorias do entendimento ordenariam a multiplicidade da experiência sensível, as mercadorias culturais operam uma síntese similar antes mesmo dos sujeitos se aperceberem dos estímulos projetados nas telas do cinema para mantê-los cativos.

A duplicação do mundo, suas ordens e seus valores se realiza mesmo quando o conteúdo manifesto do que é levado ao ar pela indústria cultural se arvora de cultivar sensibilidades ditas progressistas. Ainda que franqueiem acesso gratuito às suas produções, os monopólios do entretenimento ganham com qualquer batalha cultural desde que travada em seus meios. Ampliando a heteronomia das relações industriais para o âmbito da vida privada, o capital azeita as engrenagens de suas cadeias organizando o desfrute de tempo livre.

O prazer com a violência infligida ao personagem transforma-se em violência contra o espectador, a diversão em esforço. Ao olho cansado do espectador nada deve escapar daquilo que os especialistas excogitaram como estímulo; ninguém tem o direito de se mostrar estúpido diante da esperteza do espetáculo; é preciso acompanhar tudo e reagir com aquela presteza que o espetáculo exibe e propaga. Deste modo, pode-se questionar se a indústria cultural ainda preenche a função de distrair, de que ela se gaba tão estentoreamente (Adorno e Horkheimer 1985Adorno, Theodor e Max Horkheimer. 1985. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor., 113).

No campo da política, as nascentes democracias de massa replicavam fenômenos similares. No plano da geopolítica internacional, o mundo se dividia em dois colossos imperialistas que disputavam palmo a palmo o domínio sobre o território de outras nações, seja para que aqueles expandissem suas zonas de influência, seja para que estes servissem de escudo contra agressões militares latentes. No plano doméstico, os grandes partidos políticos também desfilavam práticas monopolísticas na encarniçada dinâmica concorrencial pelos votos do eleitorado.

Voltando suas atenções à organização da democracia estadunidense da época, Adorno e Horkheimer (1985)Adorno, Theodor e Max Horkheimer. 1985. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. sublinham o mecanismo de ofertas eleitorais em listas fechadas por meio do qual as disputas pelo butim das urnas eram travadas por slogans e palavras de ordem, forjados à mercê de técnicas publicitárias e cifras estatísticas. Em vez de romper com a mentalidade antissemita que, mesmo antes de qualquer contato com um judeu, já se expressava em vocabulário chauvinista e subscrevia práticas genocidas, as democracias de massa apenas repartiram a mesma lógica de pensar por estereotipia entre os mais diversos agrupamentos políticos, tanto os reacionários como aqueles outros progressistas.

Consolidava-se uma época regida sem tempo de ponderação – o que o capitalismo conseguira conquistar na vida privada, se transferia novamente para a esfera pública. A medida em que o modo de produção é preservado dos resultados das urnas, o imperativo de acelerar sempre e sem demora as suas esteiras configura o campo do jogo político. Se as mercadorias se exprimissem em uma linguagem própria, as plataformas eleitorais dos partidos passariam a ser nomeadas por suas etiquetas. Ainda que preservem diferenças externas entre si, os partidos se tornavam internamente indiferenciados. De um lado do púlpito, o ticket reacionário sintetiza uma série de preceitos, valores e políticas públicas com as quais parcela dos eleitores pode se identificar instintivamente. Do lado oposto, o ticket progressista cumpre uma função homóloga, embora represente com outras cores, bandeiras e lemas. A promessa de manter intactas as engrenagens de uma sociedade que se reproduz a despeito da satisfação de necessidades humanas é comum a ambos. Sedimentada como uma segunda natureza, a ordem social no capitalismo tardio segue seu curso e fomenta as condições objetivas que fazem da barbárie um elemento do cotidiano.

Não é só o ticket antissemita que é antissemita, mas a mentalidade do ticket em geral. A raiva feroz pela diferença é teleologicamente imanente a essa mentalidade e está – enquanto ressentimento dos sujeitos dominados pela dominação da natureza – pronta para se lançar contra minoria natural, mesmo quando eles são os primeiros a ameaçar a minoria social. A elite socialmente responsável é, de qualquer modo, muito mais difícil de ser fixada que as outras minorias. No nevoeiro das relações de propriedade, de posse, do direito de dispor e do gerenciamento, ela se furta com sucesso à determinação teórica. Na ideologia da raça e na realidade das classes só aparece ainda, por assim dizer, a diferença abstrata em face da maioria. Mas, se o ticket progressista tende para algo pior do que o seu conteúdo, o conteúdo do ticket fascista é tão vazio, que ele só pode ser mantido em pé – como um sucedâneo do melhor – graças aos esforços desesperados dos logrados. O que ele contém de horrível é a mentira manifesta e, no entanto, persistente (Adorno e Horkheimer 1985Adorno, Theodor e Max Horkheimer. 1985. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor., 193).

A mecânica da sedução de agitadores fascistas na democracia

Ainda que se replicasse por meio de expedientes despersonalizados da indústria cultural e da estrutura do pensamento ticket, nem por isso a ameaça fascista prescindia inteiramente da figura de um líder que pudesse a levar adiante. Nos anos que se seguiram ao final da segunda guerra, uma das preocupações centrais de Adorno era compreender a dinâmica que se estabelecia entre agitadores fascistas e seus seguidores em contexto democrático. Se “Teoria freudiana e os padrões de propaganda fascista” se debruça mais diretamente sobre a figura de Hitler em sua ditadura nazista;3 3 Para um diálogo a contrapelo entre este ensaio do frankfurtiano e o 18 de Brumário de Luís Bonaparte de Karl Marx, veja Vasconcellos (2019). em The psychological technique of Martin Luther Thomas’ radio addresses (1975), Adorno tece instigantes interpretações acerca da mecânica de sedução fascista nas democracias.

Redigido já nos primeiros anos de exílio do frankfurtiano,4 4 Escrito em 1943 e publicado apenas postumamente, o ensaio de Adorno sobre Martin Luther Thomas é pouco debatido mesmo entre os especialistas na obra do frankfurtiano. Para outra interpretação mais centrada nos debates com a psicanálise, recomendo Carone (2002); embora apresente uma análise do pensamento de Adorno da qual discordo em inúmeros aspectos, Apostolidis (2000) mobiliza de maneira interessante alguns elementos do ensaio sobre Luther Thomas para analisar fenômenos contemporâneos. o longo ensaio se compõe por meio da crítica imanente das pregações do líder religioso Martin Luther Thomas transmitidas pelo rádio para a costa oeste dos Estados Unidos nos anos 1930. Mais do que um caso de manipulação de sua audiência, as práticas discursivas e as estratégias retóricas mobilizadas pelo pastor são interpretadas por Adorno pelo prisma do entrecruzamento de tendências sociais-objetivas e aspectos individuais-subjetivos no capitalismo tardio. Alicerçado nas contradições econômicas e nos antagonismos sociais da época e explorando limites internos às democracias de massa, o agitador fascista se notabilizava por canalizar o fanatismo religioso de sua audiência em plataforma de ódio político.

O estilo de liderança de Luther Thomas é o primeiro aspecto salientado. Enquanto os políticos liberais estadunidenses construíam suas figuras públicas se distanciando de referências diretas às suas vidas pessoais e intimidades, forjando discursos pretensamente técnicos e impessoais, o líder religioso tiraria proveito da sensação de desamparo, que seus ouvintes vivenciavam cotidianamente, desencadeada pela frieza burguesa e pelos princípios de racionalidade próprios à modernidade capitalista. Articuladas por fortes apelos emocionais e conduzidas de maneira histriônica, suas pregações traziam as debilidades e as fraquezas pessoais do pastor para o primeiro plano, revelando, inclusive, a precariedade de sua situação econômica.

Se os primeiros buscavam dotar suas propostas de alguma objetividade e grau de previsibilidade, Luther Thomas convidava seus ouvintes a se libertarem das amarras erguidas pela civilização, e a satisfazerem demandas de ódio e de cólera que eles aprenderam a reprimir desde a infância. Obedientes às vontades de seu líder, a sugestão de descontrole emocional visava encorajá-los a assumir condutas agressivas contra os seus inimigos. Atraídos pela promessa de um novo reino purgado de pecadores, os ouvintes eram também incitados ao autossacrifício, entregando-se aos imperativos da totalidade social.

Em uma época governada por monopólios, a velha utopia burguesa de indivíduos racionais e autocentrados já não mais corresponderia a uma necessidade econômica e nem cumpriria função ideológica. Segundo Adorno, os sujeitos passam a ser educados para desempenhar uma postura mais pragmática ante as avassaladoras forças sociais às quais estão submetidos no capitalismo tardio. O elevado grau de impotência experimentado no dia a dia surge como justificativa para se buscar proteção entre aqueles que sejam considerados mais fortes. Estimulado por Luther Thomas, o estado de êxtase orgiástico típico do animismo se reveste de interesses puramente mundanos. A liberação das pulsões e a regressão a um estágio de natureza inarticulada prepara o terreno para a mão pesada de um estado que se imbui da tarefa de manter repressivamente a sociedade em sua forma opressiva e talhada em antagonismos objetivos.

A histeria é uma expressão extrema de uma configuração psicológica que se espalha rapidamente por toda a sociedade. É essa disposição particular que é satisfeita pelo dispositivo de “liberação emocional”. O estoicismo é ridicularizado porque os indivíduos não podem nem mais querem serem estoicos, isto é, porque a compensação final para o autocontrole emocional – uma existência firmemente estabelecida e segura de si mesma – não mais prevalece. O efeito do dispositivo de liberação emocional não é tanto evidenciar as reações a que se refere, mas sim torná-las socialmente aceitáveis e levantar um tabu já vacilante para que as pessoas possam ter a sensação de estar fazendo a coisa socialmente correta se abandonarem seu autocontrole (Adorno 1975Adorno, Theodor. 1975. The psychological technique of Martin Luther Thomas’ radio addresses. In Theodor W. Adorno. Soziologische Schriften II, organizado por Rolf Tiedemann, 15-141. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag., 17-18).

Todavia, face ao maior enraizamento social de valores democráticos nos EUA, as propostas autoritárias de Luther Thomas só podiam ser afirmadas de sub-repticiamente, isto é, camufladas pelo uso calculado de certas ambivalências. As suas emissões radiofônicas criavam uma atmosfera de ameaça permanente contra o seu movimento religioso. Ardiloso como o diabo, o império do pecado era retratado como se estivesse prestes a corromper definitivamente as ordens do mundo; os valores de um cristão conservador já estariam quase subvertidos; os bons tempos de outrora, perdidos; e a nação estadunidense, praticamente em ruínas; e a qualquer momento Luther Thomas poderia ser envenenado ou ter a sua igreja queimada. Espreitando por todos os lados e, inclusive, infiltrados entre os novos cruzados, os pecadores exigiam uma postura de vigilância constante. Ademais, por seus inimigos serem retratados como astutos e infatigáveis, os insultos e as agressões gratuitas que lhes eram dirigidas podiam ser apresentadas como uma estratégia de autodefesa do rebanho liderado por Luther Thomas.

Como se falasse com espíritos, a linguagem cifrada de Luther Thomas buscava por destinatários precisos. De acordo com Adorno, uma das características centrais dos discursos do pastor era a ausência de lógica interna que articulasse suas desarrazoadas elocubrações. Em suas prédicas não havia encadeamento coerente entre as suas premissas e suas inferências, raciocínios tortuosos, entremeados por insultos e saltos abruptos, ligavam causas e efeitos em sua argumentação, enquanto suas conclusões sempre coincidiam com as convicções prévias de um típico cristão conservador. Sintoma das raízes e das intenções autoritárias de Luther Thomas, as associações ilógicas de seus discursos não deveriam ser interpretadas como evidência de falta de destreza intelectual nem por parte de seu emissor e tampouco entre os seus ouvintes. As teorias da conspiração que embalavam as mensagens do pastor poderiam até mesmo carecer de padrões mínimos de verossimilhança, posto que as incongruências manifestadas do plano simbólico seriam, na verdade, resolvidas pelas promessas no campo da prática.

Para o frankfurtiano, movimentos fascistas em ditaduras e em democracias replicariam os modos de funcionamento de organizações mafiosas. Contudo, se o pertencimento a esses coletivos pode oferecer algum alento aos mais incautos e temerosos, essa sensação de insegurança atinge as camadas mais superficiais da psique dos indivíduos, e é apenas uma parte da explicação da adesão subjetiva ao fascismo. Encobertas em névoas e proferidas em termos altissonantes, as emissões radiofônicas de Luther Thomas pretendiam manter o seu rebanho sempre desperto, mas hipnotizado pelo enlace de um ativismo que consome o espaço da ponderação. Ainda que apenas sugeridos, os seus reais objetivos deveriam soar suficientemente claros como apitos para cães. Importando práticas imperialistas e impulsos coloniais para dentro de fronteiras nação, a violência fascista confere coerência às afirmações desencontradas e às palavras de ordem de seus líderes. Mesmo que alguns de seus membros se assanhem pela expectativa de participação no butim de uma guerra civil, o afeto mais geral e que, de fato, anima o séquito é a possibilidade de agressão voraz contra os pretensamente mais fracos e desprotegidos.

Psicologicamente, o que permanece propositalmente não dito não é apenas a informação que é horrível demais para ser declarada com franqueza, mas também a coisa horrível que a pessoa quer se comprometer, que não é confessada nem a si mesma, mas é expressa e até sancionada por insinuações. O dispositivo “se você soubesse” promete revelar o segredo para aqueles que se juntam à máfia e pagam o dízimo. Mas também sugere a promessa de que algum dia participarão da noite das facas compridas, a utopia das máfias (Adorno 1975Adorno, Theodor. 1975. The psychological technique of Martin Luther Thomas’ radio addresses. In Theodor W. Adorno. Soziologische Schriften II, organizado por Rolf Tiedemann, 15-141. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag., 87).

A esse respeito, Adorno chama atenção para uma diferença importante entre os cruzados comandados por Luther Thomas e o nazismo na Alemanha. Conquanto conteúdos antissemitas continuassem a ser mobilizados pelo arsenal discursivo do líder religioso, o ódio aos judeus não demonstrava ter tanto apelo entre a população estadunidense da época. Para incitar a cólera em seu rebanho, uma das estratégias de Luther Thomas era traduzir em termos religiosos os conflitos geopolíticos que já se anunciavam naqueles anos. O comunismo, o bolchevismo internacional e a URSS eram referências constantes em suas pregações. Longe de ancorar suas acusações em análises sobre antinomias e contradições de experiências do socialismo real, o pastor insuflava fantasmas com o intuito de aterrorizar as sensibilidades e instigar a cólera de seu público. A urgente batalha religiosa que os seus cruzados eram convocados a tomar partido pretendia salvaguardar a propriedade privada de sua estatização, a família mononuclear burguesa de sua dissolução, a moralidade cristã de sua corrupção, e a pátria de sua desintegração.

Ademais, além de sair em defesa de valores e formas de vida tradicionais, as pregações de Luther Thomas se concentravam na construção de um novo bode expiatório, que parecia dar mais tração interna ao seu movimento. A administração de Franklin Delano Roosevelt figurava frequentemente em seus discursos, mas o alvo preferencial e mais concreto se desloca para um grupo social específico. Os beneficiários das políticas de combate ao desemprego do New Deal fustigam ardorosamente tanto o pastor quanto o seu rebanho. Interpretando a parábola do evangelho de João, Luther Thomas confere um caráter anticristão à frase “levanta, recolhe teu leito e caminha”, e recobre com um invólucro religioso a sua ojeriza pela caritas e princípios mínimos de solidariedade. Ato contínuo, o conteúdo secular do sermão vem à tona sem demora – e o pastor finaliza a sua prédica advertindo que, caso se continue a distribuir dólares a “essa gente” que não tem nada, logo ninguém mais encontrará homens ou mulheres que queiram trabalhar. Tal como outrora, os desamparados que chamam atenção são tomados como objetos das mais insidiosas fantasmagorias e das práticas mais odientas.

A ideia que ninguém deve ser permitido comer sem trabalhar, embora o trabalho mesmo possa ser totalmente supérfluo, se mostrou mais atrativo psicologicamente. Um dos paradoxos da presente situação é que a inveja é concentrada sobre o grupo mais infortunado, os desempregados, porque eles são concebidos como se fossem isentos da dureza do trabalho. Essa inveja opera como uma ferramenta para fazer dos desempregados “soldados do trabalho” sob o controle imediato do grupo dominante. […]. A ideia de forçar os desempregados a trabalhar é ocasionalmente apresentada por Thomas na forma de um falso apelo à reforma agrária, mostrando sua afinidade com a ideologia do “sangue e da terra” (Adorno 1975Adorno, Theodor. 1975. The psychological technique of Martin Luther Thomas’ radio addresses. In Theodor W. Adorno. Soziologische Schriften II, organizado por Rolf Tiedemann, 15-141. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag., 132).

A função do ressentimento

A partir de fundamentos teóricos distintos e perscrutando fenômenos em diferentes contextos socioeconômicos e políticos, algumas interpretações sobre a ascensão de líderes e de movimentos de direita radical contemporâneos têm ressaltado o papel de destaque desempenhado pelo ressentimento. Enquanto Hochschild (2018)Hochschild, Arlie. 2018. Strangers in their own land. New York: The New Press. mergulhou nas raízes e nas reações emocionais de eleitores do Tea Party que se sentiam como estrangeiros em sua própria terra; Brown (2019)Brown, Wendy. 2019. Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Politeia. ressalta que o ressentimento não surge dos fracos como em Nietzsche, mas sim dos destronados, sobretudo homens brancos que, até então, se escoravam em privilégios conferidos pelo racismo e pela misoginia para compensar a diminuição de seus níveis de renda própria ao neoliberalismo; para explicar as eleições de Trump, Berlusconi e Sarkozy, Fassin (2019)Fassin, Éric. 2019. Populismo e ressentimento em tempos neoliberais. Rio de Janeiro: Eduerj. coloca em primeiro plano não o ressentimento dos chamados “perdedores da globalização”, mas daqueles que, bem sucedidos ou não, remoem o fato de que outros, julgados como inferiores, possam ter melhorado sua situação socioeconômica. Vis-à-vis um período sócio-histórico distinto, Adorno também perscrutou a imbricação entre a temática do ressentimento e a mecânica de sedução fascista no nascimento das democracias de massa do pós-guerra. Entretanto, antes de me deter com mais vagar nas discussões do frankfurtiano, convém um breve retorno a aspectos da sociologia da religião de Weber (1997)Weber, Max. 1997. A psicologia social das religiões mundiais. In Ensaios de Sociologia, organizado por Hans Gerth e Charles Wright Mills, 309-346. Rio de Janeiro: LTC Editora..

Embora o verdadeiro alvo de sua crítica não fosse Nietzsche e sim certa psicologia de seu tempo, para Weber o conceito de ressentimento não seria adequado para a compreensão sociológica de fenômenos religiosos. Ainda que a irmandade surgida pela sublevação dos escravos pudesse parecer plausível para seitas e dogmas específicos, religiões das mais variadas civilizações abarcariam um conjunto mais intrincado de circunstâncias. Fenômenos de racionalização religiosa e o peso de concepções teológicas sobre a conduta de vida de seus seguidores seriam mais bem compreendidos pelo prisma do sofrimento imerecido, isto é, a partir da recorrente disjunção entre o mérito e o destino dos fiéis.

Contudo, tal como pressuposta pelo conceito de ressentimento, uma ligação direta e tão imediata entre doutrinas religiosas e os grupos e classes sociais poderia corresponder a uma disposição ideológica distinta. Para Weber (1997)Weber, Max. 1997. A psicologia social das religiões mundiais. In Ensaios de Sociologia, organizado por Hans Gerth e Charles Wright Mills, 309-346. Rio de Janeiro: LTC Editora., as camadas e os estratos dominantes não se satisfazem em apenas acumular status, dinheiro e poder de mando. Nesse sentido, certa teologia da fortuna responderia à necessidade dos privilegiados em serem reconhecidos – entre os seus e pelo conjunto de uma comunidade – pelo mérito e legitimidade de suas posses e posições. Lida a contrapelo, a moral dos escravos não corresponderia, portanto, às formas ideológicas construídas a partir do ponto de vista dos dominados. Com maior precisão, o conceito de ressentimento parece se adequar melhor a uma projeção emitida pelos ocupantes do centro das esferas de poder e de dominação para alimentar as expectativas de que a ordem do mundo caminha sempre acompanhada do melhor e mais justo direito.

Tratando o sofrimento como um sintoma de desagrado aos olhos dos deuses e como um sinal de culpa secreta, a religião atendia psicologicamente a uma necessidade muito geral. Os afortunados raramente se contentam com o fato de serem afortunados. Além disso, necessitam saber que têm o direito à boa sorte. Desejam ser convencidos de que a “merecem” e, acima de tudo, que a merecem em comparação com outros. Desejam acreditar que os menos afortunados também estão recebendo o que merecem. A boa fortuna deseja, assim, “legitimar-se”. Se a expressão geral “fortuna” cobrir todo o bem representado pelas honras, poder, posses e prazer, será então a fórmula mais geral a serviço da legitimação, que a religião teve para realizar os interesses externos e íntimos dos homens dominantes, os proprietários, os vitoriosos e os sadios. Em suma, a religião proporciona a teodiceia da boa fortuna para os que são afortunados (Weber 1997Weber, Max. 1997. A psicologia social das religiões mundiais. In Ensaios de Sociologia, organizado por Hans Gerth e Charles Wright Mills, 309-346. Rio de Janeiro: LTC Editora., 313-314).

Com o seu conceito de complexo de usurpação, Adorno lida com uma constelação de fenômenos similar. Categoria central em suas contribuições para o estudo da personalidade autoritária nos EUA dos anos 1950, o complexo de usurpação é mobilizado na interpretação do frankfurtiano de certa disposição, manifestada em indivíduos conservadores pertencentes às camadas médias da sociedade, em defender de maneira difusa e semiconscientemente uma ditadura comandada por grupos econômicos poderosos. Como outrora, os seus antagonistas – Roosevelt e suas políticas do New Deal – são acusados de perverterem a democracia estadunidense, de subverterem a ordem das coisas e, principalmente, de usurparem os lugares e postos de comando da nação.

Recorrente na dramaturgia moderna, a temática da usurpação daria indícios de se ancorar em fundamentos profundos da subjetividade humana. Ainda que se manifestasse em intensidade distinta, o medo de ser um filho ilegítimo se inscreveria em processos normais de formação subjetiva moderna – para o frankfurtiano, o mito de Édipo seria legível nessa chave. Todavia, longe de representar alguma determinação inata, a consciência desse temor cresce à medida que se aguça a cisão entre o que seria da ordem da natureza e o que é garantido pela própria civilização. Alicerçada no instável terreno do pátrio poder e da monogamia, a casa de qualquer família burguesa só pode manter certa integridade quando seus membros projetam sobre outrem a sombra de ser o verdadeiro usurpador.

Porém, em vez de se manter restrita aos conflitos familiares, essa dinâmica pulsional entraria em ressonância com outros antagonismos e processos sociais-objetivos da época. Ao manter intocadas as fontes da riqueza material, a democracia restrita a seus termos e regulamentos formais revelaria, cedo ou tarde, que a escolha de governantes elide um mero jogo de cena. Mesmo que a ilegitimidade de tal situação seja visível a todos, o ressentimento ante os privilégios e os verdadeiros donos do poder tende a ser reprimido no plano da consciência, desencadeando uma espécie de compromisso emocional e ambivalente entre a aceitação forçada às regras de jogo e a resistência frente a elas. Então, o ódio é deslocado dos mecanismos de opressão e de dominação propriamente ditos para tudo que, como se usurpassem essas posições de comando, violem certos códigos e convenções das relações de poder existentes. Com a engrenagem que amplia as contradições entre a desigualdade econômica e a igualdade política formal a salvo, o ressentimento tende a se insinuar contra a própria ideia de democracia, e particularmente contra aqueles que, direta ou indiretamente, representem algum obstáculo ao deslizar acelerado de roldanas e linhas de produção.

Enquanto a democracia é realmente um sistema formal de governo político que fez, sob Roosevelt, certas incursões em campos econômicos, mas nunca tocou nos fundamentos econômicos, é verdade que a vida do povo depende da organização econômica do país e, em última análise, daqueles que controlam a indústria americana, mais do que dos representantes escolhidos pelo povo. Os pseudoconservadores sentem um elemento de inverdade na ideia do governo democrático “deles” e percebem que eles não determinam realmente seu destino como seres sociais indo às urnas. O ressentimento desse estado de coisas, no entanto, não é dirigido contra a perigosa contradição entre a desigualdade econômica e a igualdade política formal, mas contra a forma democrática enquanto tal. Em vez de tentar dar a essa forma seu conteúdo adequado, querem acabar com a própria forma da democracia e transferir o controle direto para aqueles que consideram, de qualquer maneira, os mais poderosos (Adorno, 2019Adorno, Theodor. 2019. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp. 401-402).

Considerações finais

No prefácio à reedição da Dialética do esclarecimento em 1969, Adorno e Horkheimer advertem que a teoria que atribui à verdade um núcleo temporal não pode se furtar a reavaliar seus diagnósticos ao longo das décadas – o movimento em direção à integração total estava apenas suspenso, e não interrompido. Perscrutando outras fontes e formas de manifestação do autoritarismo após a queda do nazifascismo, a inadiável preocupação com a possibilidade de uma nova recaída na barbárie permaneceu animando a produção intelectual dos frankfurtianos, especialmente a de Adorno.

Suas interpretações sobre a reprodução de tendências fascistas nas democracias do pós-guerra não se deixam ler pela desgastada acusação de um pessimismo que, na verdade, mais parece se alimentar de um incompreensível otimismo – manifestado por muitos de seus críticos – com o decurso tardio das sociedades capitalistas. Ao investigar as condições objetivas e os pressupostos subjetivos que poderiam, sobretudo em momentos de crise, desencadear a volta do fascismo, Adorno revela o seu forte compromisso com a emancipação – concreta e efetiva – da vida social, única possibilidade para que os fantasmas do passado não mais assombrem – ou surpreendam – o presente.

Ademais, longe de representar uma tradicional historiografia das ideias, a volta às interpretações de Adorno sobre a mecânica da sedução fascista suscita um grande interesse contemporâneo. Se, como defende Traverso (2019)Traverso, Enzo. 2019. The new faces of fascism. Populism and the far right. London and New York: Verso., o conceito de fascismo é tanto inapropriado como indispensável para a compreensão dos movimentos atuais de direita radical mundo afora, a obra do frankfurtiano se mostra como uma referência incontornável, ainda que suas reflexões tenham sido compostas diante de um contexto sócio-histórico distinto. Enquanto algumas das mais instigantes análises contemporâneas centram suas reflexões sobre fenômenos de recrudescimento autoritário os articulando a processos mais abrangentes de desdemocratização, o frankfurtiano enfrentou problemas bastante similares, mas que portavam um sentido inverso.

Além de nos permitir atinar para seus pressupostos objetivos e subjetivos, para as estratégias e fundamentos de sua mecânica de sedução, o fascismo não é uma ameaça externa às democracias, mas compõe uma força social imanente e sempre prestes a se tornar um fenômeno de massa – ceteris paribus, o fascismo será bem-sucedido de tempos em tempos.

  • 2
    Agradeço à Rafaela Pannain e aos pareceristas anônimos pela leitura e comentários ao texto.
  • 3
    Para um diálogo a contrapelo entre este ensaio do frankfurtiano e o 18 de Brumário de Luís Bonaparte de Karl Marx, veja Vasconcellos (2019)Vasconcellos, Caio. 2019. De Adorno a Marx: política e fetichismo. Sociologias 21 (52): 220-239. https://doi.org/10.1590/15174522-91328.
    https://doi.org/10.1590/15174522-91328...
    .
  • 4
    Escrito em 1943 e publicado apenas postumamente, o ensaio de Adorno sobre Martin Luther Thomas é pouco debatido mesmo entre os especialistas na obra do frankfurtiano. Para outra interpretação mais centrada nos debates com a psicanálise, recomendo Carone (2002)Carone, Iray. 2002. Fascismo on the air. Lua Nova: Revista de Cultura e Política 55–56: 195-216. https://doi.org/10.1590/S0102-64452002000100009.
    https://doi.org/10.1590/S0102-6445200200...
    ; embora apresente uma análise do pensamento de Adorno da qual discordo em inúmeros aspectos, Apostolidis (2000)Apostolidis, Paul. 2000. Stations of the cross. Adorno and christian right radio. Durham and London: Duke University Press. mobiliza de maneira interessante alguns elementos do ensaio sobre Luther Thomas para analisar fenômenos contemporâneos.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do autor antes da publicação.

Referências

  • Adorno, Theodor. 2019. Estudos sobre a personalidade autoritária São Paulo: Editora Unesp.
  • Adorno, Theodor. 1975. The psychological technique of Martin Luther Thomas’ radio addresses. In Theodor W. Adorno. Soziologische Schriften II, organizado por Rolf Tiedemann, 15-141. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag.
  • Adorno, Theodor. 2011. O que significa elaborar o passado. In Educação e Emancipação, organizado por Theodor Adorno, 29-50. São Paulo: Paz e Terra.
  • Adorno, Theodor e Max Horkheimer. 1985. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
  • Apostolidis, Paul. 2000. Stations of the cross. Adorno and christian right radio Durham and London: Duke University Press.
  • Brown, Wendy. 2019. Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política antidemocrática no ocidente São Paulo: Editora Politeia.
  • Carone, Iray. 2002. Fascismo on the air. Lua Nova: Revista de Cultura e Política 55–56: 195-216. https://doi.org/10.1590/S0102-64452002000100009
    » https://doi.org/10.1590/S0102-64452002000100009
  • Cohn, Gabriel. 1998. Esclarecimento e ofuscação: Adorno & Horkheimer hoje. Lua Nova: Revista de Cultura e Política 43: 5-25. https://doi.org/10.1590/S0102-64451998000100002
    » https://doi.org/10.1590/S0102-64451998000100002
  • Fassin, Éric. 2019. Populismo e ressentimento em tempos neoliberais Rio de Janeiro: Eduerj.
  • Hochschild, Arlie. 2018. Strangers in their own land New York: The New Press.
  • Honneth, Axel. 1993. The critical of oower Massachusetts: The MIT Press.
  • Traverso, Enzo. 2019. The new faces of fascism. Populism and the far right London and New York: Verso.
  • Vasconcellos, Caio. 2019. De Adorno a Marx: política e fetichismo. Sociologias 21 (52): 220-239. https://doi.org/10.1590/15174522-91328
    » https://doi.org/10.1590/15174522-91328
  • Weber, Max. 1997. A psicologia social das religiões mundiais. In Ensaios de Sociologia, organizado por Hans Gerth e Charles Wright Mills, 309-346. Rio de Janeiro: LTC Editora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2021
  • Aceito
    06 Dez 2021
  • Publicado
    16 Maio 2022
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Cep: 90619-900, Tel: +55 51 3320 3681 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: civitas@pucrs.br