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A Tecnologia da Informação na Reforma do Estado: Considerações sobre a prestação de serviços de informática na área pública

Resumos

O artigo focaliza a questão dos modelos organizacionais adotados pelas empresas públicas de processamento de dados, e sua possível restruturação para fazer frente às novas necessidades de seus usuários, em meio a mudanças profundas nas plataformas tecnológicas tradicionalmente adotadas. A intenção do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado é contribuir para que o debate iniciado tenha prosseguimento, enfatizando a abertura das informações públicas aos cidadãos

Modelo organizacional; Empresa pública; Processamento de dados; Usuário


Focus is on the question f organizational models adopted by public data processing companies, and their possible restructuring to meet the needs of their users, in the midst of the profound changes in the technological platforms which have been traditionally used. The intention of the Ministry of Federal Administration and State Reform is to contribute to having the debate continue, by emphsizing the availability of public information to citizens

Organizational model; Public company; Data processing; User


A Tecnologia da Informação na Reforma do Estado

Considerações sobre a prestação de serviços de informática na área pública

Ricardo Adolfo de Campos Saur

Resumo

O artigo focaliza a questão dos modelos organizacionais adotados pelas empresas públicas de processamento de dados, e sua possível restruturação para fazer frente às novas necessidades de seus usuários, em meio a mudanças profundas nas plataformas tecnológicas tradicionalmente adotadas. A intenção do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado é contribuir para que o debate iniciado tenha prosseguimento, enfatizando a abertura das informações públicas aos cidadãos.

Palavras-chave

Modelo organizacional; Empresa pública; Processamento de dados; Usuário

O Brasil vive hoje momentos extremamente significativos, em que o país e seu povo, após anos de frustração e desesperança, volta a acreditar em seu futuro, tomando por base parâmetros diferentes dos tradicionalmente vistos no passado. Não mais acreditando em soluções milagrosas e paternalistas, nem em fórmulas tecnocráticas e autoritárias, o povo brasileiro cada vez mais se convence de duas verdades básicas, pluralistas e não discriminatórias: o caminho para uma sociedade mais justa tem de ser democrático e tem de se basear em nosso próprio esforço. Essas verdades tão simples parecem ter andado adormecidas ou mesmo até reprimidas desde a década de 50, e foi preciso um longo e árduo caminho para que outra vez pudéssemos ter eleições democráticas e um governo constituído pela única e exclusiva via de legitimação: o voto universal. Nessa eleição, o povo brasileiro fez algumas importantes escolhas.

Uma dessas escolhas foi certamente a de promover profundas reformas na estrutura do Estado Brasileiro. Este compromisso vem sendo rigorosamente cumprido pelo Governo, da única forma legítima: através da discussão dessas questões com toda a sociedade, e de sua apresentação para votação no Congresso Nacional. Entre as várias reformas já propostas e em andamento, situa-se a Reforma do Estado que, além de outras medidas, pretende rediscutir e reorganizar o Aparelho de Estado. Sua importância pode ser medida pela criação de um Ministério específico e de uma Câmara Setorial, mas tornou-se evidente sobretudo pela reiterada prioridade dada pelos governos Federal, Estaduais e Municipais ao assunto, que tem reflexos em inúmeras áreas da vida nacional. Tornou-se também evidente que esta reforma, sendo séria, irá muito além da mera reorganização administrativa, pois terá que conjugar uma forma brasileira de reinvenção da máquina do governo com o ressurgimento dos compromissos de desburocratização da vida do cidadão.

Parece desnecessário demonstrar a estreita ligação existente entre a Tecnologia da Informação e qualquer alternativa moderna de reforma do Aparelho de Estado. As evidências aí estão no nosso dia-a-dia, como simples cidadãos ou como responsáveis políticos ou profissionais por qualquer segmento de aplicação da Tecnologia da Informação. Debates recentes, como os ocorridos em Gramado (setembro de 1995) por ocasião do 23.º SECOP - Seminário Nacional de Informática Pública e em São Paulo (novembro de 1995) no I CONIP - Congresso Nacional de Informática deixaram clara a correlação indiscutível dos dois temas. Mesmo aqueles que, pessoal ou profissionalmente, sentem-se mais distantes do computador, já perceberam que ambas as coisas - a Reforma do Estado e a Tecnologia da Informação - poderão ainda mexer muito conosco, causando quem sabe profundas

alterações em nossas vidas. Se isto é importante para o cidadão comum, muito mais o será para aqueles envolvidos com os serviços públicos de informática, seja como usuários ou diretamente como prestadores desses serviços.

Estou assim convicto que nenhum de nós que se interessa pela Informática Pública, quer como cidadão ou profissional da área, deve perder esta oportunidade para refletir, debater e contribuir para que as reformas, e em particular a Reforma do Aparelho do Estado, sejam efetuadas de forma democrática, correta, eficaz, e socialmente justa. Entretanto, como toda oportunidade excepcional, excepcionais são também as responsabilidades correlatas daqueles que devem liderar estes processos de renovação e mudanças. Nesse sentido, é importante chamar a atenção especial dos profissionais de Processamento de Dados, de Computação, de Documentação, de Biblioteconomia, de Gestão da Informação, de Informática ou de qualquer outro nome de quem trabalha numa das atividades que compõem o que hoje se chama de Tecnologia da Informação, para o papel de suma importância que podem e devem desempenhar nesse processo.

Ao olharmos para a Informática Pública no Brasil, se de pronto reconhecemos que ainda há muito o que fazer, também podemos constatar sem qualquer ufanismo que ela progrediu enormemente, e vem seguindo um caminho de muitos serviços prestados à Sociedade. É claro que este caminho não surgiu do nada, que há toda uma história formada de pessoas e entidades que trabalharam para chegar-se até aqui, feita de episódios ora frustrantes, ora gratificantes, com acertos e erros. Esta história nos ensinou muito, e é importante não esquecê-la para tentar repetir acertos e evitar cair em erros já cometidos. Na medida que avaliamos e propomos nossos próximos passos nessa caminhada mais abrangente, aparece agora um possível novo paradigma: a Tecnologia da Informação.

A propósito, estamos vivendo numa época em que - mais que anteriormente - são propalados muitos conceitos já antigos, sob uma capa de modernismo ou conquista tecnológica, criando modismos quase sempre vazios e prejudiciais. Ao falar tanto em Tecnologia da Informação, será que não estaremos aderindo a um desses modismos ? Afinal, o que vem a ser Tecnologia da Informação?

Uma definição não-acadêmica poderia ser dada pelo conjunto de técnicas, máquinas e meios de suporte auxiliar para coletar, processar, armazenar e disseminar dados, que, tratados convenientemente, passam a constituir individual ou coletivamente, informações. Individualmente, essas várias ferramentas e essas várias ações nada tem de novo. São os progressos tecnológicos de cada uma dessas partes que formam hoje um conjunto realmente diferenciado, que integra profissionais com diversas funções antes exercidas separadamente, com diversas máquinas e meios de suporte muito além do velho papel e do quase velho computador.

Mas ao visualizarmos esse conjunto, e colocarmos nessa nova fase uma série de esperanças e expectativas, devemos ter alguns cuidados para que não cometamos de novo alguns erros do passado

Um de nossos problemas tem sido nossa tolerância com o deslumbramento tecnológico. É freqüente o profissional ligado à computação considerar a tecnologia como um fim em si mesma, com alguns técnicos preocupados exclusivamente em ter acesso à mais moderna ferramenta disponível, sem saberem bem o que fazer com ela. Para estes, dados e informações não são diferentes... Se não fosse trágico, pelo desperdício de recursos que isso tudo representa para um país ainda pobre e carente, seria tão cômico quanto a caricatura do novo-rico que ao nos mostrar sua aparelhagem de som, insiste não em ouvir música, mas em exibir quantos decibéis de potência seu sistema possui. Esse deslumbramento deve ser combatido e questionado.

Mas um erro ainda maior é observado na concepção de finalidade dos sistemas públicos de informação. A prática, talvez exacerbada no Brasil pelos tempos de autoritarismo, era desenvolver sistemas comprometidos com o usuário-burocrata em detrimento do usuário-cidadão. Ousaria dizer que originalmente todos os sistemas governamentais de informação desenvolvidos pelas empresas públicas federais, estaduais e municipais de informática, foram feitos sem qualquer compromisso com o cidadão comum. Isto, é bom frisar, nada tem a ver com sistemas bem ou mal feitos, eficientes ou ineficientes, pouco ou muito eficazes do ponto de vista técnico. Mas não se pode negar que o "dono" do sistema acaba não sendo a Sociedade, mas o núcleo burocrático que encomenda a aplicação, segundo suas necessidades operacionais e para seu uso exclusivo. Esta prática seguiu um padrão consistente, profundamente elitista e excludente, onde preocupar-se com o cidadão-público era desperdício de recursos.

A Reforma do Estado deste governo pretende redirecionar essas práticas, recolocando a prioridade onde ela deve estar: a serviço do cidadão. E isso não significa gastar mais nem ser ineficiente! Pelo contrário, é um teste de qualidade: todo sistema usado e aceito pelo cidadão estará inapelavelmente provando seu valor, sem medo de fiscalização e de prestar contas. Para que possamos atingir esse novo patamar de qualidade pública, novos paradigmas (sem modismos) são necessários para a boa aplicação da Tecnologia da Informação. Gostaria de citar aqui para nossa reflexão os três que considero principais.

O primeiro já está colocado, e é um paradigma político por excelência, inteiramente sintonizado com a Reforma do Estado: abertura das informações, invertendo a regra dominante no passado recente. De agora em diante, toda informação governamental deve ser pública, exceto aquelas que por sua natureza especial devam ser reservadas (como por exemplo informações de Estado, dados privados da pessoa como registros médicos e fiscais). A conseqüência prática será o aparecimento de sistemas mais úteis ao cidadão, e não restritos à burocracia.

O segundo é um novo paradigma tecnológico: não há mais lugar para sistemas que nos escravizem a fornecedores ou marcas, sejam de hardware ou de sofware, sejam nacionais ou estrangeiros. Precisamos mais que nunca de plataformas tecnológicas abertas, onde a competitividade de fornecedores pode ser realmente exercida, e através das quais os investimentos públicos serão melhor preservados. A convergência de várias especialidades técnicas, que até aqui eram separadas, não nos permite mais ficar restritos, por exemplo, à informática, quando a Tecnologia da Informação é muito mais que isso. As normas e padrões internacionais para conseguir isto já evoluíram de uma postura mais tradicional, mais lenta, para responder muito mais rapidamente às necessidades do consumidor de informação dos dias de hoje. O papel da Internet como derrubadora de barreiras e preconceitos e os trabalhos das organizações internacionais de padrões dessa área precisam ser melhor conhecidos de todos nós, pois os sistemas abertos já deixaram de ser conceitos ou desejos para se tornarem realidade.

O terceiro novo paradigma é de natureza organizacional, voltado para a Reforma mais específica do Aparelho do Estado, e diz respeito à missão estratégica e operacional das atuais empresas públicas de processamento de dados e seu relacionamento com a administração direta, seja a nível federal, estadual ou municipal. Gostaria de me deter nesta questão com mais vagar e cuidado.

Inicialmente, vamos examinar um pouco da evolução histórica dessas empresas e sua relação com seus usuários. Será interessante também observar a existência de um paralelismo na evolução das plataformas tecnológicas disponibilizadas nas últimas décadas, e a percepção pela sociedade da missão estratégica (com o respectivo modelo organizacional) que as empresas públicas deveriam desempenhar.

O primeiro modelo organizacional surgido nas empresas públicas encarregadas de processar os dados federais, estaduais ou municipais foi quase universalmente adotado na década de 60; sua concepção baseou-se principalmente nas economias de escala proporcionadas pelo processamento centralizado. Hoje está evidente que os sistemas eram concebidos por especialistas que se colocavam num mundo à parte, insulado e protegido pelo mistério que os "cérebros eletrônicos" representavam para os meros mortais.

A racionalidade da economia baseada na concentração justificava também um monopólio das empresas públicas em suas respectivas áreas, pois a Administração não podia contratar alternativas competitivas.

O aparecimento das máquinas de 3a. geração, com os decantados "chips" que aumentavam o "charme" da novidade tecnológica, levou às alturas os lucros e a influência das empresas dominadoras desta tecnologia, que pareciam inexpugnáveis fortalezas de eficiência e modernidade. É de se notar em retrospectiva, que muito pouca modernidade foi trazida por esta geração de tratamento da informação; os sistemas desenvolvidos, em sua imensa maioria, desempenhavam sua tarefa com maior rapidez e maior centralização e segurança, mas com quase nenhuma mudança de métodos.

O quadro resultante deste modelo nunca foi uniforme no Brasil, pois em algumas administrações seus dirigentes políticos, percebendo a flexibilidade que essas estatais traziam, faziam dela fonte de recrutamento de quadros privilegiados com salários muito acima da média daqueles pagos pela administração direta. É que as empresas públicas de processamento de dados, como as divisões ou departamentos de tantas empresas privadas, conseguiram muitas vezes um tratamento salarial diferenciado ou mesmo privilegiado, dada a suprema especialização de seus quadros profissionais. Como tudo era apresentado como moderno, diferente, até misterioso, foi possível recrutar jovens de talento e montar quadros de grande proficiência, apesar da falta de maturidade.

Enquanto essa prática ficava apenas restrita ao grupo de assessoria direta dos dirigentes, que com cada mudança de governo dava lugar a seus sucessores, nada de muito grave acontecia. Mas em (infelizmente) inúmeras administrações desde aquelas com pouca seriedade ou até às completamente corruptas, essas empresas pagaram um preço altíssimo, com danos quase irreparáveis tanto para sua situação econômico-financeira quanto em relação à sua reputação técnico-profissional perante seus usuários compulsórios.

Apesar desses aspectos negativos, o modelo tinha racionalidade à época, e realmente trouxe economias de escala. Alguns sistemas importantes foram assim implantados, e alguma novidade apareceu, inclusive as primeiras redes de terminais com processamento "on-line", especialmente na cobrança de tributos. Com uma infraestrutura de comunicações ainda extremamente ineficiente, sobretudo nas conexões urbanas dos grandes centros, essas redes deram bastante restritas e muito caras - fortalecendo um pouco mais a concentração.

A ligação de uma máquina a outra, vizinha ou distante, era complicada e muito específica. Para que uma máquina "falasse" com outra, era necessário estabelecer regras, determinando o que fazer para estabelecer essa ligação, como proceder para verificar que dados não fossem perdidos ou acidentalmente modificados na transmissão, especialmente face à baixa qualidade das linhas telefônicas e a conseqüente introdução de "ruídos" que interferissem no processo. Essa regra é o que os técnicos chamam de "protocolo de comunicação", que tradicionalmente foram desenvolvidos pelos fabricantes de forma restrita, para funcionar apenas entre suas próprias máquinas. Essa característica de restrição apropriadamente levou o mercado a chamar esses protocolos de "fechados", e, por serem comercializados apenas pelos próprios fabricantes (que cobravam por isso), de "proprietários' - que é uma tradução discutível do inglês "proprietary".

De passagem, vale comentar que a reação à essa situação não demorou, especialmente pelos grandes usuários do governo americano, como os Ministérios da Defesa e da Energia, que necessitavam estabelecer comunicação entre diferentes tipos de máquinas e sistemas e viam-se tolhidos tanto técnica como comercialmente. Utilizando-se do poder de compra governamental e dos organismos internacionais de padronização, começaram a desenvolver especificações para protocolos genéricos e padronizados, que em contrapartida aos existentes, foram batizados de "abertos". Este esforço começou devagar e levou muito tempo para firmar-se, pois naturalmente encontrou (e ainda encontra em alguns casos) uma grande resistência dos fabricantes.

Sumarizando, a concentração de processamento num só órgão centralizador era reforçada pelas economias derivadas de usar os mesmos protocolos de comunicação empregados, ainda que proprietários e fechados. Sua complexidade, cada vez mais exigida face aos novos sistemas desenvolvidos para funcionar "on-line", reforçou no Brasil a dependência do CPD-concentrador ao paradigma de excelência técnica e administrativa dado pelas próprias empresas fornecedoras de máquinas. Como se tudo isso não bastasse, as restrições à importação de máquinas - primeiro pela falta de divisas decorrente dos choques do petróleo, depois pela proteção à então nascente indústria brasileira - fizeram com que os grandes fabricantes, que possuíam fábricas de "mainframes" no país, vendessem ainda mais e por mais tempo suas máquinas de grande porte.

Esta fase, que vai até o final da década de 80, foi para a maioria das empresas de processamento de dados, em todos os níveis, uma fase de crescimento tanto político como econômico. Para os clientes dessas empresas - os usuários que se utilizavam dos sistemas de processamento para eles desenvolvidos "sob medida" - foi uma fase que poderia ser classificada como a "primeira onda tecnológica", onde computador ainda tinha resquícios de "cérebro eletrônico", cheio de mistérios e intimidações. A relação da empresa pública provedora de serviço com esse cliente-usuário era muito desbalanceada, com o provedor monopolista ditando as regras para o frustrado e impotente usuário. Essa frustração era reforçada principalmente pela demora de atendimento a qualquer demanda de novos sistemas (ou mesmo a mudanças nos existentes), e a impossibilidade prática de controlar prazos e orçamentos.

O que alguns analistas chamam de segunda geração de plataformas tecnológicas, caracterizada pelo surgimento dos minicomputadores (também conhecidos como processadores departamentais), por razões diversas teve quase nenhum impacto no Brasil, e praticamente nada alterou na forma de atuar das empresas públicas da área; aqui os grandes sistemas centrais fabricados localmente por algumas multinacionais, tiveram, como acabamos de citar, uma sobrevida causada principalmente pelas dificuldades de importação. O usuário continuou distante, o prestador de serviço continuou a pretender trazer "a solução para o seu problema", a relação continuou desbalanceada, e o tempo de atendimento continuou longo demais...

A terceira e mais conhecida dessas "ondas" ou plataformas, que surge com o aparecimento e disseminação generalizada dos computadores pessoais, ainda perdura. A estrondosa revolução que surgiu a partir do microcomputador, modificou completamente o panorama da computação e da relação da empresa pública centralizadora com seu usuário. Em muitos casos, com a pulverização de fornecedores e o envolvimento direto proporcionado pelo micro, o usuário antes submisso e tecnicamente humilde, tornou-se mais exigente e menos conformado em ser olhado como ignorante.

No Brasil, o anterior surgimento de uma forte dose de capacitação nacional, quando se deixou de olhar computadores como caixas-pretas, ajudou a acelerar esse fenômeno de envolvimento pessoal do usuário. Uma pretendida auto-suficiência, ainda que ineficiente, passou a significar para esse usuário uma fuga do monopólio exercido pelo atendimento centralizado.

Evidentemente, por ainda convivermos com essa fase, sabemos que o uso de micros pessoais nas organizações tem seus problemas. A proliferação de redes locais e a queda vertiginosa dos preços das máquinas, se de um lado populariza e democratiza o uso da informática, do outro cria ilhas de sistemas isolados e redundantes em informação colhida e tratada. Mas nem os críticos mais radicais discordam que o saldo geral da terceira onda tem sido altamente positivo.

E quais foram as conseqüências dessa terceira onda para o nosso modelo de empresa estatal de informática ? Como esta fase não terminou, ainda há algumas indefinicões, mas de modo geral as conseqüências estão sendo bastante variadas. Uma das mais marcantes passa a ser a nova e marcante influência nas negociações entre o CPD provedor e o órgão de governo que contrata os serviços. Este novo usuário-individual, mesmo continuando sem conhecer muito de informática, já não se deixa intimidar tanto; alguns destes realmente chegam a acreditar que com seus (ainda parcos) conhecimentos em planilhas, passam a também ser especialistas, e questionam (às vezes com muita propriedade, mas via de regra com pouca profundidade) as soluções apresentadas pelas empresas provedoras.

Mas o aspecto mais evidente é que a maioria das empresas provedoras, pelo menos no início, reagiu negativamente à terceira onda, simplesmente vendo os micros e os micreiros como inimigos. Isto só fez aumentar o fosso de separação entre elas e seus usuários, atuando como fator adicional de perda de credibilidade. Continuavam ou ainda continuam com a "mentalidade do aquário", e sua perspectiva futura como entidade é precária, pois perdendo apoio político e incapazes de renovar tecnologicamente seus quadros, perdem também seus melhores e mais criativos profissionais. Alguns dirigentes insistem em manter intacto o modelo, em continuar com o monopólio das aplicações públicas por força de decretos ou portarias, em vez de firmarem-se pela qualidade dos serviços prestados; na realidade, estão praticando "hara-kiri"...

Entretanto, algumas poucas empresas seguiram caminhos diametralmente opostos e sem maiores reflexões incorporaram-se à nova onda, criando divisões especializadas em fornecer soluções baseadas em computadores pessoais. Isso melhorou enormemente sua relação com uma boa parte de seus usuários, que agora eram atendidos muito mais "pessoalmente". Mas na maioria dos casos a ordem antiga prevalecia intacta, causando até uma divisão interna entre o "pessoal do grande porte" e os "micreiros". Este modelo dual também não consegue firmar-se, por não promover uma política mais abrangente de renovação tecnológica. A desunião entre as verdadeiras facções que inevitavelmente vão se degladiar internamente, acaba envolvendo o cliente-usuário numa discussão que só vai transmitir insegurança e gerar mais desconfiança sobre o futuro.

Restaria a solução que soa como óbvia, e que até já foi adotada por um número (muito reduzido) de empresas: a questão não é aderir ou repelir, mas sim combinar o uso das plataformas existentes para criar uma nova, que usasse o melhor dos dois lados, micros e "mainframes", tanto em redes locais como em espalhadas ("wide-area networks"). A razão aparente do pequeno número de empresas estatais de informática que conseguiram fazer a transição para este modelo é simples: estagnação e inércia técnica, que leva as empresas a fazer o que já lhes é familiar e garantido, o que já sabem (e muitas vezes, sabem muito bem!). É preciso dirigentes com sólida base técnica, apoio político e respaldo financeiro para ter a coragem de inovar...

Seja como for, até por exclusão ou falta de alternativas, não seria esse então o novo paradigma organizacional buscado, de renovação e sustentação do modelo para prestar serviços nessa área, combinando centralização de armazenamento de dados com atendimento pessoal descentralizado ?

A resposta não é digital: depende de como se faz esse casamento. Acontece que a solução pode ficar capenga, se a junção micro-mainframe for feita com as mesmas tecnologias anteriores de hardware, de software, e de redes. Não podemos esquecer novos fatores além do mero progresso das máquinas, como a integração entre comunicações e informática (que finalmente amadureceu), os enormes saltos tecnológicos que foram conseguidos na área de bancos de dados, e em especial que a outrora soporífera evolução das telecomunicações hoje adquiriu velocidade de mudanças semelhante à dos computadores, e que passou de certo modo a influenciar pesadamente em pontos importantes (como o caso dos protocolos de comunicação). Em outras palavras, esse paradigma só será válido se acompanhar a evolução ocorrida numa plataforma tecnológica olhada mais amplamente.

Torna-se pois necessária uma renovação mais funda, que consiga manter o novo modelo alinhado com as novas plataformas tecnológicas que chegam inseridas na quarta onda. É fator de sobrevivência, não é escolha técnica.

Mas infelizmente há outros complicadores à vista no caminho das empresas públicas de informática. Na questão de sustentação econômico-financeira, tradicionalmente, para manter adequadas suas receitas, elas dependem muito de sua capacidade de agregar valor aos dados processados para poder financiar sua atividade. Acontece que a nova plataforma tecnológica diminui bastante a agregação possível de valor às novas formas de processamento da informação. Adicionalmente, as margens de lucro da atividade das empresas públicas de informática deverão continuar a diminuir, pois são proporcionais aos preços de mão de obra especializada, hardware, software e de telecomunicações, e destes custos, só o de mão de obra especializada, apesar de também ter diminuído, não apresenta a mesma curva radical de queda dos demais.

O outro complicador é a relação com o usuário. Se as economias de escala que justificavam o modelo monopolístico de contratação dos serviços prestados pelas empresas públicas começam a desaparecer, as razões para a exclusividade obviamente também desaparecem. Como se isso não bastasse, o usuário - cada vez mais exigente e conhecedor de alternativas - vai cedo descobrir que as novas plataformas trazidas pela quarta onda, sendo naturalmente abertas, se por um lado liberam o prestador de serviço da "prisão" a um fornecedor de máquinas e software, por outro também podem liberá-lo do prestador exclusivo. Isto significa que o prestador deve, para sobreviver, aumentar sua competitividade para conservar o cliente-usuário, seja através de medidas tradicionais como maior pressão interna para diminuir custos e poder praticar margens menores, seja através de medidas mais ousadas como capacitar seu pessoal para atualizar sua plataforma tecnológica e usufruir dos ganhos de produtividade aí existentes, e possíveis reflexos na sua capacidade financeira de se renovar tecnologicamente.

Será então que o caminho da decadência e extinção é inexorável, e apenas questão de tempo? Será que as empresas públicas de informática são dispensáveis?

É aqui que devemos colocar em nossa reflexão a estreita ligação da Tecnologia da Informação com as propostas e conseqüências da Reforma do Aparelho de Estado. No modelo que separa claramente as funções que os diversos segmentos devem cumprir, as empresas públicas de informática deverão reorganizar-se como Agências Autônomas, perder seu monopólio abrangente, e readquirir algumas características que serão fundamentais para sua sobrevivência e adaptação às novas condições da sua clientela. De lado, terão muito mais liberdade para agir competitivamente, sem artificialismos que distorcem sua relação com seus usuários, e passarão a depender não de arranjos burocráticos mas de sua própria competência. Do outro lado, a própria evolução tecnológica e a reorganização do Aparelho do Estado vão exigir um novo tipo de entidade para tratar das questões de Tecnologia da Informação - e aqui é importante o claro entendimento de que estamos falando do amplo espectro citado anteriormente, com o amálgama e integração de várias atividades profissionais antes dispersas ou autônomas.

Basta falar em infovias, correio eletrônico, videoconferência, educação "on-line" à distância, multimídia, compras eletronicamente conduzidas (EDI), e um sem número de palavras recentes que denotam esse verdadeiro caldeirão tecnológico para verificarmos a necessidade de uma ou mais entidades governamentais para poder acompanhar isso tudo, em vários níveis e em diferentes setores. Quem vai administrar as redes de governo, sejam municipais, estaduais ou federais? Quem vai aconselhar que tipo de investimento fazer em matéria de multivias municipais, onde as infovias estarão ao lado de outros canais de provimento das necessidades da população? Quem vai operar os serviços de videoconferência oficiais? Quem vai cuidar dos quiosques públicos de informação para o cidadão?

Antes que alguém tenha a impressão de que queremos virar futurólogos ou de que tenhamos pronta a proposta de um novo modelo mágico para as empresas públicas de informática, vamos tratar de ir parando por aqui. Não temos de modo algum essa pretensão. O que desejamos é provocar, talvez até polemizar, mas iniciar um debate que precisa ser feito. Precisamos opinar, discutir. E para não dar mau exemplo, fugindo da controvérsia, permitam-me que desde já coloque algumas opiniões pessoais.

Acredito que no Brasil de hoje as empresas públicas de informática estão realmente em crise, e esta crise não é só de natureza financeira. Seria estranho que num Estado em crise, elas ficassem incólumes, como será estranho que num Estado reformado, voltado para sua cidadania, elas possam permanecer distantes e fechadas como em tantos casos do passado e até de hoje. Por isto acredito que dentro de algum tempo - talvez antes do final da década - não vai mesmo haver viabilidade para as empresas de informática que continuem insistindo nos velhos modelos. Aquelas que não se transformarem, redefinindo seus papéis no novo Aparelho de Estado que está surgindo no Brasil, vão ficar sem clientes, e desaparecerão.

Apesar de tudo isso, considero imprescindível a existência de um organismo estatal para ser o guardião das informações do cidadão. Não acredito em terceirizar para empresas privadas informações pessoais, nem algumas informações estritamente de Governo. Quero que esse organismo seja confiável, fiscalizável e eficiente, com capacidade de renovar-se tecnologicamente, com conduta transparente. Não é necessário que tenha um monopólio, mas deverá ter alguma preferência ou prioridade para tratar algumas questões mais delicadas que não devem ser contratadas com empresas privadas, sujeitas ao mercado. O conselho dessas empresas deve ser aberto para a sociedade e para os usuários-clientes governamentais; isso contribuirá muito para uma efetiva fiscalização, que será naturalmente complementada pelas características renovadoras da reorganização da empresa como Agência Autônoma. O seu contrato de gestão deve deixar claro quais são as áreas de preferência e onde terá de competir com outros prestadores de serviços.

Também creio que a Reforma do Estado vai tornar ainda mais claro que muito em breve vamos necessitar de empresas públicas não propriamente de informática, mas de Tecnologia da Informação, capazes de efetivamente ajudar o Aparelho do Estado atender às novas demandas do cliente-cidadão. Seus técnicos deverão se voltar muito mais para fora das organizações do que para dentro, tornando a informação pública realmente pública.

Estamos diante de um grande desafio, num momento de crise que também é sempre um momento de oportunidade: como redirecionar o emprego dessa tecnologia para o cidadão, como com ela ajudar a transformar o Aparelho do Estado brasileiro a melhor atender às necessidades de seus cidadãos, como com ela contribuir para construirmos um país mais solidário e socialmente mais justo. Como disse no início, não há fórmulas mágicas, tecnocráticas ou demagógicas. Depende essencialmente de nós a transformação da Informática Pública em alguma coisa condizente com a redefinição do aparelho de estado voltado para o cidadão; para isso, estamos todos sendo convocados para, democraticamente, participar desta importante tarefa.

Information technology and state reform

Abstract

Focus is on the question f organizational models adopted by public data processing companies, and their possible restructuring to meet the needs of their users, in the midst of the profound changes in the technological platforms which have been traditionally used. The intention of the Ministry of Federal Administration and State Reform is to contribute to having the debate continue, by emphsizing the availability of public information to citizens.

Keywords

Organizational model; Public company; Data processing; User.

Ricardo Adolfo de Campos Saur

Secretário de Recursos Logísticos e Tecnologia da Informação

Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado

Publicado em "textos para discussão", número 6, ENAP, Brasília, Julho de 1996, a partir de palestra proferida no Primeiro Congresso Nacional de Informática Pública (I CONIP) - São Paulo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 1998
  • Data do Fascículo
    Jan 1997
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