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Reflexões sobre a qualidade no Brasil

Reflexions about quality in Brazil

Resumo

Diante do fascínio brasileiro por autores e modelos estrangeiros de tecnologias organizacionais, este artigo tem por objetivo realizar uma análise crítica a respeito de como vem sendo abordado o tema qualidade no Brasil. Partindo do contexto brasileiro, onde o assunto é vivenciado, passando pelo que está sendo praticado e discursado pelas organizações, pre-tende-se trazer à tona algumas reflexões que permeiam o sucesso e o fracasso das empresas na busca pela qualidade.

qualidade; gestão; tecnologias organizacionais; cultura


ARTIGOS

Casos e Working Papers. Reflexões sobre a qualidade no Brasil

Reflexions about quality in Brazil

Janaína Machado Simões

Mestre em Administração Pública pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV).Endereço: Praia de Botafogo 190 - 5o andar - Rio de Janeiro/RJ - Brasil - CEP 22253-900. E-mail: jsimoes@fgv.br

RESUMO

Diante do fascínio brasileiro por autores e modelos estrangeiros de tecnologias organizacionais, este artigo tem por objetivo realizar uma análise crítica a respeito de como vem sendo abordado o tema qualidade no Brasil. Partindo do contexto brasileiro, onde o assunto é vivenciado, passando pelo que está sendo praticado e discursado pelas organizações, pre-tende-se trazer à tona algumas reflexões que permeiam o sucesso e o fracasso das empresas na busca pela qualidade.

Palavras-chave: qualidade; gestão; tecnologias organizacionais; cultura.

A qualidade é brasileira?

No Brasil, o assunto qualidade vêm sendo muito explorado nas últimas décadas, tendo como literatura de base os chamados clássicos da qualidade, cujos autores, americanos e japoneses em sua maioria, são geralmente considerados "gurus". Nesse mesmo caminho, diversos modelos e programas de qualidade foram chegando ao país e sendo incorporados pelas empresas locais, o que, na maioria das vezes, aconteceu sem a devida adaptação à cultura e à realidade brasileira. Tais incorporações continuam acontecendo, tanto no setor privado quanto no público, porém, mantendo os moldes internacionais. Surge aí uma inquietação naqueles que têm uma visão mais crítica sobre o tema: as práticas de qualidade baseadas fortemente em modelos internacionais de excelência e desempenho realmente apresentariam bons resultados a longo prazo no Brasil?

No que tange a relação entre gestão e aspectos culturais do país, Davel e Vergara (2001) apontam algumas questões de extrema importância no contexto brasileiro:

a) até que ponto levamos em conta, quando adotamos novas formas de gestão de origem estrangeira, as condutas e a maneira de pensar e agir tipicamente brasileiras?

b) até que ponto somos totalmente colonizados por tendências administrativas estrangeiras sem sermos suficientemente críticos para analisá-las e adaptá-las às nossas vantagens culturais?

c) até que ponto o estrangeirismo, culturalmente presente em nossa forma de avaliar a realidade, pode dificultar o processo de inovação e de criatividade que o ser humano poderia agregar à organização?

É possível especular-se algumas respostas para essas questões. Quanto à primeira delas, o tema qualidade acabou sendo consolidado no Brasil, permeado por modismos e tentativas mais fundamentadas, com raríssimas adaptações ao contexto local. Hoje, grande parte dos programas de qualidade adotados pelas empresas brasileiras mantém nomenclaturas estrangeiras, além de realizarem transferências de práticas desconsiderando o conteúdo subjetivo, repleto de heranças culturais e simbólicas de sua nação de origem.

Já em relação à segunda questão, boa parte das organizações que implementam ações voltadas à qualidade não têm a preparação profissional e educacional necessárias ao bom funcionamento desses programas. Outro ponto é que o cidadão, além de conviver com constantes desvalorizações das características nacionais de gestão, acaba tendo sua percepção crítica da realidade fragilizada, ficando mais vulnerável à imposição de modelos estrangeiros.

Por fim, no que diz respeito à terceira questão, no momento em que se valoriza em demasia o estrangeirismo, acaba-se por deixar de explorar os ricos traços da cultura local, como a flexibilidade, o famoso "jeitinho" e criatividade na busca de soluções, a adaptabilidade e a informalidade de relacionamento do brasileiro. Essa problemática pode ser comprovada por meio da análise crítica não só das práticas empresariais, mas também dos estudos acadêmicos no Brasil.

Quando se fala a respeito da cultura organizacional, conforme analisa Freitas (1991), entende-se que exista no Brasil, nas escolas de administração, uma tendência a se queimar etapas e incluir temas que estão sendo desenvolvidos em países mais avançados, temas esses nem sempre compatíveis com a nossa realidade. Dessa forma, colocar em prática uma teoria que não se identifica com o contexto ao qual está sendo aplicada gera, além das dificuldades, um resultado na maioria das vezes bem distinto do que foi idealizado.

Qualidade na prática

A incessante busca pela qualidade também pode ser comprovada pelo grande número de iniciativas de implantação de modelos, programas, premiações e publicações em torno do tema no Brasil. Um dos exemplos brasileiros de como é explorado o tema qualidade é o de Macedo-Soares e Lucas (1996), que analisaram 100 empresas líderes no país a respeito da utilização de práticas de qualidade e seus obstáculos em implementá-las. Em seu estudo, as autoras apresentam seis áreas gerenciais-chave abrangendo tais práticas:

1) liderança gerencial no desenvolvimento de uma cultura de qualidade;

2) gestão participativa;

3) gestão do controle e garantia da qualidade;

4) gestão por processos de negócios;

5) gestão da relação com os clientes; e

6) gestão das pessoas.

Quanto aos obstáculos encontrados, destacam-se principalmente:

a falta de práticas sistematizadas e extensivas;

a necessidade de maior interfuncionalidade;

a falta de uma melhor relação das práticas com a estratégia;

um maior comprometimento da alta direção; e

a necessidade de uma atenção maior a treinamentos e a sistemas de avaliação e remuneração.

Esse exemplo corrobora o fascínio brasileiro por modelos estrangeiros, já que as áreas gerenciais-chave dos programas, bem como suas práticas, têm grandes semelhanças com as internacionais. Além disso, percebe-se que mesmo grandes empresas com boas estruturas e bons quadros funcionais enfrentam graves dificuldades para implementar tais práticas. Uma das explicações para isso estaria no fato de que o surgimento de novas tecnologias organizacionais não acompanhou um quebra de paradigmas no contexto local, pelo fato de que as raízes patriarcais e clientelistas continuam presentes no meio empresarial. Outra razão estaria nas sucessivas crises econômicas e sociais - com características distintas da realidade internacional -, que não são consideradas pelos modelos que vêm de fora.

Mesmo com tais problemas, a qualidade permanece presente no dia-a-dia organizacional. No Brasil, continuam surgindo iniciativas para promover e premiar as práticas de qualidade, com a adoção de critérios de excelência originados em modelos estrangeiros, principalmente, americanos e japoneses. Tanto o Prêmio Nacional da Qualidade (PNP) quanto o Prêmio Nacional na Gestão Pública (PNGP) surgiram na década de 1990, influenciados pela onda internacional. O PNP apresenta os seguintes critérios de excelência:

liderança;

estratégias e planos;

clientes;

sociedade;

informações e conhecimento;

pessoas;

processos; e

resultados.

Já o PNGP apresenta critérios semelhantes, apenas com a adaptação dos critérios clientes e sociedade para um só critério, cidadão e sociedade (www.portalqualidade.com).

O sucesso desses programas, se observados de forma superficial, é muito significativo. Existem hoje representações estaduais para a multiplicação dessas práticas. Sem negar que tais incorporações trouxeram, sim, avanços e melhorias à realidade das organizações, não se pode esquecer o lado nebuloso desses programas e pre- miações de qualidade. Assim, o problema está no fato de como tais programas estão sendo incorporados pelas organizações e como vem ocorrendo seu funcionamento. São merecedoras de crédito aquelas empresas que adotam tais critérios de excelência para proporcionar melhorias reais no conhecimento e na aplicação das práticas de qualidade. Porém, merecem um olhar mais cuidadoso aquelas que se utilizam de premiações apenas para melhorar sua imagem diante do mercado e manter falsos discursos de profissionalização, participação e democratização.

Qualidade como discurso

No Brasil, diferenças e distorções entre prática e discurso são comuns, seja na área política, na social ou até nas relações interpessoais. No meio organizacional, a situação não é diferente. E no que diz respeito à qualidade, isso se agrava, seja em razão do desconhecimento ou despreparo dos dirigentes, seja por interesses escusos, envolvendo questões financeiras e de mercado presentes em algumas situações.

No que tange à relação discurso versus prática de qualidade, Pierre Filho (2004) afirma que muitos dirigentes admitem iniciativas em prol da qualidade, vestindo a qualidade como uma máscara - construída através de atitudes e procedimentos que revelam superficialidade -, capazes de discursos prolongados e calorosos a seu favor. O autor acrescenta que, após isso, tais profissionais voltam-se novamente para aquilo que encaram como sua real responsabilidade, que seria o bem-estar financeiro da empresa. É salientado ainda a existência de uma falta de comprometimento com os objetivos intrínsecos da qualidade, pregando-se a democracia, a descentralização e o desenvolvimento das pessoas como um discurso ilusório que não corresponde às ações empreendidas pelas organizações. Logo, aparentemente, tudo parece perfeito, mas é apenas uma forma de mostrar ao mercado que a empresa seria gerida por um sistema moderno de administração.

O abismo existente entre o que é discursado e o que é realmente posto em prática nas organizações, sob uma perspectiva mais ingênua, talvez represente o extremo negativo no paradigma de implementação de programas de qualidade. Já numa análise mais fria das situações brasileiras, pode-se considerar que tal contradição é umarealidade, a qual necessita ser melhor analisada. É preciso salientar que não se pretende aqui desmerecer o sucesso de algumas empresas em suas práticas de qualidade, porém não cabe aqui descrevê-lo, pois isso já é exaustivamente realizado pela literatura. Busca-se, então, um despertar para o entendimento da fronteira tênue entre o sucesso e o fracasso da incorporação e do exercício das organizações na busca pela qualidade.

Entre o sucesso e o fracasso

Atualmente, existem várias explicações, razões, causas e influências permeando a questão sucesso/fracasso de novas tecnologias organizacionais, em especial, a qualidade. Ocorre até uma congruência entre os autores, muitas vezes, em relação aos fatores que seriam ideais para o sucesso e o que não seria recomendado para programas de qualidade. Aqui, são destacadas percepções mais críticas e duras sobre o tema, ainda que estas possam ser comprovadas quando são estudados casos reais de implementação de práticas de qualidade.

Diante das transformações pelas quais as empresas vêm passando, é importante destacar algumas diferentes abordagens da vida organizacional, apresentadas por Wood Jr. (1999), que podem sintetizar alguns dos principais pontos de discussão na dinâmica de sucesso e de fracasso na vida das organizações:

exigência de um perfil pessoal e profissional diferente por parte do gerente tradicional;

somente o foco no aprendizado e no conhecimento pode garantir a sobrevivência na era da hipercom-petição;

95% dos títulos publicados abordam o mundo real a partir de uma visão simplista, e o resultado é a mesmice e a repetição;

busca ávida dos gerentes por soluções milagrosas;

falta de visão de longo prazo;

difícil arte de organizar o trabalho;

parceiras entre indivíduos e empresas promovendo a criatividade e a inovação; e

os novos métodos de gestão estimulam o cinismo organizacional.

Tais percepções indicam alguns dos clássicos problemas na adaptação das tecnologias organizacionais e, talvez, sejam resultados da soma da problemática incorporação das práticas estrangeiras, da desvalorização das questões nacionais e da situação sócio-econômica do país. Vale ressaltar que, mesmo nos programas de qualidade considerados mais simples, tais situações ocorrem com facilidade, além de, geralmente, predominar a existência de conflitos entre os indivíduos e as organizações, diante de discursos e práticas repetitivas e descontínuas.

As justificativas para os problemas em relação à qualidade são infinitas. De acordo com Taylor e Mendes (2000), o fato de práticas mais avançadas de qualidade serem deixadas em segundo plano se dá pela dificuldade de implementação, pelo fato destas não fazerem parte da cultura das organizações brasileiras ou por imaturidade das organizações que as implementam. Outro ponto importante que as autoras também salientam, é a decisão pela incorporação de pacotes gerenciais prontos, o que ocorre mais em função da adoção destes pela concorrência ou por empresas admiradas e badaladas no mercado do que por uma efetiva reflexão ou necessidade por parte da organização. Aí está, provavelmente, a origem dessa problemática, que pode ser sintetizada pela possível dificuldade de prevalecer uma postura reflexiva, crítica e participante na gestão brasileira.

Concluindo

Neste artigo, buscou-se refletir acerca da qualidade, enfatizando como o tema vem apropriado no contexto brasileiro. De uma perspectiva crítica discutiu-se a respeito do contexto local, das práticas, dos discursos e de sucessos e insucessos. Tal abordagem considerou que a influência internacional nas práticas de qualidade nacionais foi de certa forma negativa, que exemplos de práticas de qualidade efetivas e éticas ainda não são majoritários e, que nas discussões e ações referentes ao tema nas organizações, o discurso ainda é muito diferente do verificado na prática. Por fim, foi salientado que o sucesso ou fracasso de determinada tecnologia organizacional vai depender do nível de consciência reflexiva, participativa e crítica daqueles que a implementam.

A qualidade, como afirma Vieira (1999), mesmo quando considerada uma estratégia gerencial, não pode ser tomada como universal. Ela irá variar em relação às características específicas de grupos e de organizações. Nesse sentido, a qualidade nas organizações deveria ser, antes de tudo, questionada levando-se em conta o contexto no qual ela está inserida, para reconstruir-se esse conceito e revisar discursos e práticas que hoje são correntes. Tal reconstrução passaria pela incorporação de características, valores e práticas locais e pelo entendimento do que o tema qualidade representaria para o brasileiro.

Assim, é evidente que o enfoque aqui dado não busca apenas problematizar uma situação, através da discussão sobre o lado mais negativo do tema, e, sim, pretende-se trazer à tona uma inquietação sobre o despertar de uma consciência contra simples cópias de modelos, exaltações de gurus e práticas gerenciais ingênuas ou nebulosas. Espera-se que a realidade brasileira passe a ser compreendida e considerada, que o bom senso esteja presente nas ações gerenciais nacionais e, que acima de tudo, questões como o papel dos indivíduos nas organizações e as formas de apropriação de modelos estrangeiros de gestão, ainda insipientes nos programas de qualidade no Brasil, sejam profundamente discutidas.

Site na Internet

  • DAVEL, E.; VERGARA, S. C. (Org.). Gestão com pessoase subjetividade. São Paulo: Atlas, 2001.
  • FREITAS, M. E. Cultura organizacional: formação, tipologias e impacto. São Paulo: Makron, McGraw-Hili, 1991.
  • MACEDO-SOARES, D.; LUCAS, D. Práticas gerenciais de qualidade das empresas líderes no Brasil. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1996.
  • PIERRE FILHO, M. Q. A gestão cosmética da realidade. Será que temos realmente qualidade?. Disponível em: <http://www.fgvam.com.br>. Acesso em: 14 jul. 2004.
  • TAYLOR, C.; MENDES, D. Entre o ter e o ser competitivo. Revista da FAE, Curitiba, v.3, n.3, p.49-59, set./dez. 2000.
  • VIEIRA, M. M. F. Qualidade e objetivos: implicações teóricas e metodológicas para a análise das organizações. In: VIEIRA, M. M. F.; OLIVEIRA, L. M. B. Administração contemporânea: perspectivas e estratégias. São Paulo: Atlas: 1999.
  • WOOD JR., T. Gurus, curandeiros e modismos gerenciais. 2.ed. São Paulo: Atlas, 1999.
  • http://www.portalqualidade.com Acesso em: 10 jul. 2004
    » link

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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