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DESAFIOS RECENTES DA SOCIOLOGIA URBANA

INTRODUÇÃO

Em City of Quartz, Mike Davis (2006)DAVIS, M. City of quartz: excavating the future in Los Angeles. London: Verso, 2006. toma Los Angeles como cidade paradigmática do caráter altamente fragmentado da experiência urbana contemporânea, e sublinha que, da modernidade tardia, ressurge uma cidade plural, polissêmica e desigual. Para dar conta de toda a complexidade da vida hodierna, a Sociologia Urbana contemporânea pulsa viva do entrecruzamento dinâmico e diverso de temas e estudos de alta qualidade, que permeiam diferentes e intercambiantes campos de pesquisas na Sociologia, Antropologia, Urbanismo, Ciência Política, Administração, Economia, Geografia e Demografia, entre outros. A complexidade da vida urbana reclama abordagens igualmente complexas que deem conta dos temas que compõem a agenda urbana da atualidade: violência, crime organizado, segregação, efeito-território, ilegalismos, desigualdade, gentrificação, sociabilidades e espaço público, pobreza, cidadania e direitos, habitação, mobilidade, trabalho informal e precarizado, movimentos sociais urbanos, patrimônios culturais, governança, sustentabilidade e inclusão.

Se não bastassem todos esses temas confluentes, outro assunto inesperado adentrou transversalmente esses campos de estudos, adicionando uma complexidade imprevista: a necessidade de distanciamento social e a alteração abrupta das rotinas urbanas em decorrência das necessidades epidemiológicas de prevenção para a Covid-19. Para a Sociologia Urbana, essa variável interveniente veio como um desafio duplo, pois punha em suspensão não apenas rotinas cotidianas, mas cessou parte da base ontológica da própria vida social: a interação e a possibilidade do encontro. Cidades vazias e silenciosas despertaram em muitos a reflexão sobre os sentidos de uma vida verdadeiramente ativa, como se referia Hannah Arendt, para quem a ação, como condição da vida, nunca opera no isolamento: “Estar isolado é estar privado da capacidade de agir” (Arendt, 1987ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 201). A esfera da vida pública se caracterizaria pela experiência socialmente compartilhada, da qual resultam as ações humanas, independentes dos lugares onde essas ações se estruturem.

Em reflexão semelhante, Richard Sennett reforça a ideia do encontro como base do sentido público da cidade como fórum de uma vida civilizada, na qual é possível experimentar a descoberta do estranho, do desconhecido e do impessoal. Para Sennett, é importante repensar a própria cidade como “estabelecimento humano no qual os estranhos devem provavelmente se encontrar. A geografia pública de uma cidade é a institucionalização da civilidade” (Sennett, 1998SENNETT, R. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., p. 324).

Pensar a cidade é, assim, pensar nos encontros e possibilidades conflitivas da vida urbana, suas dissensões e desafios. E é sobre essas realidades díspares que esse Dossiê reúne artigos que tratam dos rumos da sociologia urbana na atualidade. Representando diferentes modos de pensamento, os participantes são pesquisadores reconhecidos por suas contribuições, em falas e escritos já elaborados sobre a questão urbana, dando aqui seguimento às reflexões com trabalhos que abrigam problemas teóricos e empíricos singulares nesse campo de pesquisas. A história do Dossiê é com as atividades do Comitê de Sociologia Urbana, da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), tendo como um de seus momentos significativos a realização da Mesa Redonda apresentada no 20º Congresso da SBS em 2021, com o título “Rumos e caminhos da sociologia urbana no difícil e conturbado século XXI”.

Prosseguindo na rede de interações e aprofundamento de questões, este Dossiê pretende contribuir para a construção de agendas de pesquisa, apontando mudanças de rumo nas metodologias aplicadas à análise dos problemas citadinos e indicando contornos da questão urbana na atualidade. A concordância quanto aos temas e problemas pertinentes à construção dessas agendas não exclui a indicação de mudanças de rumo nas metodologias, o que constitui talvez o principal foco analítico. Trata-se de pensar sobre as novas direções e desafios seguidos pela própria construção do pensamento sociológico que se debruça sobre as cidades.

Alguns dos desafios já conhecidos são revisitados nos estudos direcionados à concentração populacional, à pobreza, ao isolamento e à segregação de populações e grupos em áreas de uma cidade. Essas temáticas, sempre presentes desde os inícios da sociologia urbana, abrem nos escritos aqui apresentados espaços para a amplitude e a riqueza de indagações clássicas e contemporâneas. Emergem nessas reflexões os processos políticos decisórios que oferecem um fio condutor para se chegar à relação entre Estado-Sociedade, atravessada pelas imposições da economia, e seus desdobramentos: seja na descentralização de poderes, nos novos desenhos das políticas públicas ou nos avanços alcançados nas últimas décadas no caso brasileiro; seja ainda nos arranjos urbanos e nos temas emergentes que acompanham o neoliberalismo, a financeirização e a globalização.

Outros questionamentos estão representados nas análises voltadas para a cultura urbana por meio de suas expressões na vida das cidades, nas mudanças dos usos dos espaços ou nos movimentos sociais e suas recentes formalizações nos coletivos e ativismos.

Ainda assim, o fato de se passar a falar em agenda urbana em um contexto de transição para os novos ciclos do capitalismo sugere o interesse da continuação dos diálogos sobre os fluxos do capital no contexto da globalização neoliberal, suas influências sobre o planejamento urbano e os avanços e retrocessos das políticas públicas – refletindo-se na ênfase que vem sendo dada ao item da competitividade entre cidades.

Sem a pretensão de expor com profundidade as questões tratadas nos diversos textos do Dossiê, registramos alguns marcadores que se cruzam analiticamente, percorrendo um caminho que não segue a sequência dos escritos. Do ponto de vista das abordagens, percebe-se o uso de dados qualitativos e quantitativos que fundamentam os argumentos, agregando o que pode ser nomeado por variáveis estruturais e fenômenos empíricos. São eles expressões de reatualizações de antigos temas referentes às desigualdades de cunho social, econômico e político. As abordagens convivem com o que poderia ser nomeado por “abertura teórico-metodológica”, considerando-se o fato de não se contar (mais) com um critério analítico exclusivo que possa distinguir os estudos e oferecer caminhos na construção destas agendas.

No âmbito do inventário de estudos que contribuíram para a formação de um pensamento social urbano, o artigo de Linda Gondim (“Lícia do Prado Valladares e a constituição do campo dos estudos urbanos no Brasil”) analisa a trajetória intelectual da pesquisadora citada, acentuando suas abordagens diversificadas que incluem registros sistemáticos sobre a pobreza urbana, movimentos sociais, infância e juventude, entre outros temas.

Em uma perspectiva teórico-metodológica, o artigo de Iracema Brandão Guimarães (“Condições de vida, moradia e trabalho em espaços urbanos”) apresenta uma breve revisão nas abordagens do termo “condições de vida” em suas dimensões sociais – classes, grupos e relações. A autora aborda estudos realizados com base na mesma fonte de dados para estabelecer comparações entre a série de pesquisas oficiais, buscando as relações com instrumentos analíticos encontrados nos inícios da sociologia urbana.

Os rumos da sociologia urbana espacialmente situados estão tratados no artigo de Inaiá Carvalho e Rafael Arantes (“Transformações na estrutura urbana e desigualdades sociais”), levando em conta as transformações ocorridas nas cidades brasileiras, nas últimas décadas. O artigo revisita a discussão sobre a segregação socioespacial e o “efeito território”, analisando seus impactos sobre a produção e reprodução das desigualdades sociais. As reflexões fundamentadas em dados e articulações analíticas incluem especificidades locais em Salvador, incorporando ainda questões gerais verificadas em outras grandes cidades do País.

Além de enfocar a riqueza proporcionada pela busca de rumos atuais da sociologia urbana, o Dossiê aborda também o contexto da profunda crise proporcionada pela Pandemia da Covid-19, no período 2020-2021. Trata-se de assunto presente em alguns artigos que estabelecem pontes entre velhas e novas questões da vida urbana, abrindo reflexões macro e microssociológicas.

Nessa direção, Lúcia Bógus e Luís Felipe (“Desigualdades sociais e espacialidades da Covid-19 em regiões metropolitanas”) verificam como a mobilidade humana e o consequente deslocamento do capital concorrem para o próprio caminho de disseminação da pandemia nas diferentes regiões do país. Consideram os autores que abordar a disseminação da Covid-19 supõe cotejar os diferenciais de renda, de escolaridade, de ocupação, de acesso à saúde e de bem-estar urbano.

Outro conjunto de escritos se volta a uma “sociologia das sensibilidades existenciais”, tal como nomeia Carlos Fortuna em seu artigo (“Urbanidades complexas: desafios à nossa volta”), retomando o olhar crítico dos clássicos observadores do mundo urbano em sua construção permanente de sentidos. Considera Fortuna que, com a pandemia, respirar os ares da cidade deixou de ser uma prática ensaiada desde o nascimento. Também os odores urbanos se tornaram artificiais e “perigosos”. Em síntese, as formas desiguais de estar na cidade complexificaram as modalidades de estar em público. As cidades, antes ruidosas, passam a abrigar uma expressão de silêncios.

Essa é também uma das questões tratadas no artigo de Irlys A. Barreira (“Espaço público e convívio na cidade: interpelações antigas e recentes à sociologia urbana”) quando se reporta aos efeitos da pandemia no cotidiano dos sons e sentimentos aguçados, a exemplo do medo. Em uma tentativa de articulação entre processos micro e macroestruturais, Irlys Barreira observa a vulnerabilidade urbana diante da disseminação da pandemia, evidenciando os antigos dilemas da sociabilidade nos espaços públicos.

Por uma via menos focada na pandemia e mais voltada para pensar os impactos de processos globais no cotidiano, Rogerio Proença Leite (“Vida acelerada e esgotamento: a mera-vida urbana contemporânea”) aborda a aceleração urbana da sociedade neoliberal e seus efeitos em uma psicopolítica do esgotamento. Seguindo uma linha de reflexão amparada em Hartmut Rosa e de Dardot e Laval, o autor argumenta que os modelos de conduta produtiva são acompanhados por mecanismos de monitoramento e julgamento de performances de sucesso pessoal e profissional, impulsionando a avaliação e autoavaliação permanentes, com fortes ressonâncias para a vida urbana contemporânea.

Em síntese, o conjunto de questões tratadas no dossiê mostra a abertura das ciências sociais para acolher analiticamente momentos e espaços diversificados que cada vez mais fazem parte do mundo urbano. É quando as sensibilidades e as estruturas dialogam, rompendo fronteiras e reafirmando as cidades como telas de acontecimentos sociais. Esperamos que os leitores possam estabelecer suas conexões e observações importantes para impulsionar esse campo de pesquisas.

REFERÊNCIAS

  • DAVIS, M. City of quartz: excavating the future in Los Angeles. London: Verso, 2006.
  • SENNETT, R. O declínio do homem público São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • ARENDT, H. A condição humana Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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