Acessibilidade / Reportar erro

A atualidade do pensamento de Guerreiro Ramos: branquidade e nação

The freshness of Guerreiro Ramos’s thinking: whiteness and nation

L’actualité de la pensée de Guerreiro Ramos: blancheur et nation

Resumos

O presente ensaio tem como objetivo mostrar que a reflexão sobre relações raciais no Brasil do sociólogo baiano Guerreiro Ramos, da década de 1950, continha elementos do que mais tarde iria se consolidar como Teoria da Branquidade, cujo ponto fulcral é examinar a constituição do branco em um sistema de relações raciais, e não o “problema do negro”. Em seguida, demonstro como a questão da branquidade, em Guerreiro, está intimamente ligada à sua concepção normativa de nação, para, em seguida, examinar pontos de tensão entre sua concepção e as teorias da negritude, as quais ele bebeu e lhe serviram de inspiração, tanto quanto teorias mais recentes, como as do Atlântico Negro e da Diáspora Africana. Concluo defendendo que as questões apontadas por Guerreiro, como a crítica da branquidade ligada a um projeto emancipador de nação, continuam atuais no mundo de hoje, tanto para o Brasil quanto para o mundo no qual ele se insere.

Guerreiro Ramos; Branquidade; Relações Raciais; Negro; Nação


The goal of this essay is to show that the reflection on race relations in Brazil by sociologist Guerreiro Ramos, in the 1950s, contained elements of what would later consolidate itself as a Theory of Whiteness whose central point is to examine the constitution of whiteness in a system of race relations instead of the “black people issue”. Subsequently, I demonstrate how the issue of whiteness, for Guerreiro, is intimately connected to his normative conception of nation, and then examine tension points between his conception and blackness theories, which he used as source and inspiration, as well as more recent theories, such as Black Atlantic and African Diaspora. I finish the article by arguing that the issues pointed out by Guerreiro, such as the criticism towards the connection of whiteness with an emancipatory nation project, remain fresh in today’s world, as much for Brazil as it is for the rest of the world.

Guerreiro Ramos; Whiteness; Race Relations; Black People; Nation


L’objectif de l’analyse que nous présentons ici est de montrer que la réflexion faite sur les relations sociales au Brésil par le sociologue bahianais Guerreiro Ramos, dans les années 1950, était dotée d’éléments qui plus tard allaient être consolidés comme Théorie de la Blancheur dont le point crucial est d’examiner la constitution du Blanc dans un système de relations raciales et non pas le « problème du Noir ». Puis, nous démontrons combien la question de la blancheur chez Guerreiro Ramos est intimement liée à sa conception normative de nation pour ensuite vérifier les éléments de tension entre sa conception et les théories de la négritude qu’il a absorbées et qui lui ont servi d’inspiration. Il s’agit autant des théories plus récentes que de celles de l’Atlantique Noir et de la Diaspora Africaine. Pour conclure, nous soutenons que les questions soulevées par Guerreiro, telle la critique de la blancheur liée à un projet émancipateur de nation, sont toujours actuelles dans notre monde d’aujourd’hui autant pour le Brésil que pour le monde dans lequel il s’insère.

Mots-clés:
Guerreiro Ramos; Blancheur; Relations Raciales; Noir; Nation


O tema das relações de raça no Brasil chega, nestes dias, a um momento polêmico. Até aqui se tem falado numa antropologia e numa sociologia do negro. Hoje, condições objetivas da sociedade brasileira colocam o problema do “branco” e aqueles estudos “antropológicos” e “sociológicos” rapidamente perdem atualidade”.

Guerreiro Ramos

A epígrafe acima se encaixa perfeitamente no propósito do presente artigo, que é o de mostrar como Guerreiro Ramos, em Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (Ramos 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p.), já antecipava vários elementos de uma abordagem da análise das relações raciais, que se consolidou várias décadas depois sob o nome de Estudos da Branquidade (whiteness). É claro que o argumento da “antecipação” é, muitas vezes, temerário, pois, como indica Quentin Skinner (1969)SKINNER, Q. Meaning and understanding in the history of ideas.History and theory, v. 8, n. 1, p. 3-53, 1969., pode silenciosamente pressupor um curso teleológico da história intelectual. Mas, no caso em questão, há elementos suficientes, como pretendo mostrar, para reconstruir uma teoria da branquidade aplicada ao caso brasileiro na obra de Guerreiro Ramos. Trato, aqui, da produção do autor anterior a seu exílio nos Estados Unidos, que começa em 1968, onde o autor entrou em contato com os conceitos de birracialismo, multiculturalismo e afrocentrismo (Guimarães 2005-2006, 164).

Pretendo mostrar também que o ideal normativo de nação é fundamental para entender a justificação que Guerreiro faz da necessidade do estudo da branquidade, ou da brancura, como ele dizia. A questão da nação nos leva para fora do ambiente microssociológico habitado pelos estudos da branquidade em direção a teorias mais gerais acerca das interfaces entre racismo, formação nacional e colonialismo. Assim, em seguida, mostro que a concepção de nação, em Guerreiro, o diferencia tanto de seus contemporâneos, escritores da negritude, quanto de correntes mais recentes dos estudos das relações raciais, como a Diáspora Africana e o Atlântico Negro, representados pelo trabalho de Stuart Hall e Paul Gilroy.

Para atingir o objetivo proposto aqui, procederei da seguinte maneira. Em um primeiro momento, examinarei o conceito de branquidade no atual estado da arte dos estudos das relações raciais. É importante introduzir o presente estudo com essa revisão, pois, como veremos, a branquidade é conceito polissêmico e faz-se crucial que saibamos qual de seus significados melhor se encaixa no pensamento de Guerreiro. Ao final dessa breve investigação, identificarei alguns autores brasileiros que utilizaram o conceito. Em seguida, farei uma reconstrução dos argumentos do autor sobre relações raciais no Brasil, chamando a atenção para a centralidade da branquidade neles e a maneira como o estudo da branquidade se conecta com o ideal normativo de nação. Por fim, compararei o contexto de produção do pensamento do autor com o atual contexto da produção acadêmica sobre relações raciais, chamando a atenção para a importância da localização nacional da enunciação da teoria de Guerreiro, que contrasta com a tendência contemporânea de pensar a questão racial em perspectiva transnacional.

BRANQUIDADE: como e por quê

Muitos autores fazem carreira na profissão de cientista social propondo e defendendo conceitos: sociedade de risco, democracia consociativa, modernidade periférica, pós-modernidade, habitus, etc., A proliferação de conceitos em nosso meio é realmente impressionante, e qualquer profissional da área com algum senso crítico já se apanhou pensando se esse ou aquele conceito tem, de fato, utilidade analítica; se não se trata de uma nova apresentação de ideias requentadas. O conceito de branquidade é forte candidato a produzir tal dúvida, mas, como pretendo mostrar aqui, há alguns elementos importantes nele que atestam sua utilidade.

Na verdade, o sucesso da empreitada de se propor um conceito analítico para a comunidade sociocientífica repousa sobre um paradoxo fundamental: quanto maior o sucesso do conceito, maior a chance de sua coerência se dissolver em um caldo semântico recheado de tensões e contradições. Como já notou Reinhart Koselleck em relação aos conceitos políticos, a intensificação de seu uso faz com que mais e mais pessoas projetem seus interesses, valores e desígnios, alterando sua semântica, introduzindo novos significados e horizontes normativos (Koselleck, 1985KOSELLECK, R. Futures past : on the semantics of historical time. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985. xxvi, 330 p.). Algo similar se dá com os conceitos sociocientíficos, a despeito da pretensão de controle técnico sobre essa linguagem que os autores frequentemente afetam: quando mais empregados, mais sua semântica se torna rica e menos precisa. O conceito de branquidade não escapa a essa regra.

Na introdução que escreveu sobre o tema, Steve Garner diz, no primeiro parágrafo: “A primeira coisa que precisamos estabelecer é que branquidade (whiteness) não tem um significado consensual e tem sido definida de várias formas diferentes, ainda que não mutuamente excludentes.” (Garner, 2007GARNER, Steve. Whiteness: an introduction. London: New York: Routledge, 2007. viii, 216 p., p. 1). O que parece unir esses significados diversos do conceito é o projeto de se estudarem as relações raciais tomando a construção social do branco como objeto, e não mais “a questão do negro”, como nos estudos mais clássicos de relações raciais e étnicas.1 1 Esse tipo de inversão epistemológica também acontece em outras áreas, com os estudos da desigualdade no Brasil (Medeiros, 2003) e no exterior (Piketty, 2013).

Garner, então, divide as correntes de estudo da branquidade em quatro: terror e supremacia; invisibilidade ou falta, e visibilidade ou presença; normas, valores e capital cultural; e hierarquias contingentes. Vamos nos concentrar aqui nas duas primeiras correntes, que serão mais úteis para a análise em questão.

Segundo o autor, a concepção de branquidade como terror e supremacia é, de fato, a mais antiga e se confunde com os primeiros estudos da questão do negro na sociedade americana. Para ela, contribuíram intelectuais negros célebres como Ida Wells-Barnett, W. E. B. Du Bois, Langston Hughes, Richard Wright, Ralph Ellison, James Baldwin, e, mais recentemente, Toni Morrison, Bell Hooks e Charles Mills, com seu livro sobre o contrato racial (Mills, 1997MILLS, C. W. The racial contract. Ithaca: Cornell University Press, 1997. xii, 171 p.). Aqui entram as várias análises que revelaram os procedimentos mais ou menos formais, mais ou menos visíveis, de discriminação e opressão dos negros. Garner começa por elencar várias contribuições que focam o tratamento diferenciado que brancos e negros têm tido nas cortes de justiça dos Estados Unidos, desde a legislação Jim Crow até casos mais recentes que obtiveram notoriedade midiática. Um dos pontos principais da análise é que tal tratamento diferenciado confere aos brancos os direitos do indivíduo liberal, enquanto reduzem os negros a uma categoria genérica e negativa de ameaça à propriedade, à segurança e à ordem pública (Garner, 2007GARNER, Steve. Whiteness: an introduction. London: New York: Routledge, 2007. viii, 216 p., p. 21-22).

Por fim, Garner empresta de Mills um sumário com seis dimensões da supremacia branca: jurídico-política, econômica, cultural, cognitivo-valorativa, somática e metafísica (Garner, 2007GARNER, Steve. Whiteness: an introduction. London: New York: Routledge, 2007. viii, 216 p., p. 24). Mas um ponto fundamental em Mills é que a supremacia branca se sustenta na invisibilidade, ou seja, todos esses processos de subjugação racial não aparecem para os partícipes das interações sociais como tal, ou aparecem, quando muito, como formas de opressão dos negros, mas nunca como privilégio dos brancos.

Há certa inconsistência no esquema analítico proposto por Garner, pois, ao final do capítulo em que ele organiza a literatura que trata da branquidade como terror e supremacia, entra com força o tema da invisibilidade, como em Mills, comentado logo acima. Isso parece indicar que as duas vertentes não são totalmente estanques. Por enquanto, contudo, vamos guardar essa hipótese provisória e examinar o que traz o capítulo sobre a branquidade como invisibilidade.

A invisibilidade aqui está intimamente ligada à normalização de padrões, procedimentos e modos de pensar.

[A] branquidade passou a representar a humanidade, normalidade e universalidade: ‘os brancos não são somente uma determinada raça, eles são apenas a raça humana’ (1997:3). Se branco equivale a humano, então tudo o mais requer qualificação: tudo se torna desviante. Assim, para tornar o argumento mais claro, não é que a branquidade é propriamente invisível. Melhor expressão seria ‘não marcada’ (unmarked) (Garner, 2007GARNER, Steve. Whiteness: an introduction. London: New York: Routledge, 2007. viii, 216 p., p. 34).

É interessante notar que trabalhos sobre o tema mostram que essa impressão de invisibilidade, de não marcação, é particularmente forte entre os brancos. Peggy McIntosh caracteriza o privilégio branco como uma mochila com “provisões especiais, mapas, passaportes, livros de códigos, vistos, roupas, ferramentas e cheques em branco” (Mcintosh, p. 1). Segundo a autora, mesmo as pessoas brancas mais críticas tendem a ver o racismo como uma prática que coloca os negros e outros grupos em desvantagem, mas não como uma fonte de privilégios e regalias para os brancos.

A invisibilidade do branco pode ser bem melhor observada em seus limites. O trabalho de Ann Phoenix com a juventude londrina mostra que os brancos não assumem uma identidade racializada, não identificam a discriminação racial nas relações sociais e falam de valores como liberdade e igualdade de maneira idealizada. Contudo, os negros são vistos por eles como uma categoria generalizante e ameaçadora (Phoenix, p. 192). Enquanto o branco é visto como indivíduo universal não racializado, o Outro é primordialmente um membro racializado e um coletivo. Mulheres brancas da Califórnia, estudadas por Ruth Frankenberg, também não demonstram uma identidade racializada até serem confrontadas com pessoas “racializadas”, o que as faz começar a dolorosamente aceitar sua própria pertença racial (Frankenberg). Finalmente, Karyn McKinney reporta que seus estudantes brancos, em uma disciplina de raça e etnicidade, demonstram ressentimento e raiva ao serem confrontados com os privilégios da branquidade, assumindo, assim, sua localização racial. Sua reação foi de rechaço, afirmando o caráter individual das interações sociais, que seriam, assim, cegas à cor (color-blind) (Mckinney).

A invisibilidade do privilégio branco está por trás também, como bem identifica Garner, da resistência às políticas de ação afirmativa nos Estados Unidos, particularmente quando são levantados argumentos em defesa do mérito individual e de instituições que sejam cegas à cor. É somente por meio da invisibilização do sistema de privilégios e desvantagens, que constitui o racismo, que se pode propor que a posição social e o acesso a oportunidades – consistentemente inferiores dos negros se comparados com os brancos – deriva estritamente do somatório das capacidades e escolhas dos indivíduos de cada grupo.

Voltemos à hipótese de que as duas vertentes da branquidade, como supremacia e como invisibilidade, não são totalmente estanques. Na verdade, Garner parece indicar uma solução sem, contudo, estar plenamente consciente disso. Como ele bem indica, a branquidade como terror e supremacia parece estar muito mais presente nos estudos e narrativas de intelectuais negros acerca das relações raciais (Garner, 2007GARNER, Steve. Whiteness: an introduction. London: New York: Routledge, 2007. viii, 216 p., p. 40), e tal vertente é subproduto da reflexão sobre a condição do negro na sociedade, mais do que uma investigação autônoma sobre os modos de ser e pensar dos brancos. Não é coincidência que a longa tradição de estudos de relações raciais norte-americana pertence, em grande medida, a essa vertente, ou seja, à denúncia dos mecanismos explícitos que promovem os brancos. Na verdade, fenomenologicamente, estamos falando do mesmo objeto sendo mirado de diferentes perspectivas: o olhar negro sobre o racismo torna a branquidade visível; já o olhar branco a invisibiliza.

Essa modalidade de investigação, o estudo do branco – da maneira como determinada formação racial (Omi; Winant, 1994OMI, M.; WINANT, H. Racial formation in the United States: from the 1960s to the 1990s. 2nd. New York: Routledge, 1994. xii, 226 p.) produz essa categoria e as justificações, argumentos e instituições que a sustentam –, é uma corrente muito mais recente do estudo das relações raciais, algo que surgiu na academia de língua inglesa por volta do final da década de 1980 e começo da de 1990, junto com outras novas abordagens do estudo da raça e etnicidade, comoCritical Race Theory,2 2 Para uma boa introdução à Critical Race Theory, ver Crenshaw (1995) e Delgado (2001). com a qual tem vários pontos em comum. Na verdade, é somente essa nova vertente que faz a total inversão do objeto de estudo. É ela que pode, mais propriamente, representar os estudos da branquidade no que eles contribuem de novo para o campo dos estudos das relações raciais.

Se, nos meios acadêmicos de língua inglesa, essa abordagem é razoavelmente recente, no Brasil, então, ela é fresquíssima. Uma pesquisa na base de dados do Scielo mostra um número diminuto de artigos que lidam com o conceito de branquidade. Alguns são traduções de textos originalmente publicados em inglês (Apple, 2001APPLE, Michael W. Políticas de direita e branquidade: a presença ausente da raça nas reformas educacionais. Revista Brasileira de Educação, n. 16, p. 61-67, 2001.), o que deve ser tomado como sinais de recepção de um novo conceito por parte da academia brasileira. Três artigos focam a interface entre branquidade e sexualidade (Lopes; Maia, 2012MAIA, Suzana. Identificando a branquidade inominada: corpo, raça e nação nas representações sobre Gisele Bündchen na mídia transnacional.Cadernos Pagu, p. 309-341, 2012.; Pinho, 2012PINHO, O. Race Fucker: representações raciais na pornografia gay.Cadernos Pagu, n. 38, Jan./Jun. p. 159-195, 2012.), e outros dois examinam a operação da branquidade em discursos de mídia e em livros didáticos (Silva et al, 2012SILVA, P. V. B. D.; ROCHA, N. G. D.; SANTOS, W. O. D. Negras(os) e brancas(os) em publicidades de jornais paranaenses. Intercom – RBCC,v. 35, n. 2, p. 149-168, 2012.;Silva et al, 2013SILVA, P. V. B. D.; TEIXEIRA, R.; PACIFICO, T. M. Políticas de promoção de igualdade racial e programas de distribuição de livros didáticos.Educação e Pesquisa, v. 39, n. 1, p. 127-143, jan./mar 2013.).

Assim, é realmente extraordinário constatar que Guerreiro Ramos, nos idos da década de 1950, já havia formulado esse projeto de estudar o branco, como também tinha prestado atenção, entre outras coisas, ao aspecto da invisibilização e normalização do padrão branco em nossa sociedade. Passemos, agora, a examinar a contribuição desse sociólogo baiano.

GUERREIRO E A BRANQUIDADE

No texto que se segue, limitar-me-ei a analisar os argumentos apresentados pelo autor em Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (Ramos 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p.), sem a pretensão de assumir que eles representem todo seu pensamento sobre relações raciais, algo que seria, no mínimo, insensato, uma vez que Guerreiro publicou vários outros textos sobre o tema durante sua longa carreira intelectual. O ponto aqui é outro, isto é, identificar elementos do conceito de branquidade em seus argumentos.

As evidências são muito fortes para serem ignoradas. Guerreiro dedica toda a terceira parte do livro, composta por três capítulos, às relações raciais. O primeiro capítulo dessa terceira parte se denomina “Patologia social do branco brasileiro”. Após abrir o texto em tom polêmico, criticando a sociologia e a antropologia praticadas no Brasil, Guerreiro já propõe uma inversão:

Até aqui se tem falado numa antropologia e numa sociologia do negro. Hoje, condições objetivas da sociedade brasileira colocam o problema do “branco” e aqueles estudos “antropológicos” e “sociológicos” rapidamente perdem atualidade [...]. No plano ideológico, é dominante ainda a brancura como critério de estética social (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 216).

Segundo Guerreiro, nas relações raciais, a dominação dos brancos europeus se deu não somente pela força e violência, mas também se vincula a “um sistema de pseudojustificações, de estereótipos, ou a processos de domesticação psicológica” (Ramos 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 219). Ou seja, a ideologia da superioridade racial dos brancos foi naturalizada, generalizada e consumida por brancos e não brancos (mestiços e negros, nas palavras do autor).

Guerreiro, contudo, não era um construcionista radical. Pelo contrário, acreditava que, paralelamente às representações simbólicas da raça, havia uma realidade fática racial. Segundo ele, “o processo de miscigenação e de capilaridade social absorveu, na massa das pessoas pigmentadas, larga margem dos que podiam proclamar-se brancos outrora”. Por consequência, segundo o autor, “nosso branco é, do ponto de vista antropológico, um mestiço, sendo, entre nós, pequena minoria o branco não portador de sangue preto” (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 225). O problema racial no Brasil se deveria, portanto, ao fato de haver um desencaixe entre a ideologia e o fato racial, ou, em suas palavras, não há mais “coincidência de raça e de classe” (Ramos 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., 219).

Utilizando-se de metáfora biológica, Guerreiro chama esse desencaixe de patologia e conclui que, nas regiões norte e nordeste do Brasil, ela é mais aguda. Isso se deve ao fato de que, nessas regiões, até as pessoas mais claras são miscigenadas. Assim, ao assumirem a ideologia da branquidade, manifestam “em sua autoavaliação estética, um protesto contra si próprias, contra a sua condição étnica objetiva” (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 222). Guerreiro afirma que esse mal afeta brasileiros escuros e claros, ou seja, a ideologia da branquidade é hegemônica; contudo seu objetivo, no texto, é examinar particularmente o caso dos brancos (idem).

Guerreiro pretende encontrar, nos dados do Censo de 1940, a subnotificação de pretos e a tendência de pardos se declararem brancos. De fato, há evidências que apontam para tais hipóteses, como a proporção de 148 pretos para 100 pardos na região Sul, região de menor população não branca, e de 18 pretos para 100 pardos no Norte, região de maior parcela não branca da população. Daí o autor concluir que “o negro é mais negro nas regiões onde os brancos são maioria e é mais claro nas regiões onde os brancos são minoria.” (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 224).

Segundo o autor, essa patologia redunda em baixa autoestima. Os brancos do norte e nordeste, frequentemente, lançam mão de subterfúgios para camuflar sua origem racial mestiça. Entre esses subterfúgios, está a tematização do negro, ou seja, a transformação do negro em objeto de estudo da antropologia e da sociologia. Por meio dessa manobra, os intelectuais norte-nordestinos afirmam sua branquidade, aproximando-se do padrão europeu almejado. Para Guerreiro, isso explica o fato de boa parte dos intelectuais que tematizaram o negro do Brasil serem originários daquelas regiões: Sylvio Romero, Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Thales de Azevedo e René Ribeiro (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 226).

Logo em seguida à enumeração dos intelectuais norte-nordestinos que estudaram o negro, Guerreiro passa a enumerar declarações explícitas de branquidade por parte dessa “classe”. Agora, contudo, a branquidade não aparece mais como subterfúgio, como ideologia velada, mas sim como preconceito desnudo, isto é, confissões de crença na supremacia branca, a primeira definição do conceito na tipologia de Garner.

Guerreiro enumera vários casos dessa natureza: um poeta alagoano que escreveu um tratado arianizante em alemão e ficou ofendido ao ser chamado de “grande poeta negro do Brasil” por seu editor argentino; outro poeta nortista, que apelou para um exame de sangue para provar sua pureza racial branca; um romancista negro “embranquecido por processos decorativos, químicos e mecânicos”, que se autodenomina “moreno carregado”; um intelectual “branco” pernambucano, que declara explicitamente sua abjeção à ideia de ver um parente próximo casar-se com um negro, pois a cor representa o que há de maligno, soturno e repulsivo; um redator de O Globo, de origem nortista ,declara que a beleza de uma bailarina negra é tão grande a ponto de embranquecê-la (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 229).

O fim da lista de casos é reservado para ninguém menos que Gilberto Freyre. Guerreiro foca no texto que o autor pernambucano publicou no jornal O Globo, em 3 de maio de 1955, denominado “Dia das Mães”. Aqui, Guerreiro se detém para fazer uma análise detalhada do discurso de Freyre. Primeiro chama a atenção para a estratégia de polarização entre as duas personagens principais do ensaio: a mãe preta e a mãe branca. Nota, em seguida, que Freyre utiliza o pronome de tratamento “senhora” somente para se referir à mãe branca, emendando que, no inconsciente do “escritor pernambucano, é impossível conceber a ‘mãe preta’ como ‘senhora’, como ‘dama’, ou seja, não associada a sugestões subalternas” (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 229). Em seguida, descreve a ilustração que acompanha o texto, representando a mãe preta como babá de um menino branco, e parte para uma extensa citação do texto original de Freyre onde ele, exercitando sua verve literária, apresenta uma figura estilizada e idealizada dessa mãe preta como provedora de nutrição e cantigas de ninar, “Joanas, Marias, Beneditas, Amaras, Luzias, Jacintas, carregando num braço um filho branco e no outro um filho preto” (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 229-230).

A subalternização da personagem da mãe preta parece ser tão clara aos olhos de Guerreiro que ele simplesmente reproduz o texto de Freyre sem maiores ponderações, limitando-se, no final, ao seguinte comentário: “Nada mais compreensível, por conseguinte, que este brasileiro tenha sido o criador da ‘lusotropicologia’, isto é, uma apologética do colonizador português.” (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 230).

Mas Guerreiro pensava que essa patologia, o que identificamos como uma teoria da branquidade aplicada ao Brasil, já não tinha mais suportes concretos na realidade brasileira, por duas razões básicas. A primeira, já citada, foi a diluição dos brancos no contingente de não brancos. Aqui, é interessante notar que Guerreiro postula a inversão da tese do branqueamento, que prometia livrar o Brasil dos traços raciais negros por meio da mistura (Neiva, 1927NEIVA, A. Daqui e de longe: crônicas nacionais e de viagem. São Paulo: 1927.; Ribeiro De Andrade, 1929RIBEIRO DE ANDRADE, M. F. Viajando São Paulo: 1929.). Para ele, a mistura produziu o efeito contrário, acabou com os brancos. A outra razão aduzida por ele é que teriam desaparecido “desde há muito, do país, as situações estruturais que confinavam a massa pigmentada nos estratos inferiores da escala econômica” (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 231). Esta é talvez a ideia mais estapafúrdia e paradoxal expressada pelo autor sobre o tema. Depois de passar todo o texto identificando um “complexo” cultural de produção da supremacia branca em pleno funcionamento, ele aponta para o desaparecimento de situações estruturais que mantinham os negros em situação subalterna! Sustentar tal tensão só é possível ao se adotar uma separação radical entre o plano ideológico e o real, ou factual, o que parece ser o caso de Guerreiro.

A terminologia adotada pelo autor é inequívoca, mas só aparece claramente ao final do texto: ideologia da brancura. Essa ideologia é, para ele, uma “sobrevivência” que já não se encaixa na “realidade étnica” do Brasil, mas que ainda “embaraça o processo de maturidade psicológica do brasileiro” e “contribui para enfraquecer a integração social dos elementos constitutivos da sociedade nacional” (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 231).

Nos dias de hoje, a idealização da brancura, na sociedade brasileira, é sintoma de escassa integração social de seus elementos, é sintoma de que a consciência da espécie entre os que a compõem mal chegou a instituir-se (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 235).

E Guerreiro volta a afirmar que os estudos sobre o negro são elementos fundamentais na manutenção dessa ideologia da brancura, transformando os negros em “assunto”.3 3 Guerreiro faz uma distinção entre o problema do negro, o negro como assunto, e a vida do negro, isto é, a vivência real das pessoas negras. Muryatan Santana Barbosa atribui essa distinção à leitura humanista e personalista que Guerreiro fazia da questão (Barbosa, 2006). O autor compara extensamente essa abordagem ao tratamento dado os judeus pelos intelectuais alemães nazistas, apontando, inclusive, para similaridades entre os títulos de obras nazistas sobre os judeus e de ensaios acadêmicos sobre o negro brasileiro (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 234).

Guerreiro pretende inverter a abordagem sociocientífica feita até então. O que ela identifica como “problema do negro” no Brasil, na verdade, é um produto da patologia do branco, de uma minoria de brancos letrados. Mais importante ainda para os propósitos do presente ensaio é que, apesar de não adotar tal terminologia, Guerreiro está claramente preocupado com o lugar de enunciação do discurso científico sobre raça. Esses estudos, segundo ele, falam sempre de um mesmo ponto de vista, o do branco (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 234). Aqui ele adquire o sentido de normalização, de universalização de um ponto de vista que apaga os próprios vestígios, escamoteando-se, algo muito próximo da noção marxista de ideologia, termo que o autor inclusive emprega em algumas passagens.

Mas, dentro da perspectiva crítica do pensamento de Guerreiro, algo que ele assume de cara no título do livro, qual seria, então, a posição melhor a ser adotada? O autor rejeita a ideologia da brancura em nome da necessidade de se reexaminar a questão da raça no Brasil a partir de uma posição de “autenticidade étnica” nacional. Isso, contudo, não redunda em qualquer essencialismo. Nas palavras do próprio Guerreiro:

Esta posição de autenticidade étnica não se inclina para a legitimação de nenhum romantismo culturológico, de nenhum retorno às formas primitivas de convivência e de cultura. A autenticidade étnica do brasileiro não implica um processo de “desestruturação”, no caso, de desocidentalização da sociedade nacional. Ela é possível perfeitamente dentro das pautas nas quais tem transcorrido a evolução do país (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 236).

Essa posição, explicitada na conclusão do texto, é em tudo similar às primeiras críticas feitas por Guerreiro no começo do ensaio ao mainstream da “socioantropologia” do negro. Ao tomar o negro como “assunto”, essa vertente do estudo acadêmico, eivada de branquidade, estaria congelando as forças vivas da sociedade brasileira, elas, sim, capazes de construir, na prática, uma identidade e uma cultura verdadeiramente nacionais. Tal identidade e tal cultura estariam em fluxo contínuo, em evolução, e o esforço de congelá-la seria, em si, um atentado contra o Brasil, feito de uma perspectiva branca, europeizante e ocidentalizante.

Para Guerreiro, a adoção desse ponto de vista nacional requeria, sim, uma reforma não somente na maneira de pensar, mas também de falar, algo que, nos dias de hoje, se aproximaria muito da adoção de critérios que associamos à ideia de politicamente correto.4 4 Na verdade, seria estranho que alguém com uma consciência nacional tão exacerbada quanto Guerreiro se furtasse a formular normas do que seria aceitável ou desejável no que toca os usos linguísticos que representam a identidade coletiva do povo. Para uma discussão crítica sobre a questão do politicamente correto no Brasil de hoje, ver Feres Júnior (2013). Identifica como contaminação eurocêntrica o costume de associar coisas ruins à cor negra, ou mesmo de fazer referência a pessoas usando os termos negro ou preto, como que reduzindo sua personalidade ao aspecto da cor, tomada nesse contexto como sinal eminentemente negativo (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 241-243).

Essa crítica se estende aos poetas, mesmo àqueles que pretenderam exaltar a beleza dos negros, como é o caso de Vinícius de Moraes e Mario de Andrade. Guerreiro, corretamente, aponta a assimetria de tratamento conferido à mulher não branca, epitomada na fórmula: “Branca pra casar, negra pra cozinhar, mulata pra fornicar!”

Na verdade, o exercício crítico proposto pelo autor passa pelo que chamaríamos hoje de uma desconstrução do discurso da branquidade, chamada por ele de brancura. As metáforas usadas por Guerreiro para falar desse exercício crítico são todas visuais. A brancura é referida como “uma venda nos olhos”. Escapar dela seria como escapar de um “nevoeiro”, é “obter certa correção do nosso aparelho óptico”. Mais uma vez, ao se embrenhar nas metáforas visuais para falar da branquidade, Guerreiro alude não somente à “nublação” do sentido da visão, mas também, explicitamente, à invisibilização da branquidade.

Nossa perversão estética não nos alarma ainda porque a repartimos com muitos, com quase todos: é uma lesão comunitária que passou à categoria de normalidade desde que, praticamente, a ninguém deixa de atingir (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 243).

No conjunto da sociologia crítica de Guerreiro, a crítica da branquidade devia ser complementada pela adoção da negritude, inspirada nos escritos de autores africanos e antilhanos como Leopold Sédar-Senghor e Aimé Césaire. A questão aqui não passa pela afirmação essencializada de uma estética negra, mas por colocar o negro como sujeito de seu próprio destino, e não como objeto de conhecimento de uma ciência orientada pelo olhar da branquidade (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 248). Ora, se somos uma nação de não brancos, a consciência nacional deve ser purgada dos vícios e preconceitos da branquidade, incutidas em nós pelo processo de colonização. É somente assim que ela conseguirá se libertar e assumir o protagonismo de seu próprio destino. A crítica da branquidade e a defesa do projeto nacional estão fortemente imbricadas no pensamento de Guerreiro Ramos.

CONTEXTOS À PARTE?

Em Guerreiro, o elogio da negritude funciona como instrumento para reabilitar a consciência nacional dos enleios da branquidade europeizante e ocidentalizante. Tal elogio, ainda que raro no contexto intelectual nacional da época, não é de todo inovador, uma vez que o autor declara expressamente ter recebido influência de intelectuais africanos e antilhanos de formação francesa, como Birago, David Diop Gilbert Gratiant, Etienne Lera, Guy Tirolien e Paul Niger, Léon Laleau, Jacques Roumain, Jean-F. Brière, Jean-Joseph Rabéarivelo, Jean Rabémananjara, Flavien Ranaivo (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 246), e, particularmente, Leopold Sédar-Senghor e Aimé Césaire, os criadores do conceito de negritude (Oliveira, 1995OLIVEIRA, L. L. A Sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.; Barbosa, 2006BARBOSA, Muryatan Santana. Guerreiro Ramos: o personalismo negro.Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2, p. 217-228, nov. 2006).

Mas essa adesão não se fez sem mediações e críticas, como bem aponta Antonio Sérgio Guimarães (Guimarães). Na verdade, a importância que Guerreiro dá a questão nacional parece ter servido como antídoto contra o afrocentrismo e o pan-africanismo que marcam o conceito de negritude em seus autores de origem. A negritude funcionaria, assim, como uma terapia para curar o espírito nacional do excesso de eurocentrismo. Daí Guerreiro afirmar que o Brasil estava destinado a “assumir no mundo a liderança da política de democracia racial” (Ramos, 1950RAMOS, A. G. Apresentação da negritude. O Quilombo. 10, 1950.).

Podemos dizer que a negritude era, para Guerreiro, uma estratégia, similar ao modo como Franz Fanon, outro autor lido pelo sociólogo brasileiro, defendeu o nacionalismo na luta pela descolonização, mas sem o apelo à violência preconizada pelo autor antilhano (Fanon 1963FANON, Frantz. The wretched of the earth. New York: Grove Press, 1963.).5 5 Não é de todo errôneo atribuir ao sociólogo brasileiro traços do que mais tarde Gayatri Spivak chamará de essencialismo estratégico: uma consciência da impossibilidade prática de identidades culturais estáveis que, ao mesmo tempo, concede que essencializações são necessárias na luta política (Spivak, 1985). Guerreiro também faz coro com Fanon na rejeição do essencialismo preconizado pela primeira geração dos autores da negritude, como Senghor e Césaire. De acordo com Césaire, as diferenças de gosto estético entre africanos e europeus tinham raízes biológicas. Enquanto africanos experimentavam maior atração por arte, emoção, intuição e ritmo, os ocidentais eram cultores de ordem, razão e lógica. De qualquer maneira, a negritude, para Césaire, funcionava como grande incentivo para a afirmação cultural dos povos africanos e canal de afirmação de orgulho, autorrespeito e confiança para os negros, coisas que lhes foram sistematicamente negadas nas sociedades ocidentais (Cailler, 1963CAILLER, Bernadette. Proposition poétique: une lecture de l’oeuvre d’Aimé Césaire. Sherbrooke, Que.: Naaman, 1976.). O conceito de negritude, para Senghor, não difere muito do de Césaire no que importa aqui: o resgate da cultura e tradições africanas como meio de combater a alienação e o exílio, além da essencialização do africano como emocional em oposição ao ocidental racional (Senghor), uma prática que vigorou na literatura africana e caribenha até a década de 1960 (Horowitz, 2005HOROWITZ, M. C. New dictionary of the history of ideas. [New York?]: Charles Scribner’s Sons, 2005.).

Em Guerreiro, a negritude aparece não como um impulso de resgate de tradições africanas, mas como a rejeição de padrões estéticos europeus que colonizam a mentalidade brasileira. Encontramos, em seus escritos, argumentos em prol da positividade estética dos corpos negros, da libertação de padrões estéticos corporais europeus, mas não uma essencialização da cultura africana ou de um caráter africano que se oporia ao ocidental branco.

Há uma marca indelével que relaciona esse pensamento anticolonial de matriz francesa, ligado à valorização da negritude, com seus elementos transnacionais e correntes de pensamento mais contemporâneas, como os escritos da Diáspora Africana e do Atlântico Negro (Gilroy, 1993GILROY, Paul. The black atlantic: modernity and double consciousness. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993. xi, 261 p. ISBN 0674076052 (acid-free paper).; Hall, 1989BARBOSA, Muryatan Santana. Guerreiro Ramos: o personalismo negro.Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2, p. 217-228, nov. 2006; Gomez, 2006GOMEZ, Michael. A. Diasporic Africa: a reader. New York: New York University Press, 2006. viii, 317 p.;Meeks; Hall, 2007MEEKS, B.; HALL, S. Culture, politics, race and diaspora: the thought of Stuart Hall. Kingston; Miami, London: I. Randle Publishers; Lawrence & Wishart, 2007. xvi, 316 p.; Gates, 2010GATES, Henry Louis. Tradition and the black atlantic: critical theory in the African diaspora. New York: BasicCivitas, 2010. xiv, 205 p.), agora dominantemente de matriz anglófona. Essa marca é a da rejeição da nação como elemento constituído de positividade moral, do projeto de liberação proposto. Mas esse acento se esmaece nos escritores da negritude e é praticamente invertido nos escritos mais recentes da Diáspora, nos quais a nação sempre aparece como uma máquina institucional e simbólica de perpetrar a opressão e a obliteração dos negros, como vermos a seguir. Vamos tomar aqui, como exemplos dessa posição, o trabalho de dois dos mais influentes autores da literatura da Diáspora e do Atlântico Negro, Stuart Hall e Paul Gilroy.

Hall atinge o ápice de sua carreira intelectual em torno do final do século passado, isto é, quando o tema da globalização havia se disseminado nas ciências sociais, em grande parte devido à recente queda do Muro de Berlim e à dissolução da União Soviética, eventos que marcaram o fim da Guerra Fria. Muitos autores tomaram aqueles eventos como sinais de uma mudança mundial que já vinha sendo anunciada anteriormente pelos teóricos do pós-modernismo, como Jean F. Lyotard (1984)LYOTARD, J. F. The postmodern condition: a report on knowledge. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984. e Frederic Jameson (1998)JAMESON, F. The cultural turn : selected writings on the postmodern, 1983-1998. London ; New York: Verso, 1998. xiv, 206 p., entre muitos outros. Apesar de não ser avesso ao uso do termo pós-moderno,6 6 Ver, por exemplo, Hall (ANO), onde o autor define como pós-moderna uma das três concepções de identidade subjetiva ainda presentes na modernidade tardia. Hall o utiliza parcimoniosamente em seus primeiros escritos, geralmente para descrever um tipo de sujeito, e não uma época.

Identidades culturais constituem o objeto preferencial de Hall, um dos fundadores dos chamados Cultural Studies, e um de seus objetivos é analisar as consequências do advento da globalização sobre elas. Para entender melhor o argumento do autor, é importante notar que ele adota uma divisão epocal tripartite da cultura e da sociedade europeias: pré-modernidade, modernidade e modernidade tardia.7 7 O termo pós-modernidade, modismo que começou a desaparecer da produção intelectual já na década de 1990, foi empregado por Hall aqui e ali, mas, do ponto de vista da marcação epocal, ele adere à noção de modernidade tardia. A modernidade tardia seria produto da transformação da modernidade efetuada pela globalização, entre outras forças. Uma de suas principais consequências sobre o sujeito seria seu descentramento. A explicação é verdadeiramente esquemática. A modernidade corresponderia a uma época ou situação em que predominou a identidade nacional una e unificadora. Na modernidade tardia, as forças centrífugas da globalização fracionam a identidade em elementos culturais, étnicos, raciais, de gênero, de classe, etc., a ponto de ameaçar ou mesmo tornar ineficaz e sem sentido a força unificadora da identidade nacional (Hall, 89).

Mais importante ainda para nosso argumento é notar como Hall interpreta a ideia de nação ou nacionalidade. Em um primeiro momento, ao descrever o que chama de “cultura nacional”, o autor enumera algumas características básicas: ela é uma narrativa da nação, composta por “estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação”; é também tomada como um conteúdo primordial e eterno, o caráter nacional que pode ser resgatado a qualquer momento; ela pode ser composta de tradições inventadas, que parecem antigas, mas não são; é, muitas vezes, erigida em torno de um mito fundacional de origem, que reporta a existência da nação a um contexto primordial trans-histórico; ela é, muitas vezes, pensada como propriedade de um povo (folk) puro e original (Hall, 2005HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª. Rio de Janeiro: DP&A, 2005., p. 52-56).

Ao invés de diretamente criticar a ideia de cultura nacional do ponto de vista normativo, Hall se dedica a mostrar que ela, na prática, está em decadência, pelos efeitos da globalização, ou mesmo do que nunca passou de uma ficção, sempre incapaz de reduzir as diferenças nas realidades onde tentou ser implantada. É claro, em seu tratamento do assunto, contudo, o sentido de imputar à cultura nacional um aspecto de falsidade, de fabricação muito afim do conceito de ideologia em Marx: conjunto de ideias cuja função é turvar o conhecimento das relações de poder e assimetrias do mundo real.8 8 Certamente esse é somente um dos significados do conceito de ideologia em Marx e foi claramente enunciado na Ideologia Alemã, escrita em conjunto com Frederick Engels (Marx, 2001).

O nacionalismo volta a ser tema quando Hall, após dissertar sobre os efeitos deletérios da globalização sobre a unidade do estado-nação, passa a examinar as maneiras como o efeito contrário também é produzido, ou seja, a globalização torna-se fator de reforço de ideologias nacionais. Hall cita o aparecimento de fortes nacionalismos étnicos nas ex-repúblicas da União Soviética, a miríade de conflitos que ele gera, particularmente porque esses países, assim como os demais países da Europa, estão longe de ser etnicamente homogêneos. Outra consequência perversa seria o surgimento do fundamentalismo, e aqui o autor está se referindo, primordialmente, à sua vertente islâmica, que, segundo ele, é produzida como resposta ao fracasso da modernização nesses países, e combina com as forças homogeneizantes da globalização (Hall, 2005HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª. Rio de Janeiro: DP&A, 2005., p. 95).

O importante é notar que, para Hall, a nação aparece como pura negatividade, sempre associada ao essencialismo identitário, a noções de pureza cultural e racial e, portanto, à exclusão e repressão, senão aniquilamento, de minorias. Em seu trabalho sobre a Diáspora, particularmente a africana no Caribe, Hall não muda de posição. Por um lado, tenta redefinir o conceito de diáspora, retirando dele os elementos nacionalistas e unitários presentes em sua origem judaica, e combinando-o às ideias de hibridização e de différance (Hall, 2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte. Brasília Editora UFMG, Representação da UNESCO no Brasil, 2003., p. 33). Por outro, a visão negativa da nação, como projeto necessariamente ligado a identidades e culturas homogêneas e essencializadas, persiste.

Agora, voltemos a análise para Paul Gilroy, em sua obra mais influente, The Black Atlantic: modernity and double-consciousness (Gilroy, 1993GILROY, Paul. The black atlantic: modernity and double consciousness. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993. xi, 261 p. ISBN 0674076052 (acid-free paper).). Gilroy, assim como Hall e Guerreiro, é contra o essencialismo, o que, no seu caso, redunda em afirmar o caráter híbrido da experiência negra. Tal hibridismo se deriva do encontro entre as tradições culturais africanas e europeias no processo de colonização do Novo Mundo, processo extremamente heterogêneo e eivado de violência (Gilroy, 1993GILROY, Paul. The black atlantic: modernity and double consciousness. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993. xi, 261 p. ISBN 0674076052 (acid-free paper)., p. 41-71).

Para Gilroy, a perspectiva nacional é equivocada tanto epistemológica quanto politicamente. Do ponto de vista epistemológico, segundo o autor, o foco na nação, ou mesmo numa instância “criptonacionalista”, faz com que mesmo pensadores críticos percam de vista “as dinâmicas cruzadas, catalíticas e transversas das políticas raciais que são um elemento significativo da formação e reprodução da identidade nacional inglesa” (Gilroy, 1993GILROY, Paul. The black atlantic: modernity and double consciousness. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993. xi, 261 p. ISBN 0674076052 (acid-free paper)., p. 4). O nacionalismo epistemológico se manifesta, segundo o autor, como cultural insederism, ou seja, a tendência de projetar uma suposta homogeneidade étnica sobre a nação e produzir a impressão de que diferenças culturais são imutáveis (Gilroy, 1993GILROY, Paul. The black atlantic: modernity and double consciousness. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993. xi, 261 p. ISBN 0674076052 (acid-free paper)., p. 4).

Politicamente, Gilroy desconfia da adesão de ativistas intelectuais negros à bandeira da nação, primeiro porque ela sabota a solidariedade entre as comunidades negras em todo o Atlântico, inclusive as africanas, e segundo porque a biografia intelectual dos próprios ativistas negros que aderiram ao nacionalismo, como Alexander Crummell, Edward Blyden, Martin Delamy e Frederick Douglass, está ironicamente eivada de experiências transnacionais (Gilroy, 1993GILROY, Paul. The black atlantic: modernity and double consciousness. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993. xi, 261 p. ISBN 0674076052 (acid-free paper)., p. 34-35). Em suma, o nacionalismo é visto pelo autor como esteio da violência étnica e racial perpetrada contra os negros na modernidade atlântica, produzindo, por um lado, o ideal de uma nação etnicamente homogênea e, por outro, considerando o negro como um ser estranho a ela. Somente nas 41 páginas do primeiro capítulo do livro, Gilroy utiliza palavras derivadas do radical nation-, comonation, nationalism,nationality, aproximadamente 130 vezes, nenhuma com conotação positiva.

Se a crítica de Gilroy ao nacionalismo epistemológico é consistente e gerou um grande número de seguidores, que passaram a focar os aspectos transnacionais das trocas coloniais (Comaroff; Comaroff, 1993COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. Of revelation and revolution. Chicago: University of Chicago Press, 1993.; Goldberg, 1993GOLDBERG, David Theo. Racist culture: philosophy and the politics of meaning Oxford: Blackwell, 1993.), por outro lado, sua própria produção teórica não consegue escapar da pecha de etnocentrismo, ou, melhor dizendo, de fundar a análise do Atlântico Negro nas experiências das comunidades de fala inglesa, mormente Estados Unidos e Grã-Bretanha, onde os negros formam comunidades francamente minoritárias. Esse não é o caso de muitos países do Caribe e certamente não é caso do Brasil, pelo menos não na concepção de Guerreiro Ramos.

Guerreiro não usa a palavra híbrido, mas sua defesa da natureza mestiça do povo brasileiro e sua posição contra o essencialismo cultural se aproximam dessa perspectiva. O que diferencia mesmo as formulações desses dois autores é a questão da nação e seu valor próprio. Para o autor brasileiro, a nação se reveste de um caráter eminentemente positivo. Ao contrário de Hall e Gilroy, que veem a nação sempre na ótica de uma ideologia atrelada a formas idealizadas e excludentes de passado, povoada por mitos e ideologias de pureza e originalidade, Guerreiro projeta uma nação orientada para o futuro, onde a ideia de democracia racial, ao invés de diluir as diferenças sociais, políticas e culturais, apontava para um “ideal de igualdade política e cultural entre pessoas de cores e origens diversas” (Guimarães, 2004GUIMARÃES, Antonio Sergio. A. Intelectuais negros e formas de integração nacional. Estudos Avançados v. 18, n. 50, 2004., p. 280). Para que tal ideal fosse produzido, era preciso reformar o atual estado de coisas, ainda dominado por princípios e ideais eurocêntricos.

Segundo Guerreiro, no Brasil, o negro não é uma minoria, mas o próprio povo brasileiro.

Terá, porém, o negro, entre nós, religião específica? Objetivamente, não [...].

Terão, porém, o negro e seus descendentes, criminalidade específica? Objetivamente, ainda não [...].

Careceria de base objetiva a afirmação de que o negro no Brasil manifestasse tendências específicas essenciais na vida associativa, na vida conjugal, na vida profissional, na vida moral, na utilização de processos de competição econômica e política. O fato é que o negro se comporta sempre essencialmente como brasileiro, embora, como o dos brancos, esse comportamento se diferencie segundo as contingências de região e estrato social (Ramos, 1957RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p., p. 191).

Daí a importância de o estudo das relações raciais ser não um estudo do “problema do negro”, mas do branco, esse ideal importado de autoflagelação. O estudo da branquidade é, para Guerreiro, fundamental para a produção da nação brasileira futura.

Se o país é composto em sua maioria por negros, deveriam esses mesmos negros abandonar o projeto nacional, o anseio de obter autonomia política por meio do Estado-nação? Para essa pergunta a resposta de Guerreiro é claramente negativa.

CONCLUSÃO

Pretendo ter mostrado que os escritos de Guerreiro Ramos sobre relações raciais no Brasil nos anos 1950 antecipam abordagens e problemáticas que só mais tarde seriam enfrentadas e sistematizadas nos meios acadêmicos nacional e internacional.

A crítica da branquidade ainda se faz muito necessária. Só para tomarmos um exemplo ilustrativo, estudo recente do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa – GEMAA mostra que a representação de negros no cinema brasileiro, tanto nas funções de ator quanto nas de diretor e roteirista, está muito aquém da proporção de seu contingente na população. A pesquisa tomou como base de dados os 20 filmes nacionais de maior bilheteria em cada ano, de 2002 e 2012, o que totalizou 218 longas-metragens. Só para ficarmos na representação imagética do Brasil feita nos filmes, que retratam, em sua maioria, a sociedade brasileira, 80% dos atores são brancos (Candido et al.2014CÂNDIDO, M. R. et al. “A Cara do Cinema Nacional”:gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012). 2014). Os números para diretores e roteiristas são 97% e 93%, respectivamente.9 9 O estudo também mostra grande desequilíbrio na representação de gênero, não no que toca a atores, por razões óbvias, mas diretores e roteiristas: 86,3% e 84% do sexo masculino, respectivamente (Candido et al.). E isso num contexto em que há um conjunto de leis que tem por objetivo promover maior equidade na comunicação audiovisual. O estudo ainda mostra que as mulheres pretas e pardas representam somente 4% dos papéis de destaque no cinema nacional, enquanto as mulheres brancas abiscoitam 36% dos papéis. Ou seja, enquanto a mulher preta e a parda são invisibilizadas, a branca assume o papel de mulher brasileira normal, universal. Mas isso é um pingo em um oceano de branquidade.10 10 No carnaval, o jornal O Globo promove o concurso Serpentina de Ouro e premia a “musa dos blocos de carnaval do Rio”. A reportagem escolhe três candidatas, e os leitores votam para escolher a campeã. As escolhidas são todas brancas. O jornal as exibe com fotos generosas, nas quais aparecem inteiramente vestidas: uma de vestido longo e florido e outras duas de blusa e minissaia. Embaixo de seus nomes, no título das fotos, suas profissões e formação: cantora e publicitária, jornalista e arquiteta e urbanista. Ao mesmo tempo, as mesmas organizações Globo escolhem a nova Globeleza, uma negra denominada “mulata”, que é exposta em clipes constantes ao logo da programação, dançando praticamente nua, com o corpo coberto apenas por purpurina.

É exatamente na imbricação entre a construção de padrões de normalidade e de nacionalidade que a crítica de Guerreiro se aplica, ontem como hoje, como demonstra o estudo do GEMAA comentado acima. Mas seria a questão nacional, ainda nos dias de hoje, digna de ser encarada de maneira normativamente positiva, como o fez Guerreiro? Penso que aí reside outra contribuição desse autor que ressoa alto nos dias de hoje. A globalização veio, falou-se muito dela, mas, 25 anos após a queda do Muro de Berlim, os estados nacionais ainda operam no mundo de maneira quase idêntica àquela como faziam na década de 1950. As instituições de governança internacional são extremamente desempoderadas e, quando operam, parecem obedecer a uma lógica forte de subordinação internacional aos interesses das potências hegemônicas. Vide as críticas que se faz à atuação do FMI e do Banco Mundial, para citar dois exemplos célebres. Fato é que direitos, oportunidades e bem-estar são bens providos quase que exclusivamente pelos estados nacionais por meio da luta política dentro de contextos nacionais. A União Europeia talvez seja o exemplo discordante aqui, mas, mesmo assim, somente em parte.

Assim, os destinos de nossa nação são tema de suma importância para todos os cidadãos brasileiros. E, numa nação onde os brancos são minoria – 46% de autodeclarados para 53% de pretos e pardos –, faz todo sentido promover uma crítica de representações que perpetram a inferiorização e a discriminação da maioria, ainda que de maneira mais ou menos invisível. Tais representações são reproduzidas de maneira muitas vezes não reflexiva por brancos e não brancos, como sabia Guerreiro.

Toni Morrison escreve que o norte-americano branco define a si mesmo em oposição à selvageria do índio, do negro e da natureza, e contra a decadência da Europa. O brasileiro, até muito recentemente, gozou do mito hegemônico da democracia racial que o definia como ápice da civilização universal (leia-se: ocidental) nos trópicos. Tal projeto requeria que ele se misturasse, pelo menos no plano simbólico, aos negros e índios e à natureza (vide o carnaval, a autoimagem do Rio de Janeiro, etc.), ao mesmo tempo em que preservava as diferenças raciais. Assim, o branco brasileiro e a branquidade brasileira são ainda mais livres que os americanos. Ele concebe a si mesmo como capaz de frequentar lugares racializados (ao contrário das brancas californianas estudadas por Frankenberg, que se sentiam ameaçadas e deslocadas no gueto), de consumir bens culturais racializados (o samba, a feijoada, a boca de fumo na favela), e depois voltar em segurança para seus espaços de branquidade.

Esse branco, essa versão 2.0 e otimizada de colonizador europeu e muito mais sofisticada, produzida aqui mesmo no Brasil, é um obstáculo ao progresso da nação, à emancipação do Brasil como povo capaz de escolher seu próprio destino. Guerreiro foi um dos primeiros adversários dessa versão de branquidade, tão merecidamente reputada a Gilberto Freyre. Ao invés de ceder ao essencialismo culturalista de seus contemporâneos, contudo, Guerreiro optou por uma hermenêutica negativa do preconceito, abrindo a questão identitária à criação que se dá a partir da ação política: a identidade negra, que é a do povo, em pleno movimento, construindo a si mesma. Nada mais em sincronia com uma concepção de democracia contemporânea, que não abre mão da luta política dentro da nação, mas não apela para a mitologização do passado para estabelecer padrões de inclusão e exclusão. Ao mesmo tempo, Guerreiro nos inspira a criticar os transnacionalismos que, ainda que, muitas vezes, bem intencionados, só conseguem ver agência, dignidade e sentido em modelos politicamente emasculados, baseados em experiências de exílio e alienação.

REFERÊNCIAS

  • APPLE, Michael W. Políticas de direita e branquidade: a presença ausente da raça nas reformas educacionais. Revista Brasileira de Educação, n. 16, p. 61-67, 2001.
  • BARBOSA, Muryatan Santana. Guerreiro Ramos: o personalismo negro.Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2, p. 217-228, nov. 2006
  • BARBOSA, Muryatan Santana. Guerreiro Ramos e o personalismo negro 2004 (Dissertação de Mestrado). Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2004
  • CAILLER, Bernadette. Proposition poétique: une lecture de l’oeuvre d’Aimé Césaire. Sherbrooke, Que.: Naaman, 1976.
  • CÂNDIDO, M. R. et al. “A Cara do Cinema Nacional”:gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012). 2014
  • COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. Of revelation and revolution Chicago: University of Chicago Press, 1993.
  • CRENSHAW, Kimberlé. Critical race theory: the key writings that formed the movement. New York: New Press: Distributed by W.W. Norton & Co., 1995. xxxii, 494 ISBN 156584226X.
  • DELGADO, Richard; STEFANCIC, Jean. Critical race theory: an introduction. New York: New York University Press, 2001. xxi,167 p. ISBN 0814719309
  • FANON, Frantz. The wretched of the earth New York: Grove Press, 1963.
  • FERES JÚNIOR, João; NASCIMENTO, Leonardo Fernandes; EISENBERG, Zena W. Monteiro Lobato e o politicamente correto. Dados, v. 56, p. 69-108, 2013. ISSN 0011-5258.
  • FRANKENBERG, Ruth. The mirage of an unmarked whiteness. In: AL., B. R. E. (Ed.). The making and unmaking of whiteness, 2001. p.72-96.
  • GARNER, Steve. Whiteness: an introduction. London: New York: Routledge, 2007. viii, 216 p.
  • GATES, Henry Louis. Tradition and the black atlantic: critical theory in the African diaspora. New York: BasicCivitas, 2010. xiv, 205 p.
  • GILROY, Paul. The black atlantic: modernity and double consciousness. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993. xi, 261 p. ISBN 0674076052 (acid-free paper).
  • GOLDBERG, David Theo. Racist culture: philosophy and the politics of meaning Oxford: Blackwell, 1993.
  • GOMEZ, Michael. A. Diasporic Africa: a reader. New York: New York University Press, 2006. viii, 317 p.
  • GUIMARÃES, Antonio Sergio. A. Intelectuais negros e formas de integração nacional. Estudos Avançados v. 18, n. 50, 2004.
  • GUIMARÃES, Antonio Sergio. Resistência e revolta nos anos 1960: Abdias do Nascimento. Revista USP, v. 68, n. dez./fev. p. 156-167, 2005-2006.
  • HALL, Catherine. White, male, and middle-class: explorations in feminism and history. London: Routledge, 1992.
  • HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte. Brasília Editora UFMG, Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
  • HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade 10ª. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
  • HOROWITZ, M. C. New dictionary of the history of ideas [New York?]: Charles Scribner’s Sons, 2005.
  • JAMESON, F. The cultural turn : selected writings on the postmodern, 1983-1998 London ; New York: Verso, 1998. xiv, 206 p.
  • KOSELLECK, R. Futures past : on the semantics of historical time Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985. xxvi, 330 p.
  • LOPES, M. A construção social da “branquidade” em homossexuais masculinos do Brasil e da Argentina. Sexualidad, Salud y Sociedad: Revista Latinoamericana. v. 8, p. 113-130, ago. 2011.
  • LYOTARD, J. F. The postmodern condition: a report on knowledge Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984.
  • MAIA, Suzana. Identificando a branquidade inominada: corpo, raça e nação nas representações sobre Gisele Bündchen na mídia transnacional.Cadernos Pagu, p. 309-341, 2012.
  • MARX, Karl. A. F. E. The german ideology part one, with selections from parts two and three, together with Marx’s “Introduction to a Critique of Political Economy.” New York: International Publishers, 2001.
  • MCINTOSH, P. White privilege and male privilege: a personal account of coming to see correspondences through work in Women’s Studies 1988. (Working Paper 189). Center for Reserach on Women, Wellesley College.
  • MCKINNEY, K. “I really felt White”: turning points in whiteness through interracial contact. Social Identities, v. 12, n. 2, p. 167–185, 2006.
  • MEDEIROS, M. Os ricos e a formulação de políticas de combate à desigualdade e à pobreza no brasil Brasília: Texto para discussão IPEA no.984, 2003.
  • MEEKS, B.; HALL, S. Culture, politics, race and diaspora: the thought of Stuart Hall Kingston; Miami, London: I. Randle Publishers; Lawrence & Wishart, 2007. xvi, 316 p.
  • MILLS, C. W. The racial contract Ithaca: Cornell University Press, 1997. xii, 171 p.
  • NEIVA, A. Daqui e de longe: crônicas nacionais e de viagem São Paulo: 1927.
  • OLIVEIRA, L. L. A Sociologia do Guerreiro Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.
  • OMI, M.; WINANT, H. Racial formation in the United States: from the 1960s to the 1990s 2nd. New York: Routledge, 1994. xii, 226 p.
  • PHOENIX, A. “I’m white - so what?” The construction of whiteness for young Londoners. In: AL, F. E. (Ed.). Off White New York: Routledge, 1996. p.187-197.
  • PIKETTY, T. Le Capital au XXIe siècle. Seuil, 2013.
  • PINHO, O. Race Fucker: representações raciais na pornografia gay.Cadernos Pagu, n. 38, Jan./Jun. p. 159-195, 2012.
  • RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1957. 216 p.
  • RAMOS, A. G. Apresentação da negritude O Quilombo. 10, 1950.
  • RIBEIRO DE ANDRADE, M. F. Viajando São Paulo: 1929.
  • SENGHOR, L. S. Négritude et humanisme Paris: Seuil, 1964.
  • SILVA, P. V. B. D.; ROCHA, N. G. D.; SANTOS, W. O. D. Negras(os) e brancas(os) em publicidades de jornais paranaenses. Intercom – RBCC,v. 35, n. 2, p. 149-168, 2012.
  • SILVA, P. V. B. D.; TEIXEIRA, R.; PACIFICO, T. M. Políticas de promoção de igualdade racial e programas de distribuição de livros didáticos.Educação e Pesquisa, v. 39, n. 1, p. 127-143, jan./mar 2013.
  • SKINNER, Q. Meaning and understanding in the history of ideas.History and theory, v. 8, n. 1, p. 3-53, 1969.
  • SPIVAK, G. C. Can the subaltern speak? Speculations on widow esacrifice. Wedge. v. 7, n. 8, 1985.
  • 1
    Esse tipo de inversão epistemológica também acontece em outras áreas, com os estudos da desigualdade no Brasil (Medeiros, 2003MEDEIROS, M. Os ricos e a formulação de políticas de combate à desigualdade e à pobreza no brasil Brasília: Texto para discussão IPEA no.984, 2003.) e no exterior (Piketty, 2013PIKETTY, T. Le Capital au XXIe siècle. Seuil, 2013.).
  • 2
    Para uma boa introdução à Critical Race Theory, ver Crenshaw (1995)CRENSHAW, Kimberlé. Critical race theory: the key writings that formed the movement. New York: New Press: Distributed by W.W. Norton & Co., 1995. xxxii, 494 ISBN 156584226X. e Delgado (2001)DELGADO, Richard; STEFANCIC, Jean. Critical race theory: an introduction. New York: New York University Press, 2001. xxi,167 p. ISBN 0814719309.
  • 3
    Guerreiro faz uma distinção entre o problema do negro, o negro como assunto, e a vida do negro, isto é, a vivência real das pessoas negras. Muryatan Santana Barbosa atribui essa distinção à leitura humanista e personalista que Guerreiro fazia da questão (Barbosa, 2006).
  • 4
    Na verdade, seria estranho que alguém com uma consciência nacional tão exacerbada quanto Guerreiro se furtasse a formular normas do que seria aceitável ou desejável no que toca os usos linguísticos que representam a identidade coletiva do povo. Para uma discussão crítica sobre a questão do politicamente correto no Brasil de hoje, ver Feres Júnior (2013)FERES JÚNIOR, João; NASCIMENTO, Leonardo Fernandes; EISENBERG, Zena W. Monteiro Lobato e o politicamente correto. Dados, v. 56, p. 69-108, 2013. ISSN 0011-5258..
  • 5
    Não é de todo errôneo atribuir ao sociólogo brasileiro traços do que mais tarde Gayatri Spivak chamará de essencialismo estratégico: uma consciência da impossibilidade prática de identidades culturais estáveis que, ao mesmo tempo, concede que essencializações são necessárias na luta política (Spivak, 1985SKINNER, Q. Meaning and understanding in the history of ideas.History and theory, v. 8, n. 1, p. 3-53, 1969.).
  • 6
    Ver, por exemplo, Hall (ANO), onde o autor define como pós-moderna uma das três concepções de identidade subjetiva ainda presentes na modernidade tardia.
  • 7
    O termo pós-modernidade, modismo que começou a desaparecer da produção intelectual já na década de 1990, foi empregado por Hall aqui e ali, mas, do ponto de vista da marcação epocal, ele adere à noção de modernidade tardia.
  • 8
    Certamente esse é somente um dos significados do conceito de ideologia em Marx e foi claramente enunciado na Ideologia Alemã, escrita em conjunto com Frederick Engels (Marx, 2001MARX, Karl. A. F. E. The german ideology part one, with selections from parts two and three, together with Marx’s “Introduction to a Critique of Political Economy.” New York: International Publishers, 2001.).
  • 9
    O estudo também mostra grande desequilíbrio na representação de gênero, não no que toca a atores, por razões óbvias, mas diretores e roteiristas: 86,3% e 84% do sexo masculino, respectivamente (Candido et al.CÂNDIDO, M. R. et al. “A Cara do Cinema Nacional”:gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012). 2014).
  • 10
    No carnaval, o jornal O Globo promove o concurso Serpentina de Ouro e premia a “musa dos blocos de carnaval do Rio”. A reportagem escolhe três candidatas, e os leitores votam para escolher a campeã. As escolhidas são todas brancas. O jornal as exibe com fotos generosas, nas quais aparecem inteiramente vestidas: uma de vestido longo e florido e outras duas de blusa e minissaia. Embaixo de seus nomes, no título das fotos, suas profissões e formação: cantora e publicitária, jornalista e arquiteta e urbanista. Ao mesmo tempo, as mesmas organizações Globo escolhem a nova Globeleza, uma negra denominada “mulata”, que é exposta em clipes constantes ao logo da programação, dançando praticamente nua, com o corpo coberto apenas por purpurina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2014
  • Aceito
    11 Dez 2014
Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Centro de Recursos Humanos Estrada de São Lázaro, 197 - Federação, 40.210-730 Salvador, Bahia Brasil, Tel.: (55 71) 3283-5857, Fax: (55 71) 3283-5851 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revcrh@ufba.br