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CULTURAS ALIMENTARES DIGITAIS: tecnologias de informação e o cotidiano alimentar contemporâneo

LUPTON, Deborah; FELDMAN, Zeena. Digital food cultures. Londres: Routledge, 2020. 228

Em um mundo no qual as relações sociais são cada vez mais mediadas pela tecnologia, no cenário de “plataformização”2 2 Utilizou-se aqui o conceito de plataformização de Poell, Nieborg e Van Dijck (2020, p. 2). Segundo os autores, o termo indica “a penetração de infraestruturas, processos econômicos e estruturas governamentais de plataformas em diferentes setores econômicos e esferas da vida. E, a partir da tradição dos estudos culturais, concebemos esse processo como a reorganização de práticas e imaginações culturais em torno de plataformas”. da vida cotidiana, o ato de comer tornou-se mais complexo. Em outros termos, no período atual, além da comensalidade à mesa, as práticas e os ativismos alimentares se expressam de diferentes formas no ambiente “ on-line 3 3 O termo “on-line” ou “digital”, contrasta com estratégias investigativas realizadas por meio do contato face a face, no ambiente “off-line” ou “analógico”. Ver Miller e Slater (2004) ; Lupton (2015) . ”.

A obra Digital food cultures demonstra seu caráter inovador, ao analisar as culturas alimentares mediadas pela tecnologia. As autoras propõem o debate sobre pesquisas on-line com diferentes enfoques teórico-metodológicos que envolvem as culturas alimentares digitais, os movimentos sociais e o ativismo alimentar digital. A abordagem compreende a incorporação e a utilização das tecnologias de informação e de comunicação no cotidiano alimentar contemporâneo.

O livro foi organizado por Deborah Lupton, pesquisadora do Centre for Social Research in Health and the Social Policy, em Sydney, na Austrália, e por Zeena Feldman, professora de cultura digital no King’s College London, na Inglaterra. As organizadoras da obra já trataram da temática em trabalhos anteriores. Em suas análises sociológicas sobre a mídia e os estudos culturais, Lupton tem desenvolvido pesquisas nas quais combina métodos qualitativos e teoria sociocultural. No seu livro Digital Sociology, Lupton (2015LUPTON, Deborah. Digital Sociology. Routledge, 2015. 230 p. , p. 7), já procurava analisar “uma gama de dimensões sociais, culturais e políticas interessantes da sociedade digital.”. Feldman, por sua vez, tem investigado interseções entre comunicação, tecnologia e vida cotidiana. De forma geral, as pesquisas de ambas abordam como as tecnologias digitais impactam a compreensão e as performances no mundo do trabalho, da saúde, da culinária e da alimentação.

A obra pioneira no debate sobre digital food cultures , está dividida em cinco partes, as quais são segmentadas em treze capítulos. Os textos da coletânea examinam um conjunto amplo de relatos de práticas e de representações exibidas em várias mídias digitais, tais como videoblogs , Facebook, Instagram, YouTube, fóruns de discursão e aplicativos de serviços on-line .

De forma geral, o leitor vai se deparar com uma variedade de análises sobre culturas alimentares presentes nas mídias digitais e na internet. Os trabalhos analisam desde a “indulgência” nas práticas alimentares até as abordagens dos que defendem dietas muito especializadas que demandam intenso compromisso e foco pessoal. Além das dietas alimentares, os textos se debruçam sobre o papel de influenciadores de mídias sociais, focando atores que realizam e promovem culturas e tendências alimentares. Esses atores do campo digital podem ser celebridades com reputação e fama já construídos na rede ou personagens desconhecidos que tornam seus perfis públicos para promoverem estratégias de engajamento, também conhecidos como microcelebridades que, em muitos casos, tornam-se famosos para pequenos nichos de pessoas graças ao conteúdo de mídia social no qual abordam estrategicamente o mundo alimentar.

Os capítulos da primeira parte do livro retratam debates sobre afetos, corpos e moralidades nas culturas alimentares digitais. Em alguns casos, os textos apresentam oposições binárias, entre elas o masculino versus o feminino e o limpo versus o sujo. A pesquisa desenvolvida por Rachael Kent, por exemplo, examina o consumo de alimentos relacionados às práticas de saúde e de boa forma física. Foram analisados homens e mulheres do Reino Unido, da Europa continental e da Nova Zelândia, os quais compartilharam informações sobre suas práticas no Facebook ou no Instagram.

O capítulo escrito por Deborah Lupton descreve um gênero particular de vídeos de comida do YouTube intitulados por ela como “carnavalescos”. Eles são propositalmente produzidos para serem excessivos e evocarem afetos. Já o texto de Baker e Walsh explicita que as imagens e os discursos de alimentação limpa são publicados no Instagram como rituais de afirmação que estabelecem identidade e status entre a comunidade dos usuários que se engajam em hashtags a respeito de um determinado estilo de vida.

Na segunda parte, a maioria dos capítulos analisa a relação entre saúde e espiritualidade. Os fóruns de grupos veganos observados por Baker e Walsh apresentavam narrativas quase religiosas, nas quais as pessoas descrevem um processo de “conversão” ao veganismo e demonstram que essas pessoas se sentiam moralmente superiores às pessoas não veganas. Os consumidores veganos on-line também foram analisados por Ellen Scott. Ela pesquisou fóruns de discussão on-line desses grupos e apresentou um conjunto de conceitos de saúde com práticas de alimentação vegana ligados à ideia de “ healthism ”.

Já a contribuição de Braun e Carruthers aborda o veganismo. De forma específica, elas estudam os vlogs produzidos por veganos praticantes que foram compartilhados no YouTube. Os vloggs estudados por elas, em sua maioria, eram de mulheres jovens, brancas, com corpos magros e que se declaravam saudáveis. No texto, observa-se a evocação de metáforas religiosas e espirituais na descrição dos corpos e regimes alimentares.

O debate em relação às experiências gastronômicas e aos influenciadores digitais perpassa os capítulos da terceira parte. O texto de Morag Kobez destaca que as avaliações de restaurantes feitas on-line por consumidores amadores ( foodie ) modificaram profundamente o campo da crítica gastronômica.

O capítulo desenvolvido por Pia Rowe e Ellen Grady apresenta o estilo de vida de Pete Evans, famoso chefe australiano e influenciador de estilo de vida. Nesse capítulo, são destacadas suas experiências pessoais, como a adoção da dieta paleolítica, a qual é altamente controversa no campo nutricional.

A análise sobre influenciadores também foi realizada por Maud Perrier e Elaine Swan. Nesse capítulo, foi estudada Sarah Wilson, influenciadora de estilo de vida australiana que ganhou fama pela marca “ I Quit Sugar ”. O perfil de Wilson na mídia digital foi construído por meio do seu negócio de sucesso na defesa da redução do consumo de açúcar para alcançar boa saúde e bem-estar.

Em sua quarta parte, o livro aborda o debate acerca espacialidade e política. Nesse campo, há trabalhos que analisam o uso da mídia digital para chamar a atenção para questões de justiça alimentar e de sustentabilidade. Sobre o tema, Alana Mann e Karen Cross contribuem com capítulos que concentram a análise não em influenciadores individuais ou micro celebridades, mas nas interações entre os esforços localizados e os contextos sociais e políticos. Na sua abordagem, Mann propõe uma correlação entre desigualdades digitais e alimentares. Nesse cenário, é possível observar que distintos grupos sociais precisam ter oportunidades de contar suas narrativas alimentares como forma de demonstrar sua participação em iniciativas de justiça alimentar, incluindo o uso de mídia digital, como plataformas personalizadas criadas para fortalecer laços e redes comunitários4. Na sua contribuição para o livro, Cross analisa como identidades e redes digitais foram empregadas em uma iniciativa de regeneração urbana de mercados comunitários de alimentos no sul de Londres.

O futuro dos alimentos é o principal tema dos textos da quinta parte. Em seu capítulo, Suzan Boztepe e Martin Berg investiga como os desenvolvedores de tecnologia utilizam seus sites e outros locais on-line para promoverem lojas de aplicativos, blogs da indústria, vídeos do YouTube, entre outros. São descritas estratégias de marketing como exemplos de culturas alimentares digitais. Os autores observam mídias como descrições de produtos, guias do usuário, postagens em blogs e em videoclipes para identificarem os imaginários tecnológicos investidos nessas tecnologias relacionadas aos alimentos.

Já o capítulo de Markéta Dolejšová realiza uma pesquisa etnográfica em um centro de tecnologia do Vale do Silício, na Califórnia, Estados Unidos. Nela, foi observada a promoção da dieta complete foods , que usa nutrientes alimentares misturados com água como substituto de refeições. O espírito de inicialização do empreendedorismo e da experimentação do Vale do Silício permeia as maneiras pelas quais a dieta complete foods foi desenvolvida, promovida e adotada. Os adeptos dessa dieta estão inseridos nas culturas digitais por meio do trabalho e usam ativamente os fóruns on-line para compartilharem experiências e ideias sobre a melhor forma de incorporarem esses alimentos em suas rotinas de modo a maximizarem seus efeitos.

De forma geral, os capítulos abordam várias tendências da alimentação contemporânea, transformações mais amplas na sociedade e dinâmicas que afetam o espaço da vida cotidiana. Em relação a essas dinâmicas, Barbosa (2009)BARBOSA, Livia. Tendências da alimentação contemporânea. In: PACHECO, Janine K; PINTO, Michele de Lavra. Juventude, consumo e Educação. Porto Alegre: ESPM, 2009. p. 15-64. , por exemplo, destaca a centralidade da busca pela saudabilidade por meio da medicalização do comer, sintetizada na afirmação de que “somos aquilo que comemos”. Existiria uma conotação mais sagrada, preocupada em restaurar a pureza do planeta e dos corpos de resíduos incorporados por meio de uma alimentação industrializada. Portanto, seria objetivo da tendência à saudabilidade desintoxicar o homem e o planeta de tudo o que é artificial e industrial – no sentido de não natural –, na produção e no consumo alimentar.

Apesar dos méritos, faltam aos estudos apresentados no livro debates sobre os limites éticos das pesquisas apresentadas, pouco se discute sobre a ferramentas de pesquisas no espaço on-line, e os “riscos” inerentes de investigações neste espaço. As abordagens, na maioria das vezes, apresentam aspectos metodológicos das pesquisas sem detalharam as estratégias de obtenção dos dados, bem como do processo de obtenção de consentimento livre e esclarecidos das informações presentes nos estudos.

A obra apresenta análises teóricas e empíricas que envolvem o debate sobre culturas alimentares digitais, movimentos sociais e ativismo alimentar digital. A abordagem compreende a incorporação e a utilização das tecnologias de informação e de comunicação no cotidiano alimentar contemporâneo.

Grande parte dos capítulos do livro concentra a análise em pesquisas na Europa, na Oceania e nos Estados Unidos da América. A limitação do espaço de análise das digital food cultures não retira o mérito e o caráter inovador da obra. O debate apresentado deixa muito clara a necessidade de ampliação de pesquisas sobre a temática em outras regiões, nas quais as realidades culturais e socioeconômicas sejam diferentes, como o continente africano e a América Latina, por exemplo. Apesar das limitações de algumas pesquisas, a obra Digital food cultures é uma leitura imprescindível para todos os pesquisadores interessados no debate sobre as culturas alimentares digitais.

Enfim, a obra pode trazer importantes contribuições teóricas e metodológicas para os estudos sobre a plataformização da vida cotidiana no Brasil, já que demonstra diversos caminhos de aprofundamento deste recente campo de investigação. O livro também apresenta contribuições singulares para os estudos agroalimentares brasileiros, além de ser uma referência imprescindível a todos os que querem pensar as práticas alimentares contemporâneas e suas múltiplas dimensões, inclusive, por meio das manifestações simbólicas, de representações coletivas e de ativismos no campo digital. O público-alvo preferencial é o de pesquisadores das áreas de Ciências Sociais, Nutrição e Gastronomia, bem como para aqueles que trabalham com comunicação e com alimentação no espaço on-line .

Agradecimentos

1Agradeço o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

REFERÊNCIAS

  • BARBOSA, Livia. Tendências da alimentação contemporânea. In: PACHECO, Janine K; PINTO, Michele de Lavra. Juventude, consumo e Educação. Porto Alegre: ESPM, 2009. p. 15-64.
  • CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013.
  • LUPTON, Deborah. Digital Sociology. Routledge, 2015. 230 p.
  • MILLER, Daniel; SLATER, Don. Etnografia On e Off-line: Cibercafés em Trinidad. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, a. 10, n. 21, p. 41-65, jan./jun. 2004.
  • POELL, Thomas; NIEBORG, David; VAN DIJCK, José. Plataformização. Revista Fronteiras – estudos midiáticos, a. 22, n. 1, p. 2-10, jan./abr. 2020.
  • 2
    Utilizou-se aqui o conceito de plataformização de Poell, Nieborg e Van Dijck (2020, p. 2). Segundo os autores, o termo indica “a penetração de infraestruturas, processos econômicos e estruturas governamentais de plataformas em diferentes setores econômicos e esferas da vida. E, a partir da tradição dos estudos culturais, concebemos esse processo como a reorganização de práticas e imaginações culturais em torno de plataformas”.
  • 3
    O termo “on-line” ou “digital”, contrasta com estratégias investigativas realizadas por meio do contato face a face, no ambiente “off-line” ou “analógico”. Ver Miller e Slater (2004)MILLER, Daniel; SLATER, Don. Etnografia On e Off-line: Cibercafés em Trinidad. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, a. 10, n. 21, p. 41-65, jan./jun. 2004. ; Lupton (2015)LUPTON, Deborah. Digital Sociology. Routledge, 2015. 230 p. .
  • 4
    Como aponta Castells (2013)CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013. , vários “ativismos coexistem nos ambientes on-line e off-line ” e podem ser definidos como “movimentos sociais em rede”. Ele destaca que esses ativismos utilizam o suporte das mídias sociais para se estruturarem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2021
  • Aceito
    16 Dez 2022
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