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CRIME, JUSTIÇA E DIREITOS EM PERSPECTIVA

MELO, J.; SIMIÃO, D.; BAINES, S.. Ensaios sobre justiça, reconhecimento e criminalidade. Natal: EDUFRN; ABA publicações, 2016. 671p.

É difícil encontrar obras que reúnam, de maneira satisfatória, diferentes perspectivas e análises, coerentemente articuladas, sobre questões como criminalidade, políticas na área de segurança, sensibilidades jurídicas, demandas por direitos e instituições de administração de conflitos e de aplicação de medidas socioeducativas. Nesse cenário, o livro Ensaios sobre justiça, reconhecimento e criminalidade, publicado em 2016, é uma interessante exceção. Reunindo pesquisadores de diferentes tradições disciplinares dedicados à pesquisa dos mais variados fenômenos e instituições sociais relacionados a esses temas, o livro deixa ver a coerência do conjunto de artigos que o compõem, permitindo ao leitor identificar, nas abordagens metodológicas, nas tentativas de oferecer interpretações teóricas provocativas e, sobretudo, nas perspectivas analíticas, o fio condutor que os articula.

Ao longo de suas páginas, antropólogos, sociólogos, pesquisadores do campo do direito e cientistas políticos do Brasil, da Argentina e do México apresentam suas pesquisas e reflexões críticas acerca do sistema carcerário, moralidades entre pessoas encarceradas ou envolvidas em práticas classificadas pelo sistema de justiça brasileiro como criminosas, dispositivos jurídicos e políticas penais, políticas públicas de policiamento, centros de aplicação de medidas socioeducativas, percepções e valores dos indivíduos que exercem funções em instituições de administração de conflitos e aplicação da lei, demandas e sentidos de direitos e justiça de grupos vulneráveis e dos povos tradicionais, explicitando as contradições estruturais do sistema e distribuição da justiça nesses contextos nacionais.

Pela sua abrangência, os organizadores optaram por dividir o livro em quatro eixos temáticos: Desafios da Equidade; Gênero; Juventude; Povos Tradicionais. Na parte do livro dedicada aos desafios da equidade, encontram--se artigos que, de forma direta ou indireta, problematizam os dispositivos disciplinares e as formas de controle de instituições correcionais, de mediação de conflitos e de provisão de segurança pública policial, privilegiando os sentidos que os atores sociais - agentes do Estado ou membros da população a quem essas instituições se destinam - atribuem a suas práticas e experiências. A seção dedicada à questão de gênero é composta por artigos que discutem prostituição, violência de gênero, mulheres encarceradas, agentes estatais que atuam na prestação de serviço social às mulheres abarcadas pela Lei Maria da Penha e reivindicações de direitos relacionadas a reconhecimento identitário de mulheres negras.

Na seção temática sobre juventude, os artigos discutem a condição de jovens infratores, suas visões de mundo, moralidades e os sentidos que dão a suas experiências. Discutem-se também os dispositivos de controle social destinados a jovens e adolescentes, assim como a percepção e a sensibilidade jurídica de moradores de favelas no que concerne ao significado que atribuem à atuação de projetos de policiamento nas localidades onde residem. Também nessa seção encontra-se uma análise sobre as varas especializadas para adolescentes no México, permitindo ao leitor identificar similaridades e diferenças nas experiências mexicana e brasileira. A última parte do livro é dedicada aos povos tradicionais - remanescentes de quilombos e populações indígenas. Os artigos dessa seção apresentam, como questão de fundo, cada um à sua maneira, as reivindicações de direitos assentadas nas demandas por reconhecimento identitário de povos tradicionais no Brasil e na Argentina, assim como o contexto das disputas judiciais e tensões sociais entre eles e os representantes do agronegócio e do Estado, desencadeadas pelas reivindicações por reconhecimento de direito baseado na ancestralidade e na identidade dos demandantes.

A despeito da formação diversificada dos autores e da ampla variedade de objetos de pesquisa, todos compartilham do interesse pela dimensão vivida dos direitos e da justiça, dedicando especial atenção, em suas análises, aos significados que os atores sociais atribuem às suas experiências cotidianas. Assim, a questão de fundo que sedimenta a articulação entre os artigos que compõem o livro é o interesse subjacente pela relação entre “leis” e “fatos sociais”, associado ao escrutínio dos sentidos de justiça e categorias nativas acionadas pelos atores sociais nos contextos específicos de suas interações. Dessa maneira, os autores são capazes de trazer à luz visões de mundo, moralidades e sensibilidades jurídicas que permeiam as práticas sociais de atores sociais, operadores do direito, agentes de instituições correcionais ou socioeducativas e indivíduos em conflito com a lei.

Essa abordagem constitui um dos grandes méritos do livro. Ao se propor a olhar para essas instituições e fenômenos sociais por essa perspectiva, seus autores contribuem para o alargamento das reflexões das ciências sociais acerca dos respectivos temas. Isso porque, assumindo esse prisma, eles trazem um retrato vívido das contradições e dilemas relacionados à distribuição de justiça no Brasil, na Argentina e no México. Na mesma medida, ao fazê-lo, os autores foram capazes de contornar os riscos de reproduzir, em seus trabalhos, análises que alimentam o hiato entre o universo das normas e a dimensão da experiência concreta da vida social e que fragilizam determinadas abordagens formalistas e normativas.

Nesse sentido, é interessante notar que, mesmo não fazendo referência explícita à discussão, os autores mostram-se sintonizados com preocupações de proeminentes pesquisadores dos estudos latino-americanos no que concerne às limitações das abordagens formalistas e sua incapacidade de explicar satisfatoriamente as disjunções e especificidades características dos países da região, que passaram pela terceira onda democratizante. Também é interessante notar como a solução proposta por esses críticos e a abordagem assumida nos artigos que compõem o livro se assemelham. Enquanto os autores defendem a necessidade de aprofundar a análise nas práticas e sistemas de valores tanto dos indivíduos que atuam nas instituições de controle social quanto daqueles a quem essas instituições se destinam, os críticos do modelo de análise formalista para avaliação dos países na América Latina argumentam sobre a necessidade de se construir e aplicar um modelo analítico capaz de congregar as dimensões jurídicas, culturais, sociais e econômicas para melhor apreender a dimensão vivida das democracias, da cidadania e dos direitos em cada contexto.

Outro mérito do livro, sem dúvida relacionado ao que já foi citado, é que a maioria absoluta das interpretações críticas que o compõem sustenta-se em pesquisas empíricas de caráter etnográfico e (ou) qualitativo. Dentro dessa proposta, há duas vantagens: a primeira, mais óbvia, é que, dessa forma, o livro contribui para a produção e o acúmulo de dados e de material de pesquisa sobre fenômenos, instituições e grupos sociais que são de difícil acesso e que resistem ao escrutínio externo. A outra vantagem refere-se ao vigor analítico proporcionado pelo o rico e diversificado material de pesquisa apresentado ao longo do livro. Isso porque, como entendo, o diálogo que os autores estabelecem entre seus dados de pesquisa e o arcabouço teórico das ciências sociais e do direito dá força a suas propostas interpretativas e sustenta suas críticas que, muitas vezes, provocam e desestabilizam algumas análises consagradas sobre os assuntos abordados.

Ao ler o conjunto dos artigos, é possível entrever de que maneira a linguagem dos direitos se consolidou no Brasil ao longo das últimas décadas entre grupos socioeconomicamente vulneráveis, minorias representativas, povos tradicionais e atores sociais que se encontram em conflito com a lei, assim como o papel desempenhado pela gramática do reconhecimento nesse processo. Reflexão que pode ser estendida aos casos de pesquisa nos contextos mexicano e argentino.

No que se refere especificamente ao Brasil, muito já foi escrito acerca da legitimidade adquirida pela gramática dos direitos e da cidadania, apontando que, desde a década de 1970, grupos de representação minoritária passaram a acioná-la para reivindicar direitos e denunciar desigualdades. Nesse cenário, a contribuição do livro está justamente no fato de explorar esse processo de maneira contextualizada, a partir das perspectivas dos atores e grupo sociais. A premissa de fundo que sustenta essa abordagem é de inspiração antropológica e baseia-se no entendimento de que, mesmo dentro de um Estado-Nação, as leis e códigos estão sujeitos a múltiplas significações. Em outras palavras, a forma como os direitos são pensados e vividos pode variar de acordo com o grupo social de referência. Assim, para produzir uma compreensão adequada sobre as demandas e os conflitos que emergem no espaço e na esfera pública, é necessário atentar para as categorias e os sentidos acionados pelos atores sociais em cada contexto. Desafio assumido pelos que contribuíram no livro. Dessa perspectiva, é possível ter a dimensão da capilaridade adquirida pela gramática do reconhecimento nos conflitos e reivindicações que emergem na cena pública contemporânea, o que se torna claro com a leitura dos sucessivos artigos.

Nas situações mais diversas, onde se apresentam valores e visões de mundo particulares e diferentes entre si – como no caso de mulheres encarceradas, membros de facções criminosas, populações-alvo de políticas públicas de policiamento, movimentos de mulheres negras, povos indígenas e populações quilombolas –, é possível identificar, em suas demandas e nas reclamações e justificativas para suas trajetórias e escolhas, um pano de fundo comum, que articula sensibilidades jurídicas, reivindicações por direitos e (ou) formas de tratamento ao reconhecimento identitário e à dimensão de dignidade que ele comporta.

O livro também oferece um conjunto de material interessante sobre o universo simbólico, as visões de mundo e sensibilidades jurídicas dos agentes das instituições de controle social, valorizando o ponto de vista desses indivíduos nas interpretações críticas acerca das instituições onde atuam, assim como sobre seus saberes e práticas. Dessa maneira, o leitor tem acesso a análises que exploram as formas jurídicas de administração de conflitos e suas articulações com valores, categorias e outras práticas de produção de justiça assumidas por operadores do direito vinculados às mais diversas instituições: Varas de Justiça e instituições de aplicação de medidas socioeducativas especializadas no atendimento de jovens infratores, setores do Ministério Público Federal que atuam junto aos povos indígenas, agentes penitenciários, Juizados Especiais Criminais e operadores do direito que atendem aos envolvidos em conflitos abarcados pela Lei Maria da Penha.

Para finalizar, parece adequado sugerir que o livro Ensaios sobre justiça, reconhecimento e criminalidade constitui uma contribuição para o campo dos estudos acerca das instituições de administração institucional de conflitos e dos atores sociais a quem elas se destinam. Mas não somente. Trata-se também de uma obra que reflete o avanço e a consolidação do campo da antropologia do direito e da sociologia jurídica no Brasil as quais, cada uma com sua forma, por meio do estudo do sistema de justiça nas suas mais variadas facetas, têm revelado aspectos estruturais da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, o livro destoa como um exemplo da fecundidade propiciada pelo diálogo entre diferentes saberes disciplinares - particularmente os de criminologia, antropologia, sociologia, direito e ciência política. Vislumbra-se, a partir dele, que nas articulações, trocas e tensões entre as referidas áreas do conhecimento acadêmico, é possível elaborar uma compreensão mais profunda e refinada acerca de assuntos emergenciais não apenas da vida social brasileira, como também de outros países que compartilham desafios e realidades semelhantes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2017
  • Aceito
    18 Out 2017
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