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Breves considerações na convergência ciência e religião

Brief thoughts converging science and religion

Brèves considérations approchant la science et la religion

Resumos

Diversos são os caminhos que permitem a abordagem do tema ciência e religião. Tentaremos percorrer um deles. Ciência e religião são instituições históricas seculares que compartilharam saberes produzidos pela mesma humanidade que criou ambas. Na história humana ocidental, existem saberes comuns às religiões abraâmicas e ao interesse da ciência. Alguns desses saberes continuam sendo fontes de inspiração para pesquisa científica. Foram difundidos antes do nascimento da ciência moderna, e estiveram no centro da revolução científica do século XVII, prevalecendo atuais em ciência e em religião, não obstante o distanciamento doutrinário entre ambas. Finalmente, algumas palavras sobre interesse atual em ciência e religião.

Ciência; Religião; Saberes; Humanos


Discussions on science and religion may be approached by various routes. We shall try one of them. Science and religion are both secular institutions, sharing histories and wisdom created by the same human kind. In the western human history there are knowledge common to Abrahamic religions as well as to science. Some of these knowledge remain as inspirations for scientific investigations; were of concern before the rise of modern science; were in the core of the XVII century scientific revolution, and remain up to date in science and in religion, in spite of their doctrinarian diversity. Finally, we shall say a few words on present interest in science and religion studies.

Science; religion; wisdom; human


Il ya plusieurs façons d'aborder le sujet permettre science et la religion. Allez essayer un. Comme les institutions historiques séculaires science et religion, leurs chemins en temps partagé connaissances produites par la même humanité qui a créé les deux. Nous commençons par un retour vers le passé, en reconnaissant l'existence de connaissances communes aux religions abrahamiques et les intérêts de la science. Connaissances qui sont encore les fondations d'inspiration pour la recherche scientifique et la religion. Sagesses étaient généralisés avant la naissance de la science moderne, ont été au centre de la révolution scientifique du XVIIe siècle et prévaut aujourd'hui dans la science et la religion en dépit de la distance doctrinal entre eux. Enfin, nous conclurons en abordant les études sur la science et la religion.

la science; la religion; la connaissance; l'homme


DOSSIÊ

Brèves considérations approchant la science et la religion

Eliane S. Azevêdo

Médica pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Doutorado em Genética. Professora Titular de Genética Médica da Faculdade de Medicina da Bahia-UFBA e Professora Titular de Bioética da Universidade Estadual de Feira de Santana-Ba. Núcleo de Bioética, Faculdade de Medicina/UFBA. Largo do Terreiro de Jesus. Centro Histórico. Cep.: 40026-010. Salvador - Bahia - Brasil. eedsea@uol.com.br

RESUMO

Diversos são os caminhos que permitem a abordagem do tema ciência e religião. Tentaremos percorrer um deles. Ciência e religião são instituições históricas seculares que compartilharam saberes produzidos pela mesma humanidade que criou ambas. Na história humana ocidental, existem saberes comuns às religiões abraâmicas e ao interesse da ciência. Alguns desses saberes continuam sendo fontes de inspiração para pesquisa científica. Foram difundidos antes do nascimento da ciência moderna, e estiveram no centro da revolução científica do século XVII, prevalecendo atuais em ciência e em religião, não obstante o distanciamento doutrinário entre ambas. Finalmente, algumas palavras sobre interesse atual em ciência e religião.

Palavras-chave: Ciência. Religião. Saberes. Humanos.

ABSTRACT

Discussions on science and religion may be approached by various routes. We shall try one of them. Science and religion are both secular institutions, sharing histories and wisdom created by the same human kind. In the western human history there are knowledge common to Abrahamic religions as well as to science. Some of these knowledge remain as inspirations for scientific investigations; were of concern before the rise of modern science; were in the core of the XVII century scientific revolution, and remain up to date in science and in religion, in spite of their doctrinarian diversity. Finally, we shall say a few words on present interest in science and religion studies.

Key-words: Science, religion, wisdom, human.

RÉSUMÉ

Il ya plusieurs façons d'aborder le sujet permettre science et la religion. Allez essayer un. Comme les institutions historiques séculaires science et religion, leurs chemins en temps partagé connaissances produites par la même humanité qui a créé les deux. Nous commençons par un retour vers le passé, en reconnaissant l'existence de connaissances communes aux religions abrahamiques et les intérêts de la science. Connaissances qui sont encore les fondations d'inspiration pour la recherche scientifique et la religion. Sagesses étaient généralisés avant la naissance de la science moderne, ont été au centre de la révolution scientifique du XVIIe siècle et prévaut aujourd'hui dans la science et la religion en dépit de la distance doctrinal entre eux. Enfin, nous conclurons en abordant les études sur la science et la religion.

Mots-clés: la science, la religion, la connaissance, l'homme.

"Mas a outra morada do homem, o mundo espiritual,

também é parte integrante da realidade total...".

Arnold Toynbee, A Humanidade e a Mãe-Terra

É inerente à espécie humana o desejo de compreender e explicar o mundo ao seu redor. Dos mistérios do universo à complexidade da vida, os humanos se põem a querer tudo entender. Profetas, escribas, sacerdotes, filósofos e cientistas valeram-se, no passado, de cuidadosas observações pessoais auxiliadas pela capacidade de elaborar relatos explicativos. Na antiguidade, os que se dedicavam a esse tipo de observação estavam limitados a ver apenas o que estava ao alcance dos olhos, tanto em relação às coisas da terra como às do céu. Em diferentes regiões do planeta, construíram-se saberes fundamentados não apenas na percepção do mundo material, mas também em ensinamentos oriundos de inspirações divinas ou mesmo da palavra de Deus através seus profetas (Eliade; Couliano, 2003; Mason, 1964). Muitos desses saberes venceram o tempo e se consolidaram como parte da própria história cultural da humanidade. Por terem ampla interface com diversas religiões, conhecimentos seculares foram categorizados por Zilles (1997) em vários grupos, dos quais destacamos três: a) ensinamentos sapienciais: Hinduísmo (século XV a.C.), Budismo (século VI a.C.), Confucionismo (século VI a.C.), etc.; b) ensinamentos proféticos: (Judaísmo (século XXII a.C.), Cristianismo (século IV d.C.), Islamismo (século VII d.C.), etc. e c) ensinamentos filosóficos, a partir de Thales de Mileto (século VII a.C.). Desses, o segundo grupo fundamenta nossas considerações. As razões para selecioná-lo prendem-se à herança cultural de nossa sociedade.

SABERES DAS RELIGIÕES ABRAÂMICAS NOS ALICERCES DA CIÊNCIA MODERNA

As três grandes religiões abraâmicas surgiram séculos antes do nascimento da ciência moderna no século XVII. Essas religiões, em seus ensinamentos, tentaram entender o universo dentro de concepções e crenças prevalentes à época (Smith, 1991; Armstrong, 2001). Relatos encontrados nos respectivos textos permanecem com a humanidade como palavra de fé, ou mesmo como questões que despertam a curiosidade de mentes religiosas ou não. Muito do que, no passado, foi admitido como explicado por meio da reflexão iluminada pela fé, persiste constituindo matéria de interesse da ciência por se tratar de temas que inquietam a mente humana.

Conclui-se que a humanidade, antes da revolução científica, não se omitiu do exercício mental para explicar o mundo, e o fez dentro do contexto cultural da época. O que surpreende, nos textos dos livros das religiões abraâmicas, é a coerência de identificação de fatos que mereceram explicações e seus respectivos relatos explicativos (Smith, 1991). No dizer de Henri Atlan (1993), médico, biólogo e cientista, "[...] existem várias racionalidades, legítimas, embora diferentes, capazes de apreender a realidade." (apud Pessis-Pasternak, 1993, p.52). Pessis-Pasternak (1993) acrescenta que o interesse de Henri Alan consiste em reunir o Talmud com a cibernética, a biofísica ocidental com a Bíblia.

Nos limites dos conhecimentos que temos, tanto de ciência como de religião, procuramos identificar, em relatos histórico-religiosos e nas questões de interesse da ciência moderna, temas que revelam interesse comum à ciência e à religião.

Três temas - O universo tem sua história, O universo se permite compreender e Existe ordem na natureza - suscitaram explicações de inspiração religiosa e persistem, no século XXI, inspirando reflexões e pesquisas científicas. O enunciado de cada tema visa a enfocar a questão central sem qualquer preocupação de adesão literal aos textos sagrados das religiões referidas.

O universo tem sua história

Nas últimas décadas, estudos científicos em cosmologia e astrofísica, auxiliados pela construção de raros e superpotentes telescópios, estão revelando a história do universo desde seu momento inicial, o big-bang, até os dias atuais. Não apenas o avanço na construção de novos telescópios, mas também contribuições provenientes do estudo da composição de elementos químicos existentes em gases e poeiras cósmicas de corpos celestes, em nossa galáxia ou fora dela, estão conseguindo datar o início do universo há cerca de 13,8 bilhões de anos (Pivetta; Zorzett, 2013) e categorizar essa história em quatro eras: física, química, biológica e cognitiva (Gleiser, 2012; Brokelman, 2001).

Na primeira era, logo a após a fantástica explosão de uma singularidade, conforme descrito, apenas partículas flutuavam emitindo luz nesse novo universo. A segunda era, a química, caracterizou-se pela formação de moléculas. Na terceira era, surgiu a vida, a matéria viva, e, finalmente, a emergência da consciência na vida, a era atual (Gleiser, 2012), que preferimos não chamar de última.

Os humanos trazem, em seu corpo, o registro das quatro fases evolutivas do universo: nos átomos, a fase física iniciada com o big-bang; nas moléculas, a fase química; na vitalidade do organismo, a fase biológica (a vida), surgida há cerca de três bilhões de anos, e, finalmente, a emergência da consciência moral, fase psicológica, surgida com a espécie humana há aproximadamente 500 mil anos (Brockelman, 2001). A emergência da consciência nos humanos deu identidade à quarta era (Gleiser, 2012; Barbour, 2004).

Não apenas para os estudiosos das ciências envolvidas nesse extraordinário desvendar histórico, mas também para muitos de nós, analfabetos em cosmologia, religiosos ou não, esses avanços respondem a tradicionais curiosidades da humanidade. A emergência da consciência na história evolutiva do universo levou os humanos a questionamentos sobre doença, sofrimento e morte, coisas do céu e coisas da terra. Há 10 mil anos, a descoberta de germinação das sementes (revolução agrícola) também inspirou a ideia da oferenda de sacrifícios na pretensão de obter ações benevolentes da natureza (Bernal, 1976). Uma vez enterrado, o grão morre e dele uma nova planta nasce. A morte do grão deveria agradar à natureza que, em resposta, doava uma nova planta. Essa observação deve também ter induzido o pensamento sobre outra vida depois da morte das pessoas.

Sem os recursos da ciência moderna e há cerca de quatro mil anos, a necessidade de explicar o mundo teria de ser elaborada dentro do recorte imaginário da época (Singer, 1997; Mason, 1964). O surpreendente é que, mesmo na antiguidade, com conhecimentos tão limitados, algumas mentes perceberam a dimensão histórica do universo e fizeram o registro da gênese do mundo a partir de um suposto "nada" ao surgimento da vida e dos humanos (Smith, 1991; Barbour, 2004; Murphy, 2003; Seife, 2007).

Sem a necessidade de apelos à fé, o valor histórico desses registros reside na revelação do modo de pensar o universo em épocas remotas, e o forte impulso em fazê-lo, não obstante a total ausência de instrumental que enriquecesse a imaginação com observações tecnológicas. Mesmo sob o olhar destituído de qualquer pincelada de religiosidade, os relatos que apontam a existência de uma história do universo constituem uma busca que persiste, como científica, no presente.

O universo se permite compreender

Conscientes ou não, sacerdotes, profetas, filósofos, cientistas, pensadores leigos, e pessoas em geral, ao refletirem sobre o universo, quer do ponto de vista histórico ou de sua composição e evolução, necessariamente admitem o pressuposto de que ele é compreensível aos humanos. Até mesmo para Albert Einstein, o surpreendente é o universo ser inteligível à mente humana (Isaacson, 2007). Em outras palavras, o processo através do qual o universo se formou e continua evoluindo é compreensível aos seres conscientes do planeta Terra, minúsculo órgão celeste que orbita em torno de uma estrela na periferia de uma galáxia, entre bilhões de outras estrelas e outras tantas galáxias.

Impulsionada pela crença de poder entender a natureza, a espécie humana, hoje, domina céus e mares, manipula a vida e interfere em quase tudo que existe, pondo a seu serviço tudo que domina. Se, por um lado, os avanços da ciência deram tamanho poder aos humanos, a pretensão de dominação já existia implantada em suas mentes, conforme relatam os livros sagrados das religiões abraâmicas. Céus, terras e mares deveriam ser dominados e postos a serviço "do homem" (conforme terminologia da época). A crença nesse poder difundiu-se através gerações e gerações, chegando mesmo a perder sua concepção original advinda dos livros sagrados, mas não perdendo a força do impulso para entender e dominar. Os relatores originais que, nos livros sagrados, conferiram esse poder "ao homem" deveriam intuir de que seriam capazes os humanos séculos depois. Hoje, vemos que, ao adquirirem as poderosas ferramentas da tecnociência, os humanos arrebentaram todos os limites da imaginação com suas conquistas científicas.

Entretanto, a reflexão pura e expressa em linguagem falada ou escrita persiste iluminando percursos a serem explorados pela ciência em sua linguagem matemática. Para John Polkinghorne (apud Barbour, 2004), "[...] a chave para entendimento do mundo físico é a matemática, uma invenção da mente humana". Barbour (2004) conclui que existe um fundamento comum à racionalidade nossa e do mundo. Equações derivadas da mente humana tanto explicam fenômenos conhecidos como descrevem fenômenos por serem comprovados. Assim, a equação está no fenômeno, ou melhor, o fenômeno é a equação em ação.

Compreender e dominar permanecem sendo inquestionáveis ambições dos humanos, não mais sob o impulso dos ensinamentos sagrados, mas sob as supremas forças do saber e do poder.

Existe ordem na natureza

Mais profundo e mais geral do que o pressuposto de um universo compreensível é o de que existe ordem na natureza. Conhecimentos seculares, religiosos ou não, estão sempre fundamentados na crença de rigorosa ordem na natureza. A alternância entre dias e noites, a periodicidade dos ciclos da lua, o retorno das estações, a invariabilidade de nascimentos dentro da mesma espécie, as etapas da vida, do nascer ao envelhecer, a certeza de que o grão somente gera planta igual à que lhe deu origem, etc. alimentaram a mente da humanidade milhares de anos antes do surgimento das grandes religiões.

Ao promoverem a revolução agrícola, já referida no presente texto, os humanos descobriram como domesticar as plantas através do plantio deliberado de sementes (Bernal, 1976). A ordem da natureza faz a semente germinar e transformar-se na planta que já foi; nunca em outra. Essa descoberta revolucionou o mundo. Migrações aleatórias em busca de alimentos deixam de existir. Planejar, plantar e colher fixaram os humanos. Findou-se o nomadismo; a espécie humana tornou-se sedentária.

A crença na ordem da natureza propiciou não apenas a revolução agrícola, mas também o pensamento filosófico desde a antiguidade e a revolução científica no século XVII (Mason, 1964; Bernak, 1976; Singer, 1997). No recorte de tempo entre as duas magnas revoluções (agrícola e científica), surgiram as religiões abraâmicas. Fiel ao que a humanidade já acumulara em sabedoria, os livros sagrados mantiveram o entendimento de uma natureza que tem sua própria ordem.

O imaginário que, há milhares de anos, descreveu o processo de formação do universo, nos relatos sagrados, não apenas traduz a existência de uma ordem na sequência da criação, mas também imprime certa disciplina no surgimento das coisas, das plantas, dos animais, dos humanos (Singer, 1997; Collins, 2006). Na vigência de pleno desconhecimento sobre a teoria da evolução dos seres vivos e das posteriores descobertas da cosmologia, o mito da criação que, segundo Eliade (1978), data da mais alta pré-história, passando por posteriores adaptações religiosas, não deixa de impressionar pelo esforço na busca por uma interpretação histórica do mundo.

Séculos mais tarde, a revolução científica demonstrou que a ordem na natureza é de tal magnitude, que exige métodos rigorosos e inspiradas formulações matemáticas para descrevê-la cientificamente. Mesmo na atualidade, cientistas reconhecem que a melhor explicação sobre o que é vida foi dada pelas formulações do físico Schrödinger (1997) há mais de cinquenta anos (Murphy; O´Neill, 1997). Sem o pressuposto da ordem, tanto para profetas como para cientistas, teria sido impossível imaginar um processo de criação e evolução do universo. Além disso, a ciência moderna também não teria surgido, e impossível também teria sido elaborar hipóteses e antever resultados de pesquisa. Acreditar na ordem da natureza é dogma de fé dos cientistas.

A NATUREZA TEM MAIS DE UM TIPO DE ORDEM

As faces do universo e dos seres vivos que se permitem revelar através da investigação científica com fundamentos na geometria cartesiana e na linearidade dos fenômenos são apenas parciais. Isto é, existem complexidades não passíveis de exploração pela ciência clássica e por seu método.

Frente às limitações do método cartesiano, novas concepções surgiram, não mais sob o pressuposto de uma ordem universal inflexível, mas sob a ousadia de entender o que antes era admitido como caótico. Nas palavras de Gleick (1990), "onde começa o caos, a ciência clássica para". Fenômenos do cotidiano como a variabilidade dos batimentos cardíacos (Kaplan, et al., 1988), a forma das nuvens, os redemoinhos, o balé da fumaça, o clima, entre outros, passaram a ter explicações científicas e formulações matemáticas sob um novo paradigma: a geometria fractal (Gleick, 1990).

Atualmente, a ciência moderna reconhece que, em todos os níveis de observação, existem flutuações e instabilidades (Prigonine, 1996). Em outras palavras, ordem clássica e ordem caótica integram a natureza. O big-bang é modernamente interpretado como "um evento associado a uma instabilidade, o que implica que ele é o ponto de partida de nosso universo, mas não do tempo... o tempo não tem início e provavelmente não tem fim" (Prigonine, 1996).

A infinitude do tempo apontada pela nova percepção científica do universo começa a responder a tradicionais questionamentos da humanidade sobre o que existia antes do começo, isto é, antes do big-bang. A mente humana que, há milênios, descreveu, nos livros sagrados, a concepção de Deus chegou a atribuir-lhe uma infinitude, isto é, não teve princípio e nem terá fim. Àquela época, a ideia de infinito era tão somente uma elaboração da mente humana; atualmente, uma exigência científica da matemática e do próprio conceito de tempo.

O conceito de desordem prevalente na ciência clássica resultava das limitações da mente humana em entender os fenômenos aleatórios da natureza (Pessi-Pasternak, 1993). Em verdade, escapava aos humanos a percepção de um modelo de ordem fora da ordem que conheciam. Por não serem capazes de compreendê-la, denominavam-na de caótica. Curiosamente, prevalece, entre alguns cientistas, a inclinação para rotular pejorativamente aquilo que transcende seu recorte de conhecimento. Durante os estudos do genoma humano, ao se verificar que noventa por cento do DNA era não codificante, e sem conhecimentos suficientes para propor uma explicação aceitável, os geneticistas o denominaram de "DNA lixo". Isto é, um DNA que para nada serve e que nada mais representaria além de entulho remanescente do processo evolutivo. Posteriormente, avanços em epigenética estão revelando a fundamental importância do DNA não codificante (Pennini, 2012).

Depreciar fenômenos por não os compreender e reduzir a natureza às limitações do conhecimento e da míope intuição devem ter contribuído para atrasar o avanço da ciência. Vaidade e arrogância científica não combinam com a boa ciência. Depreciar resultados científicos por não conseguir explica-los é mais danoso ao avanço do conhecimento do que acreditar que resultados inexplicáveis encobrem explicações.

CIÊNCIA E RELIGIÃO

Foi no grosso caldo da cultura hebraico-cristã, prevalente nos séculos XVI e XVII, que a ciência moderna foi concebida. Descartes (1596-1650), um dos promotores do pensamento científico moderno, permitia que sua fé se fizesse presente em seus escritos científicos, declarando sua crença em Deus e na inspiração divina para seu trabalho (Descartes, 2009). Soberana em seu poder, a igreja católica romana incluía sob seu domínio os ensinamentos de ciência. Pressentindo o poder preditivo das hipóteses científicas, a igreja relutou em acatar "profecias científicas". Embora viesse mais tarde a reconhecer-se equivocada, tanto na condenação de Galileu (1564-1642) como na resistência à teoria darwiniana da evolução (Hess, 2003; Hewlett, 2003), esses fatos tornaram-se de conhecimento geral e profundamente estudados (Baiardi, dossiê deste número). Todavia, no caso Galileu, mais importante que a troca de lugar da terra com o sol foi a mudança de paradigma na forma de produção do conhecimento. Para estudiosos do tema, Galileu passou da observação à elaboração de modelos teóricos. Explicar com modelos era privativo da igreja, e não dos pesquisadores. Assim, não foi a "mudança da teoria da natureza" que gerou o conflito com Galileu, mas a mudança "na natureza da teoria" (Barbour, 2004). Atualmente, os próprios teólogos trabalham com a elaboração de modelos teóricos na interface ciência e religião (Murphy, 2003).

Aos poucos, as descobertas científicas foram agregando poderes aos cientistas, levando-os à progressiva deificação da própria ciência e ao gradual distanciamento de concepções, ensinamentos e crenças religiosas. Atualmente, segunda década do século XXI, a ciência arrebata e deslumbra, exibindo seus extraordinários progressos, revelados através do discurso de poder e das palavras de "verdade" dos cientistas, sem, contudo, perder-se na supremacia de admitir-se sem limites (Medawar, 1984).

Ainda que paradoxal, muitos admiradores da ciência afirmam sua descrença em Deus por não existirem evidências de sua existência, mas aceitam como verdadeira qualquer revelação da ciência, ainda que nada entendam sobre as respectivas evidências. Rejeita-se a fé em Deus, mas se aceita a na ciência.

A ciência dos números, tida na antiguidade como a revelação dos deuses, tornou-se a legitimadora dos saberes científicos. A mística dos números distanciou-se de suas interpretações ancestrais e materializou-se como ferramenta de verificação de certezas científicas. Na linguagem da ciência experimental quantitativa, admite-se que o que não pode ser medido numericamente não é ciência (Galton, 1884). Deificou-se o quantitativo. Aos poucos, os números invadiram a vida humana, chegando a alterar a própria autoimagem. As pessoas passaram a enxergar a si mesmas como números que indicam probabilidades de vir a desenvolver essa ou aquela doença em função desse ou daquele estilo de vida. Em genética, a invisibilidade e a intocabilidades dos genes dentro do corpo exacerbam a mística dos riscos. Sem clara consciência dos reais conceitos de médias, de desvios padrões e de probabilidades, parte da humanidade passou a sentir o futuro como algarismos que definem riscos de ficar doente e até mesmo de morrer. As estatísticas assumiram dizeres proféticos. Acreditar nelas sem compreendê-las é um exercício dissimulado de fé. Fé nos cientistas.

A experiência, com sua maestria, vem, ao longo dos séculos, revelando o que compete à ciência explicar, dando respostas; o que compete à religião é esclarecer, e ambas se completam. As limitações da mente humana, a intangibilidade do futuro e a amplitude incomensurável do desconhecido estarão sempre presentes apontando perguntas de impossível resposta pela ciência.

Mesmo equipada com os mais potentes meios de observação, a ciência moderna não consegue responder a seculares questionamentos da humanidade: qual o sentido dos fenômenos descritos pela ciência; qual o propósito da vida tão estudada pelos cientistas. A ciência descobre causas, controla efeitos e prevê eventos. Desvendou o código da vida e tornou-se capaz de manipula-lo. O método científico conferiu-lhe esse poder. Mas os propósitos para as coisas e o sentido para a vida persistem sem respostas cientificamente evidenciáveis.

A secular sabedoria da humanidade continua afirmando que respostas dessa natureza somente são encontradas em outro tipo de conhecimento - o das religiões.

Nas últimas décadas, as relações entre ciência e religião passaram a merecer atenção especial de cientistas, teólogos e filósofos. Estudos confluentes sobre ciência e religião estão se constituindo em área de produção de conhecimentos com linhas de pesquisa em instituições especializadas.

A relação entre ciência e religião vem sendo estudada no mundo acadêmico sem pretensão de exorbitar o cientificismo ou o teologismo. A produção de conhecimento na área vem atraindo cientistas, teólogos e filósofos dispostos a transpor os limites de seus saberes específicos e a enfrentar os desafios epistemológicos tanto na ciência quanto na teologia (Petters; Bennett, 2003).

O número de estudiosos do tema não apenas aumenta, mas também se organiza academicamente. Relembramos algumas linhas dessa organização: sob a forma de Sociedade, a European Society for the Study of Science and Theology; de instituição, o Center for Theology and the Natural Science (Berkeley, California, USA); de revista científica, a Zygon: Journal of Religion and Science (USA); de Enciclopédia: a Encyclopedia of Science and Religion (USA). Além disso, existe considerável produção de livros, artigos, páginas eletrônicas, congressos, conferências, etc. O presente dossiê é um exemplo da moderna busca por estudos em ciência e religião.

No Brasil, em 2003, o livro Bridging Science and Religion foi editado sob o título Construindo Pontes entre a Ciência e a Religião. Esse livro demonstra que a construção de pontes entre ciência e religião requer, de início, a elaboração de uma metodologia apropriada. Para o físico e teólogo Ian Barbour (2004), um dos pesquisadores de destaque na área, a relação entre ciência e religião pode ser entendida como de conflito, independência, diálogo ou integração. Obviamente, as propostas de modelos de estudo preocupam-se com o diálogo e a integração e estão disponíveis em grande número de publicações com as respectivas discussões filosóficas (Petters; Bennet, 2003; Barbour, 2004).

Concluímos relembrando que a ciência e a religião constituem pilares fundamentais de conhecimentos construídos pela humanidade ao longo de sua existência. Ambos com erros e acertos julgados pelos próprios seres humanos a cada época de sua história de 500 mil anos. Ao longo dessa história não existiram povos sem religião, nem povos sem curiosidade (científica) para entender os fenômenos da natureza. Assim, ciência e religião compõem a unicidade antropológica da espécie humana; integrá-las deverá ser uma questão de tempo e de sabedoria.

Recebido para publicação em 28 de julho de 2013

Aceito em 10 de setembro de 2013

Eliane S. Azevêdo - Médica pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Doutorado em Genética. Professora Titular de Genética Médica da Faculdade de Medicina da Bahia-UFBA e Professora Titular de Bioética da Universidade Estadual de Feira de Santana-Ba. Ex-Reitora da UFBA. Ex-vice-presidente da SBPC. Pesquisadora do CNPq 1A por aproximadamente de 20 anos, desistindo por opção. Cerca de 300 publicações entre artigos originais em revistas no Brasil e no exterior, livros, capítulos de livros e artigos de divulgação científica. Dedica-se, atualmente, a estudos sobre ciência e religião.Avanços da tecnociência e a pessoa humana. Bioethikós (Centro Universitário São Camilo), v. 4, p. 19-25, 2010; Métodos e enfoques na produção de conhecimentos em Bioética, anos 2001-2008. Revista Bioética do Conselho Federal de Medicina, Brasil. Bioética (Brasília) (Cessou em 2006. Cont. ISSN 1983-8042 Revista Bioética (Impresso)), v. 18, p. 155-163, 2010; Paradigmas, Métodos e Tecnologias na História da Construção de saberes em Medicina. Gazeta Médica da Bahia, v. 80, p. 80-85, 2010.

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  • Breves considerações na convergência ciência e religião

    Brief thoughts converging science and religion
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      28 Jul 2013
    • Aceito
      10 Set 2013
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