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MARTINS, José de Souza. Uma sociologia da vida cotidiana – ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, de Wright Mills e de Henri Lefebvre. Editora Contexto: São Paulo, 2014 224p.

MARTINS, José de Souza. Uma sociologia da vida cotidiana – ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes. , de Wright Mills e de Henri Lefebvre. São Paulo: Editora Contexto, 2014. 224

José de Souza Martins, mais conhecido no Brasil pelos seus trabalhos sobre temas rurais e, por isso, considerado inapropriadamente um sociólogo rural, publicou recentemente o livro Uma sociologia da vida cotidiana – ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, de Wright Mills e de Henri Lefebvre. Nesse livro, Martins explicita seu modo de pensar a sociedade brasileira a partir do cotidiano, desvendando o que permanece oculto e o aparentemente irrelevante.

O subtítulo do livro indica a importância de suas influências teóricas, notadamente Florestan Fernandes, seu professor, e Henri Lefebvre, seu principal interlocutor e de quem retoma a dialética como método de investigação e de explicação. De Wright Mill, Martins adota o artesanato como uma prática da pesquisa sociológica.

Nesse livro, o autor dá continuidade aos estudos sobre a vida cotidiana, temática que abordou em outros de seus livros, como Subúrbio, a aparição do demônio na fábrica, (Des)figurações – a vida cotidiana no imaginário onírico e a sociabilidade do homem simples.

O livro está dividido em quatro partes. Nas duas primeiras, o autor centra sua preocupação no ofício do sociólogo. Não é por acaso que a primeira delas se intitula “Oficina de sociólogo”, e a segunda, “O artesanato sociológico em sete narrativas”. Nelas, o autor se dirige especialmente ao jovem pesquisador e aos alunos de ciências sociais. Confessa que, se voltasse para a sala de aula, ensinaria sociologia utilizando mais literatura e menos textos de sociólogos. Da mesma forma que Wright Mills, Martins considera que algumas obras de sociólogos parecem romances mal escritos. O artesanato intelectual praticado por Florestan Fernandes e Octávio Ianni é o método que Martins tem utilizado criativamente ao longo de seu percurso de pesquisa.

O artesanato intelectual é um modo sociológico de ver e observar “as circunstâncias e os circunstantes, seus bloqueios e sua dinâmica” (p. 11). É através das suas técnicas e recursos que o pesquisador pode exercitar a imaginação sociológica. Martins pratica a imaginação sociológica quando, por exemplo, desvenda o mistério da aparição do demônio da fábrica de cerâmica em São Caetano, onde ele trabalhou, quando adolescente, nos anos 50.

O livro não é um manual de pesquisa, mas uma reflexão profunda sobre a sociologia da vida cotidiana, numa tentativa de deslindar um campo especial da sociologia. Martins, na orientação de Lefebvre, encontra, na vida cotidiana, não só o repetitivo, mas também a inovação e a produção de novas relações sociais. No cotidiano, ele descobre os resíduos, os denominados irredutíveis dos poderios e, neles, vislumbra o possível.

Na terceira parte, “Desigualdade e diferença: ciladas da compreensão”, o autor mostra as contradições da sociedade capitalista que, “estruturalmente contratual e igualitária, não corroeu ao menos nem superou desigualdades e diferenças que foram típicas do antigo regime. Ao contrário, em não poucas vezes, fortaleceu-as e deu novas funções essenciais ao seu núcleo lógico que é a acumulação de riqueza e a acumulação de poder.” (p. 182). Ele defende a tese de que, na sociedade brasileira, formas de exploração próprias de sociedades pré-capitalistas e pré-modernas tornaram-se fontes da acumulação de capital. E que essas formas não capitalistas de exploração do trabalho engendraram categorias sociais marginais “impotentes para reivindicar até mesmo o que é essencialmente próprio da sociedade capitalista” (p. 162). Uma das teses centrais, na sociologia de Martins, é a de que o capitalismo brasileiro reproduz relações não capitalistas, que desempenham, portanto, uma função na acumulação ampliada do capital.

No entanto, o mais interessante, nessa terceira parte, é a crítica do autor à forma como, no Brasil, tem sido tratada a diferença. Segundo ele, a diferença tem sido tratada como uma deficiência e uma privação, e não como uma qualidade diferencial dos sujeitos sociais, de referência de identidade e ainda de recusa da igualdade ideológica, que elimina as diferenças. Ele se refere ao fato de que, na sociedade capitalista moderna, as pessoas são iguais juridicamente, mas econômica e socialmente desiguais, mas também às formas interpretativas correntes sobre a desigualdade e a diferença na sociedade brasileira. No imaginário, segundo o autor, a igualdade se dá através das coisas, da coisificação, e que, contraditoriamente, se torna num imaginário fundamental para a concretização da desigualdade e a exploração.

Em outros momentos da sua obra, Martins tem defendido a função provocadora do sociólogo, problematizando e questionando verdades estabelecidas na academia e na sociedade. Coerente com ele mesmo, nesse livro, ele exercita essa função provocadora quando trata sobre o tema da igualdade e da diferença. Sendo uma construção social, a igualdade tem um campo de possibilidades e limitações. Martins aponta uma contradição: o capitalismo, por uma impossibilidade histórica, é incapaz de realizar a igualdade, mas tem dado lugar a “um falso igualitarismo do imaginário corporativo das categorias sociais parciais como as de gênero, de raça e de idade” (p.163). Assim como a igualdade é uma construção social, a diferença também o é. O problema é que a diferença, na sociedade contemporânea, não é considerada um atributo, mas um estigma. Atualmente, na América Latina, ocorre um processo de reconhecimento das diferenças de diversas categorias sociais, como negros, índios, trabalhadores rurais sem terra, mas que, além de pobres e marginalizados, não têm, segundo Martins, possibilidades de inserção na modernidade que os classificou na dualidade de ricos e pobres. “No entanto, seu clamor se dá no marco do pretérito e não no marco do presente e do possível. Se dá em nome de uma diferença que resultou das iniquidades sociais da sociedade colonial, e não em nome das possibilidades da sociedade contemporânea” (p.164). Na orientação teórica de Lefebvre e de Marx, Martins reivindica o direito à diferença, longe dos particularismos e do corporativismo.

Como em outros momentos de sua obra, Martins caminha num terreno minado, mas sem abrir mão da crítica e da função provocadora do sociólogo. Segundo ele, as identidades de categorias gerais, como a dos sem terra, ocultam diferenciações e dominações no seu interior. Essas identidades anulam as diferenças que são históricas, isto é, rompem o elo entre o cotidiano e a historicidade que determina as relações sociais e as ações. São identidades reificadas que anulam a força histórica da identidade, porque reforçam a dominação de um grupo sobre outro. Nas palavras do autor: “A mesma sociedade que cria, reproduz e multiplica as diferenças cria os meios de maquiagem e mascaramento dessas diferenças, que põe a sua manifestação e seu exercício como direito numa tensão permanente, tendente a anular a força identitária que a diferença contém.” (p. 169). Martins diferencia as identidades transitórias do cotidiano das identidades históricas. Essas identidades transitórias, determinadas pela obsolescência social, perdem sua eficácia histórica. “Nesse plano, a desigualdade social verdadeira, profunda e dramática, constitutiva do advento da sociedade moderna, engendrada pelo capitalismo e pela exploração capitalista do trabalho, tende a se diluir nas desigualdades de tempo curto e até ocasionais, meros indícios e sintomas da desigualdade mais profunda e de superação mais difícil. A desigualdade tende a chegar à consciência social e individual como diferença, caso em que as diferenças substantivas, como as de gênero, de cor, de condição social e mesmo etárias, também se diluem nas diferenças superficiais e num certo sentido manipuláveis do cotidiano” (p.169, 170). Em consequência, o capitalismo parece ter deixado de ser uma sociedade dividida em classes, mesmo que as contradições de classes ainda continuem ser o centro do capitalismo. Martins sugere que a emergência, na sociedade contemporânea, de uma ampla diversidade de categorias sociais (de raça, de gênero, etc.) oculta as profundas contradições de classes do capitalismo e até chega a sugerir, provocadoramente, que a sociedade contemporânea tem deixado de ser a sociedade de lutas de classes, para “se tornar a sociedade dos movimentos sociais pelos direitos dos que se julgam diferentes porque privados de igualdade plena que o capitalismo proclama no plano jurídico e nega no plano econômico e social. A sociedade, enfim, em que as classes sociais do conflito constitutivo do capitalismo foram sobrepostas pelas diferenças sociais constitutivas da teatralidade superficial da cotidianidade.” (p. 170).

Na quarta e última parte, com o título de “Funções heurísticas das anomalias do trabalho”, aborda um de seus temas de pesquisa, a escravidão contemporânea e o desemprego na vida cotidiana, mostrando as contradições da modernidade brasileira no resurgimento das formas contemporâneas de escravidão. Na origem do capitalismo brasileiro está a contradição da acumulação capitalista com a utilização de formas não capitalistas de trabalho, como a escravidão, indígena primeiro e de origem africana depois.

Por fim, nesse livro, o leitor encontrará um diálogo original e fértil com Florestan Fernandes, Wright Mills e Henri Lefebvre, diálogo que tem como horizonte a compreensão da sociedade brasileira, sua natureza, sua história e suas contradições. O autor percorre um conjunto de temas como a vida cotidiana, a literatura, o artesanato intelectual, mas principalmente critica certo discurso sustentado em categorias sociais transitórias e carentes de historicidade. A sociologia de Martins é uma sociologia irredutível aos poderios, inclusive àqueles que imperam no mundo acadêmico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2015
  • Aceito
    04 Mar 2016
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