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Feminismo decolonial e terapia ocupacional: relato de experiência de um estágio curricular no contexto da pandemia

Resumo

Este relato é um aprofundamento teórico a partir das práticas de estágio remoto de terapia ocupacional junto ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de um território do município de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. As práticas estão referenciadas pelas terapias ocupacionais do sul e pelas perspectivas feministas decoloniais. Durante o estágio, foram realizados acompanhamentos singulares, um grupo virtual com usuárias do CRAS e um grupo formativo voltado para trabalhadoras dessa instituição. Por meio das intervenções, tivemos acesso às histórias de vida marcadas por opressões de gênero. Com o auxílio de Patrícia Hill Collins, entendemos como as imagens de controle operavam nas atividades cotidianas das mulheres, sobretudo atividades relacionadas ao cuidado. As intervenções encontraram suporte no paradigma ameríndio da tradução, sublinhando o equívoco como fundamento do cuidado em terapia ocupacional. Propusemos as Atividades de Tradução Cultural como método de intervenção terapêutico-ocupacional, que prevê e se utiliza da diferença cultural em prol de novas formas de experimentação, conscientização, coletivização e incitamento ao enfrentamento das opressões.

Palavra-chave:
Terapia Ocupacional; Feminismo; Epistemologia; Colonialismo; Cultura

Abstract

This experience report is a theoretical deepening of the practices of remote internship in Occupational Therapy (OT) at the Social Assistance Reference Center (CRAS) of territory in the municipality of Pelotas, State of Rio Grande do Sul, Brazil. The practices are based on the Occupational Therapy of the South and decolonial feminist perspectives. During the internship, individual interventions, a virtual group with women users of the CRAS, and a training group focused on workers from the same institution were carried out. Through these interventions, we had access to life stories marked by gender oppression. Supported by Patricia Hill Collins’s theory, we understood how the images of control impacted those women’s daily activities, especially those related to care. The interventions found support in the Amerindian paradigm of translation, underlining misunderstanding as the foundation of care in OT. We proposed Cultural Translation Activities as a method of occupational-therapeutic intervention that foresees and uses the cultural difference in favor of new forms of experimentation, awareness, collectivization, and incitement to face oppression.

Keywords:
Occupational Therapy; Feminism; Knowledge; Colonialism; Culture

Introdução

O presente relato de experiência propõe um aprofundamento teórico e metodológico a partir de ações de estágio-extensão desenvolvidas ao longo do primeiro semestre de 2021, no contexto de ensino remoto, priorizando as práticas que aconteceram junto ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). As ações foram embasadas nos pressupostos teóricos das terapias ocupacionais do sul e das perspectivas feministas decoloniais definidas adiante. Tal orientação teórico-metodológica justifica-se pela necessidade de pensar a terapia ocupacional (TO) em sua vertente crítica, politizando os saberes técnico-profissionais para responder à complexidade dos problemas sociais. A Política Nacional de Assistência Social é feita por e para mulheres (Cisne, 2007Cisne, M. (2007). A “feminização” da Assistência Social: apontamentos históricos para uma análise de gênero. In Anais do III Jornada internacional de políticas públicas (pp. 1-19). São Luís: UFMA.) e as ações aqui relatadas trazem em comum a centralidade no sofrimento feminino, atravessado pela racialização e opressão de classe.

Referencial Teórico: Terapias Ocupacionais do Sul e as Perspectivas Feministas Decoloniais

Falar de colonialidade é enxergar o lado obscuro da modernidade (Mignolo, 2017Mignolo, W. D. (2017). Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(94), 1-18.). A concepção de humanidade consolidada pelo domínio europeu a partir do século XVI dividiu o mundo em dois grupos: inferior e superior, primitivo e civilizado, tradicional e moderno. Com efeito, a Europa colonizadora colocou-se como imagem universal do progresso e destino único da racionalidade, fazendo com que os outros povos fossem racializados pelo discurso do arcaísmo (Lugones, 2020Lugones, M. (2020). Colonialidade e gênero. In H. B. Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 59-93). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.). Mesmo depois que as nações se emanciparam administrativamente, o colonialismo se atualizou pela colonialidade, ao replicar relações de dominação baseadas em hierarquias de gênero, raciais, epistêmicas, culturais e territoriais, as quais sustentam a economia-mundo capitalista (Castro-Gómez & Grosfoguel, 2007Castro-Gómez, S., & Grosfoguel, R. (2007). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar.; Quijano, 1999Quijano, A. (1999). Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América Latina. Dispositio, 24(51), 137-148.).

Deriva da colonização o surgimento de identidades geoculturais (América, África, Europa) e, logo, raciais (índio, africano, europeu). Essas classificações foram impostas ao mundo, que foi se configurando como um universo novo de relações intersubjetivas de dominação sob a hegemonia eurocentrada denominada modernidade (Quijano, 1999Quijano, A. (1999). Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América Latina. Dispositio, 24(51), 137-148.). Até o binarismo de gênero, que divide o mundo em “homens-mulheres”, marcado pelo patriarcado de alta intensidade, foi um sistema de interpretação oriundo da colonização (Lugones, 2020Lugones, M. (2020). Colonialidade e gênero. In H. B. Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 59-93). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.). Tais classificações organizam as relações sociais pela hierarquia e exclusão, pois criam categorias homogêneas, havendo sempre um dominante como norma. Quando se fala em mulheres, fazem parte da norma as mulheres brancas, heterossexuais e burguesas, ou seja, o padrão dominante que inaugura o capitalismo é patriarcal, heterossexual e racista, e as perspectivas feministas decoloniais surgem como teoria e prática de enfrentamento a essa matriz de opressão (Lugones, 2020Lugones, M. (2020). Colonialidade e gênero. In H. B. Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 59-93). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.).

A tradução é um paradigma linguístico e ontológico capaz de modificar as relações de poder pautadas na colonialidade (Costa, 2020Costa, C. L. (2020). Feminismos decoloniais e a política e a ética da tradução. In H. B. Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 321-341). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.). A tradução é abordada aqui segundo a perspectiva ameríndia colocada por Castro (2004)Castro, E. V. (2004). Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2(1), 3-22. e trabalhada posteriormente por Costa (2020)Costa, C. L. (2020). Feminismos decoloniais e a política e a ética da tradução. In H. B. Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 321-341). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. e outras pensadoras do feminismo decolonial latino-americano.

Para os povos ameríndios, seres humanos e não-humanos derivam da mesma alma, originam-se da mesma fonte vital, diferenciando-se na constituição corporal que varia segundo espécies, o que cria formas diferentes de ver e agir no mundo. Se a antropologia ocidental se estruturou a partir da crença que existe uma única natureza e uma pluralidade de culturas em razão de diferentes percepções, a cosmologia indígena inverte essa lógica: existem diferentes mundos e, por efeito dos diferentes contornos materiais que definem o ser (ontologia), há um ponto de vista (Castro, 2004Castro, E. V. (2004). Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2(1), 3-22.). Pensando no contato entre culturas, Castro (2004)Castro, E. V. (2004). Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2(1), 3-22. afirma que traduzir a experiência do outro não é encontrar um sinônimo, mas salientar as diferenças escondidas nos homônimos entre linguagens, já que nunca falamos das mesmas coisas. Traduzir é sempre trair, e é habitar o espaço do equívoco, potencializando-o. Desta forma, traduzir presume a existência de um equívoco e se comunica através dele, visto que não se pressupõe uma unidade no que está sendo dito. Isso abre a possibilidade de um terceiro mundo ao indicar exterioridades divergentes em relação de alteridade (Castro, 2004Castro, E. V. (2004). Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2(1), 3-22.). Assim, as traduções comportam falsificações, camuflagens, deslocamentos, ambivalências, apropriações e quaisquer outras estratégias de desidentificação que abrem possibilidades de resistência ao subalterno (Venn como citado em Costa, 2020Costa, C. L. (2020). Feminismos decoloniais e a política e a ética da tradução. In H. B. Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 321-341). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.).

Há importante proximidade entre tal paradigma e as terapias ocupacionais do sul. Santos et al. (2016Santos, B. de S., Araújo, S., & Baumgarten, M. (2016). As epistemologias do Sul num mundo fora do mapa. Sociologias, 18(43), 14-23., p. 16) dizem que o sul “é uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado, e da resistência a essas formas de opressão”. É o mundo “do outro lado da linha” onde os efeitos colaterais da modernidade se expressam com mais força, onde o sacrifício, a exploração, o fetiche e a infantilização operam naturalizados sob justificativas de um destino inevitável e glorioso. Assim, as terapias ocupacionais do sul assumem uma postura crítica ante a história, enxergando no sistema capitalista/colonial a raiz do sofrimento, regulando as ocupações/atividades nas dimensões da autonomia, participação e inclusão (Acevedo, 2021Acevedo, L. O. P. (2021). Ocupación Humana: de la matriz colonial moderna hacia la construcción de saberes sociales del Sur. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.; Almeida et al., 2020Almeida, D. E. R. G., Müller, R. P., Francia, P. N. R., Osielski, T. P. O., & Diniz, T. (2020). Autoetnografia como estratégia decolonizadora de ensino sobre o cotidiano em Terapia Ocupacional. Interface, 24, 1-15.; Correia & Akemi, 2017Correia, R. L., & Akemi, B. A. (2017). Terra a vista! Estamos desviando as rotas! Revisbrato, 1(2), 120-122.; Córdoba et al., 2015Córdoba, A. G., Kronenberg, F., & Ramugondo, E. L. (2015). Southern occupational therapies: emerging identities, epistemologies and practices. South African Journal of Occupational Therapy, 45(1), 3-10.).

Referenciar-se pelas terapias ocupacionais do sul exige legitimar o plural e reconhecer a diversidade de epistemes, sobretudo aquelas apagadas pelo discurso das ausências (Tolvett, 2016Tolvett, M. P. (2016). Conceptualizaciones sobre cultura, socialización, vida cotidiana y ocupación: reflexiones desde espacios formativos. Revista Ocupación Humana, 16(1), 56-69.). Um passo importante nesse sentido é a superação do campo da saúde como único campo de conhecimento e prática (Barros et al., 2002Barros, D. D., Ghirardi, M. I. G., & Lopes, R. E. (2002). Terapia ocupacional social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(3), 95-103.; Munguba et al., 2018Munguba, M. C., Malfitano, A. P. S., & Lopes, R. E. (2018). Debate over the “social question” in occupational therapy: an integrative review. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 892-903. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAR1748.
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; Núñez, 2019Núñez, C. M. V. (2019). Terapias Ocupacionales del Sur: una propuesta para su comprensión. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(3), 671-680.). Isso implica enxergar as ocupações/atividades humanas a partir de outras categorias, como justiça, dignidade, reconhecimento, proteção social, opressão, luta, estética, liberdade, entre outras.

As terapias ocupacionais do sul pressupõem uma desobediência epistêmica (Pino & Ulloa, 2016Pino, J., & Ulloa, F. (2016). Perspectiva crítica desde Latinoamérica: hacia una desobediencia epistémica en terapia ocupacional contemporánea. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(2), 421-427.) ao criar rotas, abandonando as histórias únicas ou mesmo consumindo saberes de outras latitudes antropofagicamente (Acevedo, 2021Acevedo, L. O. P. (2021). Ocupación Humana: de la matriz colonial moderna hacia la construcción de saberes sociales del Sur. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.; Correia & Akemi, 2017Correia, R. L., & Akemi, B. A. (2017). Terra a vista! Estamos desviando as rotas! Revisbrato, 1(2), 120-122.; Costa & Alves, 2017Costa, S. L., & Alves, H. C. (2017). Diálogos interepistêmicos: por uma terapia ocupacional de base alargada. Revisbrato, 1(5), 527-532.; Córdoba et al., 2015Córdoba, A. G., Kronenberg, F., & Ramugondo, E. L. (2015). Southern occupational therapies: emerging identities, epistemologies and practices. South African Journal of Occupational Therapy, 45(1), 3-10.; Huff et al., 2018Huff, S., Laliberte Rudman, D., Magalhães, L., & Lawson, E. (2018). ‘Africana womanism’: implications for transformative scholarship in occupational science. Journal of Occupational Science, 25(4), 554-565.). Exemplo disso é o trabalho de Ramugondo & Kronenberg (2013)Ramugondo, E. L., & Kronenberg, F. (2013). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16., que teoriza a respeito do engajamento nas ocupações a partir da noção de ‘intencionalidade’ presente na ética ubuntu - “uma ética interativa africana para demonstrar como as ocupações coletivas se manifestam em um continuum entre relações opressivas e libertadoras [...] reforçando a interconexão entre o individual e o coletivo” (Ramugondo & Kronenberg, 2013Ramugondo, E. L., & Kronenberg, F. (2013). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16., p. 3. Tradução nossa). Córdoba (2016)Córdoba, A. G. (2016). Lecturas y relatos históricos de la Terapia Ocupacional en Suramérica. Una perspectiva de reflexión crítica. Revista Ocupación Humana, 16(2), 110-117. https://doi.org/10.25214/25907816.141.
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, acerca disso, apresenta o panorama da TO na América Latina e as influências da colonização na prática profissional. Os países anglo-saxões tendem a utilizar modelos positivistas alinhados à ideologia neoliberal, os quais transformam a violência, discriminação e pobreza em problemas individuais, corroborando a terapeutização de questões sociais (Hammell, 2019Hammell, K. W. (2019). Building globally relevant occupational therapy from the strength of our diversity. World Federation of Occupational Therapists Bulletin, 75(1), 13-26.; Iwama & Algado, 2008Iwama, M. K., & Algado, S. S. (2008). Aspectos de significado, cultura e inclusión en Terapia. TOG (A Coruña), 5(8), 1-23.). Ademais, cabe destacar o problema da alteridade inerente ao trabalho assistencial, quando se cria uma zona de contato cultural entre terapeutas ocupacionais e assistidos (Acevedo, 2021Acevedo, L. O. P. (2021). Ocupación Humana: de la matriz colonial moderna hacia la construcción de saberes sociales del Sur. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.).

Córdoba (2016)Córdoba, A. G. (2016). Lecturas y relatos históricos de la Terapia Ocupacional en Suramérica. Una perspectiva de reflexión crítica. Revista Ocupación Humana, 16(2), 110-117. https://doi.org/10.25214/25907816.141.
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e outras vozes nos convocam a uma Terapia Ocupacional Outra que exige uma postura crítica e decolonial em diálogo constante com a história da América Latina. Uma Terapia Ocupacional Outra que promova a democracia pautada nos direitos humanos, que produza novas formas de vida e o bem comum, reconhecendo a pluralidade através das práticas e assumindo que a neutralidade é impossível em uma profissão que trabalha com a atividade humana (Acevedo, 2021Acevedo, L. O. P. (2021). Ocupación Humana: de la matriz colonial moderna hacia la construcción de saberes sociales del Sur. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.; Córdoba, 2016Córdoba, A. G. (2016). Lecturas y relatos históricos de la Terapia Ocupacional en Suramérica. Una perspectiva de reflexión crítica. Revista Ocupación Humana, 16(2), 110-117. https://doi.org/10.25214/25907816.141.
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; Córdoba et al., 2015Córdoba, A. G., Kronenberg, F., & Ramugondo, E. L. (2015). Southern occupational therapies: emerging identities, epistemologies and practices. South African Journal of Occupational Therapy, 45(1), 3-10.; Tolvett, 2016Tolvett, M. P. (2016). Conceptualizaciones sobre cultura, socialización, vida cotidiana y ocupación: reflexiones desde espacios formativos. Revista Ocupación Humana, 16(1), 56-69.; Silva et al., 2019Silva, C. R., Morrison, R., Calle, Y., & Kronenberg, F. (2019). Terapias Ocupacionais do Sul: demandas atuais a partir de uma perspectiva socio-histórica. Revisbrato, 3(2), 172-178.).

Contextualização, Materiais e Método

As práticas do estágio supervisionado obrigatório estavam direcionadas a um dado território do município de Pelotas, Rio Grande do Sul. Atualmente, o bairro é composto por cerca de 20.000 moradores e se encontra abaixo da média de desenvolvimento do restante do município por não possuir condições urbanas básicas para convívio e moradia.

Com a pandemia de COVID-19 e as medidas de prevenção adotadas, o estágio foi adaptado para o formato remoto. As ações aconteceram junto ao CRAS, entre as quais, destacamos um processo formativo online voltado para as trabalhadoras dessa instituição acerca do tema acolhimento, um grupo de mulheres e atendimentos singulares junto às usuárias do mesmo serviço.

O processo formativo consistiu em quatro encontros semanais de 1h por meio da plataforma Google Meet, contando com a participação de quatro educadores sociais do CRAS. Já o grupo de mulheres aconteceu quinzenalmente, com participação síncrona de 1h por meio do WhatsApp, totalizando seis encontros no semestre. Todas as atividades propostas aconteceram diretamente a partir de áudios e mensagens de texto.

O grupo contou com a participação de 11 usuárias, uma assistente social e as três estagiárias. Durante os encontros, debatemos o papel da mulher na sociedade, pensando seu histórico na vida doméstica. Tensionamos as similaridades entre as participantes do grupo envolverem o cuidado dos filhos e da casa por meio de músicas, vinhetas e um podcast.

As ações envolveram uma complexidade de referências e práticas. Porém, recortamos para teorização algumas situações que permitiram um diálogo mais evidente com os feminismos latino-americanos. Ademais, destacamos a proposição das Atividades de Tradução Cultural (ATC) como método de intervenção capaz de levar em conta os problemas éticos, ontológicos e políticos inerentes à zona de contato entre culturas - espaço relacional onde as atividades enfatizam as assimetrias entre linguagens, perspectivas e hierarquias de poder sob inspiração da cosmovisão indígena trabalhada por Eduardo Viveiros de Castro.

Dadas as especificidades de uma produção acadêmica que nasce espontaneamente de um campo de prática, os cuidados éticos seguiram a resolução 510/2016 (Brasil, 2016Brasil. Conselho Nacional de Saúde. (2016). Resolução nº 510, de 07 de Abril de 2016. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1, p. 44.). Essa resolução diz que não são avaliadas pelo sistema CEP/CONEP investigações que partam de situações espontâneas ligadas à prática profissional ou de ensino e que objetivem o aprofundamento teórico, desde que não revelem dados que possam identificar os sujeitos participantes. Ainda assim, contamos com a anuência do CRAS para atividades integradas de extensão-pesquisa-ensino. Quando o presente relato aborda aspectos singulares da vida das usuárias e trabalhadoras, optamos pela escrita mais genérica e por nomes fictícios a fim de não ferir o anonimato das participantes.

Resultados e Discussão

O corpo feminino sob controle

Uma das ações do estágio foi um processo formativo sobre acolhimento para as trabalhadoras do CRAS. Durante os encontros, ao abordar o tema, as participantes deixaram evidente o critério estético usado na triagem das demandas apresentadas pelas usuárias: quem parecia mais necessitada era mais bem atendida, e esse “parecer” controlava os níveis e qualidade do acesso ao serviço. Alguns “tipos de mulheres” eram colocadas sob suspeita, sendo questionadas em seus direitos com base em critérios de vestimenta e comportamento. É como se existisse um perfil ideal da mulher merecedora de proteção social: a mulher humilde, resignada, gentil, otimista, visivelmente pobre e sofrida.

Com base no feminismo negro, Collins (2019)Collins, P. H. (2019). Pensamento feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo. disserta sobre o modo como os corpos das mulheres pretas são controlados por representações específicas de gênero oriundas da cultura ocidental branca. As imagens de controle agem pela dimensão ideológica do racismo e do sexismo, controlando os modos de vida, o exercício de autonomia e a cidadania das mulheres pretas. Bueno (2019)Bueno, W. (2019). A Lacradora: como imagens de controle interferem na presença de mulheres negras na esfera pública. Recuperado em 18 de fevereiro de 2022, de https://medium.com/neworder/a-lacradora-como-imagens-de-controle-interferem-na-presen%C3%A7a-de-mulheres-negras-na-esfera-p%C3%BAblica-cb26f5edbb59
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cita algumas imagens de controle trabalhadas por Hill-Collins, como a mula, mulher que trabalha como um animal, compulsoriamente e sem reclamar; jezebel, mulher hipersexualizada vista como máquina sexual; a mammy, empregada doméstica leal aos seus empregadores que dedica sua vida ao emprego e a fornecer cuidado e conforto aos brancos, entre outras.

Particularmente na formação sobre acolhimento, as imagens da mula e da mammy operavam na maneira como as trabalhadoras julgavam as necessidades. A imagem idealizada da mulher do bolsa família1 1 No governo do presidente Jair Bolsonaro, o programa de transferência de renda Bolsa Família foi substituído pelo Programa Auxílio Brasil (Brasil, 2021). seria uma imagem de controle alimentada no Brasil? Ao longo do processo, investimos nos significados atribuídos ao acolhimento e nos critérios usados na recepção, na tentativa de tensionar as imagens de controle atuantes sobre as usuárias do CRAS. Divergindo da visão sentimentalista, defendemos que acolhimento é uma postura ética que demanda alteridade.

Acevedo (2021Acevedo, L. O. P. (2021). Ocupación Humana: de la matriz colonial moderna hacia la construcción de saberes sociales del Sur. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia., p. 224), ao propor uma Terapia Ocupacional Andina, diz que a:

[...] alteridad es un derecho que vá más allá de los derechos de este, más allá de la igualdad de la Revolución burguesa, más allá de la lucha del reconocimiento del otro como otro. El otro pasa a ser la fuente de todo discurso posible y de las relaciones donde se valora la irrupción del otro, del pobre, del excluido, de la mujer dominada.

A autora argumenta que em qualquer diálogo, antes mesmo do exercício de argumentação, o rosto do Outro que é impedido de viver nos questiona sobre a responsabilidade que temos na manutenção de um sistema-mundo que o vitimiza (Acevedo, 2021Acevedo, L. O. P. (2021). Ocupación Humana: de la matriz colonial moderna hacia la construcción de saberes sociales del Sur. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.). Em vista disso, acolher pela ótica da alteridade reafirma a ética da tradução: quando reconhecemos que habitamos mundos (referentes) diversos. Isso cria um tempo intermediário que demanda tolerância e responsabilidade.

Devido ao número reduzido de encontros, não foi possível realizar o aprofundamento que desejávamos, mas a experiência já sugere a necessidade de olhar algumas ações e serviços a partir das teorias feministas decoloniais. Ao desprezá-las, cairíamos em uma capacitação idealizada e instrumental sobre acolhimento sem adentrar pontos chaves, como os estereótipos atribuídos às mulheres usuárias do CRAS, o problema da colonialidade e a ética exigida na proteção social verdadeiramente emancipatória.

No que tange aos atendimentos singulares e grupal, entendemos que o cuidado é um elemento axial na vida das mulheres acompanhadas no CRAS. Elas cuidam de outros e cuidam de muitos. Com efeito, coube-nos problematizar este lugar de cuidado (mammy) que, historicamente, é constitutiva das performances femininas. A título de exemplo, em um dos encontros virtuais do grupo de mulheres, criou-se a dinâmica “se (re)conhecendo”. Em duplas, as participantes deveriam conversar e tentar identificar similaridades e diferenças nas suas vidas. As semelhanças encontradas e compartilhadas com o grupo foram “ser mãe” e “ser dona de casa”, mesmo quando havia outros fatos em comum, como a escolaridade. Com o objetivo de estimular o debate sobre as identificações e papeis de gênero, usamos a música Desconstruindo - Amélia, da cantora Pitty, que retrata uma mulher que cuida de todos e frequentemente esquece de si. Através da música, foi possível dimensionar a importância da maternagem na organização do cotidiano das participantes. Sobre isso, Lugones (2020)Lugones, M. (2020). Colonialidade e gênero. In H. B. Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 59-93). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. alerta sobre a imposição do sistema de gênero e a consequente subordinação das fêmeas em todas as dimensões da vida. Assim, as mulheres se reconhecem como mães e donas de casa, mas não enxergam as raízes do patriarcado, justificando seus papéis a partir da escolha pessoal ou dom.

Tanto no grupo quanto nos acompanhamentos singulares, era comum observar que o cuidado ficava marcado pelo sacrifício, o que se expressava na extensa jornada de cuidados com os filhos, o marido e a casa, além do imperativo atual de lidar com a crise pandêmica. Até mesmo situações de violência, como agressão verbal, traição e abandono, eram comumente relatadas, mas quase nunca nomeadas assim. Deparamo-nos também com histórias de relações extraconjugais, nas quais o parceiro se expunha às infecções sexualmente transmissíveis (IST), com foco na sífilis, infectando a parceira múltiplas vezes.

Como estagiárias de TO, nosso papel foi problematizar essas situações com as usuárias, criando processos educativos a partir do cotidiano, isto é, enxergando nas atividades, papéis, hábitos, rotinas e padrões performados pela colonialidade (Huff et al., 2018Huff, S., Laliberte Rudman, D., Magalhães, L., & Lawson, E. (2018). ‘Africana womanism’: implications for transformative scholarship in occupational science. Journal of Occupational Science, 25(4), 554-565.). São mulheres que vivem a vida que é possível, com poucas possibilidades socioculturais de refazimento e resistência. Em relação às IST, criamos vídeos educativos sobre essa e outras temáticas para ampla divulgação no território (LAPET UFPel, 2022LAPET UFPel. (2022). Conversa sobre IST – sífilis. YouTube. Recuperado em 19 de fevereiro de 2022, de https://youtu.be/D1RMLO9pRT4
https://youtu.be/D1RMLO9pRT4...
). Neste ponto, ficou evidente a importância de descentrar as orientações das relações sexuais heteronormativas e monogâmicas.

Como um todo, as ações priorizaram o cuidado coletivo, de natureza política e afetiva, pelos laços de sororidade. Assim, entendemos que o objeto das nossas intervenções - as ocupações - nada mais eram que coordenadas espaço-temporais de reprodução e, sobretudo, resistência à ordem social (Angell, 2014Angell, A. M. (2014). Occupation-centered analysis of social difference: contributions to a socially responsive occupational science. Journal of Occupational Science, 21(2), 104-116.). Quanto a isso, há um acúmulo de evidências na literatura asseverando a perpetuação de opressões e desigualdades sociais por meio do engajamento nas ocupações, especialmente nas que são provocadas pela naturalização dos papéis de gênero (Alet & Morrison, 2021Alet, J., & Morrison, R. (2021). El sexismo y su influencia en la elección ocupacional de mujeres de la provincia de Buenos Aires. Un estudio en el área laboral. Revista de Estudiantes de Terapia Ocupacional, 8(1), 127-139.; Huff et al., 2018Huff, S., Laliberte Rudman, D., Magalhães, L., & Lawson, E. (2018). ‘Africana womanism’: implications for transformative scholarship in occupational science. Journal of Occupational Science, 25(4), 554-565.; Townsend, 1997Townsend, E. (1997). Occupation: potential for personal and social transformation. Journal of Occupational Science, 4(1), 18-26.). Já Huff et al. (2018)Huff, S., Laliberte Rudman, D., Magalhães, L., & Lawson, E. (2018). ‘Africana womanism’: implications for transformative scholarship in occupational science. Journal of Occupational Science, 25(4), 554-565. apresentam proveitosos elementos do Africana Womanism para se pensar uma agenda de pesquisas sobre a ocupação sob perspectiva crítica, tais como: pensar gênero situacionalmente e para além da binaridade ocidental; entender a relação entre gênero, papéis ocupacionais e economia, como na maternagem; compreender as ocupações a partir do coletivo e das relações de força. Nós, de modo semelhante, encontramos nas imagens de controle e na tradução outras ferramentas teóricas que ajudam a enfrentar o problema da reprodução de cativeiros no cotidiano. Dialogando com outros estudos, poderíamos dizer que catalisamos mudanças sociais através do potencial restaurativo das ocupações coletivas (Motimele & Ramugondo, 2014Motimele, M. R., & Ramugondo, E. L. (2014). Violence and healing: exploring the power of collective occupations. International Journal of Criminology and Sociology, 3, 388-401.) e incitamos o que Ramugondo (2015)Ramugondo, E. L. (2015). Occupational consciousness. Journal of Occupational Science, 22(4), 488-501. http://dx.doi.org/10.1080/14427591.2015.1042516.
http://dx.doi.org/10.1080/14427591.2015....
chama de consciência ocupacional, que se manifesta pela tomada de consciência e resistência ao modo como a opressão e a ocupação estão interseccionadas.

Tornar-se terapeuta ocupacional: traduzir experiências

Considerando os dilemas práticos e teóricos do estágio, assumimos que a dimensão ocupacional diz respeito à “complexa rede de elaborações e reelaborações metafóricas” (Acevedo, 2021Acevedo, L. O. P. (2021). Ocupación Humana: de la matriz colonial moderna hacia la construcción de saberes sociales del Sur. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia., p. 65, tradução nossa) – entendendo metáforas como os sistemas ordinários em torno dos quais pensamos e atuamos, e aos fazeres inscritos em uma trama histórico-cultural cotidiana de dominação, luta e resistência (Angell, 2014Angell, A. M. (2014). Occupation-centered analysis of social difference: contributions to a socially responsive occupational science. Journal of Occupational Science, 21(2), 104-116.; Ramugondo, 2015Ramugondo, E. L. (2015). Occupational consciousness. Journal of Occupational Science, 22(4), 488-501. http://dx.doi.org/10.1080/14427591.2015.1042516.
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; Guajardo-Córdoba & Galheigo, 2015Guajardo-Córdoba, A., & Galheigo, S. (2015). Reflexiones críticas acerca de los derechos humanos: contribuciones desde la terapia ocupacional Latinoamericana. World Federation of Occupational Therapists Bulletin, 71(2), 73-80.).

Optamos pela desobediência metodológica própria às terapias ocupacionais do sul (Costa & Alves, 2017Costa, S. L., & Alves, H. C. (2017). Diálogos interepistêmicos: por uma terapia ocupacional de base alargada. Revisbrato, 1(5), 527-532.; Silva et al., 2019Silva, C. R., Morrison, R., Calle, Y., & Kronenberg, F. (2019). Terapias Ocupacionais do Sul: demandas atuais a partir de uma perspectiva socio-histórica. Revisbrato, 3(2), 172-178.). Assim nos questionamos como traduzir histórias de vidas (reelaborações metafóricas) sem presumir uma univocidade, isto é, uma semelhança essencial entre o que o Outro e o Nós estamos dizendo. Pensando a tradução como ontologia e linguagem, foi possível redefinir a importância da atividade como zona de contato cultural, sublinhando o equívoco como fundamento da alteridade. Com base nisso, propusemos o seguinte processo, que denominamos Atividades de Tradução Cultural (ATC):

  1. 1

    Registro das histórias pessoais e grupais, situações de conflito, acontecimentos, cenas;

  2. 2

    Transcrição das informações a partir do princípio da alteridade e do equívoco na tradução (paradigma ontológico), ou seja, focamos em alguns aspectos do relato cientes de que os contornos materiais que determinam a percepção não são equivalentes aos nossos. Assim, levantamos alguns elementos ocupacionais que evidenciavam problemáticas singulares/grupais/institucionais referentes às matrizes de opressão a fim criar um espaço para a negociação de sentidos;

  3. 3

    Tradução (paradigma linguístico) dessas mesmas informações, subvertendo intencionalmente a linguagem de origem para criar contrastes, espanto, estranhamentos ao interlocutor. Não havia preocupação com a verdade original - a tradução poderia até mesmo tomar a forma de ficção. Para tanto, transformamos conteúdos biográficos em cartas, colagem, música, paródias de obras populares, contos, etc.;

  4. 4

    Apresentação da tradução ao participante na intenção de criar a zona de contato, ou seja, um espaço de diálogo onde as metáforas poderiam ser contestadas, recriadas, tensionadas e negociadas, ao invés de serem impostas pela interpretação. Esse momento consiste em exercício de reelaboração metafórica capaz de produzir novas formas de agir no mundo.

Ao entrar em contato com tantas histórias de vida, enxergamos contrastes. De um lado, mulheres brancas de uma universidade pública, com vidas marcadas por oportunidades financeiras, suporte familiar e reconhecimento pessoal, guiadas pelo pensamento feminista. De outro, mulheres migrantes, pretas, mães, abandonadas, desempregadas, com destinos incertos. Eram mundos distintos que se tocavam.

Umas das ATC foi conduzida com uma usuária do CRAS. Ela foi encaminhada para acompanhamentos singulares a partir da assistente social do serviço. Paloma (nome fictício) é mãe de dois filhos, cuidadora da mãe idosa e de sua irmã mais velha com deficiência e estava desempregada há seis anos. Chegou às estagiárias após a morte de seu pai, com quem dividia até então os cuidados da casa e da família. Durante os acompanhamentos, sua narrativa girava em torno da rotina intensa de cuidado, assumindo responsabilidade por todos os membros da família. Paloma tinha dificuldades em reconhecer como sua sobrecarga de trabalho estava relacionada às normas de gênero, com reflexos sentidos na forma de angústia, raiva e solidão.

Para as ATC, criamos uma imagem (Figura 1) que representasse o que foi percebido pela estagiária sobre a história de vida de Paloma.

Figura 1
Atividade de tradução cultural de Paloma.

Como sua performance de gênero estava marcada pelo cuidado, decidiu-se criar uma imagem de um equilibrista, destacando-se os elementos do cotidiano da usuária e a solidão nesse papel. Após a apresentação da imagem, a usuária afirmou sentir-se provocada, já que concordava que lidava com muitas demandas, mas questionou a ausência de qualquer registro sobre seus momentos de lazer, em esforço claro de subverter uma interpretação acabada, o que abriu espaço para a tradução.

Paloma refletiu sobre o que expunha nos encontros, dando margem à metaforização de outros elementos biográficos. A partir disso, intervimos mais sensivelmente na desnaturalização dos papéis, interesses, escolhas e formas de dependência. Questionamos juntas o porquê de situações assim serem comuns e, para além disso, tentamos pensar possibilidades para elas. A pergunta principal foi: Como podemos enxergar possibilidades para o enfrentamento de situações como a dela? Neste e em vários outros momentos, ficou clara a importância de uma rede de suporte, pois o apoio percebido sempre vinha de outra mulher (amigas, irmãs, etc.), o que revela a importância das redes informais de sororidade e o potencial restaurativo e emancipatório das ocupações coletivas (Motimele & Ramugondo, 2014Motimele, M. R., & Ramugondo, E. L. (2014). Violence and healing: exploring the power of collective occupations. International Journal of Criminology and Sociology, 3, 388-401.).

A experimentação de uma outra linguagem para se comunicar com as usuárias foi um processo inicialmente complexo para nós estudantes, decolonizando nossa própria maneira de conceber a formação técnico-profissional. O método permitiu enxergar como nós mulheres (estagiárias e usuárias) utilizávamos a bagagem pessoal como instrumento de interpretação e ação - racionalidades que não se reduziam ao saber científico. Além disso, esse método acionou formas de experimentação e novas formas de pensar e agir com vistas à superação de contradições.

Considerações Finais

Em total acordo com Morrison & Araya (2018)Morrison, J. R., & Araya, L. (2018). Feminismo(s) y Terapia Ocupacional. Preguntas y reflexiones. Revista Argentina de Terapia Ocupacional, 4(2), 60-72., vemos nos feminismos um caminho para refletir e desnaturalizar práticas sistemáticas de injustiça. Os feminismos negro e latino-americano fornecem bases sólidas para a TO, sobretudo quando a problemática está centrada na relação entre subjetividade e cultura. Nesse sentido, narramos aqui como as imagens de controle operam no âmbito institucional do acolhimento e na produção de formas de vida cativas.

Pensar a partir de novos pressupostos teóricos também exige lançar mão de novas abordagens que respondam às necessidades dos indivíduos e coletivos. Desse modo, apresentamos a estratégia que nomeamos Atividades de Tradução Cultural, cujos princípios sustentaram intervenções pelas diferenças culturais em prol de novas formas de experimentação, conscientização, coletivização e incitamento às resistências. Esse processo foi igualmente significativo para nós, estudantes-estagiárias, no que toca à nossa formação crítica.

  • 1
    No governo do presidente Jair Bolsonaro, o programa de transferência de renda Bolsa Família foi substituído pelo Programa Auxílio Brasil (Brasil, 2021Brasil. (2021). Decreto n.º 10.852, de 8 de novembro de 2021. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1, p. 2.).
  • Como citar: Silva, R. S., Elesbão, K. F., Chagas, M. M., & Almeida, D. E. R. G. (2022). Feminismo decolonial e terapia ocupacional: relato de experiência de um estágio curricular no contexto da pandemia. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, e3278. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoRE250532781

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Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Adriana Miranda Pimentel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2022
  • Revisado
    04 Mar 2022
  • Aceito
    15 Jun 2022
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