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Adaptação transcultural e evidência de validade de conteúdo da versão brasileira da Nociception Coma Scale-revised

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

Em pacientes com desordens de consciência e distúrbios cognitivos há barreiras de comunicação para a avaliação da dor. O objetivo deste estudo foi realizar a adaptação transcultural da Nociception Coma Scale-revised (NCS-R) para a língua portuguesa e verificar as evidências de validade de conteúdo da versão brasileira da NCS-R em pacientes não comunicativos com desordens de consciência e distúrbios cognitivos.

MÉTODOS:

Estudo metodológico para adaptação transcultural da NCS-R dividido em duas etapas: adaptação transcultural e verificação da validade de conteúdo. A fase de adaptação transcultural incluiu a tradução inicial, síntese das traduções, retrotradução, comitê de especialista e debriefing cognitivo baseado em Beaton e Price. A versão traduzida e adaptada foi avaliada por um segundo comitê de especialistas para a avaliação do índice de validade de conteúdo.

RESULTADOS:

A NCS-R foi traduzida, adaptada do ponto de vista transcultural e apresentou boa evidência de validade de conteúdo com Índice de Validade de Conteúdo de 0,86.

CONCLUSÃO:

A NCS-R encontra-se traduzida e adaptada do ponto de vista transcultural, e possui boa evidência de validade de conteúdo.

Descritores:
Avaliação em enfermagem; Dor; Estudos de validação; Psicometria; Transtornos da consciência

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

There are communication barriers to assess pain in patients with consciousness and cognitive disorders. This study aimed to make the cross-cultural adaptation of the Nociception Coma Scale-Revised (NCS-R) to the Portuguese language and check the validation evidence of the content of the NCR-R Brazilian version in non-communicative patients with consciousness and cognitive disorders.

METHODS:

This is a methodological study to check the cross-cultural adaptation of the NCR-R, divided into two stages: cross-cultural adaptation and check of the content validity. The cross-cultural adaptation phase included an initial translation, synthesis of translations, back-translation, expert committee, and cognitive debriefing based on Beaton and Price. A second expert committee evaluated the translated and adapted version to check the content validity index

RESULTS:

The NCS-R scale was translated and cross-culturally adapted, presenting good evidence of content validity with a Content Validity Index of 0.86.

CONCLUSION:

The NCS-R is translated and transculturally adapted and has good evidence of content validity.

Keywords:
Consciousness disorders; Pain; Psychometrics; Nursing assessment; Validation studies

INTRODUÇÃO

A dor é definida como uma experiência sensorial e emocional aversiva, normalmente causada por uma lesão tecidual real ou potencial e cada indivíduo aprende a utilizar esse termo por meio de suas experiências anteriores. Além de gerar estresse físico e emocional significativo para os pacientes e seus cuidadores, a dor é razão de impacto negativo econômico e social11 Aydede M. Does the IASP definition of pain need updating? Pain Rep. 2019;4(5):e777..

Nesse sentido, o autorrelato é considerado o padrão-ouro para a realização da avaliação da dor. Porém, em pacientes não comunicativos como, por exemplo, pacientes sedados, pacientes sob ventilação mecânica, e com lesões neurológicas graves são necessários instrumentos observacionais para a identificação do sintoma22 Kawagoe CK, Matuoka JY, Salvetti MG. Instrumentos de avaliação da dor em pacientes críticos com dificuldade de comunicação verbal: revisão de escopo. Rev Dor. 2017;18(2):161-5..

Em pacientes portadores de lesões neurológicas graves, com desordens de consciência, o termo mais utilizado é avaliação da nocicepção, que é definida como processo neural de codificação e processamento do estímulo nocivo33 Schnakers C, Chatelle C, Vanhaudenhuyse A, Majerus S, Ledoux D, Boly M, et al. The Nociception Coma Scale: a new tool to assess nociception in disorders of consciousness. Pain. 2010;148(2):215-9.,44 Apkarian AV, Bushnell MC, Rolf-Detlef T, Jon-Kar Z. Human brain mechanisms of pain perception and regulation in health and disease. Eur J Pain. 2005;9(4):463-84., que é mediado por conexões laterais e mediais cerebrais com distinção entre as áreas envolvidas na percepção da dor versus o sofrimento relacionado à consciência da percepção da dor em questão55 IASP Taxonomy Working Group. Classification of chronic pain (Revised) [internet]. 2(nd) ed. Washington, DC: IASP Publications; 2011 [2018 mar 11]. Available from: https://s3.amazonaws.com/rdcms-iasp/files/production/public/Content/ContentFolders/Publications2/ClassificationofChronicPain/Part_III-PainTerms.pdf
https://s3.amazonaws.com/rdcms-iasp/file...
,66 Schnakers C, Zasler N. Assessment and management of pain in patients with disorders of consciousness. PM R. 2015;7(11 Suppl):S270-7.. Ela está relacionada à dimensão sensitiva-discriminativa de ativação do sistema lateral da dor, incluindo porções laterais do tálamo, córtex somatossensitivo primário (S1) e secundário (S2), opérculo parietal e ínsula77 Laureys S, Faymonville ME, Peigneux P, Damas P, Lambermont B, Del Fiore G, et al. Cortical processing of noxious somatosensory stimuli in the persistent vegetative state. Neuroimage. 2002;17(2):732-41.,88 Wade DT. How often is the diagnosis of the permanent vegetative state incorrect? A review of the evidence. Eur J Neurol. 2018;25(4):619-25..

Em relação ao sistema medial da dor, as conexões descendentes do córtex cingulado anterior, região medial do núcleo talâmico e substância cinzenta periaquedutal, atuam na modulação da resposta ao estímulo nocivo. O giro do cíngulo, amígdala, hipocampo, hipotálamo, locus coeruleus, córtex orbitofrontal, e córtex pré-frontal estão envolvidos no comportamento afetivo relacionados à dor77 Laureys S, Faymonville ME, Peigneux P, Damas P, Lambermont B, Del Fiore G, et al. Cortical processing of noxious somatosensory stimuli in the persistent vegetative state. Neuroimage. 2002;17(2):732-41.. A interconectividade entre a substância cinzenta periaquedutal e córtex orbitofrontal está associada às respostas cognitivas e emocionais na presença de dor77 Laureys S, Faymonville ME, Peigneux P, Damas P, Lambermont B, Del Fiore G, et al. Cortical processing of noxious somatosensory stimuli in the persistent vegetative state. Neuroimage. 2002;17(2):732-41..

Dessa forma, a integração de diversas áreas do cérebro, a partir de um estímulo nocivo, caracteriza a dor, segundo Melzack, como uma resposta cognitivo-avaliativa, afetivo-motivacional e sensitivo-discriminativa99 Schnakers C, Chatelle C, Majerus S, Gosseries O, De Val M, Laureys S. Assessment and detection of pain in noncommunicative severely brain-injured patients. Expert Rev Neurother. 2010;10(11):1725-31. E, apesar de até o presente momento, a maioria das evidências apontar o papel fundamental da interação tálamo-cortical que caracteriza a dor como uma experiência consciente, existem questionamentos em relação aos pacientes com desordens de consciência77 Laureys S, Faymonville ME, Peigneux P, Damas P, Lambermont B, Del Fiore G, et al. Cortical processing of noxious somatosensory stimuli in the persistent vegetative state. Neuroimage. 2002;17(2):732-41.,99 Schnakers C, Chatelle C, Majerus S, Gosseries O, De Val M, Laureys S. Assessment and detection of pain in noncommunicative severely brain-injured patients. Expert Rev Neurother. 2010;10(11):1725-31.

Em estudo com utilização de imagens de tomografia computadorizada por emissão de pósitrons (PETCT) investigaram-se respostas do processamento da dor em pacientes com Unresponsive Wakefulness Syndrome (UWS) e indivíduos saudáveis, demonstrando aumento no fluxo sanguíneo nas regiões de mesencéfalo, tálamo contralateral e que pacientes em estado vegetativo, provavelmente, não sentem o estímulo doloroso de maneira integrada e consciente77 Laureys S, Faymonville ME, Peigneux P, Damas P, Lambermont B, Del Fiore G, et al. Cortical processing of noxious somatosensory stimuli in the persistent vegetative state. Neuroimage. 2002;17(2):732-41.,88 Wade DT. How often is the diagnosis of the permanent vegetative state incorrect? A review of the evidence. Eur J Neurol. 2018;25(4):619-25..

Em contrapartida, estudos menores e mais recentes demonstraram resultados diferentes com a ativação de S1, S2, córtex cingulado anterior e insula, áreas relacionadas às características da dimensão afetiva da dor, denotando que, apesar de alterada, pode haver presença de percepção da dor em alguns pacientes em estado vegetativo, mesmo quando comparados a pacientes em estado mínimo de consciência77 Laureys S, Faymonville ME, Peigneux P, Damas P, Lambermont B, Del Fiore G, et al. Cortical processing of noxious somatosensory stimuli in the persistent vegetative state. Neuroimage. 2002;17(2):732-41..

Outro ponto de discussão importante é que, pela complexidade e flutuações clínicas, um número considerável de pacientes diagnosticados como estado vegetativo, na realidade se encontravam em estado mínimo de consciência, enfatizando a importância de utilização de instrumentos apropriados para a avaliação e tratamento adequado da dor em pacientes com desordens de consciência99 Schnakers C, Chatelle C, Majerus S, Gosseries O, De Val M, Laureys S. Assessment and detection of pain in noncommunicative severely brain-injured patients. Expert Rev Neurother. 2010;10(11):1725-31.

O primeiro instrumento para a avaliação da nocicepção em pacientes com desordens de consciência foi desenvolvido e denominado Nociception Coma Scale (NCS)33 Schnakers C, Chatelle C, Vanhaudenhuyse A, Majerus S, Ledoux D, Boly M, et al. The Nociception Coma Scale: a new tool to assess nociception in disorders of consciousness. Pain. 2010;148(2):215-9.. A NCS foi desenvolvida a partir de observações que sugerem comportamentos dolorosos com quatro itens: resposta motora, verbal, visual e expressão facial, e com pontuação em que zero significa ausência de resposta frente ao estímulo nociceptivo e 12 pontos, máxima resposta frente ao estímulo nociceptivo33 Schnakers C, Chatelle C, Vanhaudenhuyse A, Majerus S, Ledoux D, Boly M, et al. The Nociception Coma Scale: a new tool to assess nociception in disorders of consciousness. Pain. 2010;148(2):215-9..

Em estudo posterior, utilizando a NCS em 64 pacientes, demonstraram-se escores mais elevados frente a estímulos nociceptivos nos itens resposta verbal, resposta motora e expressão facial, sugerindo bons resultados em termos de sensibilidade. Contudo, o item resposta visual não apresentou diferença. Frente a esses resultados, os autores propuseram a Nociception Coma Scale Revised (NCS-R) com pontuação de zero a 9, contudo ainda não existe consenso sobre o ponto de corte1010 Chatelle C, Majerus S, Whyte J, Laureys S, Schnakers C. A sensitive scale to assess nociceptive pain in patients with disorders of consciousness. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2012; 83(12):1233-7..

Pela relevância para a pesquisa e prática clínica, são necessários estudos sobre a utilização da NCS-R. Nesse sentido, acredita-se que a tradução, adaptação transcultural e a verificação das evidências de validade de conteúdo da NCS-R para o contexto nacional possam trazer subsídios para a tomada de decisão clínica na população em questão.

O objetivo deste estudo foi realizar a adaptação transcultural e verificar as evidências da validade de conteúdo da versão brasileira da NCS-R.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo metodológico para a adaptação da NCS-R. A autorização para a realização do processo de adaptação transcultural foi concedida pela autora Caroline Schnakers, via correio eletrônico. O estudo ocorreu entre fevereiro e agosto de 2019.

A adaptação transcultural foi baseada nos estudos1111 Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine. 2000;25(24):3186-91.,1212 Price VE, Klaassen RJ, Bolton-Maggs PH, Grainger JD, Curtis C, Wakefield C, et al. Measuring disease-specific quality of life in rare populations: a practical approach to cross-cultural translation. Health Qual Life Outcomes. 2009;7:92., e sua realização consistiu nas fases: tradução, síntese das traduções, retrotradução, comitê de especialistas e envio da versão adaptada à autora da escala e debriefing cognitivo.

Assim como em estudos anteriores para a adaptação transcultural da NCS-R, optou-se pela não realização do pré-teste, mas pelo debriefing cognitivo1111 Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine. 2000;25(24):3186-91.

12 Price VE, Klaassen RJ, Bolton-Maggs PH, Grainger JD, Curtis C, Wakefield C, et al. Measuring disease-specific quality of life in rare populations: a practical approach to cross-cultural translation. Health Qual Life Outcomes. 2009;7:92.
-1313 Epstein J, Santo RM, Guillemin F. A review of guidelines for cross-cultural adaptation of questionnaires could not bring out a consensus. J Clin Epidemiol. 2015;68(4):435-41..

A fase da tradução foi realizada por duas tradutoras convidadas para participar por meio de correio eletrônico, e, uma vez aceito o convite, o instrumento foi enviado por e-mail.

A tradutora (T1) é brasileira, profissional de saúde com proficiência na língua inglesa, com experiência na temática do estudo, o que permitiu uma versão tradução T1 com maior semelhança científica a do instrumento. A tradutora (T2) é professora de inglês, sem formação na área de saúde e produziu a versão tradução T2.

A síntese das traduções foi realizada por um tradutor brasileiro, professor de inglês sem formação na área de saúde, e posteriormente enviada às tradutoras T1 e T2. Ao final dessa etapa, obteve-se a versão síntese T1-T2.

A retrotradução foi realizada por dois tradutores americanos, professores de inglês e proficientes na língua portuguesa do Brasil e que produziram as versões BT1 e BT2.

Para a avaliação das equivalências semântica, idiomática, conceitual e experimental foi criado um comitê de especialistas, seguindo os critérios de conhecimento do processo de adaptação transcultural, domínio dos idiomas inglês e português e conhecimentos relacionados ao tema em questão1111 Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine. 2000;25(24):3186-91..

Foram enviadas 15 cartas-convite para a participação no comitê, via correio eletrônico, sendo que o aceite foi formalizado por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por cinco participantes.

O comitê de especialistas foi constituído por um psicometrista, um neurologista, uma das tradutoras (T1), um anestesiologista especialista em dor e uma enfermeira especialista em terapia intensiva1111 Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine. 2000;25(24):3186-91.. A partir do aceite, foram enviados um formulário de instruções para a avaliação do instrumento e uma planilha com a versão original, versões traduzidas (T1e T2), a síntese (T12) e as duas retrotraduções (BT1 e BT2).

A versão produzida nessa fase foi analisada pelas pesquisadoras de acordo com os critérios de concordância entre os especialistas, e suas sugestões fornecidas para os itens julgados como questionáveis ou inadequados. A versão resultante do comitê de especialistas foi submetida à avaliação da autora da escala, via correio eletrônico.

Após o envio, um segundo comitê de especialistas foi criado para a avaliação da validade de conteúdo. Foram enviadas 25 cartas-convite via correio eletrônico, destinadas a profissionais, seguindo os critérios de conhecimentos sobre o tema em questão e conhecimentos sobre os processos de adaptação transcultural e avaliação de evidências de validade de conteúdo.

O aceite para a participação no comitê também foi formalizado por meio da assinatura do TCLE. O comitê foi composto por três doutores, um médico e dois enfermeiros, dois mestres enfermeiros e dois especialistas enfermeiros. Após o aceite, a pesquisadora enviou, via correio eletrônico, um formulário com as instruções para preenchimento das avaliações e uma planilha contendo a versão original e a versão pré-final da NCS-R para a língua portuguesa do Brasil.

Para o debriefing cognitivo, foram convidados quatro profissionais de saúde, sendo três enfermeiros e uma técnica de enfermagem, que receberam treinamento com duração de 1h para a aplicação da versão pré-final em 24 pacientes com desordens de consciência1212 Price VE, Klaassen RJ, Bolton-Maggs PH, Grainger JD, Curtis C, Wakefield C, et al. Measuring disease-specific quality of life in rare populations: a practical approach to cross-cultural translation. Health Qual Life Outcomes. 2009;7:92.,1414 Costello AB, Osborne JW. Best practices in exploratory factor analysis: Four recommendations for getting the most from your analysis. Pract Assess Res Eval. 2005;10(7):1-9.,1515 Vink P, Lucas C, Maaskant JM, van Erp WS, Lindeboom R, Vermeulen H. Clinimetric properties of the Nociception Coma Scale (-Revised): A systematic review. Eur J Pain. 2017;21(9):1463-74..

Foi utilizada estatística descritiva para análise dos dados para a caracterização dos sujeitos. Valores superiores a 0,78 do Índice de Validade de Conteúdo (IVC) foram considerados aceitáveis para a concordância nos itens clareza, pertinência e relevância entre os especialistas, sendo opções de resposta: não claro, pouco claro, claro e muito claro1616 Alexandre NMC, Coluci MZO. Validade de conteúdo nos processos de construção e adaptação de instrumentos de medidas. Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(7):3061-8..

Foi solicitada a autorização ao Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês para a realização do estudo e, em seguida, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa da referida instituição. A coleta dos dados foi iniciada após a aprovação deste projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 05557018.9.0000.5461).

RESULTADOS

A escala apresenta somente três itens, que são similares às questões comportamentais descritas em outros parâmetros da avaliação neurológica.

As versões das três primeiras etapas do processo de adaptação da NCS-R: versão Br estão dispostas na tabela 1.

Tabela 1
Descrição das versões produzidas na tradução, síntese e retrotradução da NCS-R. São Paulo, 2019

A análise das duas traduções foi feita por um terceiro tradutor, e observou-se que a versão da tradutora T1, de maneira geral, foi a mais adequada. Entre os ajustes realizados foi sugerido no item “Resposta motora” subitem Retirada em flexão; no item “Resposta verbal” subitem Reflexo oral/resposta de susto, sendo esses itens pontuados como questionáveis também pelo comitê de especialistas.

As traduções foram submetidas à análise pela autora da escala, Dra. Schnakers, que discordou da retrotradução do subitem “Reflexo oral/resposta de susto” e concedeu o Manual de Aplicação da NCS-R sugerindo a consulta para adequação do termo. A partir dessa sugestão, foi revista, pela pesquisadora e pela orientadora, a síntese da tradução e das retrotraduções, e o subitem foi alterado para “Reflexo oral/movimentos orais involuntários”, sendo novamente submetida à autora e aprovada e, posteriormente, avaliada por um novo comitê de especialistas. Os resultados apresentados a seguir estão relacionados à avaliação de equivalência e validade de conteúdo (Tabelas 2 e 3).

Tabela 2
Resultado da avaliação de equivalências pelo comitê de especialistas. São Paulo, 2019
Tabela 3
Resultados do índice de validade de conteúdo pelo comitê de especialistas. São Paulo, 2019

Ao ser verificado o índice de concordância pelos especialistas, em relação às equivalências, percebeu-se que o instrumento possuía valores de IVC próximos a 1, isto é, apresentou resultados satisfatórios de acordo com os critérios e valores aceitáveis como referência. O debriefing cognitivo foi realizado por três enfermeiros e uma técnica de enfermagem que receberam treinamento com duração de 1h para a aplicação da versão pré-final em 24 pacientes. Não foi identificada nenhuma necessidade de ajuste da versão produzida (Tabela 4).

Tabela 4
Versão pré-final da Nociception Coma Scale-Revised (Br), São Paulo, 2019.

DISCUSSÃO

A dor é uma experiência subjetiva e o autorrelato do paciente é considerado padrão-ouro para a avaliação da dor. Contudo, em ambiente de cuidados de pacientes críticos, a avaliação da dor é um desafio, pois muitas vezes eles estão impossibilitados de se comunicar33 Schnakers C, Chatelle C, Vanhaudenhuyse A, Majerus S, Ledoux D, Boly M, et al. The Nociception Coma Scale: a new tool to assess nociception in disorders of consciousness. Pain. 2010;148(2):215-9.,1515 Vink P, Lucas C, Maaskant JM, van Erp WS, Lindeboom R, Vermeulen H. Clinimetric properties of the Nociception Coma Scale (-Revised): A systematic review. Eur J Pain. 2017;21(9):1463-74..

Ao longo das últimas décadas, muitos esforços foram feitos para o desenvolvimento de instrumentos específicos e sensíveis que facilitassem a identificação da dor em pacientes não comunicativos, visto que o manejo da dor pode melhorar os desfechos desses pacientes33 Schnakers C, Chatelle C, Vanhaudenhuyse A, Majerus S, Ledoux D, Boly M, et al. The Nociception Coma Scale: a new tool to assess nociception in disorders of consciousness. Pain. 2010;148(2):215-9.. Em estágios agudos ou crônicos de pacientes com lesões cerebrais graves há situações que podem induzir a dor, principalmente durante a realização do cuidado e mobilização66 Schnakers C, Zasler N. Assessment and management of pain in patients with disorders of consciousness. PM R. 2015;7(11 Suppl):S270-7.,77 Laureys S, Faymonville ME, Peigneux P, Damas P, Lambermont B, Del Fiore G, et al. Cortical processing of noxious somatosensory stimuli in the persistent vegetative state. Neuroimage. 2002;17(2):732-41..

Estudo que utilizou neuroimagem, os autores sugeriram que há preservação da capacidade de percepção da dor em pacientes em estados de consciência mínima, e em alguns pacientes em estado vegetativo, reforçando a necessidade da avaliação e manejo da dor55 IASP Taxonomy Working Group. Classification of chronic pain (Revised) [internet]. 2(nd) ed. Washington, DC: IASP Publications; 2011 [2018 mar 11]. Available from: https://s3.amazonaws.com/rdcms-iasp/files/production/public/Content/ContentFolders/Publications2/ClassificationofChronicPain/Part_III-PainTerms.pdf
https://s3.amazonaws.com/rdcms-iasp/file...
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Na presente pesquisa, o processo de adaptação transcultural da NCS-R seguiu todas as etapas recomendadas por Beaton1111 Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine. 2000;25(24):3186-91., exceto o pré-teste, contudo utilizou-se o debriefing cognitivo, segundo Price1212 Price VE, Klaassen RJ, Bolton-Maggs PH, Grainger JD, Curtis C, Wakefield C, et al. Measuring disease-specific quality of life in rare populations: a practical approach to cross-cultural translation. Health Qual Life Outcomes. 2009;7:92.. Em outro estudo de adaptação transcultural da NCS-R, o pré-teste não foi realizado por considerar que os termos utilizados nos itens eram bem difundidos na prática clínica junto a essa população1717 Chatelle C, Laureys S, Demertzi A. Pain and nociception in disorders of consciousness. In: Garcia-Larrea L, Jackson PL, editors. Pain and the conscious brain. Philadelphia: Wolters Kluwer Health; 2016. 139-54p.. A avaliação da validade de conteúdo da NCS-R indicou valores satisfatórios para todos os itens e opções de resposta1616 Alexandre NMC, Coluci MZO. Validade de conteúdo nos processos de construção e adaptação de instrumentos de medidas. Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(7):3061-8..

Vale ressaltar que a opção de resposta reflexo oral/movimentos involuntários apresentou escore acima do desejável, mas foi o menor índice de concordância, indicando alguma fragilidade nesta opção de resposta.

Este resultado pode ser explicado pela correspondência mais direta entre o item expressão facial e a opção de resposta careta, em comparação com o reflexo oral/movimentos involuntários, que pode ser considerada uma descrição inespecífica1717 Chatelle C, Laureys S, Demertzi A. Pain and nociception in disorders of consciousness. In: Garcia-Larrea L, Jackson PL, editors. Pain and the conscious brain. Philadelphia: Wolters Kluwer Health; 2016. 139-54p.. Outros autores desenvolveram estudos em pacientes com desordens de consciência e descreveram a careta como o aspecto mais característico da expressão facial de dor1515 Vink P, Lucas C, Maaskant JM, van Erp WS, Lindeboom R, Vermeulen H. Clinimetric properties of the Nociception Coma Scale (-Revised): A systematic review. Eur J Pain. 2017;21(9):1463-74.,1717 Chatelle C, Laureys S, Demertzi A. Pain and nociception in disorders of consciousness. In: Garcia-Larrea L, Jackson PL, editors. Pain and the conscious brain. Philadelphia: Wolters Kluwer Health; 2016. 139-54p.,1818 Bernard C, Delmas V, Duflos C, Molinari N, Garnier O, Chalard K, et al. Assessing pain in critically ill brain-injured patients: a psychometric comparison of 3 pain scales and videopupillometry. Pain. 2019;160(11):2535-43..

A compreensão da essência do construto e da finalidade de um instrumento observacional de dor são necessárias, uma vez que o escore indica a presença ou ausência de um comportamento doloroso, sugerindo que esse instrumento deverá ser avaliado do ponto de vista clinimétrico1515 Vink P, Lucas C, Maaskant JM, van Erp WS, Lindeboom R, Vermeulen H. Clinimetric properties of the Nociception Coma Scale (-Revised): A systematic review. Eur J Pain. 2017;21(9):1463-74.,1919 Fava GA, Tomba E, Sonino N. Clinimetrics: the science of clinical measurements. Int J Clin Pract. 2012;66(1):11-5..

Como ponto forte deste estudo destaca-se a disponibilização de um instrumento que reúne evidências de validade de conteúdo para avaliar a dor em uma população na qual a dor é sub-identificada e, logo, não manuseada.

Compreende-se como limitação do estudo a ausência da realização do pré-teste.

CONCLUSÃO

Foi possível adaptar a NCS-R para a língua portuguesa do Brasil. Os testes realizados indicaram que a NCS-R apresentou evidências de validade de conteúdo adequadas. Novos estudos devem ser realizados para confirmar estes achados e ampliar a avaliação das evidências de validade desta versão da escala.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2020
  • Aceito
    29 Maio 2020
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