Acessibilidade / Reportar erro

Impacto da pandemia da COVID-19 na percepção do tratamento e da dor musculoesquelética crônica em usuários de uma unidade de saúde da família: estudo qualitativo

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A dor crônica apresenta alta demanda de assistência à saúde, devido a sua causa multifatorial. A pandemia da COVID-19 representou um cenário de estresse social, em que houve redução de atendimentos às doenças crônicas não transmissíveis, incluindo os casos de dores crônicas. O objetivo deste estudo foi compreender os impactos da pandemia para este público, considerando a percepção da dor, experiência com assistência e saúde mental.

MÉTODOS:

Trata-se de um estudo de caso exploratório de metodologia qualitativa. Foi utilizada uma amostra intencional de seis pacientes com diagnóstico de dor musculoesquelética crônica, de ambos os sexos e com idade entre 30 e 70 anos. Os indivíduos passaram por uma entrevista semiestruturada, na qual os dados foram analisados por análise temática e codificação.

RESULTADOS:

Após a análise, emergiram três temas: 1) Impacto multidimensional da dor e estratégias de enfrentamento; 2) Características do serviço de saúde e atenção centrada no indivíduo; 3) Influência da dor na qualidade de vida e na perspectiva de vida futura. O impacto na assistência à saúde foi um fator de ansiedade e incertezas sobre a dor. Isso repercutiu em novas estratégias de enfrentamento, como os teleatendimentos. Nesse contexto, a Atenção Primária à Saúde foi o cenário capaz de gerenciar a qualidade de vida a curto e a longo prazo dos indivíduos com dor crônica.

CONCLUSÃO:

Este estudo contribuiu para a compreensão do impacto da pandemia da COVID-19 em indivíduos com dor crônica, o qual representa desafios à assistência atual.

Descritores:
Atenção primária à saúde; COVID-19; Dor crônica; Dor musculoesquelética

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Chronic pain has a high demand for health care due to its multifactorial cause. The COVID-19 pandemic represented a scenario of social stress, in which there was a reduction in care for chronic non-communicable diseases, including cases of chronic pain. The aim of this study was to understand the impacts of the pandemic on this population, considering the perception of pain, experience with care and mental health.

METHODS:

This is an exploratory case study using a qualitative methodology. An intentional sample of six patients diagnosed with chronic musculoskeletal pain, of both genders and aged between 30 and 70 was used. The individuals underwent a semi-structured interview, in which the data was analyzed by thematic analysis and coding.

RESULTS:

After the analysis, three themes emerged: 1) Multidimensional impact of pain and coping strategies; 2) Characteristics of the health service and individual-centered care; 3) Influence of pain on quality of life and perspective of future life. The impact of health care was a factor of anxiety and uncertainty about pain. It had repercussions on new coping strategies, such as telehealth. In this context, Primary Health Care was a scenario capable of managing the short- and long-term quality of life of individuals with chronic pain.

CONCLUSION:

This study contributed to understanding the impact of the COVID-19 pandemic on individuals with chronic pain, which represents a challenge to current care.

Keywords:
Chronic pain; COVID-19; Musculoskeletal pain; Primary health care

DESTAQUES

O cenário da pandemia da COVID-19 para indivíduos com dor crônica.

Atenção primária e equipe multiprofissional no tratamento da dor crônica

Estratégias de enfrentamento da dor musculoesquelética crônica.

INTRODUÇÃO

A dor musculoesquelética crônica (DMC) acomete 45,59% da população adulta no Brasil, com maior prevalência em indivíduos do sexo feminino11 Leadley RM, Armstrong N, Lee YC, Allen A, Kleijnen J. Chronic diseases in the European Union: the prevalence and health cost implications of chronic pain. J Pain Palliat Care Pharmacother. 2012;26(4):310-25.. Segundo a Associação Internacional para Estudos da Dor (IASP) 2020, a dor é “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão tecidual real ou potencial”22 Raja SN, Carr DB, Cohen M, Finnerup NB, Flor H, Gibson S, Keefe FJ, Mogil JS, Ringkamp M, Sluka KA, Song XJ, Stevens B, Sullivan MD, Tutelman PR, Ushida T, Vader K. The revised International Association for the Study of Pain definition of pain: concepts, challenges, and compromises. Pain. 2020;161(9):1976-82.. A DMC resulta do acometimento patológico de músculos, ossos, articulações e tecidos adjacentes e possui causas multifatoriais33 Perrot S, Cohen M, Barke A, Korwisi B, Rief W, Treede RD; IASP Taskforce for the Classification of Chronic Pain. The IASP classification of chronic pain for ICD-11: chronic secondary musculoskeletal pain. Pain. 2019;160(1):77-82.. O diagnóstico de cronicidade é obtido quando o sintoma se estende por um período maior que três meses44 Treede RD, Rief W, Barke A, Aziz Q, Bennett MI, Benoliel R, Cohen M, Evers S, Finnerup NB, First MB, Giamberardino MA, Kaasa S, Kosek E, Lavand’homme P, Nicholas M, Perrot S, Scholz J, Schug S, Smith BH, Svensson P, Vlaeyen JWS, Wang SJ. A classification of chronic pain for ICD-11. Pain. 2015;156(6):1003-7.. Ta l condição pode proporcionar incapacidade funcional, tanto física, quanto emocional aos indivíduos55 Vargas C, Bilbeny N, Balmaceda C, Rodríguez M F, Zitko P, Rojas R, Eberhard ME, Ahumada M, Espinoza MA. Costs and consequences of chronic pain due to musculoskeletal disorders from a health system perspective in Chile. Pain Rep. 2018;3(5):e656., o que pode acarretar afastamentos no trabalho e predispor os pacientes a quadros de depressão e de ansiedade33 Perrot S, Cohen M, Barke A, Korwisi B, Rief W, Treede RD; IASP Taskforce for the Classification of Chronic Pain. The IASP classification of chronic pain for ICD-11: chronic secondary musculoskeletal pain. Pain. 2019;160(1):77-82.,66 Clauw DJ, Häuser W, Cohen S P, Fitzcharles MA. Considering the potential for an increase in chronic pain after the COVID-19 pandemic. Pain. 2020;161(8):1694-7.. Devido à sua complexidade, por acometer além dos aspectos físicos, os aspectos psíquicos, emocionais e sociais, essa condição proporciona altos índices de procura por assistência à saúde e, consequentemente, um alto custo financeiro para o setor público de saúde brasileiro44 Treede RD, Rief W, Barke A, Aziz Q, Bennett MI, Benoliel R, Cohen M, Evers S, Finnerup NB, First MB, Giamberardino MA, Kaasa S, Kosek E, Lavand’homme P, Nicholas M, Perrot S, Scholz J, Schug S, Smith BH, Svensson P, Vlaeyen JWS, Wang SJ. A classification of chronic pain for ICD-11. Pain. 2015;156(6):1003-7.,77 Aguiar D P, Souza C P, Barbosa WJ, Santos-Júnior F F, Oliveira AS. Prevalence of chronic pain in Brazil: systematic review. BrJP. 2021;4(3):257-67..

A recomendação para o tratamento da dor crônica (DC) envolve a atuação de uma equipe multiprofissional de saúde que seja capaz de assistir o indivíduo e dar suporte para minimizar os impactos que a dor representa em diversas áreas, influenciando diretamente na qualidade de vida88 Carter JJ, Watson AC, Sminkey PV. Pain management: screening and assessment of pain as part of a comprehensive case management process. Prof Case Manag. 2014;19(3):126-34; quiz 135-6.,99 Tseli E, LoMartire R, Vixner L, Grooten WJA, Gerdle B, Äng BO. What is the effectiveness of different duration interdisciplinary treatment programs in patients with chronic pain? A large-scale longitudinal register study. J Clin Med. 2020;9(9):2788.. O modelo de atuação recomendado constitui-se de forma interdisciplinar através da troca de saberes entre profissionais e suas áreas de atuação para que possam ser levantadas estratégias de enfrentamento de acordo com as individualidades e discrepâncias da população1010 Kamper SJ, Apeldoorn AT, Chiarotto A, Smeets RJ, Ostelo RW, Guzman J, van Tulder MW. Multidisciplinary biopsychosocial rehabilitation for chronic low back pain: Cochrane systematic review and meta-analysis. BMJ. 2015;18;350:h444.,1111 Guimarães BEB, Branco ABAC. Trabalho em equipe na atenção básica à saúde: pesquisa bibliográfica. Rev Psicol Saúde. 2020;12(1):143-55.,1212 Brasil. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas: Dor Crônica. Portaria SAS/MS nº 1.083, de 02 de outubro de 2012. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2012/prt1083_02_10_2012.html.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
. Nesse âmbito, a Atenção Primária à Saúde (APS) representa um importante ponto de assistência para as condições de doenças crônicas não transmissíveis, sendo responsável pelo contato inicial com o paciente e sua queixa, como nos casos de dores crônicas1313 Nicholas M, Vlaeyen JWS, Rief W, Barke A, Aziz Q, Benoliel R, Cohen M, Evers S, Giamberardino MA, Goebel A, Korwisi B, Perrot S, Svensson P, Wang SJ, Treede RD; IASP Taskforce for the Classification of Chronic Pain. The IASP classification of chronic pain for ICD-11: chronic primary pain. Pain. 2019;160(1):28-37.,1414 Facchini LA, Tomasi E, Dilélio AS. Qualidade da Atenção Primária à Saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. Saúde Debate. 2018;42(spe1):208-23.. O cenário da APS constitui-se por meio de equipes de profissionais de saúde, que visam potencializar a assistência mediante a coordenação do cuidado1515 Alves MLF, Guedes HM, Martins JCA, Chianca TCM. Reference and counter reference network for emergency care assistance in a municipality in the countryside of Minas Gerais, Brazil. Rev Médica Minas Gerais. 2015;25(4):469-75.. Além disso, garante suporte para o indivíduo que apresenta múltiplos diagnósticos e quando há clínicas insuficientes1212 Brasil. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas: Dor Crônica. Portaria SAS/MS nº 1.083, de 02 de outubro de 2012. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2012/prt1083_02_10_2012.html.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
,1616 Fortes S. Queixas somáticas sem explicação médica. In: DUNCAN BB . Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4ª. Porto Alegre, Artmed, 2022..

A pandemia da COVID-19 repercutiu mundialmente na assistência à saúde. Durante o período, principalmente nos anos de 2020 e 2021, os serviços públicos de saúde redirecionaram-se para conter os avanços da contaminação e prestar atendimento aos indivíduos contaminados1717 Karos K, McParland JL, Bunzli S, Devan H, Hirsh A, Kapos F P, Keogh E, Moore D, Tracy LM, Ashton-James CE. The social threats of COVID-19 for people with chronic pain. Pain. 2020;161(10):2229-35.,1818 Shanthanna H, Strand NH, Provenzano DA, Lobo CA, Eldabe S, Bhatia A, Wegener J, Curtis K, Cohen S P, Narouze S. Caring for patients with pain during the COVID-19 pandemic: consensus recommendations from an international expert panel. Anaesthesia. 2020;75(7):935-44.. Diante disso, foi necessária uma redução de atendimento aos casos crônicos e não emergenciais o que incluiu a assistência para o indivíduo com DMC1717 Karos K, McParland JL, Bunzli S, Devan H, Hirsh A, Kapos F P, Keogh E, Moore D, Tracy LM, Ashton-James CE. The social threats of COVID-19 for people with chronic pain. Pain. 2020;161(10):2229-35.,1818 Shanthanna H, Strand NH, Provenzano DA, Lobo CA, Eldabe S, Bhatia A, Wegener J, Curtis K, Cohen S P, Narouze S. Caring for patients with pain during the COVID-19 pandemic: consensus recommendations from an international expert panel. Anaesthesia. 2020;75(7):935-44.. Além disso, durante o período pandêmico, foi possível observar em estudo internacional que explorou 22.330 adultos da população geral em 13 países e quatro continentes, maior prevalência de ansiedade e depressão durante a primeira onda da pandemia da COVID-191919 Morin CM, Bjorvatn B, Chung F, Holzinger B, Partinen M, Penzel T, Ivers H, Wing YK, Chan NY, Merikanto I, Mota-Rolim S, Macêdo T, De Gennaro L, Léger D, Dauvilliers Y, Plazzi G, Nadorff MR, Bolstad CJ, Sieminski M, Benedict C, Cedernaes J, Inoue Y, Han F, Espie CA. Insomnia, anxiety, and depression during the COVID-19 pandemic: an international collaborative study. Sleep Med. 2021;87(1):38-45.. Tal fato pode ter afetado de forma direta pacientes com DMC, uma vez que altos níveis de ansiedade e depressão impactam diretamente a qualidade de vida de pacientes com DC2020 Turk DC, Fillingim RB, Ohrbach R, Patel KV. Assessment of psychosocial and functional impact of chronic pain. J Pain. 2016;17(9 Suppl):T21-49..

Dessa forma, os indivíduos com DMC já vivenciam redução na qualidade de vida devido aos fatores psíquicos, como ansiedade e depressão, estarem relacionados a essa condição. Durante o período pandêmico, essas experiências negativas podem ter sido intensificadas, uma vez que a pandemia da COVID-19 proporcionou sintomas de ansiedade e depressão na população geral mundial. Nesse contexto, devido à diminuição de assistência para condições dolorosas crônicas em consequência da necessidade de priorizar o tratamento da contaminação da COVID-19, o objetivo do presente estudo foi compreender a percepção do tratamento e da DMC em usuários de uma unidade de saúde da família durante a pandemia da COVID-19. A pergunta central do estudo foi “Como você tem percebido a sua dor durante a pandemia”?

MÉTODOS

Trata-se de um estudo de caso exploratório, método que tem permitido compreender um tema recém-explorado de forma detalhada e profunda2121 Hammock AC, Majumdar Das S, Mathew A, Johnson S. An exploratory qualitative study of undergraduate men’s perspectives on sexual violence bystander education. J Am Coll Health. 2022;70(4):1223-30.,2222 Knox M. Design-related impacts on end-of-life experience: a brief report of findings from an exploratory qualitative study. Am J Hosp Palliat Care. 2023;40(7):753-60.,2323 Trenholm-Jensen EA, Burns L, Trenholm JE, Hand CJ. Beyond tingles: An exploratory qualitative study of the Autonomous Sensory Meridian Response (ASMR). PLoS One. 2022;17(12):e0277962.. Além disso, a metodologia qualitativa tem como enfoque o significado de comportamento do indivíduo e sua percepção em relação ao tema proposto, tendo como objetivo compreender os aspectos de um fenômeno por meio indutivo2424 Christine C, Suto M. Qualitative research for occupational and physical therapists: a practical guide. Blackwell Publishing; 2008.,2525 Klem NR, Shields N, Smith A, Bunzli S. Demystifying qualitative research for musculoskeletal practitioners Part 3: phenomeno-what? understanding what the qualitative researchers have done. J Orthop Sports Phys Ther. 2022;52(1):3-7.,2626 Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1994;(4)207..

O estudo seguiu as recomendações internacionais do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ), e do Standards for Reporting Qualitative Research (SRQR) (http://www.equator-network.org/)2727 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care. 2007;19(6):349-57.,2828 O’Brien BC, Harris IB, Beckman TJ, Reed DA, Cook DA. Standards for reporting qualitative research: a synthesis of recommendations. Acad Med. 2014;89(9):1245-51..

Local e amostra da pesquisa

Foi utilizada uma amostra intencional voluntária de seis indivíduos com diagnóstico de DMC pertencentes a uma unidade de saúde da família da cidade de Ribeirão Preto-SP.

Foram incluídos indivíduos de ambos os sexos com idade entre 30 e 70 anos e que apresentassem diagnóstico de DMC em qualquer parte do corpo antes do período pandêmico (março de 2020). O processo de seleção também contou com os seguintes critérios de inclusão: cadastro e vínculo com o serviço de saúde antes da pandemia; histórico de indicação para o acompanhamento fisioterapêutico na APS durante a pandemia da COVID-19 (março de 2020 a dezembro de 2021, como consultas, teleatendimentos, visitas e orientações domiciliares); seguimento ativo, ou seja, participante de atendimentos e consultas de rotina na unidade no ano de 2022; e por fim, capacidade de compreensão e autocuidado.

Os critérios de exclusão foram indivíduos que receberam o diagnóstico de DMC após março de 2020; indivíduos que estavam em reabilitação fisioterapêutica semanalmente; indivíduos com acuidades visuais e auditivas gravemente diminuídas e absolutamente incapacitantes durante o momento da entrevista.

Ao final, 10 indivíduos foram convidados para participar do estudo. Dentre esses, quatro indivíduos não puderam participar: duas pessoas do sexo feminino, sendo uma por incompatibilidade devido ao horário de trabalho e a outra por razões familiares; e dois indivíduos do sexo masculino, sendo um por motivos de incompatibilidade devido ao horário de trabalho e outro por não demonstrar interesse pela pesquisa.

Procedimentos

Os indivíduos foram selecionados a partir das reuniões de discussão de casos da unidade quando era apresentado algum paciente com DMC pelos profissionais de saúde da equipe. A análise se deu a partir de uma lista física de pacientes que haviam realizado seguimento prévio com a equipe de profissionais da fisioterapia na APS. Após a seleção, os indivíduos eram convidados para participar do estudo, por contato presencial no serviço de saúde ou por contato via telefone.

A aplicação dos critérios de inclusão era realizada pela autora MPF, que atuava como fisioterapeuta residente multiprofissional na unidade. A profissional também realizou o contato inicial com os indivíduos convidados para a pesquisa, apresentando os objetivos e relevância do estudo.

Os participantes receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) do estudo, sendo assinado em duas vias, uma permanecendo com o(a) voluntário(a) e a outra com a pesquisadora responsável. Após, foi coletado um questionário sociodemográfico para caracterização da amostra e, na sequência, realizada uma entrevista semiestruturada que foi gravada em áudio. Ao término, foi realizado um diário de campo, com propósito de coletar os aspectos durante a entrevista e particularidades de cada entrevistado, como forma de aperfeiçoamento e estudo dos casos2929 Cássia R De Oliveira M De. (Entre) Linhas De Uma Pesquisa: o Diário de Campo como dispositivo de (in) formação na/da abordagem (Auto) biográfica. Rev Bras Educ Jovens e Adultos. 2014;2(4):69-87. https://www.revistas.uneb.br/index.php/educajovenseadultos/article/view/1059.
https://www.revistas.uneb.br/index.php/e...
. Posteriormente, a gravação era enviada para o respectivo voluntário, para acrescentar ou retirar informações que julgasse necessárias.

A entrevista semiestruturada foi realizada com horário agendado na unidade de saúde ou no domicílio do paciente, sendo direcionada pela pesquisadora MPF, de forma presencial e individual. Cinco entrevistas foram realizadas em domicílio e uma na unidade de saúde, em uma sala reservada.

Entrevista semiestruturada

O modelo de uma entrevista semiestruturada investiga a experiência do indivíduo para reconhecer fatores que podem ser modificados dentro do contexto de cuidado em saúde3030 Korstjens I, Moser A. Series: Practical guidance to qualitative research. Part 2: context, research questions and designs. Eur J Gen Pract. 2017;23(1):274-9.. Ao direcionar a entrevista, os autores delimitam a quantidade de informações, podendo alcançar com melhor êxito os objetivos traçados inicialmente2626 Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1994;(4)207..

A entrevista elaborada neste estudo foi composta por perguntas abertas, possibilitando aos indivíduos respostas livres e sem interferências. A pergunta disparadora da entrevista foi: “Como você tem percebido sua dor durante a pandemia”? Foram abordadas três categorias principais, distribuídas em subcategorias: experiência com a DMC durante a pandemia – percepção da dor, ações de controle para dor, compreensão de fatores que melhoram a dor; acesso aos serviços de saúde em busca do atendimento devido à dor e experiência com a assistência, caso tenha recebido; aspecto em relação a qualidade de vida, saúde física e mental – percepção em relação ao momento presente e perspectiva em relação à saúde no futuro (próximos 10 anos).

As entrevistas tiveram duração de 20 a 30 minutos, sendo gravadas em áudio e posteriormente transcritas pela pesquisadora em um prazo máximo de 24 horas.

Informações éticas

Projeto nº CAAE 61037022.4.0000.5414, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Saúde Escola Dr. Joel Domingos Machado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (CEP-CSE/FMRP/USP).

Análise de dados

Os dados de cada entrevista foram armazenados no Google Drive®. O acesso foi limitado ao uso exclusivo da pesquisadora responsável, não havendo compartilhamentos. Não foi utilizado nenhum software para organização dos dados.

Em seguida, os dados passaram por uma análise temática, que tem como caraterística contribuir para identificar, analisar e descrever padrões ou temas presentes nos discursos dos indivíduos, sendo uma forma objetiva e resumida de apresentar os principais achados3131 Braun V, Clarke, V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Res Psychol, 2006;3(2):77-101.. Essa análise buscou a compreensão de experiências, pensamentos e comportamentos através de dados qualitativos. Ademais, a análise temática pode ser flexível quando utilizada em variações paradigmáticas e epistemológicas, dada a relevância para garantir confiabilidades nos achados e interpretações. Ao término, foram gerados temas, sendo considerados elementos que respondem à pergunta investigada no estudo3232 Kiger ME, Varpio L. Thematic analysis of qualitative data: AMEE Guide No. 131. Med Teach. 2020;42(8):846-54..

Também foi realizado o método de codificação indutiva, que consiste na criação de códigos a partir dos dados coletados3333 Moser A, Korstjens I. Series: Practical guidance to qualitative research. Part 3: Sampling, data collection and analysis. Eur J Gen Pract. 2018;24(1):9-18.. Esses códigos foram agrupados e organizados de acordo com as categorias elaboradas neste estudo. Para cada categoria, subcategoria, códigos e temas emergentes foram discutidos entre dois membros da equipe (MPF e LJF) sendo o segundo, com experiência na pesquisa qualitativa. Por fim, as categorias, subcategorias, códigos e temas foram organizados em uma tabela para melhor demonstrar os resultados3333 Moser A, Korstjens I. Series: Practical guidance to qualitative research. Part 3: Sampling, data collection and analysis. Eur J Gen Pract. 2018;24(1):9-18..

RESULTADOS

A amostra deste estudo foi composta por seis indivíduos, sendo cinco do sexo feminino e um do sexo masculino. A tabela 1 mostra as características dos participantes.

Tabela 1
Caracterização dos participantes.

Depois da análise temática das entrevistas emergiram três temas: 1) Impacto multidimensional da dor e estratégia de enfrentamento; 2) Características do serviço de saúde e atenção centrada no indivíduo; 3) Influência da dor na qualidade de vida e na perspectiva de vida futura. A tabela 2 mostra os dados de codificação e emersão dos temas.

Tabela 2
Interpretação dos dados qualitativos, categorias e subcategorias traçadas neste estudo, códigos e temas emergentes após análise das entrevistas semiestruturadas.

Tema 1 – Impacto multidimensional da dor e estratégia de enfrentamento

A piora da intensidade da DC durante a pandemia foi referida pela metade dos pacientes (P2, P3 e P4), estando associada com os aspectos emocionais, como medo e preocupação com os riscos de contaminação (citação 1), as restrições de assistência nos serviços de saúde, que se direcionaram para conter a disseminação da COVID-19 e acolher as demandas agudas de casos respiratórios (citação 2) e ao fator de isolamento social e sedentarismo (citação 3). Em contrapartida, alguns (P1 e P5) referiram melhora da dor durante a pandemia, devido a uma possível redução da sobrecarga de trabalho e de compromissos sociais (citação 4). Para um indivíduo (P6), a dor permaneceu constante em alguns períodos, mesmo diante de medos e incertezas com a doença (citação 5).

A maior parte dos entrevistados (P2, P3, P4 e P5) referiu o uso de fármacos para controle da dor durante o período da pandemia, sendo esses utilizados como coadjuvantes ou como principal método de alívio para a dor (citação 6). Entre os fármacos foram citados o uso de anti-inflamatórios não esteroides, analgésicos e relaxantes musculares (citação 7). Outros (P1 e P6) relataram o repouso como principal medida para controle, principalmente quando havia piora da dor (citação 8).

Somente um indivíduo (P6) relatou não compreender a importância de hábitos saudáveis. Em contrapartida, os outros (P1, P2, P3, P4 e P5) compreenderam que esses hábitos poderiam ajudar a controlar a intensidade da dor a longo prazo (citação 9). A compreensão de hábitos saudáveis envolveu alimentação equilibrada, prática regular de exercícios físicos e redução do peso corporal. Tais hábitos foram adquiridos por meio das orientações oferecidas pelos profissionais da saúde ao longo da vida dos participantes, além disso, alguns estiveram presentes no cotidiano desses pacientes. Dentre os hábitos saudáveis relatados pelos participantes, a prática de exercícios foi compreendida por alguns (P1, P2, P4 e P5) como benéfica para o tratamento da dor. Porém, para outros (P1, P2 e P4), pareceu existir uma dificuldade de organização para aderir a uma rotina de exercícios físicos com frequência e intensidade satisfatórias (citação 10). Por fim, a compreensão em relação à importância do descanso (P3, P5 e P6) ou repouso durante uma crise álgica também foi identificada na fala dos indivíduos (citação 11).

A capacidade de gerenciar a dor dentro da rotina de atividades parece representar um aspecto significativo de autocuidado com a própria saúde. Além disso, a percepção do sintoma, quando gerenciado, pode contribuir para que a rotina de atividades da vida diária seja menos comprometida (citação 12). A tabela 3 demonstra as citações referentes ao tema 1.

Tabela 3
Trechos de narrativas dos participantes relacionadas ao tema 1 – impacto multidimensional da dor e estratégia de enfrentamento.

Tema 2 – Característica do serviço de saúde e atenção centrada no indivíduo

Durante a pandemia da COVID-19, alguns dos pacientes (P1, P2, P4 e P5) relataram que buscaram atendimento no serviço de saúde devido a uma ou mais crises de dor. Alguns (P1, P3 e P5) relataram que devido ao medo de uma possível contaminação, optaram por evitar a busca por assistência médica, principalmente em pronto-atendimentos (citação 13). Nesse cenário, a assistência multiprofissional, dentro da APS foi considerada uma estratégia por alguns desses (P1, P4 e P5), para receber orientações sobre o manejo da dor durante a fase de isolamento social e restrição de atendimentos médicos às condições crônicas degenerativas durante o período pandêmico (citação 14). Além disso, dois dos indivíduos (P2 e P6) relataram não ter buscado atendimento de saúde para a melhora da intensidade da dor. O fato de não buscarem auxílio parece estar relacionado com o próprio tempo de experiência com o sintoma e a habituação com as limitações funcionais proporcionadas pela dor, possivelmente influência de um autoconhecimento para gerenciar a própria dor.

Para todos os indivíduos que buscaram o serviço de saúde, envolvendo o atendimento médico, fisioterapêutico, com a equipe de enfermagem ou da equipe multiprofissional (P1, P2, P4 e P5), a assistência recebida foi interpretada como satisfatória e resolutiva, principalmente dentro da APS (citação 16). Nesse cenário, a assistência prestada pela equipe de fisioterapia da APS foi considerada essencial dentro das ações e orientações para esses indivíduos, tanto no controle da dor quanto na qualidade de vida durante a fase da pandemia (citação 17). Uma paciente do sexo feminino (P1) buscou assistência tanto na APS quanto no serviço de atendimento especializado e referiu uma certa frustração em relação ao atendimento recebido na assistência especializada. Durante o relato da assistência recebida, houve a falta de resolutividade da queixa musculoesquelética, uma vez que houve estratégias de intervenção pouco eficazes ao seu diagnóstico, falta de acolhimento e de empatia (citação 18). A tabela 4 demonstra as citações referentes ao tema 2.

Tabela 4
Trechos de narrativas dos participantes relacionadas ao tema 2 – Característica do serviço de saúde e atenção centrada no indivíduo.

Tema 3 – A influência da dor na qualidade de vida e na perspectiva de vida futura

Os participantes foram encorajados a falar sobre o estado de saúde atual tanto físico quanto mental. Entre os relatos, alguns (P1, P2 e P4) relataram sentimentos de estresse, cansaço e irritação, que acreditaram estar associados à piora da intensidade da dor. Tais sentimentos estavam relacionados às questões atuais, como sobrecarga de trabalho, rotina de múltiplas tarefas sem planejamento e insatisfação pessoal (citação 19). Para uma paciente do sexo feminino (P2), a dor era a razão de se sentir irritada e cansada, além disso relatou sentimentos de insatisfação com a falta de dedicação dos profissionais para identificar a causa da dor (citação 21). Tal fato é comum entre os processos de diagnóstico e compreensão da dor. Três participantes (P1, P4 e P5) relataram sentimento de tristeza, estresse e baixa autoestima com sua condição física, devido à influência de contextos de trabalho, familiares com problemas de saúde (P4) e processo de luto (citações 20 e 21). Entretanto, apesar de citarem a experiência de conviver com a dor, dois indivíduos (P3 e P6) relataram sentimentos de motivação e de encorajamento para traçar metas e realizar novos projetos, relacionando seu estado emocional atual com satisfação e esperança, visualizando recomeços dentro da rotina de suas atividades de vida (citação 22).

Os entrevistados foram questionados sobre os sentimentos de esperança e expectativa sobre o próprio futuro, sobretudo como se viam com 10 anos a mais. Dois indivíduos (P3 e P5) relataram conviver com incertezas sobre a saúde e o processo de envelhecimento, mesmo elaborando planos futuros como mudança de moradia e estilo de vida (citação 24). Além da incerteza, dois pacientes (P2 e P4) relataram não ter motivação e expectativas positivas para os próximos anos devido às situações de desemprego, da condição própria da saúde e uma percepção negativa sobre a qualidade de vida atual (citações 25 e 26). O cenário em meio à sociedade atual, como desigualdades e conflitos políticos também foi citado por alguns dos pacientes (P1, P4 e P6) como um mediador de possibilidades favoráveis e não favoráveis, como acesso à assistência à saúde de qualidade. Tais aspectos parecem influenciar nas escolhas de vida como optar por ter hábitos mais saudáveis (citações 27 e 28). A tabela 5 demonstra as citações referentes ao tema 3.

Tabela 5
Trechos de narrativas dos participantes relacionados ao tema 3 – a influência da dor na qualidade de vida e na perspectiva de vida futura.

DISCUSSÃO

O presente estudo buscou analisar o impacto da pandemia da COVID-19 sobre a percepção e o tratamento da dor em pacientes com DMC usuários de unidades de saúde da família. Após a análise das entrevistas semiestruturadas emergiram três temas que exploram a percepção desses indivíduos: 1) Impacto multidimensional da dor e estratégia de enfrentamento; 2) Características do serviço de saúde e atenção centrada no indivíduo; e 3) A influência da dor na qualidade de vida e na perspectiva de vida futura. Dentro desses temas foi possível observar que os participantes do estudo, durante a pandemia da COVID-19, relataram tanto melhoras quanto pioras da dor, sendo que, no segundo caso, o fato poderia estar associada ao aumento do estresse vivenciado durante esse período. Além disso, em decorrência do receio de uma possível contaminação, os indivíduos recorreram com uma menor frequência ao pronto atendimento e com uma maior frequência à unidade básica de saúde. Por fim, a dor afetou a qualidade de vida dos indivíduos por afetar o emocional e aumentar o nível de estresse durante o período pandêmico e perspectivas de melhora e de não melhora do quadro álgico.

A amostra do presente estudo relatou que houve melhora da DMC, devido a diminuição e demanda de trabalho durante a pandemia, quanto um aumento da intensidade da dor devido ao aumento do estresse nesse período. A DC durante o período da pandemia da COVID-19 foi considerada um estressor psicossocial por afetar, além da condição física, potencializada pela inatividade física, a condição psicossocial, limitando as interações sociais, proporcionando incertezas quanto as expectativas futuras66 Clauw DJ, Häuser W, Cohen S P, Fitzcharles MA. Considering the potential for an increase in chronic pain after the COVID-19 pandemic. Pain. 2020;161(8):1694-7.,3434 Mohamed Ali O, Borg Debono V, Anthonypillai J, Hapidou EG. A Qualitative study of the impact of the COVID-19 pandemic on a sample of patients with chronic pain. J Patient Exp. 20227;9:23743735221089698.. Tais resultados corroboram os achados do presente estudo, nos quais, além desses sentimentos, os participantes relataram preocupações financeiras devido ao desemprego e à impossibilidade de exercer a atividade ocupacional. Além disso, os participantes desta unidade básica de família, relataram incertezas na área econômica e em relação ao funcionamento do setor público de saúde devido às possíveis alterações no cenário político brasileiro.

No que se refere ao enfrentamento da dor, os participantes relataram compreensão da importância de hábitos saudáveis, como alimentação e a prática de exercícios físicos, o que demonstra que eles apresentavam estratégias de autogerenciamento dos sintomas da DMC. Tais hábitos saudáveis são considerados essenciais no tratamento e controle da DC3535 Geneen LJ, Moore RA, Clarke C, Martin D, Colvin LA, Smith BH. Physical activity and exercise for chronic pain in adults: an overview of Cochrane Reviews. Cochrane Database Syst Rev. 2017;(4):CD011279.. Entretanto, durante o período pandêmico, hábitos benéficos, como a prática de atividade física, foram afetados pelo isolamento social, que resultou em maior permanência no ambiente domiciliar3434 Mohamed Ali O, Borg Debono V, Anthonypillai J, Hapidou EG. A Qualitative study of the impact of the COVID-19 pandemic on a sample of patients with chronic pain. J Patient Exp. 20227;9:23743735221089698.. Dados semelhantes sobre o enfrentamento da dor sugerem potencializar abordagens educativas sobre a dor, visando melhora do gerenciamento de atividades em domicílio3636 Chatkoff DK, Leonard MT, Najdi RR, Cruga B, Forsythe A, Bourgeau C, Easton H. A Brief survey of the COVID-19 pandemic’s impact on the chronic pain experience. Pain Manag Nurs. 2022;23(1):3-8..

Os relatos demonstraram que o contato com a fisioterapia na APS foi considerado positivo, uma vez que possibilitou aos indivíduos estratégias para o enfrentamento da dor, como gerenciamento de exercícios em domicílio e autocuidado. Nesse aspecto, evidenciou-se que indivíduos relataram piora da dor devido ao afastamento dos atendimentos de fisioterapia e outras terapias para o enfrentamento da dor, como a terapia ocupacional e a psicoterapia durante a pandemia3737 Balestra AM, Chalk K, Spies C, Denke C, Krampe H, Tafelski S. Living with chronic pain during the covid-19 pandemic: a qualitative analysis. J Pain Res. 2022;5;15:969-81.. Após um período de bloqueio dos atendimentos, a fisioterapia e essas demais áreas foram reconhecidas pelos pacientes como serviços essenciais de saúde, dando relevância para continuidade da assistência das mesmas, principalmente aos indivíduos com DC3434 Mohamed Ali O, Borg Debono V, Anthonypillai J, Hapidou EG. A Qualitative study of the impact of the COVID-19 pandemic on a sample of patients with chronic pain. J Patient Exp. 20227;9:23743735221089698.,3737 Balestra AM, Chalk K, Spies C, Denke C, Krampe H, Tafelski S. Living with chronic pain during the covid-19 pandemic: a qualitative analysis. J Pain Res. 2022;5;15:969-81.. No entanto, alguns dos participantes relataram que a intensidade de dor melhorou durante a pandemia da COVID-19 em decorrência da possibilidade de ter maior tempo de repouso e da redução da sobrecarga das atividades ocupacionais. Ta l achado pode ser justificado pela crença, frequentemente presente, de que o movimento pode gerar a dor e, por isso, o repouso poderia melhorar a condição álgica3838 Vlaeyen, Johan W. S.; Linton, Steven J. Fear-avoidance model of chronic musculoskeletal pain: 12 years on. Pain. 2012;153(6):1144-7.. Em relação à assistência recebida, a APS foi considerada um espaço seguro e eficaz para receber o paciente com DC. As narrativas demonstraram experiências sobre os serviços oferecidos e a qualidade do atendimento. Esse foi um cenário conhecido e muito comentado durante o período da pandemia devido à sobrecarga nos serviços assistenciais de saúde, que se direcionaram para conter a disseminação da doença e dar suporte ao atendimento dos indivíduos contaminados1717 Karos K, McParland JL, Bunzli S, Devan H, Hirsh A, Kapos F P, Keogh E, Moore D, Tracy LM, Ashton-James CE. The social threats of COVID-19 for people with chronic pain. Pain. 2020;161(10):2229-35.,1818 Shanthanna H, Strand NH, Provenzano DA, Lobo CA, Eldabe S, Bhatia A, Wegener J, Curtis K, Cohen S P, Narouze S. Caring for patients with pain during the COVID-19 pandemic: consensus recommendations from an international expert panel. Anaesthesia. 2020;75(7):935-44..

Os entrevistados do presente estudo relataram buscar atendimentos devido à dor, mas com o medo e as incertezas do risco da contaminação, alguns evitaram a busca por assistência. Tais achados também foram encontrados em um estudo sobre a experiência da dor e a assistência à saúde durante a pandemia3939 Dassieu L, Pagé MG, Lacasse A, Laflamme M, Perron V, Janelle-Montcalm A, Hudspith M, Moor G, Sutton K, Thompson JM, Choinière M. Chronic pain experience and health inequities during the COVID-19 pandemic in Canada: qualitative findings from the chronic pain & COVID-19 pan-Canadian study. Int J Equity Health. 2021;20(1):147.. As questões levantadas demonstraram que o impacto na assistência levou a quadros de ansiedade e incertezas sobre a continuidade de tratamento da dor e término da pandemia. Além disso, também houve relatos sobre preocupação com evolução da própria dor devido à ausência da assistência. Ainda pode-se observar preocupações em relação ao uso dos fármacos, passíveis de atraso e escassez, sendo levantadas questões para o risco de suicídio de alguns entrevistados3939 Dassieu L, Pagé MG, Lacasse A, Laflamme M, Perron V, Janelle-Montcalm A, Hudspith M, Moor G, Sutton K, Thompson JM, Choinière M. Chronic pain experience and health inequities during the COVID-19 pandemic in Canada: qualitative findings from the chronic pain & COVID-19 pan-Canadian study. Int J Equity Health. 2021;20(1):147..

Os aspectos relatados pelos participantes do presente estudo que envolveram a qualidade de vida e a saúde mental demonstraram a influência da dor no presente e no futuro dos indivíduos. De acordo com os achados de um estudo sobre DMC, investigado no cenário da APS, a DC intensifica nos indivíduos uma maior demanda para manutenção da integridade de saúde física e mental e pode repercutir em quadros de fadiga, insônia, ansiedade e depressão4040 Garnæs KK, Mørkved S, Tønne T, Furan L, Vasseljen O, Johannessen HH. Mental health among patients with chronic musculoskeletal pain and its relation to number of pain sites and pain intensity, a cross-sectional study among primary health care patients. BMC Musculoskelet Disord. 2022;23(1):1115.. Foi observado que a variável de saúde mental parece ter relação com maior intensidade de dor e com o aumento de regiões dolorosas pelo corpo, sendo ressaltado que a APS representa um importante cenário capaz de gerenciar os cuidados da população com DC, levando em consideração a melhora da qualidade de vida a curto e a longo prazo4040 Garnæs KK, Mørkved S, Tønne T, Furan L, Vasseljen O, Johannessen HH. Mental health among patients with chronic musculoskeletal pain and its relation to number of pain sites and pain intensity, a cross-sectional study among primary health care patients. BMC Musculoskelet Disord. 2022;23(1):1115..

Relevância do estudo

O estudo possibilitou compreender o impacto da pandemia da COVID-19 na percepção da dor e do tratamento para pacientes com DMC. Além disso, foi possível demonstrar as repercussões negativas do período pandêmico no estado emocional, enfrentamento, expectativas futuras e economia dos indivíduos brasileiros com DMC. Os achados demonstraram também a importância da fisioterapia percebida pelos usuários de uma unidade de saúde da família, que, somada à equipe multiprofissional de saúde, proporcionou estratégias de enfrentamento e gerenciamento da DMC.

Limitações do estudo

A amostra pequena de indivíduos com seguimento ativo na unidade de saúde e que apresentaram histórico de indicação de acompanhamento fisioterapêutico durante a pandemia em uma unidade de saúde da família brasileira pode ser considerada uma limitação devido à dificuldade de alcançar determinada saturação das informações. Além disso, devido ao estudo ter sido desenvolvido em somente uma unidade básica de saúde, ele pode não ter representado a realidade de outras populações, o que implica a necessidade de cautela ao interpretar os resultados.

CONCLUSÃO

Pacientes de uma unidade básica da família com DMC relataram que houve tanto a melhora quanto a piora da intensidade de dor durante a pandemia da COVID-19. A melhora pode ter sido relacionada ao repouso e/ou à diminuição da sobrecarga de trabalho, e a piora ao aumento do estresse vivenciado nessa época. Além disso, esses pacientes recorreram com maior frequência à unidade básica de saúde do que ao pronto atendimento. Por fim, a dor afetou a qualidade de vida por aumentar o nível de estresse durante esse período e os pacientes apresentaram expectativas de melhora e não de piora do próprio quadro clínico.

AGRADECIMENTOS

A toda equipe de autores e coautores, que contribuíram com seus conhecimentos para a construção, correção e edição deste artigo. À equipe de profissionais da unidade de saúde que se prontificaram em contribuir com a pesquisa. Aos indivíduos que aceitaram participar voluntariamente da entrevista, deixando seus relatos e experiências.

REFERENCES

  • 1
    Leadley RM, Armstrong N, Lee YC, Allen A, Kleijnen J. Chronic diseases in the European Union: the prevalence and health cost implications of chronic pain. J Pain Palliat Care Pharmacother. 2012;26(4):310-25.
  • 2
    Raja SN, Carr DB, Cohen M, Finnerup NB, Flor H, Gibson S, Keefe FJ, Mogil JS, Ringkamp M, Sluka KA, Song XJ, Stevens B, Sullivan MD, Tutelman PR, Ushida T, Vader K. The revised International Association for the Study of Pain definition of pain: concepts, challenges, and compromises. Pain. 2020;161(9):1976-82.
  • 3
    Perrot S, Cohen M, Barke A, Korwisi B, Rief W, Treede RD; IASP Taskforce for the Classification of Chronic Pain. The IASP classification of chronic pain for ICD-11: chronic secondary musculoskeletal pain. Pain. 2019;160(1):77-82.
  • 4
    Treede RD, Rief W, Barke A, Aziz Q, Bennett MI, Benoliel R, Cohen M, Evers S, Finnerup NB, First MB, Giamberardino MA, Kaasa S, Kosek E, Lavand’homme P, Nicholas M, Perrot S, Scholz J, Schug S, Smith BH, Svensson P, Vlaeyen JWS, Wang SJ. A classification of chronic pain for ICD-11. Pain. 2015;156(6):1003-7.
  • 5
    Vargas C, Bilbeny N, Balmaceda C, Rodríguez M F, Zitko P, Rojas R, Eberhard ME, Ahumada M, Espinoza MA. Costs and consequences of chronic pain due to musculoskeletal disorders from a health system perspective in Chile. Pain Rep. 2018;3(5):e656.
  • 6
    Clauw DJ, Häuser W, Cohen S P, Fitzcharles MA. Considering the potential for an increase in chronic pain after the COVID-19 pandemic. Pain. 2020;161(8):1694-7.
  • 7
    Aguiar D P, Souza C P, Barbosa WJ, Santos-Júnior F F, Oliveira AS. Prevalence of chronic pain in Brazil: systematic review. BrJP. 2021;4(3):257-67.
  • 8
    Carter JJ, Watson AC, Sminkey PV. Pain management: screening and assessment of pain as part of a comprehensive case management process. Prof Case Manag. 2014;19(3):126-34; quiz 135-6.
  • 9
    Tseli E, LoMartire R, Vixner L, Grooten WJA, Gerdle B, Äng BO. What is the effectiveness of different duration interdisciplinary treatment programs in patients with chronic pain? A large-scale longitudinal register study. J Clin Med. 2020;9(9):2788.
  • 10
    Kamper SJ, Apeldoorn AT, Chiarotto A, Smeets RJ, Ostelo RW, Guzman J, van Tulder MW. Multidisciplinary biopsychosocial rehabilitation for chronic low back pain: Cochrane systematic review and meta-analysis. BMJ. 2015;18;350:h444.
  • 11
    Guimarães BEB, Branco ABAC. Trabalho em equipe na atenção básica à saúde: pesquisa bibliográfica. Rev Psicol Saúde. 2020;12(1):143-55.
  • 12
    Brasil. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas: Dor Crônica. Portaria SAS/MS nº 1.083, de 02 de outubro de 2012. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2012/prt1083_02_10_2012.html
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2012/prt1083_02_10_2012.html
  • 13
    Nicholas M, Vlaeyen JWS, Rief W, Barke A, Aziz Q, Benoliel R, Cohen M, Evers S, Giamberardino MA, Goebel A, Korwisi B, Perrot S, Svensson P, Wang SJ, Treede RD; IASP Taskforce for the Classification of Chronic Pain. The IASP classification of chronic pain for ICD-11: chronic primary pain. Pain. 2019;160(1):28-37.
  • 14
    Facchini LA, Tomasi E, Dilélio AS. Qualidade da Atenção Primária à Saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. Saúde Debate. 2018;42(spe1):208-23.
  • 15
    Alves MLF, Guedes HM, Martins JCA, Chianca TCM. Reference and counter reference network for emergency care assistance in a municipality in the countryside of Minas Gerais, Brazil. Rev Médica Minas Gerais. 2015;25(4):469-75.
  • 16
    Fortes S. Queixas somáticas sem explicação médica. In: DUNCAN BB . Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4ª. Porto Alegre, Artmed, 2022.
  • 17
    Karos K, McParland JL, Bunzli S, Devan H, Hirsh A, Kapos F P, Keogh E, Moore D, Tracy LM, Ashton-James CE. The social threats of COVID-19 for people with chronic pain. Pain. 2020;161(10):2229-35.
  • 18
    Shanthanna H, Strand NH, Provenzano DA, Lobo CA, Eldabe S, Bhatia A, Wegener J, Curtis K, Cohen S P, Narouze S. Caring for patients with pain during the COVID-19 pandemic: consensus recommendations from an international expert panel. Anaesthesia. 2020;75(7):935-44.
  • 19
    Morin CM, Bjorvatn B, Chung F, Holzinger B, Partinen M, Penzel T, Ivers H, Wing YK, Chan NY, Merikanto I, Mota-Rolim S, Macêdo T, De Gennaro L, Léger D, Dauvilliers Y, Plazzi G, Nadorff MR, Bolstad CJ, Sieminski M, Benedict C, Cedernaes J, Inoue Y, Han F, Espie CA. Insomnia, anxiety, and depression during the COVID-19 pandemic: an international collaborative study. Sleep Med. 2021;87(1):38-45.
  • 20
    Turk DC, Fillingim RB, Ohrbach R, Patel KV. Assessment of psychosocial and functional impact of chronic pain. J Pain. 2016;17(9 Suppl):T21-49.
  • 21
    Hammock AC, Majumdar Das S, Mathew A, Johnson S. An exploratory qualitative study of undergraduate men’s perspectives on sexual violence bystander education. J Am Coll Health. 2022;70(4):1223-30.
  • 22
    Knox M. Design-related impacts on end-of-life experience: a brief report of findings from an exploratory qualitative study. Am J Hosp Palliat Care. 2023;40(7):753-60.
  • 23
    Trenholm-Jensen EA, Burns L, Trenholm JE, Hand CJ. Beyond tingles: An exploratory qualitative study of the Autonomous Sensory Meridian Response (ASMR). PLoS One. 2022;17(12):e0277962.
  • 24
    Christine C, Suto M. Qualitative research for occupational and physical therapists: a practical guide. Blackwell Publishing; 2008.
  • 25
    Klem NR, Shields N, Smith A, Bunzli S. Demystifying qualitative research for musculoskeletal practitioners Part 3: phenomeno-what? understanding what the qualitative researchers have done. J Orthop Sports Phys Ther. 2022;52(1):3-7.
  • 26
    Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1994;(4)207.
  • 27
    Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care. 2007;19(6):349-57.
  • 28
    O’Brien BC, Harris IB, Beckman TJ, Reed DA, Cook DA. Standards for reporting qualitative research: a synthesis of recommendations. Acad Med. 2014;89(9):1245-51.
  • 29
    Cássia R De Oliveira M De. (Entre) Linhas De Uma Pesquisa: o Diário de Campo como dispositivo de (in) formação na/da abordagem (Auto) biográfica. Rev Bras Educ Jovens e Adultos. 2014;2(4):69-87. https://www.revistas.uneb.br/index.php/educajovenseadultos/article/view/1059
    » https://www.revistas.uneb.br/index.php/educajovenseadultos/article/view/1059
  • 30
    Korstjens I, Moser A. Series: Practical guidance to qualitative research. Part 2: context, research questions and designs. Eur J Gen Pract. 2017;23(1):274-9.
  • 31
    Braun V, Clarke, V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Res Psychol, 2006;3(2):77-101.
  • 32
    Kiger ME, Varpio L. Thematic analysis of qualitative data: AMEE Guide No. 131. Med Teach. 2020;42(8):846-54.
  • 33
    Moser A, Korstjens I. Series: Practical guidance to qualitative research. Part 3: Sampling, data collection and analysis. Eur J Gen Pract. 2018;24(1):9-18.
  • 34
    Mohamed Ali O, Borg Debono V, Anthonypillai J, Hapidou EG. A Qualitative study of the impact of the COVID-19 pandemic on a sample of patients with chronic pain. J Patient Exp. 20227;9:23743735221089698.
  • 35
    Geneen LJ, Moore RA, Clarke C, Martin D, Colvin LA, Smith BH. Physical activity and exercise for chronic pain in adults: an overview of Cochrane Reviews. Cochrane Database Syst Rev. 2017;(4):CD011279.
  • 36
    Chatkoff DK, Leonard MT, Najdi RR, Cruga B, Forsythe A, Bourgeau C, Easton H. A Brief survey of the COVID-19 pandemic’s impact on the chronic pain experience. Pain Manag Nurs. 2022;23(1):3-8.
  • 37
    Balestra AM, Chalk K, Spies C, Denke C, Krampe H, Tafelski S. Living with chronic pain during the covid-19 pandemic: a qualitative analysis. J Pain Res. 2022;5;15:969-81.
  • 38
    Vlaeyen, Johan W. S.; Linton, Steven J. Fear-avoidance model of chronic musculoskeletal pain: 12 years on. Pain. 2012;153(6):1144-7.
  • 39
    Dassieu L, Pagé MG, Lacasse A, Laflamme M, Perron V, Janelle-Montcalm A, Hudspith M, Moor G, Sutton K, Thompson JM, Choinière M. Chronic pain experience and health inequities during the COVID-19 pandemic in Canada: qualitative findings from the chronic pain & COVID-19 pan-Canadian study. Int J Equity Health. 2021;20(1):147.
  • 40
    Garnæs KK, Mørkved S, Tønne T, Furan L, Vasseljen O, Johannessen HH. Mental health among patients with chronic musculoskeletal pain and its relation to number of pain sites and pain intensity, a cross-sectional study among primary health care patients. BMC Musculoskelet Disord. 2022;23(1):1115.

Editado por

Editor associado responsável: Maria Belén Salazar Posso https://orcid.org/0000-0003-3221-6124

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2023
  • Aceito
    22 Nov 2023
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 937 Cj2 - Vila Mariana, CEP: 04014-012, São Paulo, SP - Brasil, Telefones: , (55) 11 5904-2881/3959 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: dor@dor.org.br