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Cannabis e canabinoides: nova esperança versus nível de evidências científicas

Sim! Definitivamente, é perceptível que cannabis e canabinoides têm sido concebidos por muitas categorias de profissionais de saúde e pela própria camada da sociedade que sofre com distúrbios de saúde como uma nova esperança ou potencial alternativa para o manejo de diversas condições patológicas e disfuncionais, especialmente aquelas que têm sido refratárias aos tratamentos farmacológicos e não farmacológicos disponíveis no mercado e nos serviços.

Existe um número crescente de países que têm legalizado o uso de alguns componentes da Cannabis sativa para o tratamento de distintas condições clínicas. Entretanto, embora o uso clínico destas substâncias venha se ampliando exponencialmente nos últimos anos, a evidência científica proveniente de ensaios clínicos controlados e randomizados permanece insuficiente e não tem crescido em qualidade metodológica na mesma proporção, o que, deveras, limita a tomada de decisão por profissionais de saúde, tanto no que se refere ao efeito terapêutico como à segurança dos pacientes11 Barthwell A, Baxter L, Cermak T, DuPont R, Kraus M, Levounis P. The role of the physician in “medical” marijuana: American Society of Addiction Medicine ASAM; 2010.. Para a comunidade científica, a limitação no planejamento e na condução dos estudos clínicos, assim como na análise e interpretação dos dados, tem sido compreendida como uma barreira para a compreensão e a recomendação de tratamentos com base em cannabis medicinal22 Kondrad E, Reid A. Colorado family physicians’ attitudes toward medical marijuana. J Am Board Fam Med. 2013;26(1):52-60..

As primeiras publicações sobre o tópico cannabis e canabinoides datam da década de 1940, e percebe-se nitidamente que houve um crescimento vertiginoso das publicações de artigos científicos nessa área nos últimos cinco anos, notadamente representados pelas mais de 200 revisões sistemáticas, que abordam temas que se estendem das mudanças moleculares cerebrais até a efetividade em condições como dor oncológica, dor crônica, distúrbios cognitivos, autismo, cirurgia bariátrica, distúrbio do sono, êmese, desordens do movimento, doenças neurológicas, abuso de substâncias, distúrbios alimentares em diferentes faixas etárias (adolescentes, adultos e idosos) e diferentes etnias.

A relação custo-benefício não se restringe apenas às questões financeiras do tratamento, mas também ao equilíbrio entre efeito terapêutico comprovado e segurança para os pacientes, considerando problemas como solubilidade na gordura corporal, toxicidade, correspondência de doses entre humanos e animais, microssomas hepáticos, hipotermia, efeitos comportamentais, fenômenos psicopatológicos, fatores de predisposição ao uso continuado e crescente e, por fim, mas não menos importante, os efeitos do uso a longo prazo, que ainda não são muito bem conhecidos.

Mas, qual o problema atual no que tange às evidências científicas sobre efeitos terapêuticos e efeitos adversos de cannabis e canabinoides para propostas clínicas? Por certo, e considerando o nível de evidência e grau de recomendação das revisões sistemáticas sobre o assunto em distintos contextos, é urgente que cientistas sigam parâmetros mínimos de rigor metodológico para a redução dos vieses que comprometem o suporte para indicação de uso clínico baseado em evidências moderadas ou fortes para os desfechos pretendidos.

Dessa forma, três providências mínimas são sugeridas para serem adotadas e fielmente seguidas desde a fase de planejamento de ensaios clínicos controlados: 1. Registro do ensaio clínico; 2. uso do Consolidated Standards of Reporting Trials (CONSORT), checklist elaborado para auxiliar pesquisadores a relatarem seu ensaio clínico de modo adequado, para que o relato não prejudique a interpretação dos resultados da pesquisa33 Schulz KF, Altman DG, Moher D; CONSORT Group. CONSORT 2010 statement: updated guidelines for reporting parallel group randomised trials. BMJ. 2010;23;340:c332.,44 Moher D, Hopewell S, Schulz KF, Montori V, Gøtzsche PC, Devereaux PJ, Elbourne D, Egger M, Altman DG; Consolidated Standards of Reporting Trials Group. CONSORT 2010 Explanation and Elaboration: Updated guidelines for reporting parallel group randomised trials. J Clin Epidemiol. 2010;63(8):e1-37. Erratum in: J Clin Epidemiol.2012;65(3):351.; 3. uso do checklist Template for Intervention Description and Replication (TIDieR)55 Hoffmann T, Glasziou P, Boutron I, Milne R, Perera R, Moher D, Altman D, Barbour V, Macdonald H, Johnston M, Lamb S, Dixon-Woods M, McCulloch P, Wyatt J, Chan A, Michie S. Better reporting of interventions: template for intervention description and replication (TIDieR) checklist and guide. BMJ. 2014;348:g1687., ferramenta idealizada para melhorar a descrição de intervenções em ensaios clínicos randomizados.

Dessa forma, destaca-se, metodologicamente, que os ensaios clínicos devem: 1. mencionar se tratar de um ensaio clínico randomizado no título; 2. seguir as regras do CONSORT-Abstract no resumo estruturado; 3. Elaborar uma descrição precisa do tipo de estudo, incluindo taxa de alocação; 4. Informar critérios de elegibilidade claros e fundamentados de forma que não provoquem fatores de confusão; 5. informar o local e o cenário de coleta de dados; 6. Detalhar as intervenções em cada grupo (um grupo controle válido é indispensável); 7. informar medidas de desfechos primários e secundários claramente especificadas no registro do ensaio clínico e informações de quaisquer alterações depois de iniciar a coleta de dados; 8. apresentar detalhadamente como foi determinado o tamanho amostral, com referência e dados precisos para o cálculo; 9. descrever o método utilizado para a geração da sequência randomizada de alocação, bem como o tipo de randomização; 10. descrever o mecanismo de alocação e sigilo/ocultação promovido pelos investigadores; 11. descrever o processo de mascaramento; 12. descrever detalhadamente a análise estatística para comparação de desfechos primários e secundários33 Schulz KF, Altman DG, Moher D; CONSORT Group. CONSORT 2010 statement: updated guidelines for reporting parallel group randomised trials. BMJ. 2010;23;340:c332.,44 Moher D, Hopewell S, Schulz KF, Montori V, Gøtzsche PC, Devereaux PJ, Elbourne D, Egger M, Altman DG; Consolidated Standards of Reporting Trials Group. CONSORT 2010 Explanation and Elaboration: Updated guidelines for reporting parallel group randomised trials. J Clin Epidemiol. 2010;63(8):e1-37. Erratum in: J Clin Epidemiol.2012;65(3):351..

De acordo com o TiDier, informações claras e detalhadas devem indicar O QUE (descrever materiais e procedimentos), QUEM (informar experiência/capacitação/treinamento de quem ofertou o tratamento e fez a mensuração), COMO (descrever modo de entrega da intervenção), ONDE (descrever locais onde ocorreu a intervenção), QUANDO (descrever número de vezes em que a intervenção foi oferecida, número de sessões, duração da intervenção) e QUANTO (descrever intensidade e dose da intervenção). Ademais, se faz necessário descrever mudanças realizadas nos procedimentos se a intervenção tiver sido alterada e é recomendado medir a adesão à intervenção pelos participantes e descrever como isso foi conduzido55 Hoffmann T, Glasziou P, Boutron I, Milne R, Perera R, Moher D, Altman D, Barbour V, Macdonald H, Johnston M, Lamb S, Dixon-Woods M, McCulloch P, Wyatt J, Chan A, Michie S. Better reporting of interventions: template for intervention description and replication (TIDieR) checklist and guide. BMJ. 2014;348:g1687..

É evidente que o mercado de cannabis ainda enfrenta barreiras e desafios que impedem seu avanço em diversas regiões do mundo, inclusive no Brasil, as quais são vasta e detalhadamente discutidas no suplemento. Muito já se avançou até o presente momento, inclusive nas evidências científicas mais recentes. Então, aqui deixamos o nosso reforço positivo para que futuros ensaios clínicos testando a eficácia terapêutica de canabinoides se tornem cada vez mais robustos e bem fundamentados em relatos, no intuito de fortalecer e consolidar o corpo de evidências científicas, influenciar na formulação e aprovação de políticas públicas, ampliar as fontes de financiamento de pesquisas científicas, para, enfim, facilitar a tomada de decisão por parte dos profissionais e viabilizar o tratamento de doenças, gerando uma melhor qualidade de vida.

REFERENCES

  • 1
    Barthwell A, Baxter L, Cermak T, DuPont R, Kraus M, Levounis P. The role of the physician in “medical” marijuana: American Society of Addiction Medicine ASAM; 2010.
  • 2
    Kondrad E, Reid A. Colorado family physicians’ attitudes toward medical marijuana. J Am Board Fam Med. 2013;26(1):52-60.
  • 3
    Schulz KF, Altman DG, Moher D; CONSORT Group. CONSORT 2010 statement: updated guidelines for reporting parallel group randomised trials. BMJ. 2010;23;340:c332.
  • 4
    Moher D, Hopewell S, Schulz KF, Montori V, Gøtzsche PC, Devereaux PJ, Elbourne D, Egger M, Altman DG; Consolidated Standards of Reporting Trials Group. CONSORT 2010 Explanation and Elaboration: Updated guidelines for reporting parallel group randomised trials. J Clin Epidemiol. 2010;63(8):e1-37. Erratum in: J Clin Epidemiol.2012;65(3):351.
  • 5
    Hoffmann T, Glasziou P, Boutron I, Milne R, Perera R, Moher D, Altman D, Barbour V, Macdonald H, Johnston M, Lamb S, Dixon-Woods M, McCulloch P, Wyatt J, Chan A, Michie S. Better reporting of interventions: template for intervention description and replication (TIDieR) checklist and guide. BMJ. 2014;348:g1687.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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