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Inter-relações entre Domínios Matemáticos: a integração do NAG em um modelo praxeológico alternativo

Interrelations among Mathematical Domains: the integration of NAG into an alternative praxeological model

Resumo

Neste artigo, cujo objetivo é discutir condições de implementação de um Modelo Praxeológico Alternativo – MPA, embasado em inter-relações entre domínios matemáticos, são apresentados aspectos epistemológicos-históricos de três grandes domínios matemáticos e algumas noções de base da Antropologia da Didática, para posterior apresentação de características de um MPA. É feito um recorte para três domínios matemáticos, a saber: numérico-algébrico e geométrico – NAG. Consideramos estas inter-relações NAG a partir da utilização das mesmas em dois exemplos de tarefas. O estudo em discussão, trata-se de um desdobramento de uma investigação sobre inter-relações entre domínios matemáticos na re(construção) de modelos praxeológicos. O método ensejado se inspirou na análise praxeológica, noção da Teoria Antropológica do Didático proposta por Yves Chevallard. A proposição do MPA-NAG é viável nas práticas institucionais, desde que se volte atenção para o tipo de tarefa a ser proposta, o que a coloca num lugar central na discussão de modelos praxeológicos alternativos em contraposição aos dominantes.

Palavras-chave:
Teoria Antropológica do didático; Modelos praxeológicos; Inter-relações entre Domínios Numérico-Algébrico e Geométrico

Abstract

In this paper, which objective is to discuss the conditions of implementation of an alternative praxeological model – APM, based on interrelationships between mathematical domains, we present epistemological-historical aspects of three major mathematical domains, and some basic notions of didactics anthropology, to subsequent presentation of characteristics of an MPA. A cut is made for three mathematical domains, namely: numeric-algebraic and geometric – NAG. We consider these NAG interrelationships by using them in two task examples. The study under discussion is an offshoot of an investigation into interrelationships between mathematical domains in the re (construction) of praxeological models. The method was inspired by the praxeological analysis, notion of the Anthropological Theory of Didactics proposed by Yves Chevallard. The APM-NAG proposition is viable in institutional practices if attention is given to the type of task to be proposed, which places it at the center of the discussion of alternative praxeological models as opposed to dominant ones.

Keywords:
Anthropological theory of didactics; Praxeological models; Interrelationships between Numeric-Algebraic and Geometric Domains

1 Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar características de um modelo praxeológico que se opõe ao normalmente vivo nas instituições de difusão dos saberes matemáticos. Inicialmente, apresentamos aspectos epistemológicos-históricos de domínios matemáticos e as inter-relações entre os mesmos. Nesse estudo, os domínios matemáticos abordados são o numérico-algébrico e o geométrico, que a partir daqui será denotado pela sigla NAG.

A utilização das inter-relações entre os domínios numérico-algébrico e geométrico, parte de uma ecologia do saber específica ainda pouco estudada e fortemente limitada pelas restrições transpositivas.

O NAG é um tema complexo que se declina sob diversos aspectos relativos aos saberes matemáticos de acordo com o contexto e as épocas. A questão das inter-relações entre os domínios matemáticos é, em primeiro lugar uma questão de ordem epistemológica e histórica. Como afirma Bronner (1997BRONNER, A. Étude didactique des nombres réels. Idécimalité et racine carrée. Tese (Doutorado em Matemática: Educação Matemática) – Université Joseph Fourier, Grenoble, 1997., p. 6),

Identificar os obstáculos geométricos e numéricos entre os gregos, medir os avanços das civilizações babilônias e gregas, estudar as formas de vida dos números, dos objetos número racional, raiz quadrada entre os matemáticos nas diversas épocas, permite caracterizar o desenvolvimento científico e cultural. Esse desenvolvimento induz fortes restrições sobre a epistemologia dos saberes pedagógicos.

Considerando a História da Matemática (HM), de forma sucinta (BOYER, 1996BOYER, C. B. História da Matemática. São Paulo: Edgar Blücher, 1996.), notamos eventos que mostram tais inter-relações, que parecem perder-se ao longo da história dos saberes e seus ensinos. Os recortes de episódios da História das Matemáticas, apresentados nesse artigo, expressam contribuições significativas para o desenvolvimento das Matemáticas.

Ao apresentarmos aspectos epistemológicos-históricos referentes a saberes nos quais se configuram as inter-relações NAG, apontamos para praxeologias matemáticas adormecidas, entendidas como aquelas que foram utilizadas num determinado período da história do saber, mas que depois não aparecem mais em registros praxeológicos. Essas praxeologias matemáticas podem ser resgatadas e representarem alternativas às formas comumente institucionalizadas nas práticas que integram o sistema de ensino.

Além disso, o modelo praxeológico, discutido mais à frente é considerado alternativo (MPA), visto que a estrutura para o ensino dos saberes matemáticos, normalmente é feito de forma diferente do que se percebe ao realizar um estudo epistemológico-histórico. A forma que se organizou a difusão dos saberes a ensinar apresenta noções que em sua origem eram integradas, já no modelo comumente presente nas instituições de ensino, esses saberes são estudados de forma dissociada (em compartimentos de acordo com domínios da Matemática). Chamamos o referido modelo no campo da epistemologia experimental (Didática da Matemática) de praxeológico dominante.

Assim, falamos de modelos praxeológicos nos referindo a forma que as praxeologias (re)construídas numa instituição vivem, bem como quais seus locais e funções, no trabalho de modelar a atividade matemática de pessoas em instituições1 1 “Uma instituição I é um dispositivo social, ‘total’, que certamente pode ter pequenas extensões no espaço social (existem ‘micro-instituições’), mas que permite – e impõe – a seus sujeitos, isto é, às pessoas (x) que ocupam diferentes posições (p) ofertadas em I, o envolvimento de maneiras de fazer e pensar próprios – ou seja, as praxeologias’ (CHEVALLARD, 2009, p. 2, grifo do autor, tradução nossa). .

Ademais, o MPA está consignado a um Modelo Epistemológico de Referência (MER) de um corpo de conhecimento, que é uma descrição alternativa de tal corpo, elaborado por pesquisadores com o objetivo de questionar e fornecer respostas a fatos didáticos e práticas problemáticas que ocorrem em uma determinada instituição (FLORENSA; BOSCH; GASCON, 2015FLORENSA, I; BOSCH, M.; GASCÓN, J. The epistemological dimension in didactics: Two problematic issues. In: CONGRESS OF THE EUROPEAN SOCIETY FOR RESEARCH IN MATHEMATICS EDUCATION, 9., 2015, Prague. Proceedings… Prague: HAL, 2015, p.2635-2641.). O MER determina, dentre outras coisas, a amplitude do campo matemático no qual se situa a problemática de nossa investigação e nele podemos situar, descrever, avaliar, propor reconstruções ao modelo praxeológico, que é alternativo a um modelo que seja compreendido como dominante, em outras palavras, que define as praxeologias matemáticas normalmente institucionalizadas nos diferentes sistemas de ensino, bem como nos diversos documentos de difusão dos saberes matemáticos.

Essas noções iniciais auxiliam na compreensão da proposição de modelos praxeológicos realizada nesse artigo, da análise feita em cima de dois exemplos em que se configure as inter-relações NAG, o que nos leva a ratificar a importância de um olhar atento para a construção e experimentação de tarefas matemáticas, se o objetivo é implementar modelos praxeológicos alternativos.

2 Aspectos epistemológicos e históricos do NAG

As relações entre a Álgebra e a Geometria têm uma história bastante antiga. Provavelmente datam após o terceiro século depois de Cristo, na Mesopotâmia (BOYER, 1996BOYER, C. B. História da Matemática. São Paulo: Edgar Blücher, 1996.). Essas relações são recíprocas e têm marcado a História da Matemática. Nesse contexto, podemos citar algumas resoluções de problemas já conhecidos em Álgebra – como resolver uma equação polinomial de segundo grau ou de terceiro grau – utilizando as técnicas da Geometria Elementar. Podemos constatar esta relação no método proposto por Omar Khayam para resolver as equações polinomiais cúbicas através da interseção de um círculo e de uma parábola, nesse, ele combina a trigonometria e as aproximações funcionais para obter os métodos de resolução geométrica das equações algébricas.

Podemos citar também as demonstrações de algumas identidades algébricas estudadas utilizando a Geometria Euclidiana. É o caso das igualdades definidas nas regras da adição e da multiplicação das frações, ou ainda das identidades notáveis mais famosas2 2 Uma dessas identidades é o Teorema de Pitágoras, que estabelece uma relação métrico-quadrática entre as medidas dos lados de um triângulo retângulo; como a medida de comprimento é um número real não negativo, o Teorema de Pitágoras é compreendido dentro do domínio numérico-algébrico. . Métodos algébricos para resolução de problemas geométricos também foram utilizados no final da Renascença (BOYER, 1996BOYER, C. B. História da Matemática. São Paulo: Edgar Blücher, 1996.).

2.1 A Geometria de Descartes

A Geometria pouco avançou no fim da era grega e na Idade Média e esteve, durante muito tempo, a serviço do estudo da Álgebra. Mas, no início do século XVII, René Descartes inverteu esta situação. A Geometria de Descartes, que inicia o estudo das curvas algébricas, marca a segunda grande etapa na gênese da Geometria (DIEUDONNÉ, 1974DIEUDONNÉ, J. Cours de géométrie algébrique. Paris: Presses Universitaires de France, 1974. v. 2.).

A aplicação do método cartesiano possibilitou a resolução de muitos problemas de Geometria. Descartes, em 1637, estabeleceu relações entre a Geometria Euclidiana e a Álgebra, depois de demonstrar como aplicar os métodos de um domínio a outro. Essa relação é um dos fundamentos da Geometria Analítica, campo no qual técnicas dos domínios geométrico e algébrico aparecem de forma amalgamada.

Além disso, na maior obra de Descartes sobre a Matemática, A Geometria (que ele publicou em anexo ao Discurso do Método, em 1637), as primeiras palavras do primeiro capítulo são: “Todos os problemas de Geometria se podem facilmente reduzir a termos tais que, posteriormente, não haverá necessidade de se conhecer o comprimento de qualquer linha reta para construí-la” (DESCARTES, 1998DESCARTES, R. La Géométrie. 6 ed. Paris: Jacques Gabay, 1998., p. 1).

Um pouco mais adiante ele declara:

É digno de nota que para a2, ou b3, ou semelhantes, não se concebe ordinariamente todas as linhas simples; ainda que para me servir de nomes usados em Álgebra, eu os chamo de quadrados ou de cubos, etc. […] devemos considerar já o fato e dar os nomes a todas as linhas, que parecem necessárias para construir, tanto as que são desconhecidas quanto as outras. Em seguida, sem considerar nenhuma diferença entre as linhas conhecidas e desconhecidas, devemos ver a dificuldade segundo a ordem que mostra o mais naturalmente toda a sorte de dependência mútua que une uns aos outros, até que tenhamos visto um meio de exprimir uma mesma quantidade em duas formas: a que se chama equação; porque os termos que une essas duas formas são iguais aos da outra (DESCARTES, 1998DESCARTES, R. La Géométrie. 6 ed. Paris: Jacques Gabay, 1998., p. 3, grifos do autor).

Em colaboração com Fermat, Descartes desenvolveu o método das coordenadas que permite efetuar muitas demonstrações da Geometria. Para escolher uma unidade de comprimento, ele identifica a semirreta com todos os números reais positivos3 3 Números reais aqui: ideia ingênua e não formalizada de acordo com os avanços da Análise, principalmente nos séculos XIX e XX. .

Nesse episódio da História da Matemática nós vemos o desenvolvimento das inter-relações entre os domínios NAG. Descartes desenvolve, com Fermat e também independentemente do último, as bases da Geometria Analítica como um processo de algebrização da Geometria.

Com efeito, o objetivo de Descartes foi atribuir significados às operações da Álgebra, através de interpretações geométricas. Ele estava convencido que todos os ramos da Matemática partiam do mesmo princípio. Aplicando seus conceitos, ele obteve sucesso ao resolver o problema das quatro retas de Pappus, considerando quatro linhas (retas) AB, AD, EF, GH, enunciado da seguinte forma: “encontrar um ponto C tal que, dados os ângulos α, β, γ e φ fixos, obtidos traçando retas por C até AB, AD, EF, GH, respectivamente, tal que CB.CF = CD. CH” (VAZ, 2011VAZ, D. A. F. O método cartesiano aplicado à geometria. Estudos, Goiânia, v. 38, n. 3, p. 451-467, jul./set. 2011, p. 458-459). O problema de Pappus permite a Descartes explicar sua teoria sobre as soluções utilizando “régua e compasso” e “a natureza das curvas planas” (BOYER, 1996BOYER, C. B. História da Matemática. São Paulo: Edgar Blücher, 1996.).

A Geometria de Descartes traz novidades. De acordo com Flament (2003)FLAMENT, D. Histoire des nombres complexes: Entre algèbre et géométrie. CNRS Editions. 2003. 502 p. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-00014662. Acesso em: 20 fev. 2019.
https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-000...
, a Geometria Euclidiana ganha naquela prática matemática um status analítico, ampliando os recursos das equações tanto para refazer antigas demonstrações como para descobrir novas.

Introduziremos alguns elementos históricos para mostrar a ocorrência do NAG após os trabalhos de Descartes.

2.2 O NAG depois dos trabalhos de Descartes

De fato, os trabalhos de Descartes dão indícios da presença do NAG na História da Matemática do século XVII e permitem a boa compreensão do lugar e da utilidade das inter-relações no desenvolvimento da Matemática.

Podemos encontrar também as inter-relações entre a Análise e a Álgebra com o surgimento do Cálculo Diferencial e Integral, que resultou em avanços no pensamento ocidental. Assim, os trabalhos realizados por Newton e Leibniz possibilitaram o avanço da Ciência em diversos setores. O matemático Euler foi um dos pioneiros na aplicação dos métodos de Cálculo e dos problemas de Teoria dos Números, dando nascimento à Teoria Analítica dos Números (TATON, 1969TATON, R. Histoire du calcul. Coleção: Que sais-je? 5. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1969.). Não obstante, o matemático alemão Riemann, reconhecido como fundador da Teoria Analítica dos Números, contribuiu, entre outras coisas, para o avanço da Análise. A função zeta de Riemann é a extensão analítica da função

g ( s ) = i = 1 1 n s , com re ( s ) > 1.

Trata-se de uma função complexa de uma variável complexa que é analítica. Esta função surge como ferramenta interessante na Teoria dos Números, a fim de que fosse estudada a distribuição dos primos. Ela serve de motivação e fio condutor para novos estudos (BOYER, 1996BOYER, C. B. História da Matemática. São Paulo: Edgar Blücher, 1996.).

Riemann, no seu artigo “Ueber die Anzahl der Primzahlen unter einer gegebenen Grösse” (livre tradução para o português: Sobre a quantidade de primos menores que uma determinada grandeza), obteve vários resultados através das pesquisas das propriedades da função zeta que a relacionava à distribuição dos números primos. Riemann esquematizou o caminho dos futuros progressos desta pesquisa, através de uma série de conjecturas. Em 1896, o matemático francês J. Hadamard e o matemático belga Poussin demonstraram, independentemente, o Teorema do Número Primo: dado x > 0 um número real, seja π(x) o número de primos menores que x; então

lim x + π ( x ) l n ( x ) x = 1

A função zeta de Riemann permitiu o avanço sobre resultados em números primos. Posteriormente, esta função foi estudada por ele mesmo, passando de ferramenta de Análise para o status de objeto matemático da Análise (DAHAN-DALMEDICO; PEIFFER, 1986DAHAN-DALMEDICO, A.; PEIFFER, J. Une histoire des mathématiques. Paris: Seuil, 1986.).

De fato, as propriedades dos números primos foram trazidas por Riemann e estudadas por um certo número de matemáticos, utilizando os elementos da Análise (função zeta) no domínio da Aritmética. Assim foram demonstradas propriedades sobre números primos. Nesse recorte da HM, nos parece particularmente representativo a presença das inter-relações NAG. Essas múltiplas relações entre os diferentes domínios matemáticos auxiliaram na resolução de problemas e superação de certos obstáculos.

Deste modo, percebemos que o conhecimento matemático de referência tem apoio e utiliza as inter-relações existentes entre os domínios matemáticos, quando dispostos na organização desta disciplina (que se dá de forma cada vez mais sofisticada). Porém nossas constatações empíricas vêm mostrando que professores e estudantes apresentam dificuldades quanto à visualização do NAG, o que pode implicar diretamente nos modelos praxeológicos sustentados nas variadas instituições do sistema de ensino.

3 O NAG e a Didática da Matemática

Números e grandezas, Aritmética e Geometria sempre acompanharam o desenvolvimento de ciências como as da natureza e experimentais. Como exemplo disso, podemos citar a Mecânica aplicada às construções. Os estudos seguidos por Aristóteles, Varignon e Galileu, Huygens e Euler e ainda os seguidos por Jacques Bernoulli e Leibniz chegando até Lagrange e Colombo, permitiram o encontro da Arquitetura e da Geometria, da Matemática e da Mecânica, determinando, assim, um verdadeiro entrelaçamento de princípios e de regras, de números e grandezas (CORRADI, 2002CORRADI, M. Les rapports entre géométrie et arithmétique dans l'histoire de l’”art du batir” et de la “science des constructions”. In: COLLOQUE “LA PENSÉE NUMÉRIQUE”, Peyresq, 1999. Actes… Peyresq, CPN, 2002. p. 145-155.). Entretanto, as ligações entre estas áreas de conhecimento parecem ser pouco consideradas no ensino, em particular na Matemática, em que as dimensões dos problemas são mais acentuadas.

Considerando que o problema do fundamento da Matemática não é apenas lógico, mas sobretudo, um problema da epistemologia cognitiva, que exige uma reconstrução da gênese dos conceitos matemáticos estudados, observamos que todo projeto de ensino e aprendizagem da Matemática não deveria escapar da instauração de três grandes domínios: o numérico, algébrico e geométrico (BRONNER; FARIAS, 2010BRONNER, A.; FARIAS, L. M. S. Comment la profession prend-elle en compte les interrelations entre les domaines numérique-algébrique et géométrique? In: CONGRES INTERNATIONAL SUR LA THEORIE ANTHROPOLOGIQUE DU DIDACTIQUE, 2., 2007, Montpellier. Actes… Montpelier: IUFM, 2010. p. 449-461.), os quais têm potencial de sustentar as praxeologias matemáticas desenvolvidas em muitas instituições. Os domínios numérico e algébrico possuem relações bastante naturais fundadas nos números e no cálculo, constituindo o que denominamos de domínio numérico-algébrico, que, de certo modo, confronta a instituição com o problema didático da escolha da natureza da instauração desses dois domínios, estabelecendo assim um espaço numérico que compreende, em primeiro lugar, os números racionais e, depois, um espaço mais vasto, os reais (BRONNER, 1997BRONNER, A. Étude didactique des nombres réels. Idécimalité et racine carrée. Tese (Doutorado em Matemática: Educação Matemática) – Université Joseph Fourier, Grenoble, 1997.) e os complexos.

O processo transpositivo evoca também conhecimentos geométricos desde o começo do ensino, organizando um domínio chamado de geométrico (BRONNER, 2007BRONNER, A. Les nombres réels dans la transition collège-lycée: rapports institutionnels et milieux pour l'apprentissage. In: SÉMINAIRE NATIONAL DE DIDACTIQUE, 2007, Paris. Actes… Paris: IREM, 2007.p.261-276.). Porém o papel recíproco entre os domínios numérico-algébrico e geométrico restringe-se a alguns casos clássicos, permanecendo pouco utilizado na compreensão das atividades realizadas pelos professores e na ajuda que os mesmos podem fornecer aos estudantes durante a realização dos trabalhos que necessitam de mudanças de quadros no sentido de Regine Douady (1986)DOUADY, R. Jeux de cadres et dialectique outil-objet. Recherches en Didactique des Mathématiques, Grenoble, v. 7, n. 2, p. 5–31, 1986. e Raymond Duval (1988)DUVAL, R. Graphiques et équations: L'articulation de deux registres. Annalles de Didactiques et de Sciences Cognitives, Strasbourg, v. 1, p. 235–253, 1988.. A mudança de quadros, um processo caracterizado pela passagem de métodos de um domínio matemático para outro, empregado na resolução de problemas ou tarefas matemáticas, é um meio para obter formulações diferentes de um problema que permitem um novo acesso às dificuldades encontradas e a aplicação de instrumentos e técnicas que não se impunham na primeira formulação.

Desde as tradições geométricas gregas da época clássica, relações evidentes entre os três domínios emergem inevitavelmente como é o caso da exposição do Teorema de Pitágoras e do Teorema de Tales. No entanto, atualmente, não se sabe muito bem como ou se professores e estudantes trabalham as inter-relações existentes entre os domínios matemáticos, mais particularmente no NAG. Por esse motivo, são apresentados dois exemplos em que o NAG está presente e que podem constituir um MPA para professores e estudantes.

4 TAD: arcabouço teórico para compreensão do MPA-NAG

Nesse tópico apresentamos noções de base da Teoria Antropológica do Didático (CHEVALLARD, 1998CHEVALLARD, Y. Analyse des pratiques enseignantes et didactique des mathématiques: l’ approche anthropologique, 1998. Disponível em: http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip/. Acesso em: 2 abr. 2019.
http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip...
), que auxiliam na compreensão da proposta do MPA pautado nas inter-relações entre os domínios matemáticos numérico-algébrico e geométrico (MPA-NAG) aqui proposto.

Os objetos matemáticos ensinados hoje são, de forma geral, uma reorganização de um saber específico, para possibilitar o processo de ensino, sob a influência da Noosfera, procurando impor seus pontos de vista em função de seus interesses. Essa reorganização modela a atividade de uma pessoa diante de objetos do saber em instituições.

De maneira mais específica, a referida modelação da atividade matemática (AM) de uma pessoa que assume uma posição numa determinada instituição (p, I), é chamada no seio da TAD de Praxeologia Matemática, comumente representada por um conjunto de quatro “Ts” composto de dois blocos: saber-fazer e o tecnológico-teórico (logos). Assim, a praxeologia é representada na literatura por [T; τ, Ө, Θ], onde T é o tipo de tarefa, τ a técnica associada, Ө discurso tecnológico que justifica a técnica, Θ teoria associada (CHEVALLARD, 1998CHEVALLARD, Y. Analyse des pratiques enseignantes et didactique des mathématiques: l’ approche anthropologique, 1998. Disponível em: http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip/. Acesso em: 2 abr. 2019.
http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip...
).

Para tratarmos de Modelo praxeológico nos referimos à noção supracitada e fazemos uso dos símbolos T, τ, Ө, Θ para expormos as praxeologias que podem ou que são construídas numa instituição.

Outra noção relevante na discussão dos modelos praxeológicos, visto que tomamos a ideia de técnica para melhor informar como se materializa a presença do NAG nas praxeologias, é de objetos ostensivos e não ostensivos. Os primeiros são aqueles que têm uma forma material (CHEVALLARD, 1994CHEVALLARD, Y. Ostensifs et non-ostensifs dans l'activité mathématique. Actes du Séminaire pour l'année 1993-1994, Turin, v.1, p. 190-200, 1994.), mas são também gestos, palavras (discurso ostensivo), desenhos, gráficos, a escrita. Já os não ostensivos têm como característica a imaterialidade, ou a impossibilidade de ser manipulado diretamente, sem auxílio de um ostensivo. Nesse caso, temos como exemplo as noções, ideias, conceitos.

Numa instituição, a atividade humana modelada por uma certa praxeologia depende dos objetos ostensivos e não ostensivos, tanto no que tange às técnicas mobilizadas como os discursos que justificam tais técnicas. Assim, um modelo praxeológico requer a mobilização de objetos ostensivos e não ostensivos.

5 Exemplos de utilização do NAG

Tomando a Geometria Euclidiana e refletindo sobre seu local e função na Matemática escolar, facilmente inferimos sobre a lacuna que existe no seu trato didático no que tange sua relação com outros domínios da Matemática. Assim, no contexto atual, vemos o ensino da Geometria intervir mais para traduzir, interpretar ou representar os objetos do domínio geométrico, que para criar um espaço axiomático dedicado ao raciocínio.

Como nesse tópico objetivamos discutir uma proposição de um MPA, que considere as inter-relações do NAG, analisamos as praxeologias matemáticas potencialmente construídas para dois exemplos de tarefas que podem ser utilizadas no Ensino Fundamental, Médio ou Superior. É uma apresentação que, em termos de experimentação do modelo, representaria uma análise a priori do que poderia surgir como construção dos sujeitos de uma instituição.

Sejam A e B dois pontos (distintos) do plano euclidiano, representados no R2 por A (xA,yA) e B (xB,yB). A distância de A até B é o módulo do vetor AB = B – A, ou seja, a expressão “B – A” possui sentido dentro do sistema de coordenadas, posto que B – A = (xB – xA, yB – yA), sendo xA, xB, yA, yB números reais. Entretanto, a expressão “B – A” não tem sentido dentro da formulação de Euclides para a Geometria, posto que ele não estabelece uma operação entre pontos – neste caso, uma “subtração” entre pontos. Mas o problema de estabelecer a distância entre quaisquer dois pontos no plano permanece e desloca os gregos a outro tipo de problema: determinar um sistema numérico que dê conta de mensurar todas as grandezas oriundas da Geometria de Euclides.

Essas mudanças de quadro não são percebidas facilmente pelos estudantes. Às vezes, mesmo quando as diferentes representações do objeto são suficientemente familiares para os estudantes, as passagens parecem dificultadas (por exemplo, dos decimais às frações decimais). A função é outro desses objetos de representações múltiplas. Sua abordagem está associada a um mecanismo, depois a uma representação gráfica, e finaliza como ponto ou vetor no espaço das funções, não sendo necessariamente uma obrigação essa ordem de apresentação.

Pelo destaque dado à Álgebra e às mudanças de quadro nesse campo, o MPA poderia ser um caminho para reflexões sobre inquietações que tangenciam às questões: Como ensinar Álgebra? E como ensinar um objeto que integre ou inter-relacione a álgebra e outros domínios matemáticos, tais como o Numérico e o Geométrico?

No âmbito do ensino, podemos dizer que, a utilização de um determinado teorema da geometria plana no Ensino Médio para “demonstração de áreas” pode ser explorada no contexto numérico, como também as operações aritméticas elementares podem ser construídas no ambiente geométrico. Dito isto passemos a dois exemplos, que podem configurar como base de um modelo praxeológico que propicie as inter-relações NAG.

5.1 Os Complexos e o Plano Euclidiano

Considere a tarefa T1: Determinar o máximo e o mínimo, em módulo, dos complexos da forma eit + 2i – 2, com t ϵℝ.

Tomando a noção de modelo praxeológico pautado no NAG, devemos apresentar para tal ação humana (representada pela tarefa matemática acima) técnicas (τ) e discursos que justifiquem a mesma, geralmente referendadas por alguma tecnologia (θ).

No caso da tarefa acima, as soluções se iniciam com uma consideração algébrico-geométrica (as diferentes representações dos complexos), ou seja, são mobilizados objetos ostensivos para representar a noção matemática subjacente presente no tipo de tarefa. O discurso tecnológico-teórico [θ,Θ] - que justifica cada técnica – é apresentado à medida em que a técnica é descrita.

Seja f: ℝ ℝ dada por f (t) = |eit + 2i – 2|. Aqui explicitamos a primeira técnica a ser usada: τ1 consiste em expressar o módulo de tais complexos através de uma função, na tentativa de, por meio de valorações (por funções) reais, encontrar a solução desejada. Nossa proposta de reconhecimento aos objetos é restrita ao NAG e aos problemas de otimização (máximo e mínimo) através de resultados gerais para funções (o chamaremos de tecnológico θ1) são comumente abordados no campo da Análise, portanto fora do NAG. Mais adiante, deixaremos evidente porque vamos desvincular τ1 de θ1. Nossa primeira investigação se dará no campo de validação do problema: é possível afirmar que o módulo dos complexos eit + 2i – 2 não “explode”? Em outras palavras, é possível pelo menos afirmar que existe um número real M > 0 que majora a expressão |eit + 2i – 2|?

Relembremos que eix = cos x + i sen x, para todo x ϵ ℝ. Utilizando a noção de módulo para complexos, tem-se |eit| = 1, para todo t em ℝ, isto é, tais complexos têm módulo igual a 1.

Até aqui, tratamos do problema dentro da asser ção original: apresentamos os complexos (domínio algébrico) escritos através da expressão-problema em T1, para os quais desejamos saber os valores máximo e mínimo (domínio numérico). Aqui será feita a primeira mudança de quadro na busca por uma solução: saíremos do numérico-algébrico em direção ao geométrico.

Convém destacar a primeira condição institucional de natureza epistemológica (CE1) para realização da mudança de quadros: o espaço ℝn, munido do produto interno usual, é modelo para a Geometria Euclidiana (representação de Desargues-Hilbert).

Considere a apresentação usual dos complexos como elementos de ℝ[i] (uma extensão do corpo dos reais):

= [ i ] = { a + bi ; a , b , i 2 = 1 } .

Por outro lado, podemos representar os complexos como elementos do plano euclidiano, isto é, um complexo pode ser entendido como um elemento de ℝ2:

2 = { ( a , b ) a , b } .

O isomorfismo natural ℝ2 ℂ(uma formalização algébrica a este fato geralmente pode ser vista em algum curso de Álgebra Linear), entre espaços vetoriais reais, é nossa primeira tecnologia θ2:

a + b i ( a , b ) .

A técnica τ2 a ser utilizada é a aplicação imediata do resultado acima: representar os complexos como pontos do plano ℝ2.

Consideremos os seguintes elementos: o ponto O (0,0), fixado, que é a origem do ℝ2; o ponto A (2,–2), fixado, que diz respeito ao problema; um ponto P = P(t) = (cos t, sen t) qualquer na esfera unitária centrada na origem, denotada por S1 (S1 ⊂ ℝ2), que pode ser apresentado em função de um parâmetro real, digamos t. Aqui há uma outra tecnologia θ3 associada: a parametrização de curvas. A partir de θ3, vamos considerar a técnica τ3: representar os pontos de S1 através da expressão (cos t, sen t), para algum parâmetro real t.

Dados dois pontos distintos A e B, denotemos AB como o segmento orientado, com origem em A e “chegando” em B. Neste contexto, ABBA, embora d(A,B) = d(B,A), em que d denota a distância (também um real não negativo) entre os pontos A e B.

Comecemos com uma solução geométrica. Por causa do isomorfismo exposto em θ1, a noção de “módulo de um complexo” coincide com a “norma euclidiana” de um vetor de ℝ2; usaremos o isomorfismo supracitado para reescrever nossa função.

f ( t ) = | e i t + 2 i 2 | f ( t ) = | 2 2 i e i t | f ( t ) = | ( 2 2 i ) ( cos t + i sen t ) | ( u s a n d o a t é c n i c a τ 2 ) f ( t ) = | ( 2 , 2 ) ( cos t , sen t ) |

A última linha da equação acima nos diz que

f ( t ) = | O A O P | = | A P | = d ( A , P ) ,

na qual | | é a norma euclidiana do ℝ2 e d(A,P) é a distância euclidiana de A até P = P(t). Módulo de um complexo coincide com a norma de um vetor no ℝ2 (vide θ1).

Portanto, a última linha da equação acima nos diz que a função f é a valoração da distância do ponto A (2, –2) a um ponto qualquer de S1, a esfera unitária. Isto torna evidente a técnica τ1: analisar a imagem da função f é equivalente a analisar os valores associados ao módulo dos complexos da forma eit + 2i – 2, com t ϵℝ..

Figura 1
Esboço vetorial do problema

Uma vez estabelecida a representação do plano (axiomático) euclidiano no espaço ℝ2, vamos utilizar mais uma tecnologia de natureza geométrica: a desigualdade triangular, que neste trabalho denominaremos θ4.

Desigualdade triangular (DT, θ4): consideremos três pontos distintos no plano euclidiano; eles são não colineares, formando um triângulo, se, e somente, a medida de qualquer lado é sempre menor que a soma das medidas de dois lados quaisquer; eles são colineares se, e somente se, podemos expressar a medida de um segmento como sendo igual à soma das medidas de outros dois.

Avaliando a desigualdade triangular nos pontos O, A e P (técnica τ4) obtemos

d ( A , P ) d ( O , A ) + d ( O , P ) d ( O , A ) d ( P , O ) + d ( P , A ) d ( O , P ) d ( A , O ) + d ( A , P )

Denotemos por X*Y*Z ao entremeamento de três pontos colineares X, Y e Z, expresando “Y está entre X e Z”. A igualdade ocorre – conforme θ4 – se, e somente se, X, Y e Z são colineares; há exatamente três possibilidades de entremeamento, fornecendo três equações particulares.

Quadro 1
Relação entremeamento e equações

Note que d(A,O)=d(O,A)=OA=(2,2)=22>1=OP=d(O,P).

O entremeamento tipo III, portanto, é impossível para τ4, já que a distância é sempre um valor não negativo, em particular d(A,P). Logo, podemos reduzir nossa busca por soluções:

Quadro 2
Relação entremeamento e equações II

Seja θ5 a congruência módulo 2π aplicada à soluções do ciclo trigonométrico e seja τ5 a técnica utilizada neste problema. Sejam t1 e t2 tais que

d ( A , P ( t 1 ) ) = 2 2 + 1 ( E n t r e m e a m e n t o I ) d ( A , P ( t 2 ) ) = 2 2 1 ( E n t r e m e a m e n t o I I )

Por θ5:

  • t1 solução ao Entremeamento I ⇒ t1,k = t1 ± k·2π é solução ao Entremeamento I, para qualquer inteiro k (τ5).

  • t2 solução ao Entremeamento II ⇒ t2,k = t2 ± k·2π é solução ao Entremeamento II, para qualquer inteiro k (τ5).

Como P(t1,k), P(t2,k), O e A são colineares, para qualquer k inteiro, segue que

t 2 = t 1 ± π

e podemos resumir τ5 como a seguir.

τ5: as soluções aos Entremeamentos I e II são da forma

t 1 , m = t 1 ± m π,

para qualquer inteiro m.

Se s ≠ t1 ± m⋅π, para qualquer inteiro m, temos P = P(s) = Ps não colinear com O e A (Figura 2) e estamos nas condições usuais (triângulo não degenerado) da DT:

d ( A , P s ) < d ( O , A ) + d ( O , P s ) .

A equação acima pode ser melhorada:

d ( O , A ) d ( O , P s ) = 2 2 1 < d ( A , P s ) < 2 2 + 1 = d ( O , A ) + d ( O , P s ) .
Figura 2
Esboço geométrico do problema.

De forma mais geral, se t é um parâmetro real qualquer e P = P(t) = Pt é um ponto (arbitrário) de S1, então

d ( O , A ) d ( O , P t ) = 2 2 1 < d ( A , P t ) < 2 2 + 1 = d ( O , A ) + d ( O , P t ) .

Aqui é estabelecida uma resposta ao problema da maximalidade: embora a proposta técnica-tecnológica (τ11) seja muito recorrente aos problemas de maximização ou minimização, abandonamos θ1 e recorremos a θ4 (DT) para estabelecermos uma solução dentro do NAG.

Voltemos à busca pelas soluções ótimas, que ocorrem exatamente quando P se encontra na mesma reta determinada por O e A. Ainda dentro da CE1, por meio de técnicas e tecnologias que, embora contempladas pelo NAG, preferimos não explicitar (isto é, trazer ao corpo deste texto os objetos ostensivos que as justificam) um modo para determinar a reta que passa pelos pontos O e A; tal reta está associada à equação por x + y = 0 e é conhecida como segunda bissetriz (do plano ℝ2). A segunda bissetriz tem por coeficiente angular o ângulo 135° = 3π/4 = comprimento do arco (no sentido anti-horário) do ponto O’(1,0) ao ponto P = Pt = (cos t, sen t). É importante salientar que isto está coerente com a aplicação (τ33).

Figura 3
Análise da solução: distância máxima ou mínima entre A e S1

Considerando a representação usual do círculo trigonométrico para o S1, percebemos que as soluções do problema de maximização/minimização estão associadas a dois ângulos distintos, dentro do intervalo [0,2π[= [0°,360°[:

θ1 = 135° = 3π/4 = t1;

θ2 = 315° = 135° + 180° = 3π/4 + π = t2.

Portanto, as soluções P ϵ S1 para o problema podem ser dadas como a seguir:

  • P1 = (cos (135°), sen (135°)) = (2/2,2/2) é a solução que maximiza a distância entre A e S1; 135° = 3π/4; portanto, t1 = 3π/4 é uma solução que maximiza o módulo de eit + 2i – 2.

  • P2 = (cos (315°), sen (315°)) = (cos (45°), – sen (45°)) = (2/2, –2/2) é a solução que minimiza a distância entre A e S1; 315° = 7π/4; portanto, t2 = 7π/4 é uma solução que minimiza o módulo de eit + 2i – 2.

Note que a solução maximizante não é única: se t1 = 3π/4 é uma solução, então os arcos côngruos a t1, que são da forma t1 ± 2kπ, com k ϵ ℤ, também serão soluções a este problema. Mutatis mutandis, o mesmo pode ser dito das soluções maximizantes.

Pensar a solução da tarefa T1 de acordo com um MPA cujos fundamentos estão relacionados ao NAG, significa explorar não só técnicas de cada domínio matemático que o compõe, mas acima de tudo as inter-relações entre domínios. Outra opção, menos sofisticada, é que esse modelo surja de forma ainda fragmentada, à medida em que a solução seja apresentada com técnicas em que não se promova a mudança de quadros, e não considere os três domínios do NAG, mas isso não garante a essência do MPA proposto. Esse modelo praxeológico, não é comum nas instituições nas quais o objeto matemático mobilizado em T1 tem vida e função, por isso, é posto aqui como alternativo.

5.2 Triângulos aleatórios

Vamos ilustrar esse tema com a tarefa: (T2) Determinar a probabilidade, cortando aleatoriamente um espaguete em três partes, de se construir um triângulo usando essas três partes.

Considerando cortar um espaguete em três, vamos representar todo o espaguete em um segmento de comprimento 1 e vamos dividir este segmento em três partes que não são, necessariamente, iguais. Essas ações que compõem uma técnica para T2 são ingredientes da técnica (surgem na forma de subtarefas) e informam sobre passos a serem seguidos na resolução da tarefa. Os dois cortes correspondem a escolha aleatória de dois números reais, x e y, com x, y ϵ]0,1[.

Voltando a técnica (τ5) dessa tarefa, uma parte terá medida x, outra parte terá medida y e, obviamente, a última parte terá medida igual a 1 – (x + y). A situação lúdica será formalizada (com um rigor mínimo) da seguinte forma: cada pedaço de espaguete representa um segmento de reta, de tal modo que o extremo do pedaço de espaguete é o extremo do segmento de reta associado; sobre tais segmentos faremos movimentos rígidos no plano e a pergunta do problema reformulada: É possível coincidir os extremos de segmentos distintos, de modo que possamos obter uma poligonal fechada?

A proposta da Tarefa já menciona “cortar o espaguete em 3 pedaços”, que é a representação lúdica do “dividir um segmento unitário em 3 partes”, isto é, teremos por subtarefas a mensuração de 3 novos segmentos; a tecnologia θ5 associada é a valoração real positiva para segmentos de reta, comumente conhecida por Axioma de Medição de Segmentos (da Geometria Euclidiana).

Continuando dentro de uma descrição mais formal, deseja-se saber se a poligonal formada pela justaposição de 3 segmentos é fechada. Uma poligonal fechada formada por 3 segmentos é um triângulo e isto justifica a questão da tarefa no tocante a poder construir um triângulo com as três partes. O ‘triângulo’ a tarefa, formado por 3 pedaços de espaguete, representa (ludicamente) o objeto matemático ‘triângulo’ da Geometria Euclidiana (Θ1).

Denotemos a, b e c da seguinte forma:

a = min { x , y } ; b = max { x , y } min { x , y } ; c = 1 ( a + b ) .

A terceira equação nos diz, em particular, que a + b + c = 1. O triângulo será construído considerando que os comprimentos dos seus lados são a, b e c, satisfazendo duas condições: a desigualdade triangular (θ4) e a equação a + b + c = 1 (τ5). Estas duas condições implicam que a < ½, b < ½ e c < ½, portanto implicam na seguinte: max{a,b,c} < 1/2.

Com um editor de planilhas freeware (OpenCalc) podemos proceder, como abaixo4 4 Breve descrição dos comandos nesta planilha. Fixada a quantidade de 6 casas decimais, ALEA() fornece um número entre 0 e 1 arbitrariamente escolhido. MIN(A,B) é o menor valor, nesta linha, entre os valores das colunas A e B; respectivamente, MAX(A,B) é o maior valor. O comando SE(F<0,5;1;0) funciona da seguinte forma: ele vai comparar o valor, naquela linha, do elemento da coluna F com 0,5; se é verdadeiro que tal valor é (estritamente) menor que 0,5, retorna o valor 1; caso contrário, retorna o valor 0. , numerosas séries de simulações.

Tabela 1
Exemplo de uma série com 4 simulações do problema

Na tabela anterior, apenas um caso, de um total de quatro, atende as condições do problema. Nessa amostra, a probabilidade de resolver o problema é 1/4 = 0,25.

Aqui está clara a mudança de registro, pois saímos do numérico-geométrico e ingressamos no numérico (puro). Ao escrever a tabela conforme acima, fizemos a formulação numérica do problema (que advém da Geometria, conforme discussão anterior). O comando ALEA() nos fornece um número arbitrário no intervalo]0,1[(domínio numérico) e, após isso, segue-se as rotinas na tabela. Depois, procedemos com a contagem (domínio numérico) entre o total de casos e a quantidade de casos favoráveis – chamaremos tal abordagem técnica-tecnológica de (τ6, θ6) – e efetuamos o cálculo da probabilidade P:

P = ( parte ) / ( todo ) = ( casos favoráveis ) / ( casos possíveis ) = 1 4 = 0 , 25.

Foram observadas, em 10 séries de 500 simulações, a seguinte sequência de probabilidades de se obter uma solução válida: 0,236; 0,262; 0,220; 0,236; 0,246; 0,256; 0,266; 0,230; 0,260; 0,248. Para tanto, foram utilizadas leis de probabilidades uniformes e contínuas.

Voltemos ao NAG e, tal como na tarefa anterior, utilizaremos os recursos da Geometria Analítica na busca de soluções. Os números x e y estão compreendidos entre 0 e 1. Pela simetria do problema, podemos supor que x < y, obtendo assim todos os pontos que estão no triângulo superior (acinzentado) da figura a seguir:

Figura 4
Solução gráfico-cartesiana ao problema dos espaguetes

O máximo dos três comprimentos que correspondem aos três números x, y–x e 1–y deve ser inferior a 12. Há três inequações que permitem construir a zona acinzentada no triângulo. A aplicação da lei uniforme sobre os domínios de ℝ2 nos leva à probabilidade verificada [θ, Θ]: a relação entre a área do triângulo hachurado (solução do problema) e a área do triângulo acinzentado (condição inicial, com y > x) é14=0,25.

Assim como na tarefa T1, a presente tarefa evoca técnicas que buscam apoio tecnológico-teórico nos três domínios que integram as inter-relações NAG e os caminhos que podem ser seguidos no caso da opção pela institucionalização desse modelo praxeológico são os mesmos. Cabe-nos, então, chamar atenção de outro aspecto importante na proposição e/ou experimentação de modelos praxeológicos, nesse caso específico do MPA-NAG, que é o papel das tarefas no contexto de tal modelo. São elas que darão o contorno da praxeologia que pode ser construída. Da mesma forma, vão estabelecer condições para que o saber viva numa instituição, também dirá muito sobre supostas dificuldades dos membros dessa instituição, sendo, pois, um elemento chave na discussão sobre modelos praxeológicos.

6 Considerações finais

Os exemplos levantados apresentam resoluções usando o NAG, cuja experimentação é possível no contexto de formação de professores de Matemática. Os modelos praxeológicos, bem como a análise desses, são importantes ferramentas para atuação em fenômenos didáticos. O caso específico do MPA caracterizado nesse artigo, arriscamos dizer que é alternativo pela sua busca de proposição de tarefas visando as inter-relações entre domínios matemáticos, que pode ser ampliado para outros domínios não abordados aqui.

Propor a (re) construção de um modelo praxeológico é uma tarefa viável para as instituições especialmente no que se refere ao trabalho do professor. Mas há que se destacar a necessidade de conhecer o MPD posto na instituição, evocar aspectos da epistemologia e história dos saberes, atentar-se para o tipo de tarefa que será proposta e buscar a indissociabilidade do saber-fazer e do logos nas praxeologias que poderão ser construídas a partir dos modelos propostos.

  • 1
    “Uma instituição I é um dispositivo social, ‘total’, que certamente pode ter pequenas extensões no espaço social (existem ‘micro-instituições’), mas que permite – e impõe – a seus sujeitos, isto é, às pessoas (x) que ocupam diferentes posições (p) ofertadas em I, o envolvimento de maneiras de fazer e pensar próprios – ou seja, as praxeologias’ (CHEVALLARD, 2009CHEVALLARD, Y. La TAD face au professeur de mathématiques. 2009. Disponível em: http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip/IMG/pdf/La_TAD_face_au_professeur_de_mathematiques.pdf. Acesso em: 10 fev. 2019.
    http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip...
    , p. 2, grifo do autor, tradução nossa).
  • 2
    Uma dessas identidades é o Teorema de Pitágoras, que estabelece uma relação métrico-quadrática entre as medidas dos lados de um triângulo retângulo; como a medida de comprimento é um número real não negativo, o Teorema de Pitágoras é compreendido dentro do domínio numérico-algébrico.
  • 3
    Números reais aqui: ideia ingênua e não formalizada de acordo com os avanços da Análise, principalmente nos séculos XIX e XX.
  • 4
    Breve descrição dos comandos nesta planilha. Fixada a quantidade de 6 casas decimais, ALEA() fornece um número entre 0 e 1 arbitrariamente escolhido. MIN(A,B) é o menor valor, nesta linha, entre os valores das colunas A e B; respectivamente, MAX(A,B) é o maior valor. O comando SE(F<0,5;1;0) funciona da seguinte forma: ele vai comparar o valor, naquela linha, do elemento da coluna F com 0,5; se é verdadeiro que tal valor é (estritamente) menor que 0,5, retorna o valor 1; caso contrário, retorna o valor 0.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Abr 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2019
  • Aceito
    20 Set 2020
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