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Poderia Me Dizer que Caminho do Ensino da Matemática Devo Tomar?

Would You Tell Me Which Way of Teaching Mathematics I Should Walk?

Resumo

A pandemia da Covid-19 desestabilizou as práticas escolares e, rapidamente, o aparelho de Estado iniciou um movimento de (re)organização que impôs modelos de ensino e comportamentos durante o isolamento social. Este texto discute ideias a respeito da norma, normalização, “novo normal”, diante dos processos escolares percorridos durante a pandemia, buscando tensionar novas estruturas que instituem velhos modelos. Problematizamos o conceito de vontade de normalidade, regras, regimentos a partir das conexões com a Filosofia da Diferença, evidenciando linhas de força e subjetivações em aulas de Matemática do programa Residência Pedagógica junto às turmas de 3º ano do Ensino Médio Integrado de um Instituto Federal e de uma escola estadual. Fazendo conexões com a obra “Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, construímos mapas que mobilizam ideias outras no ensino de Matemática, que possibilitam a afirmação do acontecimento enquanto potência de diferenciação do sujeito em uma aula de Matemática.

Vontade de Normalidade; Filosofia da Diferença; Linhas de Força; Ensino Remoto; Cartografia

Abstract

The Covid-19 pandemic destabilized school practices and, quickly, the State apparatus started a movement of (re)organization that imposed teaching and behavior models during the social isolation. This text discusses ideas regarding the norm, normalization, and the "new normal" in the face of the school processes that took place during the pandemic, seeking to tense new structures that institute old models. We problematize the concept of will to normality, rules, and regiments from the connections with the Philosophy of Difference, highlighting lines of force, affections and subjectivations in mathematics classes of the Pedagogical Residency Program of the third years of Integrated High School of a Federal Institute and a state school. Making connections with the work "Alice's Adventures in Wonderland", we built maps that mobilize other ideas in mathematics teaching, which enable the affirmation of the event as a potency of differentiation of the subject in a mathematics class.

Will to Normality; Philosophy of Difference; Lines of Force; Remote Teaching; Cartography

1 O Coelho Branco

“Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Estou muito atrasado!” (quando pensou nisso, bem mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter estranhado; porém, naquele momento, tudo lhe pareceu perfeitamente natural) ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 19).

O Coelho Branco, sempre atrasado, corre contra o tempo, satisfazendo a normalidade. Com as linhas de força dessa estória, movimentamos o conceito de vontade de normalidade em conexão com a Filosofia da Diferença, discutindo as práticas e táticas em aulas de Matemática durante o isolamento social, devido a pandemia SarsCovid-191 1 Pandemia SarsCovid-19, com início no Brasil em março de 2020. . As problematizações deste texto foram mobilizadas a partir de um trabalho de conclusão de curso2 2 Destacamos que esse texto é um desdobramento do trabalho “A descida pela toca do coelho: a Vontade da Normalidade na aula de Matemática” (Dugois; Tártaro; Silva, 2022), submetido ao IX Congresso Ibero-Americano de Educação Matemática. , que teve como objetivo cartografar aulas de Matemática dos 3º anos do Ensino Médio do Instituto Federal de São Paulo e de uma escola estadual do município de Birigui, realizado no Programa de Residência Pedagógica3 3 O Programa de Residência Pedagógica é financiado pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). .

Para a construção deste texto, praticamos a cartografia, de modo que, num exercício de estar atentas às linhas de força, buscamos pistas, nos Registros dos residentes 4 4 Os Registros dos residentes são os trechos que surgirão no texto em itálico. , de uma vontade de normalidade nas aulas de Matemática. A cartografia permite esse processo de engendrar linhas de força, mobilizar afetos, operar a partir dos encontros com textos, corpos, discursos, sujeitos, coisas, entre outros.

Quanto à cartografia, com Silva et al (2013) reforçamos que esse termo diz respeito a cartografia da subjetividade humana, na qual o mapa em questão não é um mapa físico que delimita as fronteiras de territórios, nem visa mapear as metodologias e práticas dos professores de Matemática e outros sujeitos da escola, mas sim um mapa das subjetivações humanas de acordo com Foucault (2010)FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito . 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. .

O exercício da cartografia está apoiado, principalmente, na filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), “uma vez que, esses filósofos a tratam como uma prática do conhecer que está além de apenas reconhecer, mas, sim, criar, (re)inventar o que já se conhece” ( Silva; Tártaro, 2023SILVA, M. T; TÁRTARO, T. F. Cartografias de professoras: a quarta dimensão em aula de matemática. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 49, p. 1-18, 2023. ). Movimentar esses conceitos nos interessa enquanto Educadoras Matemáticas que procuram caminhos que abram margem para outras formas de produzir a escola e a aula de Matemática, rotas vinculadas a um pensar como ação e não como reprodução.

Evidenciando as linhas de força e atentas aos modos de subjetivação que percorrem este território, buscamos desvios, fugas, criações que potencializam um ensino às margens da recognição ( Deleuze, 2006DELEUZE, G. Diferença e Repetição . Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal. 2006. ), para além do certo ou errado, das respostas que privilegiam o fazer como o professor, que favorecem o exercício de verificação do mesmo: reprodução de uma única matemática. “Nada aprendemos com aquele que nos diz: faça como eu. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem ‘faça comigo’ e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo” ( Deleuze, 2006DELEUZE, G. Diferença e Repetição . Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal. 2006. , p. 48, grifos do autor).

Movimentamos o conceito de normalidade em Gallo (2021) e linhas de fuga em Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995 (Vol. 1). , criando possibilidades outras nas quais os sujeitos produzem Matemáticas5 5 O termo matemáticaS é utilizado pelo grupo Phala. Mais informações em: https://www.phala.fe.unicamp.br/ . , com s . Nosso propósito é fazer um mapa das linhas de força encontradas nas aulas de Matemática, cartografando os afetos e subjetivações existentes neste espaço, caminho que se justifica nas palavras de Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995 (Vol. 1). , quando, ao falarem do conceito de mapa, o identificam como aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Para eles, o mapa pode ser rasgado, revertido, adaptado a montagens de qualquer tipo, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, ou construí-lo como uma ação política. “Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ao mesmo” ( Deleuze; Guattari, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995 (Vol. 1). , p. 22).

Mas quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, deu uma olhada nele e acelerou o passo, Alice ergueu-se, porque lhe passou pela cabeça que nunca em sua vida tinha visto um coelho de colete e muito menos com relógio dentro do bolso. Então, ardendo de curiosidade, ela correu atrás dele campo afora, chegando justamente a tempo de vê-lo sumir numa grande toca sob a cerca. No instante seguinte, lá estava Alice se enfiando na toca atrás dele, sem nem pensar de que jeito conseguiria sair depois. [...] Ou o poço era muito fundo, ou ela caía muito devagar, porque enquanto caía teve tempo de sobra para olhar à sua volta e imaginar o que iria acontecer em seguida ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 19).

2 O Gato Sorridente

O que pode um Gato com sorriso? Ou um sorriso sem Gato? Somos ser(es). Elementos de passagem. Sujeitos em mutação. Somos variáveis, ser(es) com a potência de mudar a cada instante. Nada fixo, determinado, acabado, configurado. A imprevisibilidade de uma pandemia. O sistema bugou ? E a escola? “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?” ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 76).

Caindo, caindo, caindo…

Era dia 14 de março de 2020, estávamos acompanhando a formatura de uns colegas. Entre amigos, ao ver os formandos pensávamos quando seria a nossa vez. Qual seria a sensação de usar uma beca ou até mesmo fazer um juramento e receber um diploma? Só faltavam dois anos para que eu estivesse naquele mesmo auditório, recebendo meu diploma de licenciada em matemática. A formatura terminou, todos jogaram seus capelos para cima. Ao final da cerimônia algo inusitado aconteceu. O diretor do câmpus anunciou que em decorrência do novo coronavírus, que vinha se espalhando pelo país, as aulas ficariam suspensas por um período de 15 dias. Eram só 15 dias. Comentamos que logo estaríamos de volta e que aquilo não viraria nada (Registro de um residente, 2021).

Fomos acometidos por uma Pandemia Mundial. Informações desencontradas. Para alguns médicos e governantes era só uma gripezinha . No mundo morreram, aproximadamente, 6,5 milhões de pessoas pela Covid-19. No Brasil, discursos de ódio e solidariedade ecoavam em um contexto marcado pela necessidade de um distanciamento social. Pânico. Incertezas. Surgem discursos que mobilizam novas ordens. A escola terá que se (re)inventar ou se adequar ao novo normal ? “E agora, como vou dar aula sem minha lousa?” (Professor, 2021)6 6 Os trechos em itálico referem-se às falas dos sujeitos (professores e alunos da Educação Básica) que participaram das aulas de Matemática realizadas durante a pandemia. Tais trechos foram produzidos pelos residentes ao longo do Programa de Residência Pedagógica, IFSP, Câmpus Birigui. . O ensino remoto foi o recurso usado para manter vigente a educação escolar. “Não consigo prestar atenção na aula online porque slides são chatos demais!” (Aluno, 2021). Os sujeitos da escola precisaram usar computadores para aprender e para ensinar. “Você só percebe que não sabe quando precisa usar a ferramenta” (Professor, 2021). Somos analfabetos digitais, dizem os professores ( OLIVEIRA; JUNIOR, 2020OLIVEIRA, D. A.; JUNIOR, E. A. P. Trabalho docente em tempos de pandemia: mais um retrato da desigualdade educacional brasileira. Revista Retratos da Escola , Brasília, v. 14, n. 30, p. 719-735, set./dez. 2020. ). “Como vou saber se estão aprendendo se não consigo sequer ver suas fisionomias?” (Professor, 2021). Empresas multinacionais de tecnologia disponibilizaram suas ferramentas. Canais de TV aberta transmitiram aulas para a educação básica pública7 7 No caso do estado de São Paulo isso ocorreu a partir do Centro de Mídias da Educação de São Paulo - CMSP (disponível em: https://centrodemidiasp.educacao.sp.gov.br/ , acesso em 28 de out. de 2022). . Com as precárias condições tecnológicas ( wi-fi, internet , computador, celular compatível, entre outras) da maioria dos alunos da Educação Básica pública foi evidenciado a desigualdade educacional no país. “Desculpa professora, ontem minha internet caiu e não consegui acompanhar a aula” (Aluno, 2021).

O aparelho de Estado, com suas concepções de estabilidade, hierarquia, identidade, cumpre seu papel ao consolidar o desnível social sob o véu de um discurso de que estávamos todos no mesmo barco. “Ah, mas não dá pra fechar tudo e deixar todo mundo em casa, né?” (Professor, 2021). Não. As avaliações externas devem permanecer, o Enem8 8 Exame Nacional do Ensino Médio. e os vestibulares não podem ser adiados, as engrenagens do sistema de seleção precisam garantir que a Educação siga seu curso normal/normalizante. “ Prestem atenção aqui, esse exercício é figurinha carimbada no vestibular!” (Professor, 2021). A escola não pode parar! Táticas e práticas docentes reproduzindo um modo escola. “Pessoal, já trouxe esse exercício pronto no slide porque não podemos perder tempo!” (Professor, 2021). A recognição ( Deleuze, 2006DELEUZE, G. Diferença e Repetição . Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal. 2006. ) vinculada aos engendramentos do ensino remoto.

Continuávamos caindo, caindo, caindo….

É difícil focar na aula quando você acorda e é bombardeado de informações. Notícias sobre o governo. “Record” de mortes pela COVID. Onze pessoas no Brasil ficaram bilionárias e entraram para a lista da Forbes. A fome no país cresce. Mais da metade da população brasileira não tem garantia de comida na mesa. Pouco tempo antes da aula começar, a notícia de que mais uma vez o governo está discutindo a respeito de tirar a isenção tributária dos livros, para arrecadar mais dinheiro para a compra de medicamentos e investimento na saúde, alegando que apenas pessoas ricas leem e só quem possui dez ou mais salários-mínimos como renda, compram livros. Em contrapartida, o governo perdoa uma dívida de 1,4 bilhões de reais das igrejas. Como conseguir focar na aula quando tudo isso acontece em um só dia? (Registro de um residente, 2021)

Discursos, práticas que (des)potencializam o sujeito. Maquinarias para capturar modos de vida. Slogans que operam modos de funcionamento e ordem de fluxos. O sistema não perde tempo, captura o fluxo do incerto e apresenta a solução: Ensino Remoto. “ Agora é o ambiente virtual ”(Professor, 2021). Ferramentas para esse ambiente de ensino, pouco ou quase nada usadas nas escolas. Separados, afastados, trancados, isolados de nós mesmos e dos outros, fomos submetidos ao que o sistema chamou de novo normal ( Figura 1 ).

Figura 1
– Registros da aula de Matemática realizada pelos residentes

Tal qual Alice, que entra na toca do Coelho, também entramos no contexto do ensino remoto sem saber aonde chegar. Tivemos que lidar com as tecnologias para realizar as atividades que faziam parte de uma vida escolar. As discussões no âmbito da Educação se pautavam em descobrir quais aplicativos utilizar, como expor o conteúdo aos alunos, como adaptar as aulas para o ensino remoto, quais atividades poderiam ser realizadas de maneira síncrona ou assíncrona. Atravessamos territórios pouco conhecidos: plataformas e aplicativos para reuniões online , aplicativos de comunicação, ambientes virtuais de aprendizagem (AVA), ferramentas de busca, plataformas para armazenamento de arquivos, entre outros. As questões da escola eram acessadas por computadores e smartphones . Não mais corpos físicos, mas sim nomes de usuário ( Figura 2 ).

Figura 2
– Registros da aula de Matemática realizada pelos residentes

Imagem sem rosto. Foto com filtro. “Tem gente aqui que nunca abriu a câmera. Se eu ver na rua, não vou nem reconhecer” (Professor, 2021). Forma-corpo-rosto: sentado em frente a tela. Maquinaria da rostificação? Padronização de um modo de ser aluno de Matemática? “Jorge, você está falando com o microfone fechado” (Professor, 2021). Emissor e receptor no ensino remoto. “Minha mãe disse que não me aguenta mais em casa” (Aluno, 2021). Escola-fábrica de abrigar sujeitos. “Quantas aulas de matemática você consegue dar sem lousa?” (Professor, 2021). Corpos engendrados no dispositivo9 9 Um dispositivo é uma rede de relações estabelecidas entre “[...] discursos, instituições, arquitetura, regramentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, o dito e o não dito” ( Castro, 2009 , p. 124). aula de Matemática na pandemia. “ Após resolverem a prova, escaneiem as questões e me enviem em PDF pelo e-mail ”(Professor, 2021). Copiar na prova. Vigiar as provas. “Disponibilizei uma lista de exercícios no sistema para vocês treinarem” (Professor, 2021). Manutenção e adaptação das práticas de recognição. Linhas de força que produzem vigilância e controle da forma-corpo-rosto. Vetores encontrados na aula de matemática no isolamento social. “ Quando a aula acaba e eu desligo o computador, a única coisa que consigo sentir é solidão ”(Professor, 2021).

‘Gostaria … de conseguir ficar contente!’ a Rainha disse. ‘Só que nunca lembro a regra. Você deve ser muito feliz, vivendo neste bosque e ficando contente quando lhe apraz!’ ‘Só que isto aqui é tão solitário!’ disse Alice, melancólica; e à ideia de sua solidão duas grossas lágrimas lhe rolaram pelas faces ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 226, grifos do autor).

Teoricamente, as tecnologias apresentam ferramentas para o ensino da Matemática na escola. As metodologias ativas ganham destaque, com o discurso de que o aluno é o protagonista de sua aprendizagem. Novas estruturas que instituem velhos modelos. Repetição que nos desloca de um ensino tradicional a outro progressista, que permanece dentro da normalidade delimitada pela maquinaria estatal. Progressismo que institui o velho conjunto de normas responsáveis por definir perfis estudantis, docentes e educacionais a serem reproduzidos. Não se trata de repetir apenas o modelo tradicional-expositivo, mas sim uma série de modelos (re)ativos. Trata-se de um “aperfeiçoamento das coleiras, ou, antes, o aperfeiçoamento da representação da utilidade de coleiras” ( Rancière, 2019RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de Lílian do Valle. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. , p. 168). Tal qual Alice, continuamos caindo devagar demais, tão lentamente que conseguimos olhar em volta e nos perguntar: o que faremos agora? Qual saída temos?

‘Depende bastante de para onde quer ir’, respondeu o Gato.

‘Não me importa muito para onde’, disse Alice.

‘Então não importa que caminho tome’, disse o Gato.

‘Contanto que eu chegue a algum lugar’, Alice acrescentou à guisa de explicação.

‘Oh, isso você certamente vai conseguir’, afirmou o Gato, ‘desde que ande o bastante’ ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , pp. 76-77, grifos do autor).

3 O Chapeleiro Maluco

A escola, o ensino, a Matemática, os sujeitos funcionam diante de concepções de estabilidade fundadas, alicerçadas, regimentadas a partir de uma espiral que nos conduz a uma série de habilidades (matemáticas), máquinas de conservação que regulamentam sua organização. “Que espécie de gente vive por aqui?” ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 77). O Gato comunica a Alice que de um lado da estrada vive um Chapeleiro e do lado oposto vive uma Lebre de Março. “Visite qual deles quiser: os dois são loucos.” ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 77). A instituição escola codifica e qualifica as práticas do ensino, “cada uma é como um sujeito de enunciado, dotado de um poder relativo” ( Deleuze; Guattari, 1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997 (Vol. 5). , p. 9). Se a escola se organiza de modo a sustentar a concepção de estabilidade, hábitos, como percorrer rotas de fuga que engendram práticas e táticas que desviam da normalidade?

Para Nietzsche (2004)NIETZSCHE, F. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. o hábito é uma ação herdada pelo sujeito, é o aceitar de uma crença baseada em costumes. É nessa névoa de opiniões e hábitos que o sujeito cresce e vive. É desta ação que sobrevivem os juízos universais. Para o autor, aceitar uma crença é ser preguiçoso, falso, covarde.

Os hábitos de nossos sentidos nos envolveram na mentira e na fraude da sensação: estas são, de novo, os fundamentos de todos nossos juízos e ‘conhecimentos’- não há escapatória, não há trilhas ou atalhos para o mundo real! Estamos em nossa teia, nós, aranhas, e, o que quer que nela apanhemos, não podemos apanhar senão justamente o que se deixa apanhar em nossa teia. ( Nietzsche, 2004NIETZSCHE, F. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 90, grifos do autor).

As teias da escola contribuem para que não haja escapatórias, trilhas ou atalhos. Tudo é normatizado, normalizado. Hábitos. Cabe ao sujeito transgredir o hábito. Criar para si rotas de fuga dentro do próprio sistema de formação. “‘Então deveria dizer o que pensa’, a Lebre de Março continuou. ‘Eu digo’, Alice respondeu apressadamente; ‘pelo menos… pelo menos eu penso o que digo… é a mesma coisa, não?’ ‘Nem de longe a mesma coisa!’ disse o Chapeleiro” ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 82).

A pandemia da Covid-19 modifica o padrão de normalidade das instituições, com isso a saúde, educação, religião, família, entre outras, se organizaram a partir de um conjunto de regras para frequentar espaços públicos: uso obrigatório de máscaras e álcool em gel, distanciamento e isolamento social, ensino remoto. Emerge uma rede de poder que produz saberes a partir da pandemia. A normalidade que era instituída para o ensino de Matemática já não cabe mais. Para Gallo (2021), o normal é uma fabricação humana fundamentada pelos jogos de poder existentes em um dispositivo. O conceito de normal produz “cortes entre aqueles que cabem ao padrão de normalidade e aqueles que estão fora da normalidade, o anormal” (Gallo, 2021, s.p). A delimitação da normalidade faz com que seja possível medir e avaliar as multiplicidades de um espaço, estabelecendo conjuntos específicos de pensamentos, comportamentos e desejos.

Continuávamos

caindo,

caindo,

caindo…

Mais um dia, mais aulas para acompanhar. Sinceramente, eu acreditava que seria mais um dia “normal”, dentro do novo normal. Porém, nos foi pedido um favor, de uma situação levemente complexa que eu vou explicar. Algumas aulas de matemática foram pegas por um determinado professor, porém como este faz parte do grupo de risco, está dando aulas de forma remota, onde é feita uma vídeo chamada e a tela do computador é projetada para os alunos na biblioteca, que acompanham a aula. E aqui peço licença para uma expressão rude, pois, aula uma ‘pinóia’! Chamar aquilo de aula é uma ofensa! O professor abriu a aula do centro de mídias que os alunos têm acesso em casa e passou uns trechos, e pediu para que os alunos fizessem os exercícios, sempre dizendo: “Este é fácil”, “Este aqui é molezinha”. Isso me incomodou ao extremo, num nível de quase sair correndo da sala de aula, mas eu fiquei junto com os outros residentes, salvando a aula. Basicamente atuamos como monitores tirando as dúvidas e explicando, pois além de o professor não dar nenhuma explicação a comunicação era péssima. Não tendo de fato a comunicação entre professor e aluno. Mas duas coisas foram aprendidas nesta experiência:

1º Aula híbrida é horrível.

2º A tecnologia é uma faca de dois gumes.

Dito isso, nossa preocupação é que os alunos seguirão o ano assim, e nem sempre nós residentes estaremos lá, o que nos resta é torcer pelo melhor (Registro de um residente, 2021).

Um novo normal que tensiona o ensino de Matemática. Estabelecimento de novos hábitos ou a reinstalação de um mesmo sistema educacional? Nada de ensino com softwares de Matemática e metodologias para ensinar Matemática. Trocamos a tecnologia da lousa, giz, livro pela tela do computador, celular, televisão.

Continuávamos caindo, caindo, caindo…

Quando ingressei na reunião o atendimento já havia começado. Alguns alunos trouxeram dúvidas sobre o conteúdo e logo que entrei, a professora estava resolvendo um determinante pela Regra de Cramer. Hoje todos os exercícios foram resolvidos “à mão”, diferentemente da aula regular, que são utilizados slides para expor o conteúdo. Os alunos disseram que preferem dessa maneira, que entendem melhor e que parecia a lousa. (Registro de um residente, 2021).

O novo normal mantém as velhas práticas das aulas de Matemática. Existe um desejo de que a aula ocorra como antes e, por isso, “fazemos o nosso trabalho de forma remota, tentando não fugir do normal, fazendo com que seja parecida com a presencial ou tomamos como um novo normal” (Gallo, 2021, s.p). A professora, ao resolver os exercícios à mão (com a câmera focada numa folha de papel), e os alunos, dizendo que preferem que a resolução seja feita desse modo, reivindicam pela normalidade instaurada antes da pandemia, em que os exercícios eram resolvidos passo a passo na lousa. Tal normalidade engendra práticas e produções que funcionam à serviço da norma, que busca pelo novo normal , que se traduz, segundo Gallo (2021), em uma vontade de normalidade.

Gradualmente o cérebro humano foi preenchido por juízos e convicções, e nesse novelo, produziu-se fermentação, luta e ânsia de poder. Não somente utilidades e prazeres, mas todo gênero de impulsos tomou partido na luta pelas “verdades”. [...] O conhecimento e a busca do verdadeiro finalmente se incluíram, como necessidade, entre as necessidades. [...] O conhecimento se tornou então parte da vida mesma, enquanto vida, um poder em contínuo crescimento: até que os conhecimentos e os antiquíssimos erros fundamentais acabaram por se chocar, os dois sendo vida, os dois sendo poder, os dois sendo o mesmo homem ( Nietzsche, 2012NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência . Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , p. 129, grifo nosso).

O conhecimento e a busca da verdade, dito por Nietzsche, tal qual a normalidade (Gallo, 2021, s.p), atuam como instrumentos de poder sobre a realidade, definindo processos de subjetivações e evitando produções de singularidades. A vontade de verdade, como forma de compreensão do mundo que rejeita o vir-a-ser, direciona o querer humano por juízos e convicções, como um ato de negação da vida e de esquecimento de si - conhecimento que não parte do próprio sujeito.

“Já decifrou o enigma?”, indagou o Chapeleiro, voltando-se de novo para Alice. “Não, desisto”, Alice respondeu. “Qual é a resposta?” “Não tenho a menor ideia”, disse o Chapeleiro. “Nem eu”, disse a Lebre de Março. Alice suspirou, entediada. “Acho que vocês poderiam fazer alguma coisa melhor com o tempo”, disse, “do que gastá-lo com adivinhações que não têm resposta” ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 84).

A verdade confere um estado de segurança. Alice, ao buscar a resposta do enigma, procura a resposta certa, o conhecimento verdadeiro, movimentando uma vontade de verdade , que institui uma normalidade: o normal é que um enigma possua apenas uma única solução. Alice anseia pela normalidade, procurando uma resposta. “Temos sempre a verdade que merecemos em função do sentido daquilo que concebemos, do valor daquilo que acreditamos.” ( Deleuze, 1976DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia . Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. , p. 49). A busca pela verdade é rompida pelo Chapeleiro: “‘Não tenho a menor ideia’” ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 84). Resposta que engendra um acontecimento que cria singularidades.

Se alguém quer a verdade, não é em nome do que o mundo é, mas em nome do que o mundo não é. Está claro que “a vida visa a desviar, a enganar, a dissimular, a ofuscar, a cegar”. Mas aquele que quer o verdadeiro quer integralmente depreciar esse elevado poder do falso: ele faz da vida um “erro”, faz desse mundo uma “aparência”. ( Deleuze, 1976DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia . Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. , p. 45)

A Vontade de Verdade ( Foucault, 1996FOUCAULT, M. Ordem do discurso (A) . São Paulo: Edições Loyola, 1996. ) é uma renúncia de si, que se apoia em estruturas institucionais e é reconduzida por um conjunto de práticas que qualifica o mundo como verídico. Para Gallo (2021), o serviço de normalidade se encontrará amparado a uma vontade de verdade, visto que, não se consegue viver sem uma afirmação do normal. O novo normal movimenta um aparelho de Estado que captura multiplicidades, desvios, linhas de fuga, paralisando o acaso e reproduzindo uma ordem das circunstâncias. Normas com contornos bem definidos, nas quais se pode operar uma força modeladora das práticas dos sujeitos, que permitem regular linhas de força.

A pandemia trouxe o desconhecido que desestabilizou as regras de normalidades que fundamentam as práticas escolares, contudo, rapidamente as linhas regimentais iniciam um movimento de (re)organização que teve a função de impor modelos de ensino, comportamentos e pensamentos durante o isolamento. Normatização do novo normal . “Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ela introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais” ( Foucault, 2003FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2003. , p. 154) ( Figura 3 ).

Figura 3
– Registros da aula de matemática realizada pelos residentes

A busca pelas normalidades se sustenta em práticas de organização. A vontade de verdade “opõe à vida o conhecimento, ao mundo um outro mundo, um além-mundo, precisamente o mundo verdadeiro. O mundo verdadeiro não é separável dessa vontade, vontade de tratar esse mundo como aparência” ( Deleuze, 1976DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia . Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. , p. 45-46). Trata-se da criação de um mundo cujo objetivo é amenizar o sofrimento causado pelo fluir do acontecimento. Uma queda pela toca do coelho é freada e normalizada nos limites de um novo normal , (re)estabelecendo padrões, moldes, regras e verdades a serem seguidas. É recortar a realidade e inseri-la em um sistema de julgamentos de certos e errados, normais e anormais.

Estamos na sociedade do professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz, do “assistente social”-juiz; todos fazem reinar a universalidade do normativo; e cada um no ponto em que se encontra, aí submete o corpo, os gestos, os comportamentos, as condutas, as aptidões, os desempenhos ( Foucault, 2003FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2003. , p. 331, grifos do autor).

A vontade de normalidade funciona travando a potência criadora e as possíveis (re)invenções do ensinar, do aprender, das práticas e táticas de aula de Matemática. Tanto para a verdade, como para a normalidade, foi outorgado um território transcendente, necessário, autossuficiente que sustenta essa vontade de normalidade e rebaixa a potência criadora. O novo normal , atribuído pelo uso de máscara, pelo trabalho home office , pelo ensino remoto, entre outros, se preocupou em definir certas visibilidades que operaram para que o sujeito tivesse o menor contato possível com os monstros do real . “Parece que estamos anestesiados frente ao número de mortos que todas as noites vemos ser anunciado na mídia” (Gallo, 2021, s.p)

Toda essa organização está baseada em uma prática disciplinar que sustenta o modelo: novo normal . Conforme Foucault (2003)FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2003. 10 10 O conceito de vontade de normalidade, permite uma discussão acerca da ideia de normal e anormal, a qual o leitor pode se aprofundar em Foucault (2003) . , o normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração de uma educação padronizada. Disciplina que normatiza, normaliza, assujeita modos de vida. Prescreve, sequencialmente, o normal e o anormal no designado novo normal . A ideia de normalidade é determinada por regras sociais e políticas, usadas, muitas vezes, como instrumento das relações de saber e poder de controle do sujeito. Daí também se discute a ideia de anormal, que, no caso, é a transgressão dessas normas e, por conta disso, é objeto de controle. Ao delimitar a normalidade, o aparelho de Estado controla, disciplina e exclui aqueles que não se encaixam nessa categoria. Imposição de práticas que devem ser reguladas para que os sujeitos se adequem ao instituído como verdade.

O que é um autêntico louco? É um homem que preferiu enlouquecer, no sentido que socialmente se entende a palavra, em vez de trair uma certa ideia superior de honra humana. Eis por que a sociedade condenou ao estrangulamento em seus manicômios. Pois o louco é aquele que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades insuportáveis ( Artaud, 2007ARTAUD, A. Escritos de um louco . São Paulo: Coletivo Sabotagem, 2007. , p. 23-24).

Pelbart (1989)PELBART, P. P. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense. 1989. conceitua a diferenciação entre o pensamento do fora11 11 Levy (2011) . e a loucura. Para o autor, a loucura é uma exposição total que não é mediada por zonas de subjetivação ao fora, ou seja, na loucura o sujeito fica exposto às linhas de força do fora, não há dobras de subjetivação. “Para Deleuze, a característica maior desse Fora é a de consistir no Jogo de Forças, do Acaso e do Indeterminado, ao qual temos acesso sempre historicamente, isto é, segundo estratificações de Saber, diagramas de Poder e modalidades de subjetivação determinadas” ( Pelbart, 1989PELBART, P. P. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense. 1989. , p. 97). A loucura opera como uma categoria social que institui o anormal, influenciada por regimentos de controle e exclusão do sujeito que não se rende ao sistema. Da mesma maneira, Alice, nas suas aventuras, empreende tentativas de se adequar ao aparelho de Estado para que a considerem normal.

‘Mas não quero me meter com gente louca’, Alice observou. ‘Oh! É inevitável’, disse o Gato; ‘somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca.’ ‘Como sabe que sou louca?’ perguntou Alice. ‘Só pode ser’, respondeu o Gato, ‘ou não teria vindo parar aqui.’ ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 77).

4 Acorde Alice

Pandemia da Covid-19, acontecimento capaz de ruir o normal. Novo normal? Nova normalização! Normalização que mantém o mesmo modelo de ensino de Matemática. Queda na toca do coelho … não sabíamos o que encontrar ao chegar ao fundo … nem sabíamos se havia fundo. Não sabíamos o que fazer diante do isolamento social. A escola não funciona fora da arquitetura-controle-dos-corpos. Contudo, não se podia perder tempo . Tempo cronológico-provas-avaliações(externas)-vestibulares. O modelo de ensino recognitivo foi imposto por meio de celulares/computadores/TV aberta, mesmo que muitos estudantes das escolas públicas da Educação Básica e do Ensino Superior não tivessem acesso a esses recursos. Tudo era desconhecido: o vírus, a pandemia, as formas de ensinar neste ambiente. Entretanto, discursos do tipo “não sabemos ensinar com as escolas fechadas” (Professor, 2021) não foram considerados diante da crença de que a escola é o único dispositivo em que ocorre a aprendizagem. Inclusive, os estudantes, protagonistas da aprendizagem , pouco ou quase nada foram consultados a respeito dos processos de ensinar e aprender atribuídos pela escola ao longo do ensino remoto. O que um estudante diria se perguntasse o que ela aprendeu durante o ensino remoto? Improvisações para manter o mesmo sistema educacional funcionando. Colapso na Educação. Colapso na saúde. Colapsos de vidas. Ensino de Matemática na pandemia?

‘O que você sabe sobre este caso?’ perguntou o Rei a Alice.

‘Nada’, respondeu Alice.

‘Absolutamente nada?’ insistiu o Rei.

‘Absolutamente nada’, confirmou Alice.

‘Isto é muito importante’, disse o Rei. ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 139, grifos do autor).

A vontade de normalidade opera para regimentar o espaço “contra tudo que ameaça transbordá-lo” ( Deleuze; Guattari, 1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997 (Vol. 5). , p. 51). Não buscamos mais os afetos, os tensionamentos e, sim, estabelecemos uma ordenação das multiplicidades que atravessam uma sala de aula de Matemática. Não atentos às relações de força, buscamos a direção instituída, o Uno. Nos produzimos à n , e não à n -1. “Buscamos o descuido de si” ( Fuganti, 2007FUGANTI, L. Corpo em devir. Revista Sala Preta, São Paulo, [s.v.], n.7, p. 67-76, 2007. , p. 71). Tal qual Alice, buscamos o caminho certo do Gato, a resposta correta do Chapeleiro, a verdade da Rainha. Procuramos pelo gato sorridente que nos mostra o caminho e pelo chapeleiro que nos entrega uma resposta. Desconsideramos os encontros com um sorriso sem gato e com um enigma sem solução e com uma pandemia e com o ensino remoto na aula de Matemática e … “Podemos planejar, podemos executar tudo de acordo com o planejado [...] mas sempre algo poderá fugir do controle, escapar por entre as bordas” ( Gallo, 2003GALLO, S. Deleuze & a Educação . Belo Horizonte: Autêntica, 2003. , p. 103).

O que se produz através do que escapa? Que ensino de Matemática acontece nas brechas da norma? Que aula de Matemática é engendrada em uma queda pela toca do coelho? Contrário a um pensamento salvacionista, buscamos por exercícios que nos provocam a pensar sobre uma pandemia, o currículo, o ensino remoto, a matemática e suas relações. Estamos interessadas naquilo que escapa, foge, transborda os planejamentos, as previsões, os controles, a verdade única, a recognição, a norma: o acontecimento.

O que é um acontecimento? É uma multiplicidade que comporta muitos termos heterogêneos, e que estabelece ligações, relações entre eles, através das épocas, dos sexos, dos reinos – naturezas diferentes. [...]. O que é importante não são nunca as filiações, mas as alianças e as ligas; não são os hereditários, os descendentes, mas os contágios, as epidemias, o vento ( Deleuze; Parnet, 1998DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos . Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998. , p. 83).

O acontecimento faz emergir possibilidades de uma aula de Matemática outra, que escapa às normalidades. É preciso “afirmar o acontecimento. Afirmação da afirmação: um sim ao caráter global da existência. Querer o que acontece: amor fati ” ( Clareto; Rotondo, 2021CLARETO, S. M.; ROTONDO, M. A. S. O que Torna uma Matemática Digna de Ocupar Lugar em um Currículo de Licenciatura em Matemática. Perspectivas da Educação Matemática , Campo Grande, v. 14, n. 35, p. 1-15. 2021. , p. 6, grifos das autoras).

Acontecimento enquanto potência de diferenciação do sujeito durante um processo, durante a pandemia. Com as cartografias mapeamos o ensino da Matemática deste novo normal evidenciando que as práticas e táticas da escola buscavam adequar-se às normas do currículo. Não se trata de analisar a respeito dos modos que foram conduzidos o ensino de Matemática no isolamento social, mas sim de tensionar (e estarmos atentas) as relações do aprender enquanto fluxos, vetores capazes de subjetivar e engendrar acontecimentos.

Algo que nos leva a juntar, ligar, interpretar, relacionar, ... e ... e ... e ... Um aprendizado é uma experiência, onde alguma coisa novamente pode acontecer, um traspasse. Aprender como aquilo que nos passa de uma maneira transversal. Aprender como acontecimento . Acontecimento sem local ou hora previstos, sem um caminho determinado. Sentido que se desenvolve no que ocorre entre , no meio das vivências e experimentações. Transversal. Conjunções. Combinações. Um encontro, ao acaso, com algo que nos assola e inquieta, que deflagra os limites do já pensado e do já sabido, à espreita de um pensamento novo ( Roos, 2004ROOS, A. P. Nunca se sabe como alguém aprende.... In: COLÓQUIO FRANCO-BRASILEIRO DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO, 2., 2004, Rio de Janeiro. Anais. Rio de janeiro: UERJ, 2004. p. 62-74. CD-ROM. , p. 5, grifos da autora).

Acontecimentos que fogem da manutenção de modelos, que partem das singularidades dos sujeitos, engendrando multiplicidades. Acontecimentos que produzem experimentações outras no ensino de Matemática. Caminhos que fogem, escapam dos trajetos instituídos. Linhas de fuga contrárias à normalidade. Caminhos rizomáticos para pensar o aprender na escola. Acontecimentos que criam escolas sem muros. Nomadismos escolares.

Afirmar o mergulho na toca do coelho abre a possibilidade de criação de uma aula de Matemática que “inventa matemática no que acontece. Inventa formação no que acontece. Uma matemática digna no seu acontecimento. Um ocupar. Uma política. Uma obra. Uma estética. Um estilo. Uma ética.” ( Clareto; Rotondo, 2021CLARETO, S. M.; ROTONDO, M. A. S. O que Torna uma Matemática Digna de Ocupar Lugar em um Currículo de Licenciatura em Matemática. Perspectivas da Educação Matemática , Campo Grande, v. 14, n. 35, p. 1-15. 2021. , p. 7, grifos das autoras). Nem novo, nem velho normal. Mergulho na toca do coelho para uma experimentação que engendra criações com os acontecimentos que atravessam uma aula de Matemática. Criações de linhas de fugas que transgridam o normal e abram brechas para formações éticas, estéticas e políticas no ensino da Matemática. Criações que produzem aulas de Matemática outras no intermezzo de uma queda na toca do coelho. Exercícios para a coragem de mergulhar na toca do coelho.

E aqui Alice começou a ficar com sono, e continuou dizendo consigo mesma, numa espécie de devaneio: ‘Gatos comem morcegos? Gatos comem morcegos?’ e, às vezes: ‘Morcegos comem gatos?’, pois, como ela não conseguia responder à pergunta, não importava muito a ordem em que era colocada. Sentiu que estava adormecendo e começou a sonhar que passeava de mãos dadas com Diná, dizendo-lhe, muito séria: ‘Agora, Diná, diga-me a verdade: você já comeu algum morcego?’, quando subitamente — catapimba! — caiu em cima de um monte de gravetos e folhas secas. A queda tinha acabado ( Carroll, 2009CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. , p. 20, grifos do autor).

A pandemia tinha acabado … o novo normal tinha acabado … seguimos no ensino da Matemática … como se nada tivesse acontecido.

Referências

  • ARTAUD, A. Escritos de um louco . São Paulo: Coletivo Sabotagem, 2007.
  • CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas ; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
  • CASTRO, E. Vocabulário de Foucault – um percurso pelos seus temas, conceitos e autores . Tradução de Ingrid Muller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
  • CLARETO, S. M.; ROTONDO, M. A. S. O que Torna uma Matemática Digna de Ocupar Lugar em um Currículo de Licenciatura em Matemática. Perspectivas da Educação Matemática , Campo Grande, v. 14, n. 35, p. 1-15. 2021.
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  • DELEUZE, G. Diferença e Repetição . Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal. 2006.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995 (Vol. 1).
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997 (Vol. 5).
  • DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos . Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
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  • FOUCAULT, M. Ordem do discurso (A) . São Paulo: Edições Loyola, 1996.
  • FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2003.
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  • INSTITUTO RACIONALIDADES. Para conjurar a vontade de normalidade. YouTube, 05 de abr. de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0IgxlRGIkZs&t=3s. Acesso em: 20 abr. 2021.
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  • NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência . Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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  • SILVA, M. T et al. Mapas e cartografia em Educação Matemática. In: XI ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 11, 2013, Curitiba. Anais do XI Encontro Nacional de Educação Matemática, Educação Matemática: Retrospectivas e Perspectivas, Curitiba, 2013, p. 1- 8 .1 CD, 2013.
  • SILVA, M. T; TÁRTARO, T. F. Cartografias de professoras: a quarta dimensão em aula de matemática. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 49, p. 1-18, 2023.
  • 1
    Pandemia SarsCovid-19, com início no Brasil em março de 2020.
  • 2
    Destacamos que esse texto é um desdobramento do trabalho “A descida pela toca do coelho: a Vontade da Normalidade na aula de Matemática” (Dugois; Tártaro; Silva, 2022), submetido ao IX Congresso Ibero-Americano de Educação Matemática.
  • 3
    O Programa de Residência Pedagógica é financiado pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
  • 4
    Os Registros dos residentes são os trechos que surgirão no texto em itálico.
  • 5
    O termo matemáticaS é utilizado pelo grupo Phala. Mais informações em: https://www.phala.fe.unicamp.br/ .
  • 6
    Os trechos em itálico referem-se às falas dos sujeitos (professores e alunos da Educação Básica) que participaram das aulas de Matemática realizadas durante a pandemia. Tais trechos foram produzidos pelos residentes ao longo do Programa de Residência Pedagógica, IFSP, Câmpus Birigui.
  • 7
    No caso do estado de São Paulo isso ocorreu a partir do Centro de Mídias da Educação de São Paulo - CMSP (disponível em: https://centrodemidiasp.educacao.sp.gov.br/ , acesso em 28 de out. de 2022).
  • 8
    Exame Nacional do Ensino Médio.
  • 9
    Um dispositivo é uma rede de relações estabelecidas entre “[...] discursos, instituições, arquitetura, regramentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, o dito e o não dito” ( Castro, 2009CASTRO, E. Vocabulário de Foucault – um percurso pelos seus temas, conceitos e autores . Tradução de Ingrid Muller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. , p. 124).
  • 10
    O conceito de vontade de normalidade, permite uma discussão acerca da ideia de normal e anormal, a qual o leitor pode se aprofundar em Foucault (2003)FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2003. .
  • 11
    Levy (2011)LEVY, T. S. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
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