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Descontinuidades na Passagem do Cálculo para a Análise: as noções de limite e de função contínua num ponto

Discontinuities in the Transition from Calculus to Analysis: the notions of limit and continuity of a function at a point

Resumo

Neste artigo, identificamos contradições lógicas entre duas diferentes abordagens das noções de limite e continuidade de função: a dos livros de Cálculo e a dos livros de Análise na Reta. Além de explicitar essas contradições, apontamos suas origens e comentamos brevemente possíveis consequências delas para o ensino e a aprendizagem, especialmente no que concerne aos alunos dos cursos de Matemática (Bacharelado e Licenciatura), os quais têm como obrigatória, em seus respectivos currículos, a disciplina Análise na Reta. A pertinência de considerar a potencialidade de um impacto negativo dessas contradições no processo de aprendizagem de alunos do Bacharelado e da Licenciatura em Matemática diz respeito ao fato de que normalmente a Análise Real é oferecida, nesses cursos, após cerca de dois anos de um processo de ensino de várias disciplinas em que se cristaliza, na mente dos estudantes, a abordagem dos livros de Cálculo acerca das noções de limite e continuidade de funções. Por fim, destacamos que este estudo oferece, ainda, potencial contribuição ao processo de desenvolvimento profissional do formador de professores na Licenciatura e dos professores de Cálculo em geral.

Educação Matemática no Ensino Superior; Cálculo Diferencial e Integral; Análise Real; Limite e Continuidade de Funções Reais; Contradições Lógicas

Abstract

In this article, we identify logical contradictions between two different approaches to the notions of limit and continuity of a real function: that of Calculus books and the one usually found in Real Analysis books. In addition to pointing out these contradictions, we indicate their origin and briefly comment on possible consequences for teaching and learning university mathematics, especially in courses which have Real Analysis as a mandatory part of their curricula. The negative impact of these contradictions on students’ learning may demand a particular concern in Mathematics undergraduate courses, where Real Analysis comes after a two-year teaching/learning process that crystallizes the Calculus books approach. The way it was conceived, this study might also contribute to the professional development of mathematics teacher educators and Calculus teachers in general.

University Mathematics Education; Differential and Integral Calculus; Real Analysis; Limit and Continuity of Real Functions; Logical Contradictions

1 Introdução

Os livros de Cálculo para os cursos da área de Ciências Exatas abordam, no estudo das funções reais de uma variável real, os conceitos de limite e de continuidade num ponto. Como se sabe, tais conceitos são cruciais para a construção das noções de derivada e de integral, as quais, por sua vez, constituem o objeto central de estudo nas disciplinas referidas ao Cálculo Diferencial e Integral, como o próprio nome indica.

Assim, se por um lado as ideias de limite e continuidade de uma função num ponto são fundamentais para a Matemática universitária, por outro lado estão longe de serem de fácil acesso aos estudantes egressos da Educação Básica. Ao contrário, são noções que demandam o desenvolvimento de uma forma especial de raciocínio matemático ( CORNU, 1991CORNU, B. Limits. In: TALL, D. (ed.) Advanced Mathematical Thinking. Dordrecht: Kluwer, 1991. p.153-166. ; TALL, 1992TALL, D. The transition to advanced mathematical thinking: functions, limits, infinity and proof. In: GROWS, D. (ed) Handbook of Research on Mathematics Teaching and Learning. New York: MacMillan, 1992. p. 495-511. ; REZENDE, 2003REZENDE, W. M. O ensino de cálculo: dificuldades de natureza epistemológica. 2003. 450 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-27022014-121106/publico/WANDERLEY_REZENDE.pdf. Acesso em: 28 ago. 2023.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
), ainda bastante incipiente (se não totalmente ausente), nos estudantes recém-saídos do Ensino Médio, acostumados a lidar com a Matemática da formação escolar, na qual tais noções não são explicitamente abordadas.

Refletindo sobre nossa experiência de vários anos de trabalho com os conceitos de limite e continuidade, tanto nas disciplinas de Cálculo (para vários cursos da área de Ciências Exatas), como em Análise Real (para a Licenciatura e Bacharelado em Matemática), fomos levados a identificar certas diferenças nas abordagens usuais desses conceitos em livros de Cálculo, em relação às correspondentes abordagens dos livros de Análise.

É claro que algumas dessas diferenças podem ser atribuídas ao maior ou menor apelo ao que se costuma chamar de intuição , bem como ao maior ou menor nível de rigor e de formalismo com que são trabalhadas as duas noções nas respectivas disciplinas. Entretanto, nossa análise nos conduziu à constatação de algo mais complexo do que aquilo que pode ser explicado apenas por esses dois fatores. Observamos uma espécie de ruptura teórica (mais especificamente, contradições lógicas) na transição da abordagem dos livros de Cálculo para a dos livros de Análise, especialmente no que diz respeito ao conceito de continuidade de uma função em um ponto. Acreditamos também que conflitos de natureza cognitiva podem emergir quando os alunos são expostos às duas abordagens: a da disciplina Cálculo I, quase sempre trabalhada no primeiro período de formação universitária nos cursos da área de Ciências Exatas (prosseguindo, em certo sentido, nas disciplinas Cálculo II, Cálculo III etc.) e a da disciplina Análise Real, normalmente obrigatória nos cursos de Bacharelado e de Licenciatura em Matemática.

Neste artigo, cotejamos as duas abordagens mencionadas acima, comentando algumas das inconsistências mais importantes, a nosso ver, e apontando a origem fundamental delas: no Cálculo, se faz uso essencial de uma noção bastante restritiva da ideia de limite de f(x) quando x tende a um ponto para definir a continuidade, enquanto na Análise Real, essa última noção é concebida de forma mais abrangente. Isso parece pouco, mas é o suficiente para gerar as contradições lógicas que discutiremos neste texto.

Assim, nosso propósito, aqui, tem um triplo sentido: em primeiro lugar, explicitar as contradições mencionadas genericamente acima e mostrar suas origens, de um ponto de vista lógico/epistêmico. Em segundo lugar, ao explicitar e mostrar as origens dessas contradições, sugerimos mais um foco para as investigações a respeito dos processos de ensino e de aprendizagem do Cálculo e da Análise, especificamente no caso dos cursos de Bacharelado e de Licenciatura em Matemática, nos quais os estudantes deverão prosseguir seus estudos de Cálculo, complementando-os, obrigatoriamente, com a disciplina Análise Real. Por fim, acreditamos que este nosso estudo oferece também uma contribuição potencial para a formação e para a prática do professor que ensina Cálculo e/ou Análise Real, tanto para a área de Ciências Exatas em geral como também, e de modo especial, para os cursos específicos de Bacharelado e Licenciatura em Matemática.

2 A abordagem da continuidade nos livros de Cálculo

De modo geral, podemos dizer que há, em certa medida, uma espécie de uniformidade básica nas abordagens dos livros de Cálculo, no que se refere aos conceitos que nos interessam neste trabalho. Por isso, embora tenhamos consciência clara de que as abordagens desses conceitos usualmente encontradas nos diferentes livros de Cálculo não são idênticas (o mesmo vale para os livros de Análise Real), achamos possível selecionar um livro típico, digamos assim, de Cálculo e, analogamente, um livro típico de Análise Real, para, a partir das abordagens neles propostas, apresentar as questões fundamentais que aqui queremos discutir.

Em nossa pesquisa bibliográfica, percebemos que as abordagens nos livros mais usados em ambas as disciplinas, não variam muito no ponto central que pretendemos analisar neste artigo. Assim, no caso do Cálculo, utilizamos o livro de J. Stewart (2006)STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , cujo título é “Cálculo: volume 1” (5 a edição). Abordagens essencialmente alinhadas à desse autor (para os propósitos da nossa discussão) podem ser vistas em vários livros comumente adotados nos cursos universitários de Cálculo I, como Swokowski (1994)SWOKOWSKI, E. W. Cálculo com Geometria Analítica . São Paulo: Makron Books, 1994. , Thomas (2002)THOMAS, G.B. Cálculo: volume I. 10. ed. São Paulo: Addison Wesley, 2002. , Leithold (1982)LEITHOLD, L. O Cálculo com Geometria Analítica São Paulo: Harbra, 1982 (Vol. 1). , Flemming e Gonçalves (2006)FLEMMING, D. M.; GONÇALVES, M. B. Cálculo A: Limite, Derivação, Integração. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006. , entre outros. E, para a Análise Real, destacamos o enfoque apresentado no livro de Elon L. Lima, intitulado “Curso de Análise (volume I)”, já em sua 15 a edição em 2019, constituindo uma das referências fundamentais no Brasil, desde a primeira edição publicada em 1976. Deste modo, acreditamos que a generalização que fazemos implicitamente ao nos referirmos aos livros de Cálculo e aos livros de Análise esteja bem situada, não constituindo uma falha ou limitação que a desqualifique, pelo menos no contexto deste estudo específico. Feita essa ressalva, passamos aos principais aspectos a serem analisados e discutidos.

2.1 O significado da igualdade limxaf(x)=L

Após discutir, na seção 2.1 do seu capítulo 2, algumas questões envolvendo reta tangente a uma curva e velocidade instantânea, Stewart apresenta na seção 2.2, a seguinte definição, pretendendo esclarecer o significado dessa igualdade:

Definição 1

Escrevemos limxaf(x)=L e dizemos ‘o limite de f(x) quando x tende a a , é igual a L ’ se pudermos tornar os valores de f(x) arbitrariamente próximos de L (tão próximos de L quanto quisermos), tornando x suficientemente próximo de a (por ambos os lados de a ) mas não igual a a ” ( STEWART, 2006STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , p. 93).

E logo em seguida explica: “Grosso modo, isso significa que os valores de f(x) ficam cada vez mais próximos do número L à medida que x tende ao número a (por qualquer lado de a ), mas x ≠ a . Uma definição mais precisa será dada na seção 2.4” ( STEWART, 2006STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , p. 93).

Passamos, então, à definição mais precisa apresentada na seção 2.4:

Definição 2

Seja f uma função definida sobre algum intervalo aberto que contém o número a , exceto possivelmente no próprio a . Então dizemos que o limite de f(x) quando x tende a a é L , e escrevemos limxaf(x)=L se para todo número ε >0 há um número correspondente δ > 0 tal que |f(x)L|<ε sempre que 0 < | x-a | < δ ( STEWART, 2006, pSTEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , p. 115).

Uma questão importante de se destacar, desde já, refere-se à exigência de que a função f esteja definida em algum intervalo aberto contendo a, podendo-se excetuar apenas o próprio ponto a . Isso, por um lado, faz algum sentido porque a ideia de limite se refere aos valores assumidos pela função apenas no entorno do ponto a , não tendo a menor importância o fato de a função estar ou não definida no próprio ponto a . No entanto, como veremos logo adiante, uma vez que se vai definir a continuidade da função em um ponto a a partir da existência do limite da função quando x tende a a , exigir que a função esteja definida em todo um intervalo aberto (real) contendo a (exceto possivelmente em a) para que possa existir limxaf(x)=L elimina a possibilidade do exame de uma infinidade de funções quanto à continuidade em um ponto. Isso vai levar, por outro lado, a conflitos lógicos do tipo: uma função estar definida em um ponto e não ser contínua nem descontínua neste ponto. Ou ainda: uma função ser descontínua em um ponto no qual ela não é definida (ou seja, a função não existe no ponto, mas é descontínua nele). Voltaremos a isso mais adiante.

2.2 Continuidade (e descontinuidade) de uma função em um ponto

Na seção imediatamente seguinte (seção 2.5), Stewart define continuidade de uma função em um ponto, da seguinte maneira: “Definição 1: Uma função f é contínua em um número a se limxaf(x)=f(a) ” ( STEWART, 2006STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , p. 124, grifo do autor).

Em seguida, o autor faz algumas observações que consideramos cruciais para a discussão que faremos mais adiante:

Observe que a Definição 1 implicitamente requer três coisas para a continuidade de f em a:

1. f(a) está definida (isto é, a está no domínio de f )

2. limxaf(x)=L existe

3. limxaf(x)=f(a)

[...]

Assim, uma função contínua f tem a propriedade que uma pequena variação em x produza apenas uma pequena modificação em f(x).

[...]

Se f está definida próximo de a (em outras palavras, f está definida em um intervalo aberto contendo a , exceto possivelmente em a ), dizemos que f é descontínua em a , ou que f tem uma descontinuidade em a , se f não é contínua em a ( STEWART, 2006STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , p. 124, grifos do autor).

3 A abordagem dos livros de Análise

Como já mencionado anteriormente, tomaremos como referência para a abordagem dos livros de Análise (das noções de limite e continuidade de uma função real de variável real) o livro Curso de Análise, volume I , de Elon Lages Lima (1976)LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. . Trata-se de uma obra bastante completa e detalhada, largamente utilizada nas grandes universidades brasileiras, sendo o autor um matemático conhecido e reconhecido no cenário nacional. Outros livros de Análise Real ( e.g. , APOSTOL, 1975APOSTOL, T. M. Mathematical Analysis . Reading: Addison-Wesley, 1975. ; RUDIN, 1974RUDIN, W. Principles of Mathematical Analysis . New York: McGraw-Hill, 1974. ; BARTLE, 1964BARTLE, R. The Elements of Real Analysis. New York: J. Wiley, 1964 ) desenvolvem abordagens semelhantes, mas acreditamos que a maneira como Lima (1976)LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. enfoca as noções específicas de limite e continuidade facilita a demarcação e dá maior visibilidade às contradições e rupturas que queremos destacar neste artigo.

3.1 O significado da igualdade limxaf(x)=L

No capítulo VI do seu “Curso de Análise, volume I”, sob o título Limites de Funções , Lima (1976)LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. escreve o seguinte:

Seja ƒ: R X , uma função com valores reais, definida num subconjunto X R . [...] Seja a R um ponto de acumulação de X , isto é, a ⋹ X' . Diremos que o número real L é o limite de f(x) quando x tende para a e escreveremos limxaf(x)=L para significar o seguinte: para cada número real ε > 0 dado arbitrariamente, podemos encontrar δ > 0 de modo que se tenha |f(x)L|<ε sempre que x X e 0<|xa|< ( LIMA, 1976, pLIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , p.152-153, grifo nosso).

E logo em seguida, o autor apresenta algumas observações que se mostram importantes para a nossa discussão. Vamos chamar especial atenção do leitor para três delas:

1. De acordo com a definição dada, só tem sentido escrever limxaf(x)=L , quando a é ponto de acumulação do domínio X1 1 a é ponto de acumulação de um conjunto X, contido em R, se todo intervalo (real) aberto contendo a contém também algum ponto de X diferente de a . da função f

[...]

3. Mesmo que se tenha a ⋹ X , a afirmação limxaf(x)=L nada diz a respeito do valor de f(a).

[...]

4. Quando nos referimos à função f, fica implícito que ela tem um domínio bem especificado, a saber: o conjunto X. Em outras palavras, dar f implica dar X. Assim, ao escrevermos limxaf(x)=L , está subentendido que x varia em X ( LIMA, 1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , p.153-154, grifos nossos).

Neste momento, queremos destacar um aspecto (já enfatizado nos trechos em itálico) que deixa bastante clara uma primeira diferença entre a abordagem da noção de limite de uma função encontrada em Lima (1976)LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. e a apresentada por Stewart (2006)STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , reproduzida na seção anterior deste artigo (seção 2.1). Trata-se do seguinte: a definição de limite de f(x) quando x tende para a, apresentada por Lima (1976)LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , não exige, como acabamos de ver, que a função esteja definida em algum intervalo (real) aberto contendo a (exceto possivelmente em a ), como se exige nos livros de Cálculo. A abordagem da Análise demanda apenas que a seja um ponto de acumulação do domínio X de f . Com essa definição, podemos pensar em limxaf(x) mesmo para casos em que se tenha o domínio de f igual a Q ou R-Q, por exemplo, para os quais não faria sentido considerar a noção de limite de função, se se adota a definição de Stewart (2006)STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. .

Assim, a definição de limite a partir da ideia de ponto de acumulação amplia em muito as possibilidades de um dado limite existir, em comparação com a definição usualmente encontrada nos livros de Cálculo. Ora, como o propósito do estudo de limite de uma função é proporcionar um melhor entendimento do comportamento da função no entorno de um dado ponto (independentemente do que acontece com a função nesse ponto), parece claro que a ideia de ponto de acumulação (menos restritiva) atende melhor e mais objetivamente a esse propósito. Além disso, descarta-se uma exigência que nos obrigaria a desconsiderar um universo grande de funções, no estudo da noção de limite, como mencionado acima.

Por outro lado, uma vez que os livros de Cálculo usualmente definem a continuidade de uma função em um ponto em termos da igualdade entre o valor do limite e o valor da função no ponto ( cf. STEWART, 2006STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , seção 2.2 deste artigo), a desconsideração desse universo de funções tem também um impacto forte no estudo da continuidade apresentado nos livros de Cálculo. Veremos exemplos das contradições que surgem como consequência disso na seção 4, mais adiante. Observamos, de passagem, que tais contradições não têm recebido, até onde pudemos notar, a atenção devida em estudos que se referem às dificuldades de aprendizagem nas disciplinas Análise Real e/ou Cálculo Diferencial e Integral. Essa lacuna, por si só, já indica uma possibilidade de contribuição deste nosso estudo para o campo da Educação Matemática Superior.

3.2 A continuidade (e descontinuidade) de uma função em um ponto

No capítulo VII do seu “Curso de Análise, volume I”, Lima diz:

Uma função ƒ: XR diz-se contínua no ponto a X quando é possível tornar f(x) arbitrariamente próximo de f(a) desde que se tome x suficientemente próximo de a . Em termos precisos, diremos que ƒ: XR é contínua no ponto a X quando, para todo ε > 0 dado arbitrariamente, pudermos achar δ > 0 tal que x X e |xa|<δ impliquem |f(x)f(a)|<ε ( LIMA, 1976, pLIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , p.174).

Na página seguinte, Lima faz as seguintes observações:

1. Ao contrário da definição de limite, só faz sentido indagar se f é contínua no ponto a quando a X (destaque nosso).

2. Se a é um ponto isolado2 2 Um ponto a é isolado de X ⊂ R se não é ponto de acumulação de X , ou seja, se existe um intervalo aberto de R cuja interseção com X é o próprio ponto a. de X então toda função ƒ: XR é contínua no ponto a (destaque nosso).

[...]

3. Seja agora a X um ponto de acumulação de X . Então ƒ: XR é contínua no ponto a se e somente se limxaf(x)=f(a) ( LIMA, 1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , p. 175, grifos nossos).

Para finalizar esse pequeno extrato da abordagem da noção de continuidade desenvolvida por Lima em seu “Curso de Análise”, agreguemos a essas três observações acima a seguinte definição: “Dada ƒ: XR , um ponto de descontinuidade (ou, simplesmente, uma descontinuidade) da função f é um ponto a X tal que f não é contínua no ponto a ” ( LIMA, 1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , p.180).

Observe-se, então, outra diferença importante, em comparação com a abordagem de Stewart (2006)STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006.: para a Análise, em um ponto do domínio, uma função é necessariamente contínua ou descontínua. Para o Cálculo, uma função pode não ser contínua nem descontínua em um ponto do domínio, além de poder ser descontínua em um ponto que não pertence ao domínio (exemplos na seção 4, a seguir).

4 Contradições na abordagem da continuidade: o que muda do Cálculo para a Análise?

Apresentamos nesta seção, a modo de síntese, três exemplos de situações em que se manifestam as referidas contradições, mencionadas no título desta seção. Algumas dessas situações já foram comentadas em seções anteriores, mas as retomamos aqui para demonstrar com mais ênfase a inconveniência de uma abordagem (nas disciplinas de Cálculo) que, talvez sob o pretexto de simplificar, acaba complicando mais ainda algo que já oferece certas dificuldades naturais , digamos assim, ao estudante egresso da Educação Básica. Por outro lado, esses exemplos são apresentados também com o propósito de apontar a necessidade do desenvolvimento, no Cálculo, de uma abordagem mais eficiente das noções de limite a continuidade, tanto do ponto de vista lógico quanto do ponto de vista didático.

Exemplo 1

Pelas definições do Cálculo, f só pode ser contínua em a se a pertencer ao domínio de f. Assim, pela observação B, seção 2.2 deste artigo, podemos concluir que a função 𝑓:𝑅∗→ 𝑅 𝑡𝑎𝑙 𝑞𝑢𝑒 f(x)=1x é descontínua em x = 0, ainda que esse ponto não esteja no domínio de f . Estamos então, diante do exemplo de uma função que é descontínua em um ponto no qual ela não está definida. Como vimos na seção 3.2 deste artigo, considerar uma função descontínua em um ponto que não pertence ao domínio é algo conflitivo com a abordagem da noção de continuidade (e descontinuidade) usualmente desenvolvida na Análise. A posição hoje assentada na Matemática é a de que não faz sentido qualificar uma função como descontínua (ou contínua) num ponto em que ela não está definida. Seria o análogo de se especificar a cor do carro de alguém que não tem carro.

Outro exemplo (ainda mais estranho) desse mesmo fato é o seguinte: a função f(x)=x2x2x2x2 x≠2, é descontínua no ponto x = 2 (onde não é definida), de acordo com as definições do Cálculo. A diferença em relação ao exemplo anterior é que, neste caso, a causa da descontinuidade não é nem a inexistência do limite de f quando x tende a 2, pois esse limite existe e é igual a 3. A razão que justificaria a descontinuidade é a própria não existência da função no ponto. Resumindo: de acordo com as definições do Cálculo, é possível dar um exemplo de descontinuidade de uma função em um ponto causada pelo fato de a função não ser definida no ponto em que ela é descontínua ( cf. exemplo (a), p.125, STEWART, 2006STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. ). A probabilidade de que tal exemplo possa causar inconsistências sérias no conjunto das características atribuídas pelos estudantes à continuidade/descontinuidade de uma função é bastante alta, a nosso ver (comentaremos esse ponto com um pouco mais de detalhes nas Considerações Finais). Isso sem considerar os aspectos que se relacionam a uma perspectiva puramente lógica, como já mencionado: a função é descontínua no ponto por uma razão fundamentalmente absurda, que é o fato de que ela não existe neste ponto.

Por outro lado, e relacionado com o que foi discutido logo acima, é importante observar que faz todo o sentido examinar a existência ou não do limite de uma função quando x tende a um valor fora de seu domínio, porque, como também já comentado, o interesse no estudo do limite de uma função quando x tende a a é obter informações sobre os valores que f(x) assume quando x está no entorno do ponto a (o que deve ser definido de modo adequado) e não exatamente no ponto a . Entretanto, para examinar a continuidade de uma função no ponto a , é crucial considerar também o valor assumido pela função neste ponto (daí segue, indiretamente, a ideia de que se o ponto não pertence ao domínio da função, não tem sentido examinar a continuidade neste ponto). Essa aparente divergência entre a noção de limite de uma função quando x tende para a e a de continuidade da função no ponto a já faz emergir um primeiro problema quando se define a continuidade em termos do limite da função. Esse problema toma uma dimensão extra quando se restringe a noção de limite apenas a situações em que a função está definida em um intervalo aberto contendo o ponto para o qual x tende, exceto possivelmente o próprio ponto. Nos exemplos seguintes, essa restrição vai se mostrar ainda mais crucial e reveladora.

Exemplo 2

Obviamente, só pode ocorrer a igualdade exigida no item 3 da observação A da seção 2.2 (definição da continuidade de f no ponto a ) se limxaf(x) existir. Como esse limite só pode existir, segundo a abordagem do Cálculo, para funções que estejam definidas em algum intervalo aberto contendo a (exceto possivelmente em a ), podemos inferir que uma função como ƒ: 𝒬 → com ƒ(x) = 1 para todo x , por exemplo, não é contínua em nenhum ponto do seu domínio. Por outro lado, como uma função só é descontínua num ponto a (de acordo com as definições do Cálculo) se ela satisfizer à condição de estar definida em um intervalo aberto contendo a (exceto possivelmente em a ) e não for contínua em a ( cf. observação B, no início da seção 2.2 deste artigo), somos levados a concluir que, de acordo com a abordagem do Cálculo, a função do exemplo acima não é contínua nem descontínua em nenhum ponto do seu domínio. Entretanto, de acordo com a abordagem da Análise, essa mesma função é contínua em todos os pontos do domínio.

Além disso, ainda de acordo com a abordagem da Análise, existe o limite de f quando x tende para qualquer ponto do domínio e o valor do limite coincide com o valor da função no ponto. Observamos ainda que, sempre de acordo com as definições da Análise, existe o limite de f(x) quando x tende também para qualquer número irracional (portanto fora do domínio), e esse limite é igual a 1, mas segundo as definições do Cálculo, não se pode considerar que esse limite exista, porque a função não está definida em nenhum intervalo aberto contendo um irracional (exceto possivelmente no próprio irracional considerado).

Este mesmo Exemplo 2 indica ainda outro conflito importante entre a abordagem dos livros de Cálculo (representados aqui por STEWART, 2006STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. ) e a ideia informal de que a continuidade de uma função em um ponto possa se caracterizar pelo fato de uma pequena variação em a provocar apenas uma pequena variação em f(a) ( cf . observação C, seção 2.2 deste artigo). No caso da função deste Exemplo 2, qualquer variação em a provoca uma variação zero em f(a) e, no entanto, a função não é contínua em nenhum a do domínio, segundo as definições do Cálculo.

Torna-se necessário, no entanto, esclarecer duas questões relativas a este último comentário. Em primeiro lugar, note-se que a observação C da seção 2.2 não afirma que o fato de uma pequena variação em a provocar apenas uma pequena variação em f(a) caracteriza a continuidade de f em a , apenas menciona que toda função contínua em a possui essa propriedade . Apesar disso, essa nos parece uma ideia que poderia traduzir, informalmente, uma característica essencial da continuidade em um ponto.

No entanto, essa ideia não pode ser aplicada a muitos casos, de acordo com as definições do Cálculo, porque, como este Exemplo 2 mostra, uma função pode satisfazer a essa condição e não ser contínua. Assim, vê-se que uma ideia central da continuidade em um ponto fica subvalorizada em prol de uma exigência sobre a forma segundo a qual deve se compor o domínio da função: não apenas a deve pertencer ao domínio (o que é consenso entre as abordagens que estamos comparando), mas este deve conter inteiramente algum intervalo aberto em torno de a. Essa última exigência é propositadamente evitada na abordagem da Análise, como se pode inferir das definições e observações de Lima (1976)LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , apresentadas na seção 3.2 deste texto . Assim, de acordo com as definições da Análise, a função do Exemplo 2, acima, é, como já observamos, contínua em todos os pontos do seu domínio, configurando-se, então, uma nova contradição entre as abordagens do Cálculo e da Análise.

Por último, este mesmo Exemplo 2 nos mostra outra contradição entre essas duas abordagens: a função ƒ: RR tal que ƒ(X) = 1 para todo x é claramente contínua em todos os pontos do seu domínio R (aqui temos um consenso entre as duas abordagens). No entanto, quando restringimos o domínio a Q, considerando, então, a função g: 𝒬 → R tal que g(x) = 1 para todo x racional, esta função g passa a não ser continua em nenhum ponto do domínio, segundo a abordagem do Cálculo, uma vez que não se pode garantir a igualdade limxaf(x)=f(a) . Isso entra em conflito com um fato largamente aceito (e devidamente provado a partir das definições pertinentes - cf . Teorema 1, em LIMA, 1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , p. 176) que se traduz no enunciado seguinte: se ƒ: XY ( X e Y subconjuntos não vazios de R) é contínua em todos os pontos do domínio X , então sua restrição a um subdomínio não vazio A ⊆ X será uma função contínua em todos os pontos de A.

O fato garantido por esse teorema está de acordo com qualquer caracterização razoável da continuidade: não faz sentido imaginar que uma função leve X em Y de forma contínua, mas que, quando sua ação (de levar os elementos de X em elementos de Y ) é observada apenas numa parte A de X , essa mesma função passe a fazer a mesma coisa de forma que não seja considerada contínua. Isso constituiria uma falha grave, a nosso ver, na concepção de continuidade de uma função. No entanto, não podemos deixar de registrar que essa falha se vincula à forma como é conceituada a continuidade nos livros de Cálculo, representados aqui por Stewart (2006)STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , como mostra este Exemplo 2. Mas qual é a origem dessa falha? Exatamente aquela a que já nos referimos outras vezes neste artigo: a conjugação de uma definição restritiva de limite com uma definição de continuidade em que se exige, em qualquer caso, a igualdade entre o limite e o valor da função no ponto.

A definição restritiva de limite refere-se à exigência (para a sua existência) não apenas que o ponto a (para onde x tende) seja ponto de acumulação do domínio de ƒ (o que é exigido na abordagem de LIMA, 1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. ), mas muito mais do que isso: que esse mesmo domínio contenha um intervalo aberto em torno de a, exceto possivelmente o próprio a. Essa última exigência é o cerne de todas as contradições e lacunas discutidas aqui, e será comentada especificamente no final desta seção 4.

Exemplo 3

Consideremos agora a função ƒ: Z → R tal que f(x) = 1 para todo x . De acordo com as definições do Cálculo ( STEWART, 2006STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. ), podemos afirmar que f não é contínua em nenhum ponto a do seu domínio , pois não satisfaz à condição 2 da definição de continuidade, i.e. , a existência de limxaf(x) . Mas também não satisfaz aos quesitos requeridos para que possa ser considerada descontínua nos pontos a do seu domínio (estar definida em um intervalo aberto contendo a, exceto possivelmente no próprio ponto a - observação B, seção 2.2 deste artigo).

Assim, para a abordagem do Cálculo, tal função não é contínua nem descontínua nos pontos do seu domínio. Isso já conforma certo estranhamento, pois, uma vez definida no ponto, espera-se que qualquer função satisfaça ou não satisfaça à condição de continuidade. No entanto, há mais a ser problematizado: segundo as definições da Análise ( LIMA, 1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. ), f é contínua em todos os pontos do seu domínio (portanto não é descontínua em nenhum ponto) , pois todos eles são isolados ( cf. observação 2 de LIMA, 1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , p. 175, também reproduzida na seção 3.2 deste artigo). Observe-se, de passagem, que realmente não tem muito sentido classificar uma função constante como descontínua, pois ela mantém a mesma imagem para qualquer elemento do domínio, ficando, assim, difícil imaginar uma razão pela qual atribuir alguma descontinuidade à ação de tal função. Entretanto, o que ocorre aqui é apenas exemplo de um fato mais geral: qualquer função cujo domínio só contém pontos isolados é contínua em todo o seu domínio. Isso não só é uma decorrência lógica da definição da Análise, mas também faz sentido, do ponto de vista do significado da continuidade: sendo o ponto isolado no domínio, o comportamento da função no entorno desse ponto não pode caracterizar qualquer tipo de descontinuidade, pois a função não é definida nesse entorno.

Finalizando esta seção destacamos que o propósito da discussão desses exemplos foi ressaltar certas consequências estranhas (no mínimo) a que se chega ao confrontar as noções de continuidade de uma função real de variável real, segundo os pontos de vista dominantes respectivamente nas abordagens do Cálculo e da Análise. Vimos que há casos em que o limite de uma mesma função (quando x tende para o mesmo valor) existe, se nos referenciarmos na definição de Lima (1976)LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , mas não existe, se a referência for a definição de Stewart (2006)STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. . Destacamos também, entre outras questões, que uma mesma função pode ser vista como contínua em todo o seu domínio, segundo uma abordagem, e nem contínua nem descontínua em todo o domínio, segundo outra abordagem. A fonte principal dessa divergência pode ser identificada, como mencionado anteriormente, a partir das seguintes observações:

  1. As definições usadas no Cálculo exigem, para se considerar a possibilidade de existência do limite de f(x) quando x tende a a , que a função em estudo esteja definida em todos os pontos de algum intervalo aberto contendo o número a , exceto possivelmente no próprio a . Assim, se estamos examinando a existência do limite de uma função quando x tende para 2 , por exemplo, exige-se que essa função esteja definida em todos os pontos de algum intervalo aberto contendo 2 , exceto possivelmente no próprio 2 . No caso da Análise, a única restrição feita para considerar a possibilidade de existência do limite de uma função quando x tende para a é que a não seja ponto isolado do domínio. Isso constitui o mínimo necessário, pois quando a é ponto isolado, a função não está definida no entorno de a , perdendo-se, então, o sentido de se estudar o que acontece com f quando x se aproxima arbitrariamente de a, sem valer a – e esse é o ponto crucial do estudo de limite de função. Por outro lado, constitui também o mínimo suficiente para que se possa estudar o comportamento de f no entorno de a , pois, sendo a um ponto de acumulação do domínio ( i.e. , não sendo um ponto isolado), basta considerar os pontos do domínio pelos quais a variável passa ao se aproximar arbitrariamente de a , desprezando-se outros pontos que poderiam estar próximos de a, mas nos quais f não está definida. Isso pode parecer pouco, mas tem grande importância na geração das contradições e lacunas apontadas neste artigo, tendo em vista, especialmente, a observação que vem a seguir.

  2. Para caracterizar a continuidade de uma função f em um ponto a , exige-se, na abordagem do Cálculo, que ocorra a igualdade limxaf(x)=f(a) Como, ao mesmo tempo, impõem-se restrições fortes ao domínio de f para a consideração da existência desse limite (observação 1, anterior) o que acontece, como mostramos nos exemplos 1, 2 e 3, acima, é que, em muitos casos, não se pode dizer nada quanto à continuidade ou descontinuidade da função em estudo. Assim, por exemplo, qualquer função cujo domínio não satisfaça à condição exigida na observação 1, não pode ser avaliada quanto à continuidade ou descontinuidade. E, para completar o quadro problemático, uma função pode ser considerada descontínua num ponto em que não está definida ( cf. Exemplo 1 desta seção 4).

  3. Outro aspecto que merece consideração nessa discussão é o seguinte: será que não existe uma equivalência entre a definição de continuidade de Lima (1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , p. 174) e a definição em que se exige a igualdade limxaf(x)=f(a) ( STEWART, 2006STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , p. 124)? Respondemos a essa pergunta da seguinte maneira: existe e não existe tal equivalência. Não existe porque, se houvesse tal equivalência, nossos exemplos acima não poderiam estar corretos, pois apontam contradições claras entre as duas abordagens. Por outro lado, existe uma equivalência, mas que teria que ser posta nos seguintes termos: se a é um ponto de acumulação do domínio de f, então f é contínua em a se e somente se limxaf(x)=f(a) ( cf. LIMA, 1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , p. 175). Observe-se, então, uma hipótese implícita e outra explícita no enunciado da equivalência acima. A explícita refere-se ao fato de a ser um ponto de acumulação do domínio de f. Mas também se supõe implicitamente que na igualdade limxaf(x)=f(a) o primeiro membrofaça sentido para qualquer a que seja ponto de acumulação do domínio de f, não apenas para o caso em que o domínio de f contenha todo um intervalo aberto em torno de a , exceto talvez o próprio a . Em suma, considerando que a noção de limite não faz sentido para pontos isolados do domínio da função e que a noção de continuidade em um ponto tem que contemplar esses casos, somos levados a concluir o seguinte: quando se define a continuidade de f em a em termos da igualdade limxaf(x)=f(a) é preciso trabalhar com uma noção de limite que seja pouco restritiva (de modo a abarcar todos os pontos de acumulação do domínio da f ), e agregar, como uma definição à parte, a afirmação de que se a é isolado no domínio, então f é contínua em a.

Lembramos, mais uma vez, que eliminar a consideração do valor da função no ponto para o qual x tende é necessário e se refere à ideia de que o estudo do limite de uma função quando x tende para a fornece uma informação que tenta traduzir essencialmente o comportamento da função no entorno de a , desconsiderando-se o que acontece no próprio a . Entretanto, a exigência de f estar definida em todos os pontos de algum intervalo aberto contendo a , excetuando-se (possivelmente) apenas o próprio a, é demasiado restritiva para muitas funções, em muitos casos. Para dar mais um exemplo, se o domínio da função é o intervalo fechado [0,1], examinar o comportamento dessa função no entorno do ponto 1 faz sentido, bastando que se entenda o entorno do 1 como os pontos do domínio que pertencem a algum intervalo aberto contendo o ponto 1, (desconsiderando-se o próprio 1). Assim, a nosso ver, a ideia de estar no entorno (nesse caso e em outros) fica perfeitamente contemplada pela noção de ponto de acumulação do domínio, como faz Lima (1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. , p. 174), sendo, portanto, desnecessária e problemática, a restrição feita pela abordagem do Cálculo, como extensivamente exemplificado neste texto.

Outra questão relacionada com a discussão acima é a seguinte: pode-se sempre argumentar que, nos extremos dos intervalos de definição da função, os livros de Cálculo recomendam a utilização da noção de limite lateral, porém cabe observar que nem sempre a questão fica resolvida com a noção de limites laterais, tal como é formulada nesses livros de Cálculo. Basta considerar casos em que o domínio da função é um subconjunto de Q ou de R-Q, por exemplo. Em nenhum desses casos a noção de limites laterais veiculada nos livros de Cálculo se aplica, mas a noção de limite da Análise ( LIMA, 1976LIMA, E. L. Curso de Análise . Rio de Janeiro: IMPA/CNPq, 1976. ) resolve perfeitamente a questão, sem necessidade de se introduzir o conceito de limites laterais.

5 Considerações finais

Examinando mais detalhadamente as caracterizações de continuidade e descontinuidade à luz das definições do Cálculo, cabe notar alguns aspectos controversos, tanto do ponto de vista lógico, quanto de uma perspectiva didática.

Qualquer que seja a definição a ser utilizada, a ideia de descontinuidade em um ponto pretende expressar a negação da continuidade nesse ponto. Assim, dado um ponto do domínio de qualquer função, é natural que se possa afirmar que tal função ou é contínua ou é descontínua nesse ponto. No entanto, na definição dos livros de Cálculo, para que uma função seja contínua em a , exige-se que exista o limite de f(x) quando x tende para a . Assim, quando a função não é definida em todos os pontos de um intervalo aberto contendo a (exceto possivelmente em a ), falha a condição descrita acima e podemos, então, concluir que f não é contínua em a e, portanto, que seria descontínua nesse ponto. Mas, de acordo com a abordagem do Cálculo, não podemos concluir isso, pois para satisfazer à definição de ser descontínua em um ponto, exige-se igualmente que a função esteja definida em um intervalo aberto contendo a , exceto possivelmente em a ( cf . STEWART, 2006STEWART, J. Cálculo: volume I. 5. ed. São Paulo: Thomson Learning, 2006. , p.124).

Deste modo, chegamos a uma das consequências importantes das definições de limite, de continuidade e de descontinuidade num ponto, na perspectiva do Cálculo: qualquer função só pode ser contínua ou descontínua no ponto a se ela for definida em um intervalo aberto contendo a , com a possível exceção do próprio a . Destacar esse fato é importante porque ele desqualifica o estudo da continuidade para o caso de inúmeras funções reais de variável real (por exemplo, todas as funções cujos domínios são subconjuntos dos racionais ou dos irracionais, só pra ficar nos casos mais simples). Além disso, como mostramos neste texto, tal exigência acarreta que uma função contínua, quando restrita a determinados subconjuntos do domínio pode produzir uma função que não é contínua, o que contradiz a perspectiva da Análise, sem um motivo minimamente razoável, a nosso ver.

Sumarizando, podemos dizer que a argumentação desenvolvida ao longo deste artigo permite destacar pelo menos as seguintes contradições:

  • Não faz sentido, na Análise, dizer que uma função não é contínua nem descontínua em um ponto do seu domínio; no Cálculo faz.

  • Não faz sentido, na Análise, dizer que uma função é contínua (ou descontínua) em um ponto que não pertence ao seu domínio, ou seja, num ponto em que a função não está sequer definida; no Cálculo faz.

  • Não faz sentido, na Análise, dizer que uma função constante em todo o seu domínio não é contínua; no Cálculo faz.

Para evitar essas contradições, uma alternativa seria considerar que a definição de continuidade no Cálculo só se aplica a funções cujos domínios contenham apenas pontos que satisfazem às condições exigidas na definição de limite, ou seja, apenas pontos que pertençam a algum intervalo real aberto, inteiramente contido no domínio da função (pode-se alegar que essas são as funções usualmente trabalhadas nos cursos de Engenharia, por exemplo). Mas tal alternativa nos levaria a uma situação no mínimo esdrúxula: a existência de duas teorias de continuidade, uma que se aplicaria às funções usualmente trabalhadas nos cursos de Engenharia e outra teoria, contraditória com a primeira em alguns aspectos, que se aplicaria a todas as funções possíveis. É evidente que isso não faz muito sentido, nem do ponto de vista lógico nem do ponto de vista didático.

Assim, a nosso ver, uma alternativa mais razoável (entre outras possibilidades) seria trabalhar, no Cálculo para as Engenharias, com uma abordagem mais geral como a da Análise, ainda que centrando o foco em exemplos específicos da área (supondo que, nesses casos, as funções seriam sempre definidas em algum intervalo aberto contendo a exceto possivelmente em a ). Essa alternativa, além de provavelmente favorecer a compreensão por parte do estudante, teria também a vantagem de evitar potenciais contradições e lacunas, como as mencionadas neste texto.

Por outro lado, acreditamos ser contestável a alegação de que usar formulações mais gerais para os conceitos de limite e continuidade no Cálculo (o que poderia incluir, por exemplo, trabalhar com a ideia de ponto de acumulação de um subconjunto de R) não seria viável por agregar mais um conceito ao trabalho com um tema que já carrega em si complicações conceituais intrínsecas. Temos vários motivos para não nos render a esse argumento, mas vamos comentar apenas dois.

O primeiro é que a ideia de ponto de acumulação é muito simples, além de ser também econômica , no sentido de que elimina a necessidade do uso de outros conceitos (como o de limites laterais), além de oferecer a possibilidade de uma formulação clara da ideia geral de limite de função real de variável real. O segundo motivo é que, a nosso ver, usar a formulação mais geral, mesmo com a introdução de um novo conceito, evitaria complicações desnecessárias do ponto de vista pedagógico e do ponto de vista lógico. Além disso, facilitaria, a nosso ver, a produção de resoluções eficientes para eventuais conflitos cognitivos originários de concepções equivocadas desenvolvidas pelos estudantes, quando se aborda o tema por uma via mais conceitual, em contraposição a uma puramente procedimental. Em suma, entendemos que uma formulação mais abrangente dos conceitos de limite e continuidade de função facilita, em muitos aspectos, os processos de aprendizagem e de ensino de Cálculo Diferencial e Integral, seja nos cursos de Engenharia, seja em outras áreas em que esses conhecimentos são demandados.

Quanto aos cursos de Matemática (Bacharelado e Licenciatura) em particular, a ideia de uma abordagem mais geral das noções de limite e continuidade nas disciplinas ligadas ao Cálculo torna-se ainda mais fundamental. Isso porque, nesses casos, parece claro que as contradições lógicas aqui apresentadas podem ter impacto significativo na formação dos estudantes, pois eles passarão obrigatoriamente pela disciplina Análise Real (ou Análise I ou Análise na Reta) e, portanto, serão expostos explicitamente a tais contradições.

Para refletir, ainda que brevemente (dado o escopo deste artigo) a respeito do potencial impacto das contradições aqui apontadas na formação de bacharéis e licenciados em Matemática, fazemos referência à noção de imagem conceitual ( TALL; VINNER, 1981TALL, D.; VINNER, S. Concept image and concept definition with particular reference to limits and continuity. Educational Studies in Mathematics , Dordrecht, v. 12, n. 2, p.151-169, 1981. ; VINNER, 1991VINNER, S. The role of definitions in the teaching and learning of mathematics. In: TALL, D. (ed.) Advanced Mathematical Thinking. Dordrecht: Kluwer, 1991. p.65-8. ). Segundo esses autores, as imagens conceituais se constituem a partir das associações não verbais que formamos a respeito de um conceito, incluindo representações visuais, figurações mentais, impressões e experiências. Tais elementos imagéticos se associam uns aos outros para constituir formas de entendimento do conceito em questão, a serem evocadas em situações que o envolvem. Numa linguagem mais técnica, pode-se dizer que a imagem conceitual de um indivíduo é a estrutura cognitiva total desse indivíduo associada ao referido conceito ( TALL; VINNER, 1981TALL, D.; VINNER, S. Concept image and concept definition with particular reference to limits and continuity. Educational Studies in Mathematics , Dordrecht, v. 12, n. 2, p.151-169, 1981. ). Essa imagem vai se reestruturando à medida que o sujeito amadurece, vivencia novas experiências, reflete sobre elas e elabora novos conhecimentos.

Ainda segundo esses autores, o processo de constituição de (novas) imagens conceituais, atreladas às (novas) experiências, não se dá necessariamente de forma logicamente consistente. Assim, a imagem conceitual de um indivíduo pode conter elementos contraditórios ou incompatíveis entre si, do ponto de vista lógico. Tais elementos contraditórios podem ser evocados, aparentemente sem grandes conflitos, em situações mais ou menos independentes.

A partir dessa espécie de mosaico de representações de um dado conceito, o sujeito vai refinando sua visão desse conceito, ativando ou desativando, a cada momento, determinados elementos da sua imagem conceitual, de acordo com os estímulos sugeridos pela situação em que a evocação do conceito lhe pareça adequada ou necessária. No caso dos alunos de bacharelado e de licenciatura em Matemática, alguns dos componentes das imagens conceituais a respeito de limite e continuidade de uma função em um ponto foram afirmadas e reafirmadas em diversas situações de ensino e aprendizagem do Cálculo, e, portanto, podem ter sido solidamente inseridas em suas respectivas estruturas cognitivas.

Neste caso, ao chegar à disciplina Análise Real, esses mesmos alunos se verão, tácita ou explicitamente, convidados a desativarem parte significativa de suas imagens conceituais, as quais foram anteriormente estimulados a ativar, com sucesso, em diversas circunstâncias, nos cursos de Cálculo. Além disso, terão que construir novas imagens, muitas vezes contraditórias com aquelas que foram induzidos a abandonar, sem compreender suficientemente a razão pela qual deveriam abandoná-las.

Se o processo de refinamento e ajuste da imagem conceitual de um indivíduo a uma definição considerada tecnicamente correta do conceito já está longe de ser simples ( VINNER, 1991VINNER, S. The role of definitions in the teaching and learning of mathematics. In: TALL, D. (ed.) Advanced Mathematical Thinking. Dordrecht: Kluwer, 1991. p.65-8. ), pode-se imaginar a difícil situação vivida por um professor de Análise ao se ver na condição de ter que propor a seus alunos a renúncia pura e simples a um conjunto amplo de imagens conceituais já testadas e aprovadas . E, além disso, propor que as substituam por outras que as contradizem, além de contradizerem também as definições dos conceitos que elas (as que devem ser abandonadas) supostamente traduziam de modo adequado. Some-se a isso a conclusão de um estudo recente ( BROLEY; HARDY, 2022BROLEY, L.; HARDY, N. The Evolution of Students’ Learning from Calculus to Analysis: How Students Solve Analysis Tasks that look like Calculus Tasks. International Journal of Research in Undergraduate Mathematics Education , London, v. 8, n.1, p. 269-292, 2022. ), segundo o qual, ao resolverem tarefas (propostas na disciplina Análise Real) que lhes pareçam similares àquelas que realizavam quando alunos de Cálculo, a maioria dos estudantes não mobiliza os conhecimentos trabalhados na Análise, e sim aqueles que utilizavam no Cálculo.

Sumarizando, acreditamos ser altamente pertinente considerar a hipótese de que um dos reflexos negativos das contradições lógicas aqui referidas na aprendizagem de bacharelandos e licenciandos em Matemática seria a potencial ampliação do nível de incompatibilidade das imagens conceituais desses alunos, associadas às noções de limite e continuidade de uma função num ponto. Entendemos, assim, que as reflexões propostas neste artigo oferecem também uma contribuição de natureza didático-pedagógica para a literatura referente ao ensino de Cálculo em nível universitário.

Referências

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  • BROLEY, L.; HARDY, N. The Evolution of Students’ Learning from Calculus to Analysis: How Students Solve Analysis Tasks that look like Calculus Tasks. International Journal of Research in Undergraduate Mathematics Education , London, v. 8, n.1, p. 269-292, 2022.
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    » https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-27022014-121106/publico/WANDERLEY_REZENDE.pdf
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  • THOMAS, G.B. Cálculo: volume I. 10. ed. São Paulo: Addison Wesley, 2002.
  • VINNER, S. The role of definitions in the teaching and learning of mathematics. In: TALL, D. (ed.) Advanced Mathematical Thinking. Dordrecht: Kluwer, 1991. p.65-8.
  • 1
    a é ponto de acumulação de um conjunto X, contido em R, se todo intervalo (real) aberto contendo a contém também algum ponto de X diferente de a .
  • 2
    Um ponto a é isolado de XR se não é ponto de acumulação de X , ou seja, se existe um intervalo aberto de R cuja interseção com X é o próprio ponto a.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2022
  • Aceito
    27 Mar 2023
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