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Contrapondo a ideologia da certeza por meio do conhecimento reflexivo na modelagem matemática

Resumo

Através deste artigo pretende-se revelar as imbricações entre certeza na matemática e o desenvolvimento de uma visão crítica. Para isso, utilizamos o conceito de ideologia da certeza, que pode ser compreendido como uma tendência de considerar a matemática sempre certa, sendo a declaração final de argumentos e aplicável em todas as circunstâncias, sem exceção. Adicionalmente, para descrever a postura crítica dos alunos, utilizamos o conhecimento reflexivo. Esta análise qualitativa se respaldou no aprimoramento dos passos sugeridos por Ole Skovsmose para o desenvolvimento do conhecimento reflexivo. As atividades de modelagem matemática tiveram temáticas de interesse dos alunos e foram realizadas em grupos. Constatamos que o conhecimento reflexivo tende a melhorar após a produção de um primeiro modelo e que o desenvolvimento desse conhecimento está diretamente associado à desestabilização da ideologia da certeza. Por outro lado, muitos alunos apresentaram dificuldade em se aprofundar no conhecimento reflexivo e ter, consequentemente, um distanciamento maior da ideologia da certeza. Assim, percebemos que é necessário que um auxílio seja dado aos estudantes para que eles possam aprimorar o conhecimento reflexivo e contrapor-se à ideologia da certeza.

Modelagem Matemática; Conhecimento Reflexivo; Cidadania Crítica; Equações Diferenciais; Ensino Superior

Abstract

This article intends to reveal the overlap between certainty in mathematics and the development of a critical view. For this, we use the ideology of certainty concept, which can be understood as a tendency to consider mathematics always right, being the final statement of arguments and applicable in all circumstances, without exception. Additionally, to describe the students’ critical posture, we used reflective knowledge. This qualitative analysis was based on the improvement of the steps suggested by Ole Skovsmose for the development of reflective knowledge. The mathematical modeling activities had topics of interest to the students and were carried out in groups. We found that reflective knowledge tends to improve after the production of a first model and that the development of this knowledge is directly associated with the destabilization of the ideology of certainty. On the other hand, many students found it difficult to delve deeper into reflective knowledge and, consequently, have a greater distance from the ideology of certainty. Thus, we realize that it is necessary that assistance be given to students so that they can improve reflective knowledge and counter the ideology of certainty.

Mathematical Modeling; Reflective Knowledge; Critical Citizenship; Differential Equations; Higher Education

1 Introdução

No âmbito da educação matemática, a cidadania crítica está relacionada à compreensão das maneiras nas quais a matemática é utilizada na sociedade, avaliando e refletindo criticamente seu uso nas estruturas sociais, financeiras e políticas ( KOLLOSCHE; MEYERHÖFER, 2021KOLLOSCHE, D., MEYERHÖFER, W. COVID-19, mathematics education, and the evaluation of expert knowledge. Educational Studies in Mathematics , Dordrecht, v. 108, n.1-2, p. 401-417, 2021. ). A importância dessa postura crítica tem se tornado mais evidente após o surgimento da COVID-19 ( MAASS et al., 2022MAASS, K.; ZEHETMEIER, S.; WEIHBERGER, A.; Flöer, K. Analysing mathematical modelling tasks in light of citizenship education using the COVID-19 pandemic as a case study. ZDM Mathematics Education , Berlin, v. 55, n. 1, p. 131-145, 2022. ), e é de suma importância a utilização da educação matemática para contribuir para a formação de cidadãos críticos, capazes de assimilar e fazer uso da matemática em seu cotidiano ( SKOVSMOSE, 1994SKOVSMOSE, O. Towards a critical mathematics education. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 27, n. 1, p. 35-57, 1994. ; KOLLOSCHE; MEYERHÖFER, 2021KOLLOSCHE, D., MEYERHÖFER, W. COVID-19, mathematics education, and the evaluation of expert knowledge. Educational Studies in Mathematics , Dordrecht, v. 108, n.1-2, p. 401-417, 2021. ; MAASS et al., 2022MAASS, K.; ZEHETMEIER, S.; WEIHBERGER, A.; Flöer, K. Analysing mathematical modelling tasks in light of citizenship education using the COVID-19 pandemic as a case study. ZDM Mathematics Education , Berlin, v. 55, n. 1, p. 131-145, 2022. ).

Para atingir essa compreensão da matemática como ferramenta do cotidiano é necessário estabelecer reflexões a respeito do papel da matemática, que pode envolver os seguintes questionamentos ( BARWELL, 2013BARWELL, R. The mathematical formatting of climate change: Critical mathematics education and post-normal science. Research in Mathematics Education, London, v. 15, n. 1, p. 1-16, 2013. ): quais são os fatos? O que é valorizado? Quem se beneficia de versões particulares dos fatos? Quais decisões são possíveis ou não? Quais ações podemos tomar?

Maass et al. (2022)MAASS, K.; ZEHETMEIER, S.; WEIHBERGER, A.; Flöer, K. Analysing mathematical modelling tasks in light of citizenship education using the COVID-19 pandemic as a case study. ZDM Mathematics Education , Berlin, v. 55, n. 1, p. 131-145, 2022. investigaram quais competências poderiam ajudar a capacitar os alunos para o desenvolvimento da cidadania crítica, e reconheceram que esse questionamento levava a outro, a saber: quais competências os alunos necessitam ao refletir sobre problemas na sala de aula de matemática? Entendemos que uma das principais competências é o saber reflexivo. O uso do conhecimento reflexivo (ou saber reflexivo) na produção de um modelo matemático envolve resgatar o fenômeno modelado, abordando problemas e incertezas na transposição de situações reais para os modelos matemáticos e vice-versa ( SKOVSMOSE, 1994SKOVSMOSE, O. Towards a critical mathematics education. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 27, n. 1, p. 35-57, 1994. ), bem como implica apontar de que maneiras o modelo pode estar formatando a realidade, ou seja, reconhecer que a matemática influencia a sociedade e que a produção de modelos pode ser afetada por valores e interesses particulares.

Ademais, para o desenvolvimento da cidadania crítica é necessário que a matemática não seja considerada como neutra de intenções , nem dada a autoridade da certeza nos argumentos ( SOUZA; ARAÚJO, 2022SOUZA, L. D. O.; ARAÚJO, J. D. L. O fenômeno das fakenews: formação de crenças sob a ótica pragmatista e a educação matemática. Acta Scientiae – Revista de Ensino de Ciências e Matemática, Porto Alegre, v. 24, n. 1, p. 1-29, 2022. ). Assim, é importante questionar a certeza e a racionalidade da matemática, pois acreditar que a matemática está sempre certa, é neutra e não serve a interesses particulares é estar persuadido pela ideologia da certeza matemática que, por sinal, é reforçada no cotidiano, uma vez que a mídia, constantemente, se utiliza da suposta certeza garantida da matemática.

Por isso, concordamos com Rodrigues, Silva e Silva (2021) quando afirmam que devemos repensar a maneira como a matemática é percebida em nossa sociedade e as implicações disso, ou seja, devemos não somente identificar a presença da ideologia da certeza, mas entender como ela funciona, e, “buscar meios para superá-la [é] parte imprescindível nesse processo” (RODRIGUES; SILVA; SILVA, 2021, p. 437). Corroborando os autores supracitados, Araújo (2012ARAÚJO, J. L. Ser crítico em projetos de modelagem em uma perspectiva crítica de educação matemática. Bolema, Rio Claro, v. 26, n. 43, p. 839-859, ago. 2012. , p. 854) reconheceu que um dos objetivos da educação matemática crítica é encontrar maneiras de “questionar a ideologia da certeza na matemática”, e vale citar Straehler-Pohl (2017STRAEHLER-POHL, H. Demathematisation and Ideology in Times of Capitalism: Recovering Critical Distance. In: STRAEHLER-POHL, H.; BOHLMANN, N.; PAIS, A. (eds.) The Disorder of Mathematics Education – Challenging the Sociopolitical Dimensions of Research. New York: Springer, 2017. p. 35-52. , p. 12), que considera que “uma identificação completa e total com a ideologia da certeza é um insulto ao sujeito autônomo, autoconsciente e racional”.

Buscando contribuir para a formação de alunos que se tornem cidadãos críticos, tendo em vista esse contexto de conhecimento reflexivo e ideologia da certeza, realizamos um estudo empírico composto de atividades de modelagem matemática que foram desenvolvidas a fim de estimular a manifestação do conhecimento reflexivo pelos alunos ao interpretarem os modelos produzidos. Tencionamos estudar a seguinte questão: como a manifestação do conhecimento reflexivo para validar e interpretar um modelo matemático pode auxiliar a contrapor a ideologia da certeza?

2 Aspectos teóricos

2.1 A certeza na matemática e suas implicações

Apresentamos, nesta seção, a concepção da ideologia da certeza, exemplificando sua atuação. A matemática é considerada, pelo senso comum, apolítica e não ideológica, pois se guia por argumentos lógicos e não objetiva atender interesses específicos. Borba e Skovsmose (1997)BORBA, M.; SKOVSMOSE, O. The ideology of certainty in mathematics education. For the learning for mathematics , Kingston, v. 17, n. 3, p. 17-23, 1997. atestam que a matemática se sustenta por uma ideologia da certeza, estando em uma posição de superioridade – acima de tudo e de todos –, como um dispositivo não humano atuando no controle da imperfeição humana. Assim, a ideologia da certeza é fruto da suposição de que o saber matemático é verdadeiro, atemporal e neutro, pois argumentos matemáticos, numéricos ou estatísticos são utilizados a fim de assegurar determinado pensamento, reafirmando posições e ocupando o papel da inquestionável verdade e da réplica definitiva. Somos ensinados a acreditar na certeza de uma confirmação numérica, pois os números não mentem.

Borba e Skovsmose (1997)BORBA, M.; SKOVSMOSE, O. The ideology of certainty in mathematics education. For the learning for mathematics , Kingston, v. 17, n. 3, p. 17-23, 1997. apontam duas acepções principais da ideologia da certeza. A primeira é que a matemática é perfeita , não carece de um estudo empírico e não serve a nenhum interesse particular, seja político, social, ideológico ou outro. A segunda é que a matemática é essencial e se aplica a qualquer situação. Uma consequência negativa que advém dessas ideias é a supervalorização do componente numérico e a subvalorização de qualidades intrínsecas do objeto, que deixam de ser levadas em consideração diante da supremacia da matemática.

A ideologia da certeza nasce de três premissas ( SKOVSMOSE, 2019SKOVSMOSE, O. Crisis, Critique and Mathematics. Philosophy of Mathematics Education Journal, Aalborg, v. 35, [s. n.], p. 1-16, 2019. ): (1) a matemática é vista como neutra , pois não é influenciável e não serve a interesses particulares; (2) a matemática é objetiva , por apresentar os fenômenos como realmente são, sem subjetividades; (3) por ter um caráter racional, é garantida a sua certeza. As consequências dessa ideologia são negativas, pois decisões podem ser tidas como importantes e necessárias (i. e., certas), neutras e objetivas.

A matemática ocupa uma posição de poder e autoridade em meios de comunicação e nos ambientes escolares e acadêmicos ( BORBA, 2001BORBA, M. C. A ideologia da certeza em educação matemática. In: SKOVSMOSE, O. Educação matemática crítica: A questão da democracia. Campinas: Papirus, 2001. p. 127-148. ), e muitos acreditam que seja pura e não sofra influências, podendo ser aplicada em qualquer situação, o que camufla interesses particulares e políticos. Como exemplo disso, podemos citar o fato de encontrarmos, na sociedade e na mídia, expressões como: “foi comprovado matematicamente” e/ou “os números falam por si” ( BORBA, 2001BORBA, M. C. A ideologia da certeza em educação matemática. In: SKOVSMOSE, O. Educação matemática crítica: A questão da democracia. Campinas: Papirus, 2001. p. 127-148. , p. 129). Assim, entendemos que a ideologia da certeza não somente é corroborada pela mídia, rotineiramente, como também as próprias instituições de ensino e pesquisa perpetuam essa ideologia ao separarem a matemática pura da aplicada, sem questioná-la (SILVEIRA; CALDEIRA; WAGNER, 2019).

Como exemplo podemos citar as questões climáticas ( BARWELL, 2013BARWELL, R. The mathematical formatting of climate change: Critical mathematics education and post-normal science. Research in Mathematics Education, London, v. 15, n. 1, p. 1-16, 2013. ; HAUGE et al., 2015HAUGE, K. H.; SØRNGÅRD, M. A.; VETHE, T. I.; BRINGELAND, T. A.; HAGEN, A. A.; SUMSTAD, M. S. Critical reflections on temperature change. In: CONFERENCE OF THE EUROPEAN SOCIETY FOR RESEARCH IN MATHEMATICS EDUCATION, 9., Prague. Proceedings […]. Prague: Charles University, 2015. p. 1577-1583. Disponível em: < https://hal.science/hal-01287867/ >. Acesso em 23/06/23.
https://hal.science/hal-01287867/...
; STEFFENSEN, 2021STEFFENSEN, L. Critical mathematics education and climate change: A teaching and research partnership in lower-secondary school. 2021. 197f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Western Norway University of Applied Sciences, Bergen, 2021. ), que envolvem temas complexos que implicam em incertezas, conflitos, riscos e valores, abrangendo, por exemplo, aspectos como tempo, autoridade central, quem causa, quem resolve e o direcionamento de ações limitadas ( STEFFENSEN, 2017STEFFENSEN, L. Critical mathematics education and post-normal science: A literature overview. Philosophy of Mathematics Education Journal, Exeter, v. 32, [s. n.], p. 1-30, 2017. ). A medição da temperatura envolve incertezas, já que ela varia no tempo e no espaço e, exatamente por isso, estratos de aproximações e simplificações são feitos a nível global ao obter a temperatura de uma localidade. Dessa forma, a incerteza é minimizada, embora não exista, também, uma garantia da certeza . Podemos perceber que, nesse contexto, a matemática também não é neutra , pois os discursos políticos relativos às questões climáticas são incertos e até contraditórios, além da possibilidade de haver interesses particulares ocultos que direcionam a tomada de decisões para a resolução dessa problemática ( BARWELL, 2013BARWELL, R. The mathematical formatting of climate change: Critical mathematics education and post-normal science. Research in Mathematics Education, London, v. 15, n. 1, p. 1-16, 2013. ; HAUGE; BARWELL, 2017HAUGE, K. H.; BARWELL, R. Post-normal science and mathematics education in uncertain times: Educating future citizens for extended peer communities. Futures, [s.l.], v. 91, [s. n.], p. 25-34, 2017. ). Assim, em virtude dessas simplificações do modelo climático e desses discursos tendenciosos, a matemática passa a não ser objetiva.

A contraposição à ideologia da certeza deve pressupor que a matemática não ofereça, sempre, a resposta final (ou ideal). É necessário possibilitar o espaço para questionamentos a fim de desmantelar a ideologia da certeza. Assim, convém permitir que a certeza, na matemática, seja perturbada pela dúvida, tendo em mente que o “resultado pode ser contestado” ( BORBA, 2001BORBA, M. C. A ideologia da certeza em educação matemática. In: SKOVSMOSE, O. Educação matemática crítica: A questão da democracia. Campinas: Papirus, 2001. p. 127-148. , p. 137). A distância crítica nos permite entender que estamos em um mundo matematizado e, assim, reconhecer que somos influenciados pelos aparatos matemáticos existentes.

Além disso, para superação da ideologia da certeza é imprescindível o desenvolvimento dialógico e do saber reflexivo. Tal saber pode ocorrer ao considerarmos o conhecimento matemático como uma produção humana, contingente como outras, em que certos valores são privilegiados enquanto outros são negligenciados. Para uma emancipação, a matemática deve proporcionar um ambiente onde o conhecimento matemático abra as portas para um conhecimento reflexivo. A modelagem matemática (MM) não é somente uma alternativa para abordar conteúdos matemáticos, mas, também, para propiciar oportunidades para que os alunos conectem seus conhecimentos à realidade, fazendo uso do conhecimento reflexivo para atuar de forma crítica, afastando-se, assim, da ideologia da certeza e desvinculando-se do “paradigma do exercício”, isto é, dos rotineiros exercícios matemáticos baseados num modelo-exemplo e que não possuem conexão com a realidade (CIVIERO; OLIVEIRA, 2020, p. 174).

2.2 Uma perspectiva de modelagem em favor da cidadania crítica

A educação matemática crítica está relacionada, também, às questões sociais e políticas da aprendizagem matemática, envolvendo a cidadania crítica, tanto dentro quanto fora da sala de aula ( SKOVSMOSE, 2019SKOVSMOSE, O. Crisis, Critique and Mathematics. Philosophy of Mathematics Education Journal, Aalborg, v. 35, [s. n.], p. 1-16, 2019. ). Maass et al. (2022)MAASS, K.; ZEHETMEIER, S.; WEIHBERGER, A.; Flöer, K. Analysing mathematical modelling tasks in light of citizenship education using the COVID-19 pandemic as a case study. ZDM Mathematics Education , Berlin, v. 55, n. 1, p. 131-145, 2022. mostraram que é possível associar a MM com a educação em prol da cidadania crítica não apenas em termos teóricos, mas em situações práticas. A fim de realizar essa associação, um dos objetivos deve ser envolver a MM na perspectiva sociocrítica, ou seja, “aprender a compreender criticamente o seu mundo”, conectando a modelagem com o mundo real ( MAASS et al., 2022MAASS, K.; ZEHETMEIER, S.; WEIHBERGER, A.; Flöer, K. Analysing mathematical modelling tasks in light of citizenship education using the COVID-19 pandemic as a case study. ZDM Mathematics Education , Berlin, v. 55, n. 1, p. 131-145, 2022. , p. 135). Concordamos com Zapata-Cardona e Martínes-Castro (2021) quando afirmam que o desenvolvimento da cidadania crítica é um dos objetivos da modelagem matemática na perspectiva sociocrítica, pois assim os estudantes constroem um modelo e podem fazer uso dos resultados obtidos para refletir sobre seu entorno e transformá-lo.

É importante debater a natureza e o papel dos modelos matemáticos, pois eles não descrevem o mundo de forma neutra, e possuem informações que não são fornecidas às pessoas em geral ( BARBOSA, 2006BARBOSA, J. C. Mathematical modelling in classroom: A socio-critical and discursive perspective. ZDM Mathematics Education , Berlin, v. 38, n. 3, p. 293–301, 2006. ). Assim, o modelo matemático é tanto uma ferramenta que oportuniza aprofundar o conhecimento, quanto uma que possibilita o desenvolvimento da cidadania crítica. Além disso, de acordo com a revisão feita por Silveira, Caldeira e Wagner (2019), um dos alvos da MM, na perspectiva sociocrítica, tem sido a ideologia da certeza, sendo que a MM tem focado em descontruir a posição de inquestionabilidade que a matemática ocupa na sociedade.

Abassian et al. (2020)ABASSIAN, A; SAFI, F.; BUSH, S.; BOSTIC, J. Five different perspectives on mathematical modeling in mathematics education. Investigations in Mathematics Learning, [s.l.], v. 12, n. 1, p. 53-65, 2020. fizeram uma revisão da literatura com o intuito de caracterizar e apresentar os fundamentos das cinco principais perspectivas internacionais de MM, incluindo a perspectiva sociocrítica. Seguindo as ideias dessa revisão, explanamos, brevemente, essa perspectiva de MM.

Os principais objetivos dessa concepção de modelagem envolvem desenvolver habilidades de MM a fim de tomar decisões na sociedade, sendo que a habilidade principal em foco é o desenvolvimento do pensamento crítico. A competência de pensar criticamente envolve não somente a habilidade de aplicar a matemática, mas, também, de refletir a respeito da aplicação feita, examinando o papel da matemática na sociedade. Assim, o modelo matemático é uma tradução, pela matemática, de uma situação relevante.

Assim, as tarefas, além de envolverem um contexto social, precisam focar no desenvolvimento de noções matemáticas específicas, por isso as pesquisas nessa perspectiva propõem a utilização da matemática pelos estudantes, para que possam compreender de forma crítica a sociedade, dando sentido e significado ao mundo que os cerca. Como exemplo de pesquisadores-chave nessa perspectiva temos Jonei Barbosa e Ole Skovsmose, além da grande contribuição deixada por Ubiratan D’Ambrósio.

Apesar de sua relevância, de acordo com Gibbs e Park (2022)GIBBS, A.M.; PARK, J.Y. Unboxing mathematics: creating a culture of modeling as critic. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 110, n. 1, p. 167-192, 2022. há poucas orientações na literatura sobre como projetar e planejar atividades de modelagem que estimulem o conhecimento reflexivo na prática.

3 Aspectos metodológicos

3.1 Estrutura teórico-analítica

Skovsmose (1994)SKOVSMOSE, O. Towards a critical mathematics education. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 27, n. 1, p. 35-57, 1994. faz uma distinção de três tipos de conhecimento em matemática, sendo que, em uma sala de aula, essas três formas de conhecimento podem coexistir e estar interligadas. O conhecimento matemático se relaciona com a capacidade de usar as habilidades matemáticas, como executar cálculos e procedimentos, desenvolver justificativas e provas matemáticas; o conhecimento tecnológico se refere à capacidade de usar a matemática no contexto da tecnologia, ou seja, envolve a competência para produzir e utilizar uma tecnologia, como construção e aplicação de algoritmos que impulsionem a tecnologia, por exemplo; o conhecimento reflexivo refere-se à capacidade de analisar as circunstâncias e seus impactos em questões sociais do conhecimento matemático e tecnológico, fundamentando-se numa esfera ampla de interpretação.

Assim, para que os alunos desenvolvam a capacidade reflexiva é necessário, mais do que habilidade matemática ou tecnológica ( SKOVSMOSE, 1994SKOVSMOSE, O. Towards a critical mathematics education. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 27, n. 1, p. 35-57, 1994. ), refletir sobre questões sociais, normas e valores. Além disso, o debate de determinadas questões pode envolver a reflexão sobre aspectos éticos, políticos e econômicos, como é o caso já citado das mudanças climáticas ( HAUGE; BARWELL, 2017HAUGE, K. H.; BARWELL, R. Post-normal science and mathematics education in uncertain times: Educating future citizens for extended peer communities. Futures, [s.l.], v. 91, [s. n.], p. 25-34, 2017. ; STEFFENSEN; HERHEIM; RANGNES, 2021). Dessa forma, entendemos que, para agirmos como cidadãos críticos, o conhecimento reflexivo torna-se essencial.

A discussão realizada em uma sala de aula pode ser examinada por meio dos seis passos de reflexão de Skovsmose (2014)SKOVSMOSE, O. Democratic Competence and Reflective Knowing in Mathematics. In: SKOVSMOSE, O. (Org.) Critique as Uncertainty . Charlotte: Information Age Publishing, INC, 2014. p. 161-179. , sendo que que tais passos auxiliam no desenvolvimento do conhecimento reflexivo. De forma resumida, os passos são reflexões que se referem às seguintes questões: (i) os cálculos realizados estão certos? (ii) Um algoritmo adequado foi usado? (iii) A abordagem matemática feita é confiável ? (iv) Seria factível resolver o problema sem o uso de uma matemática formal? (v) De que maneira o enfoque matemático contamina a circunstância particular do problema? (vi) Seria possível ter refletido de outra maneira ?

Os seis passos citados se referem ao conhecimento reflexivo, que é fundamental para a formação da cidadania crítica, e referem-se às etapas de reflexão que são realizadas quando os alunos resolvem problemas. Como exemplo, Hauge et al. (2015)HAUGE, K. H.; SØRNGÅRD, M. A.; VETHE, T. I.; BRINGELAND, T. A.; HAGEN, A. A.; SUMSTAD, M. S. Critical reflections on temperature change. In: CONFERENCE OF THE EUROPEAN SOCIETY FOR RESEARCH IN MATHEMATICS EDUCATION, 9., Prague. Proceedings […]. Prague: Charles University, 2015. p. 1577-1583. Disponível em: < https://hal.science/hal-01287867/ >. Acesso em 23/06/23.
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focaram nos passos (i) e (ii) para analisar o conhecimento reflexivo de alunos de pós-graduação em educação matemática ao utilizar/interpretar gráficos que prediziam mudança de temperatura. Dessemelhante de Hauge et al. (2015)HAUGE, K. H.; SØRNGÅRD, M. A.; VETHE, T. I.; BRINGELAND, T. A.; HAGEN, A. A.; SUMSTAD, M. S. Critical reflections on temperature change. In: CONFERENCE OF THE EUROPEAN SOCIETY FOR RESEARCH IN MATHEMATICS EDUCATION, 9., Prague. Proceedings […]. Prague: Charles University, 2015. p. 1577-1583. Disponível em: < https://hal.science/hal-01287867/ >. Acesso em 23/06/23.
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, focamos em outros passos, tendo em vista que estamos realizando atividades de MM com o intuito de averiguar um possível distanciamento da ideologia da certeza.

Além disso, acrescentamos um sétimo passo, que pode ser sintetizado na seguinte pergunta: quais são as possíveis implicações sociais dessa abordagem matemática e, em vista disso, quais ações poderiam ser realizadas? Com esse último passo (vii), buscamos estabelecer uma sincronia com o conhecimento reflexivo, pois tal conhecimento é a “competência necessária para ser capaz de tomar uma posição justificada” ( SKOVSMOSE, 1994SKOVSMOSE, O. Towards a critical mathematics education. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 27, n. 1, p. 35-57, 1994. , p. 35). Pretendemos, assim, aprimorar o desenvolvimento do saber reflexivo.

Os dois primeiros passos referem-se à reflexão no âmbito da matemática e ao conhecimento matemático, que não são nosso foco. Os outros passos referem-se a uma assimilação mais abrangente da matemática que inclui, por sinal, sua função social. Assim, escolhemos os passos (iii), (v), (vi) e (vii) para nossa análise. Consideramos essas reflexões, que surgem durante a validação/interpretação de um modelo, como sendo essenciais para o desenvolvimento do conhecimento reflexivo, possibilitando desestabilizar a ideologia da certeza e, consequentemente, contribuir para a formação da cidadania crítica.

3.2 Contextualização

A pesquisa de campo foi realizada em uma universidade federal mineira, entre abril e julho de 2020. As aulas da disciplina Equações Diferenciais (ED) foram ministradas pelo professor pesquisador em duas turmas. O currículo abrangia o estudo de equações diferenciais ordinárias (EDOs) de primeira ordem, de ordem superior e sistemas de EDOs. Os participantes foram 117 estudantes de nove diferentes cursos de engenharias: engenharia ambiental, engenharia da computação, engenharia de controle e automação, engenharia elétrica, engenharia de materiais, engenharia mecânica, engenharia da mobilidade, engenharia de produção e engenharia de saúde e segurança. Esses alunos já haviam cursado a disciplina Cálculo Diferencial e Integral e a maioria estava cursando a disciplina ED pela primeira vez. Devido às condições impostas pela pandemia da COVID-19, as aulas foram ministradas em encontros síncronos por meio de videoconferências com auxílio do Google Meet . A disciplina foi planejada para se adequar ao currículo vigente e desenvolver atividades de modelagem matemática.

3.3 Tarefas de modelagem matemática

As atividades de modelagem foram realizadas em dois blocos, sendo que cada um deles continha duas atividades. O primeiro bloco envolveu modelagens que utilizam EDOs de 1ª ordem. No segundo, as modelagens estavam relacionadas às EDOs de ordem superior. Cada grupo escolheu um tema por bloco, totalizando duas atividades por grupo. Assim, de forma similar a Gibbs e Park (2022)GIBBS, A.M.; PARK, J.Y. Unboxing mathematics: creating a culture of modeling as critic. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 110, n. 1, p. 167-192, 2022. , o professor sugeriu temas para serem selecionados pelos grupos. Os temas foram:

1º bloco: 1A) Absorção de álcool e o risco de acidentes

1B) Planejando uma dieta

2º bloco: 2A) Comportamento de compra do consumidor

2B) Propagação de uma epidemia

Foram formados grupos de quatro a seis componentes, escolhidos pelos próprios alunos. Na primeira turma (T1), os 52 estudantes formaram nove grupos e na segunda (T2), os 65 alunos formaram onze grupos. No primeiro bloco, como tema de modelagem matemática, onze grupos escolheram o 1A e nove o 1B. No segundo bloco, doze grupos escolheram o tema 2B, enquanto oito selecionaram o tema 2A. Após o término de cada bloco de modelagem, cada grupo apresentou um resumo com o desenvolvimento feito em um encontro síncrono, por videoconferência. Por fim, os estudantes responderam a um questionário de avaliação final que serviu como uma ferramenta extra para uma análise de forma personalizada e individual. As tarefas de modelagens começaram em encontros síncronos, por meio de videoconferências, e foram completadas extraclasse, de forma assíncrona, sendo que as tarefas desenvolvidas pelos grupos e as respostas ao questionário foram registradas na plataforma Moodle .

A MM na perspectiva sociocrítica é tida como um “ambiente de aprendizagem” em que os alunos, reunidos em pequenos grupos, podem examinar um problema real através da matemática ( BARBOSA, 2006BARBOSA, J. C. Mathematical modelling in classroom: A socio-critical and discursive perspective. ZDM Mathematics Education , Berlin, v. 38, n. 3, p. 293–301, 2006. , p. 294). Ao invés de descrever como ocorre o ciclo de modelagem, essa perspectiva “simplesmente descreve o modelo matemático como uma representação matemática de uma situação do mundo real” ( ABASSIAN et al., 2020ABASSIAN, A; SAFI, F.; BUSH, S.; BOSTIC, J. Five different perspectives on mathematical modeling in mathematics education. Investigations in Mathematics Learning, [s.l.], v. 12, n. 1, p. 53-65, 2020. , p. 61). Assim, detalhamos como as atividades de modelagem, na pesquisa aqui relatada, foram conduzidas

Dividimos cada atividade de modelagem em três etapas, objetivando a manifestação dos três tipos de conhecimento: Na primeira etapa (a), os alunos tiveram contato com o problema e debateram sobre sua formulação; na etapa (b), eles resolveram a equação encontrada e esboçaram os gráficos da função solução e outros para um melhor entendimento do problema; na última etapa (c), o intuito foi a interpretação dos resultados encontrados. O conhecimento matemático foi utilizado para realização das duas primeiras etapas e o conhecimento tecnológico foi necessário na utilização de programas computacionais para esboçar os gráficos, na segunda etapa. Por sua vez, o conhecimento reflexivo foi manifestado já na primeira etapa, ao iniciar a discussão do problema e realizar a escolha das principais variáveis. Apesar disso, o conhecimento reflexivo teve sua maior manifestação na etapa (c), quando os estudantes discutiram os resultados obtidos e os conectaram com a realidade, sendo que, nessa última etapa radica o foco da nossa análise.

Ilustramos, no Quadro 1 , a primeira atividade de modelagem proposta. O livro de Burghes e Borrie (1981)BURGHES, D. N.; BORRIE, M.S., Modelling with Differential Equations. E. Horwood: Colston Papers, 1981. serviu de inspiração para esse tema. Iniciamos com essa tarefa de MM, pois foi a que apresentou menos complexidades matemáticas, por isso a expectativa era de que os alunos se concentrariam, principalmente, na discussão crítica do fenômeno.

Quadro 1
– Tema 1-A: absorção de álcool e o risco de acidentes

Após o término de todas as tarefas, aplicamos o questionário, no qual obtivemos 102 respondentes. Três perguntas foram feitas: (1) como você percebe a relação da matemática escolar e o cotidiano das pessoas? (2) Como você usa a matemática (básica ou superior) no seu cotidiano? (3) Como as atividades de modelagem contribuíram para ressignificar seus conhecimentos matemáticos?

Os dados foram examinados por meio da análise de conteúdo ( BARDIN, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo . São Paulo: Edições 70, 2016. ), através de categorias determinadas a posteriori . Para simplificar, como temos vários grupos em duas turmas (T1 e T2), adotamos a notação T1G1 e M1A para indicar, respectivamente, o grupo 1 da turma 1 e o tema 1-A, e assim similarmente para os demais grupos e temas. Adotamos, também, nomes fictícios para substituir os nomes reais dos alunos.

Na próxima seção, apresentamos os três temas avaliados: (1) conhecimento reflexivo nos grupos, (2) conhecimento reflexivo em uma segunda atividade de modelagem matemática e (3) conhecimento reflexivo individual.

4 Resultados e discussões

4. 1 Conhecimento reflexivo nos grupos

Na primeira etapa de modelagem, presumiu-se que os alunos iniciariam a discussão crítica em torno do tema escolhido, mas poucos relataram suas opiniões. Constatamos, portanto, que eles não estavam familiarizados com esse tipo de atividade em matemática, exigindo, assim, um incentivo externo para se expressarem ( ANHALT et al., 2018ANHALT, C.O.; STAATS, S.; CORTEZ, R.; CIVIL, M. Mathematical Modeling and Culturally Relevant Pedagogy. In: DORI, Y. J.; MEVARECH, Z. R.; BAKER, D. R. (eds) Cognition, Metacognition, and Culture in STEM Education - Innovations in Science Education and Technology, vol 24. Cham: Springer, 2018. p. 307-330. ). Consequentemente, algumas perguntas foram feitas com a finalidade de ajudá-los no princípio das discussões, por exemplo: quais devem ser as principais variáveis desse fenômeno e quais são as de menor relevância? Qual princípio físico ou tipo de comportamento está envolvido? O que pode aumentar o risco de um acidente de trânsito? Em seguida, eles realizaram a parte de conhecimento matemático, conforme consta no Quadro 1 . Por meio de técnicas de resolução de EDOs de 1ª ordem, encontraram a função solução e, em seguida, esboçaram o gráfico da função obtida.

Na terceira etapa, a expectativa era que os grupos validassem e interpretassem o modelo e fizessem conexões com a realidade. Podemos citar as afirmativas do grupo T2G4:

A partir da solução geral que obtivemos na equação diferencial, vemos que há uma dependência entre as variáveis. Esse modelo é mais bem explicado pelo aumento da curva exponencial gerada no gráfico (Afirmação do Grupo T2G4, 2020).

O risco de uma pessoa sofrer um acidente após beber é maior com o aumento do consumo de álcool, pois há uma elevação na taxa de álcool no sangue (Afirmação do Grupo T2G4, 2020).

Observamos que o grupo T2G4 conseguiu realizar uma interpretação do fenômeno em termos matemáticos, mas não houve uma reflexão sobre a confiabilidade da abordagem matemática e como essa abordagem poderia contaminar a circunstância do problema ou, ainda, se uma outra reflexão seria possível. Além disso, não ocorreu uma análise crítica que relacionasse as conclusões com questões sociais, conforme expectativa. Alguns outros grupos (grupos T1G1 e T2G1) abordaram o fenômeno de maneira similar, interpretando matematicamente os resultados obtidos e descrevendo o comportamento do gráfico esboçado sem, no entanto, fazer uma abordagem crítica.

Em contrapartida, outros grupos desenvolveram análises para além da interpretação matemática, ou seja, eles entenderam o fenômeno e identificaram pontos de melhora, como variáveis a incluir, por exemplo. Esse foi o caso do grupo T2G8:

Embora haja alguns pontos positivos – como demonstrar os riscos existentes numericamente ao dirigir após ingerir álcool –, o modelo não se adequa à realidade, pois a quantidade de variáveis existentes é maior, como por exemplo: peso, gênero, tipo de bebida, idade e tempo decorrente após o consumo (Reflexão do grupo T2G8, 2020).

Percebemos que o grupo T2G8 foi capaz de identificar que o modelo produzido não era perfeito , pois apontaram ajustes e melhorias que poderiam ser realizadas para aprimorá-lo, e perceberam que o problema poderia ter sido equacionado de outra maneira, expondo de outro modo o fenômeno.

O grupo T1G6 também identificou outros aspectos de melhorias:

O modelo obtido se mostra adequado para identificação do risco e acidente, porém, visando um modelo mais bem desenvolvido, outras variáveis devem ser consideradas (como peso da pessoa, condições da estrada, etc.). Mais variáveis tornariam o modelo mais complexo e mais realista. Vale citar, também, que bebidas possuem diferentes índices de álcool e isso pode interferir no modelo, podendo representar outra variável (Reflexão do grupo T1G6, 2020).

Os grupos T1G6 e T1G7 identificaram que problemas na pista podem afetar diretamente o modelo, e, por serem capazes de fazer essas identificações de aprimoramentos, reconhecemos que esses grupos (T2G8, T1G6 e T1G7) refletiram de maneira crítica. Além desses, outros três grupos (T1G3, T2G6, T2G2) reconheceram aspectos que poderiam ser melhorados, no entanto, não identificaram relação com questões sociais, tampouco sugeriram possíveis ações diante do que foi analisado

Por outro lado, alguns grupos fizeram mais do que apenas citar a inclusão de outas variáveis que poderiam ser relevantes para descrever o fenômeno: eles identificaram questões sociais envolvidas e/ou deram sugestão de ação a ser tomada. Como exemplo, podemos citar o grupo T2G9, que reconheceu:

[...] o risco de alguém se envolver em um acidente de carro depois de ingerir bebida alcoólica é alto, sendo absolutamente necessário conscientizar a população para que não o faça (Reflexão do grupo T2G9, 2020).

Analisando esse comentário, percebemos que o grupo T2G9 compreendeu que é de suma importância realizar uma ação social de conscientização à população. O grupo T2G3 também reconheceu que o modelo poderia ser aprimorado ao incluir uma variável que abriria o leque para especificação de tipos de bebidas com diferentes teores alcoólicos. Além disso, acrescentou:

Observando os gráficos, tornou-se possível perceber a coerência da severidade aplicada pela lei seca, pois, por menor que seja o volume de ingestão de bebida alcoólica, algumas das habilidades exigidas para condução segura do veículo podem ficar comprometidas pelos efeitos da embriaguez, tais como: a redução das capacidades motoras, cognitivas, além dos reflexos e, principalmente, das respostas rápidas à tomada de decisão (Reflexão do grupo T2G9, 2020).

Percebemos que houve associação do que foi analisado com a existência de uma lei, ou seja, o grupo T2G9 excedeu as discussões matemáticas e as sugestões para um modelo mais eficiente ao apresentarem uma relação do modelo com questões sociais.

Em suma, constatamos que – felizmente – poucos grupos focaram apenas na discussão matemática do fenômeno. No entanto, embora muitos tenham sido capazes de identificar pontos de melhorias, contribuindo para uma abordagem matemática aprimorada, poucos relacionaram a situação em estudo a alguma questão social e/ou fizeram sugestões para resolução de problemas identificados. Podemos dizer, portanto, que muitos grupos deram um passo na contramão da ideologia da certeza, uma vez que nossas análises mostraram que esta não estava tão arraigada em muitos estudantes que interpretaram os modelos produzidos, já que a objetividade da matemática foi questionada ao perceberem que o fenômeno modelado sofre alterações por meio das escolhas e simplificações feitas. Apesar disso, poucos demonstraram um maior afastamento, conforme expectativa, pois esperávamos que apresentassem e discutissem as implicações e consequências sociais do modelo indicando e, suplementarmente, alguma ação/resolução.

4.2 O conhecimento reflexivo em uma segunda atividade de modelagem matemática

Para o tema 2-B, usamos o artigo de Catlett (2015) e o livro de Burghes e Borrie (1981)BURGHES, D. N.; BORRIE, M.S., Modelling with Differential Equations. E. Horwood: Colston Papers, 1981. como referência. Não detalhamos as etapas, como fizemos no Quadro 1 para a M1A, devido às limitações impostas a um artigo, mas o problema proposto na M2B era: como modelar a evolução de uma epidemia?

Utilizamos os resultados da produção desse modelo a fim de averiguarmos a manifestação do conhecimento reflexivo na modelagem do segundo bloco. Devido à pandemia do novo coronavírus, vivenciada na época das atividades de modelagem (no primeiro semestre de 2020), vários grupos escolheram realizar a M2B para produzir um modelo da evolução da COVID-19. Para o desenvolvimento do modelo, visando facilitar as discussões realizadas pelos grupos, foi sugerida a escolha de uma cidade para determinar as constantes envolvidas no sistema de EDO do fenômeno.

No segundo bloco, dessemelhante do primeiro, todos os grupos apresentaram algum tipo de discussão para além do conteúdo matemático, mesmo que de forma generalista. O grupo T2G10, por exemplo, afirmou:

O ponto negativo é que o modelo produzido não se adequa totalmente à realidade, pois faltam certas especificações de variáveis e constantes, além de não ser polivalente (Afirmação do grupo T2G10, 2020).

Apesar de o grupo ter reconhecido a necessidade de mudanças e percebido que o modelo poderia ser aprimorado, não foi especificado como isso poderia ser feito. Ainda assim, consideramos uma melhora – mesmo que não muito expressiva – do conhecimento reflexivo, além de um ligeiro afastamento da ideologia da certeza. Da mesma forma, o grupo T1G5 apresentou considerações gerais.

Por outro lado, foquemos nas afirmações do grupo T2G6.

A trajetória de doenças é algo previsível e uniforme e, por isso, uma ferramenta extremamente útil e confiável [...]. A prevenção depende de fatores que vão além dos recursos financeiros (Afirmações do grupo T2G6, 2020).

Observamos, através do excerto, que o grupo T2G6 não especificou em que sentido o modelo seria uma ferramenta extremamente útil ou até que ponto previsível , por que seria confiável , além de carecer de maiores explicações acerca do motivo de a prevenção depender de fatores que vão além dos recursos financeiros . Assim, notamos que nos grupos T1G10, T1G5 e T2G6 não houve inclusão de qualquer consideração sobre as relações do modelo com questões sociais ou qualquer indicativo de agência.

Notamos, no entanto, que muitos grupos demonstraram competência no conhecimento reflexivo, embora algumas considerações por eles apresentadas os tenham impedido de avançar mais. Esse foi o caso do grupo T2G5, que mencionou que as justificativas de ações do governo e os dados por ele apresentados podem ser divergentes da realidade ao afirmar que

[...] o número de infectados no país pode ser seis vezes maior que o divulgado pelas autoridades (Afirmação do grupo T2G5, 2020).

Embora tenha apresentado uma crítica ao governo, esse grupo mencionou dados estatísticos sem qualquer referência. Esse tipo de prática pode indicar uma influência da mídia e tendência da sociedade de fazer uso de termos matemáticos e estimativas sem embasamento ou referência. Assim, apesar de ter abordado uma questão sociopolítica relevante, faltou embasamento que desse credibilidade à afirmação.

O grupo T2G8 confirmou a validade do modelo por eles produzido, considerando-o atualizado, e comparou os resultados obtidos àqueles advindos de um modelo bastante utilizado e divulgado pela mídia. Tendo em vista que o modelo de propagação de uma epidemia utilizado é antigo e foi produzido sob outras circunstâncias (CATLETT, 2015), esse grupo se apoiou na objetividade e neutralidade da matemática ao não debater sobre a atualidade do modelo em questão, ou seja, confiou na abordagem matemática sem questioná-la.

Por outro lado, o grupo T2G9 afirmou que

[...] modelos matemáticos estão embasando a tomada de decisões de governos de países desenvolvidos que se preocupam com seus cidadãos (Afirmação do grupo T2G9, 2020).

Ao perceber a relação entre o uso de modelo e a tomada de decisões por parte de governos, esse grupo realizou uma constatação sociopolítica relevante na pandemia da COVID-19, apesar de terem considerado apenas a situação de países desenvolvidos, abrindo margem para a consideração de que governos de países subdesenvolvidos poderiam não estar sendo eficientes nesse sentido. Quando os alunos realizaram essa atividade de MM, a quarentena já havia sido decretada no país e pessoas carentes estavam recebendo auxílio do governo, bem como estudantes necessitados puderam solicitar auxílio da universidade. Por não discutir essas e outras questões, consideramos que esse grupo não se aprofundou no conhecimento reflexivo.

O grupo T1G3, por outro lado, reconheceu que outra abordagem seria possível ao sugerir a inclusão da variável faixa etária no modelo, pois, segundo o grupo,

[...] a faixa etária é decisiva para instalação da doença naquele indivíduo (Afirmação do grupo T1G3, 2020).

No entanto, apesar da contribuição, o grupo T1G3 não se aprofundou e/ou desenvolveu um discurso mais elaborado acerca da sugestão feita. Dessa forma, reconhecemos que os grupos T2G5, T2G8, T2G9 e T1G3 apresentaram certo aprofundamento no conhecimento reflexivo e se distanciaram, mesmo que não muito, da ideologia da certeza.

Em contrapartida, outros cinco grupos se destacaram ao se distanciarem mais da ideologia da certeza, apresentando um aprofundamento do conhecimento reflexivo e, alguns deles, indicativo de ação. Todos extrapolaram os primeiros níveis de discussões e interpretações matemáticas e, exceto pelo grupo T2G2, todos sugeriram aspectos para melhora do modelo matemático.

O grupo T2G4 mencionou que a produção de um modelo não é algo preciso, pois o comportamento das pessoas varia e nem todos usam máscaras e mantêm o distanciamento social, por exemplo. Também reconheceu:

[...] o comportamento da curva de infectados é uma poderosa ferramenta para o governo atuar com medidas preventivas e corretivas (Reflexão do grupo T2G4, 2020).

Da mesma forma, o grupo T1G2 reconheceu a importância de

[...] fazer previsões e traçar medidas protetivas em relação à situação da saúde da população e da economia (Reflexão do grupo T1G2,).

A importância de tais modelos nos dias atuais reside no fato de que podem ser usados tanto para que um governo controle a disseminação do vírus com medidas protetivas (como quarentena e afins), bem como para saber quando interromper/retomar o fluxo entre países. Além disso, alarmar as pessoas do perigo do vírus pode estimular todos a tomar medidas sanitárias necessárias para evitar que o vírus se espalhe (Reflexão do grupo T1G2).

Vejamos o excerto do grupo T1G7:

[Um modelo eficaz auxilia a] reduzir a probabilidade de que os números de infectados alcancem a projeção matemática”, [pois] medidas protetivas (como isolamento social e uso de máscaras) poderão ser tomadas de acordo com o modo de transmissão da doença e a gravidade, ajudando a controlar a disseminação até que a vacina seja desenvolvida (Reflexão do grupo T1G7, 2020).

Por fim, o grupo T2G2 mencionou que o modelo seria mais bem formulado com

[...] dados obtidos nas secretarias de saúde, [por isso, tais órgãos do governo devem] sempre divulgar os dados, [pois, assim] será possível fazer análises matemáticas condizentes com a realidade (Reflexão do grupo T2G2, 2020).

Assim, os alunos desse grupo compreendem que

[...] o modelo é importante não só para alertar a população sobre o risco de contágio, mas também para mostrar aos responsáveis pela saúde pública a direção que devem seguir, [embora os dados divulgados possam] causar desespero na população, pois as pessoas ficarão preocupadas com os números (Reflexão do grupo T2G2, 2020).

Notamos que tais grupos perceberam que a matemática pode ser utilizada para interesses particulares e para embasar decisões políticas ( BORBA; SKOVSMOSE, 1997BORBA, M.; SKOVSMOSE, O. The ideology of certainty in mathematics education. For the learning for mathematics , Kingston, v. 17, n. 3, p. 17-23, 1997. ; SKOVSMOSE, 2019SKOVSMOSE, O. Crisis, Critique and Mathematics. Philosophy of Mathematics Education Journal, Aalborg, v. 35, [s. n.], p. 1-16, 2019. ). Além de sugerir aprimoramentos no modelo, demonstrando que o modelo não é objetivo e uma outra abordagem é possível, alguns indicaram ações (como a divulgação constante de dados) para elaborar um modelo mais próximo da realidade, além de sugerirem o uso de medidas preventivas em prol da saúde da população. Assim, entendemos que tais grupos excederam o conhecimento matemático e apresentaram um aprimoramento do conhecimento reflexivo ao debater a objetividade e neutralidade da matemática, pois se afastaram razoavelmente da ideologia da certeza. Comparando o resultado do segundo bloco com os resultados do primeiro, notamos que, mesmo com a presença de dificuldades matemáticas mais relevantes no segundo bloco, houve um maior aprofundamento do conhecimento reflexivo e maior distanciamento da ideologia da certeza.

4.3 Conhecimento reflexivo de forma individual

Em relação ao conhecimento reflexivo de forma individual, averiguado através do questionário, percebemos que o apego às certezas matemáticas foi maior individualmente, ou seja, podemos dizer que o nível de criticidade foi menor. O maior grau de criticidade nas atividades de modelagens em grupo, provavelmente, está associado ao fato de as trocas de ideias favorecerem discussões mais complexas e contribuições significativas (CIVIERO; OLIVEIRA, 2020).

Encontramos vários estudantes que não desenvolveram o conhecimento reflexivo no questionário, conforme expectativa. Notemos os destaques dados pelos(as) seguintes alunos(as):

Sara: [...] vem o questionamento ‘como viver em um mundo sem a matemática?’ Seria realmente IMPOSSÍVEL.

Rodrigo: [...] a matemática está envolvida em todas as áreas e que dependem da mesma para formular soluções para qualquer problema. A matemática é essencial em nossas vidas (Assertivas individuais de sujeitos da pesquisa, 2020).

Esses comentários mostram que tais alunos enxergam o mundo pela perspectiva da essencialidade da matemática e, mais importante, não questionam se a abordagem feita é mesmo adequada. Como não apresentaram nenhuma sugestão de ação, concluímos que tais estudantes não desenvolveram o conhecimento reflexivo e consideraram a matemática como objetiva, confiável e aplicável em todas as situações, ou seja, podemos dizer que não se distanciaram da ideologia da certeza.

Por outro lado, outros estudantes avançaram no conhecimento reflexivo, conforme explicitam os seguintes excertos:

Alice: [...] o ensino de matemática nas escolas públicas não é de qualidade e a matemática não é ensinada com foco em aplicações reais.

Luciano: A matemática ensinada nas escolas é distante da realidade rotineira dos alunos. Grande parte da teoria passada não é aplicável na realidade dos estudantes, fazendo com que eles acabem não se interessando. Creio que falta trazer o aluno para o campo, pois assim ele poderá entender realmente a aplicabilidade do que é aprendido em sala (Assertivas individuais de sujeitos da pesquisa, 2020).

Além disso, embora alguns tenham apresentado críticas à educação, eles não se aprofundaram nessa problemática, ou seja, não exploraram o viés crítico citado, incluindo as implicações do uso da matemática, por exemplo.

Alguns alunos reconheceram, adicionalmente, que a MM proporciona um ambiente de aprendizagem diferente. Vejamos suas afirmações.

Kelvin: [...] a produção de modelos diversificou, trazendo mudanças para a rotina de exercícios, lista e questionário.

Levi: [...] antes trabalhávamos com exercícios nos quais as equações não tinham uma aplicabilidade. Na modelagem, nós transformamos um problema do dia a dia em equações, que acabam conferindo mais sentido ao que estamos trabalhando (Assertivas individuais de sujeitos da pesquisa, 2020).

Percebemos, assim, que esses alunos reconheceram que as atividades de MM apresentaram uma oportunidade de se distanciar do paradigma do exercício e de aplicar o conteúdo numa problemática da realidade ( BORBA, 2001BORBA, M. C. A ideologia da certeza em educação matemática. In: SKOVSMOSE, O. Educação matemática crítica: A questão da democracia. Campinas: Papirus, 2001. p. 127-148. ; CIVIERO; OLIVEIRA, 2020). Embora alguns outros tenham tecido comentários semelhantes, a aceitação da MM não foi unânime, uma vez que dois estudantes, por exemplo, citaram a preferência pela abordagem tradicional:

Antônio: [...] tradicional, com aulas expositivas e listas de exercícios (Assertiva individual de sujeito da pesquisa, 2020).

Alguns estudantes se aprofundaram mais no desenvolvimento do conhecimento reflexivo e alguns apresentaram sugestões de ações. Estudantes como Fernanda e Lorena reconheceram que o ensino tradicional não se aplica muito à realidade e perceberam conexão entre a MM e sua contribuição para uma perspectiva crítica ao afirmar que as atividades foram uma oportunidade de desenvolver sua criticidade, como se observa nos exemplos.

Pedro: [...] acredito que modelagens fazem com que a gente reflita e pesquise, o que contribui com uma formação mais crítica e embasada sobre os assuntos.

Eduardo: [...] precisamos saber como uma marca exerce influência social, econômica e política em uma região.

Júnia: [...] um governo, nação, indivíduo ou empresa podem adequar um modelo a seu bel prazer, tirando proveito das análises. O modelo é uma projeção e pode estar equivocado ou até mesmo ultrapassado. Vemos que a modelagem matemática está embasando a tomada de ações de governos e países (Assertivas individuais de sujeitos da pesquisa, 2020).

Antes de iniciarmos as discussões e considerações finais, cabe apontar algumas limitações referentes às aplicações das tarefas. Constatamos que o fato de os alunos terem discutido pouco sobre a temática escolhida pode estar relacionado com a formulação das tarefas. Percebemos que uma formulação mais aberta e livre das tarefas pode estimular a manifestação dos alunos. Por isso, buscando solucionar esse ponto, uma nova aplicação poderá reformular as tarefas, fazendo com que a parte inicial (a) seja apresentada aos alunos contendo mais perguntas que os estimulem a refletir e discutir o fenômeno em estudo. Nessa reformulação, pode-se incluir, por exemplo, uma sugestão para que os alunos apresentem uma equação do problema.

5 Discussões e considerações finais

Retomando o objetivo do artigo, tencionamos esclarecer as imbricações entre a certeza na matemática e o desenvolvimento de uma visão crítica. Para isso, investigamos como a manifestação do conhecimento reflexivo para validar e interpretar um modelo matemático pode auxiliar a contrapor a ideologia da certeza.

Notamos que muitos grupos demonstraram algum conhecimento reflexivo e certo grau de afastamento da ideologia da certeza, principalmente no segundo bloco de modelagens. Isso pode ser um indicativo de que atividades de MM podem auxiliar na formação de indivíduos que questionem a posição de certeza ocupada pela matemática. No primeiro bloco, a demonstração do conhecimento reflexivo e o afastamento da ideologia da certeza se deram em menor grau e poucos sugeriram agência, apesar de os grupos considerarem os modelos desse bloco mais fáceis de executar.

Em termos individuais, poucos apresentaram e discutiram questões sociais e indicaram alguma ação. Notamos que muitos estudantes não demonstraram conhecimento reflexivo e se mostraram apegados à ideologia da certeza. Aqueles que apresentaram questões sociais foram, em sua maioria, concisos em seus comentários, e identificaram problemas relacionados ao sistema de ensino, principalmente o público. O conjunto de atividades de MM possibilitaram um ambiente de aprendizagem diferente no qual o conhecimento reflexivo pôde ser desenvolvido. Esse ambiente oferece uma alternativa ao paradigma da lista de exercícios e configura uma oportunidade de se distanciar da ideologia da certeza, bem como proporciona uma ocasião para investigações ( SKOVSMOSE, 2014SKOVSMOSE, O. Democratic Competence and Reflective Knowing in Mathematics. In: SKOVSMOSE, O. (Org.) Critique as Uncertainty . Charlotte: Information Age Publishing, INC, 2014. p. 161-179. ).

Esses resultados parecem indicar que mais atividades que promovam o conhecimento reflexivo devem ser desenvolvidas com os estudantes, pois, assim como indicam algumas pesquisas, a criticidade do indivíduo pode melhorar com o tempo (CEVIKBAS; KAISER; SCHUKAJLOW, 2022). Concordamos que é necessário conceder tempo e oportunidades para que os estudantes experimentem ser críticos de uma maneira construtiva (Steffensen; Herheim; Rangnes, 2021). Assim, embora não tencionemos assumir que duas atividades de MM sejam suficientes para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do conhecimento reflexivo e para um distanciamento efetivo da ideologia da certeza, constatamos indícios de uma melhora do conhecimento reflexivo e de um distanciamento da ideologia da certeza por meio da MM.

Skovsmose (2014)SKOVSMOSE, O. Democratic Competence and Reflective Knowing in Mathematics. In: SKOVSMOSE, O. (Org.) Critique as Uncertainty . Charlotte: Information Age Publishing, INC, 2014. p. 161-179. considera o conhecimento reflexivo como sendo fundamental para o desenvolvimento da cidadania crítica e do afastamento da ideologia da certeza, sendo que a capacidade de questionar a produção do modelo e o porquê das escolhas envolvidas em sua produção é fundamental ( BARWELL, 2013BARWELL, R. The mathematical formatting of climate change: Critical mathematics education and post-normal science. Research in Mathematics Education, London, v. 15, n. 1, p. 1-16, 2013. ; HAUGE et al., 2015HAUGE, K. H.; SØRNGÅRD, M. A.; VETHE, T. I.; BRINGELAND, T. A.; HAGEN, A. A.; SUMSTAD, M. S. Critical reflections on temperature change. In: CONFERENCE OF THE EUROPEAN SOCIETY FOR RESEARCH IN MATHEMATICS EDUCATION, 9., Prague. Proceedings […]. Prague: Charles University, 2015. p. 1577-1583. Disponível em: < https://hal.science/hal-01287867/ >. Acesso em 23/06/23.
https://hal.science/hal-01287867/...
). Além disso, reconhecer a natureza tendenciosa de um modelo é relevante, pois um modelo inadequado pode levar não somente a uma leitura incorreta de determinada situação, mas também a um manejo incorreto ( BARBOSA, 2006BARBOSA, J. C. Mathematical modelling in classroom: A socio-critical and discursive perspective. ZDM Mathematics Education , Berlin, v. 38, n. 3, p. 293–301, 2006. ; SKOVSMOSE, 2019SKOVSMOSE, O. Crisis, Critique and Mathematics. Philosophy of Mathematics Education Journal, Aalborg, v. 35, [s. n.], p. 1-16, 2019. ).

Em relação à manifestação do conhecimento reflexivo, tanto à nível individual quanto nos grupos, percebemos que se mostrou mais perceptível na apresentação/exposição de uma questão social do que na complexidade da argumentação da problemática em questão. Notamos, por exemplo, que faltou um aprofundamento crítico em relação às ações do governo e ao uso de dados matemáticos e, por isso, inferimos que é necessário um auxílio para que os estudantes desenvolvam suas competências críticas, ou seja, os estudantes devem não apenas apresentar um dado numérico para a discussão, mas também debatê-lo e, conforme Barbosa (2006BARBOSA, J. C. Mathematical modelling in classroom: A socio-critical and discursive perspective. ZDM Mathematics Education , Berlin, v. 38, n. 3, p. 293–301, 2006. , p. 298), estimular as discussões “deve ser um objetivo primário” dos professores.

Assim como usamos questionamentos no início das atividades de MM, sugerimos que grupos de perguntas sejam aplicados durante todo o processo de modelagem sobre “os pressupostos embutidos na matemática e sobre o papel da matemática” ( HAUGE; BARWELL 2017HAUGE, K. H.; BARWELL, R. Post-normal science and mathematics education in uncertain times: Educating future citizens for extended peer communities. Futures, [s.l.], v. 91, [s. n.], p. 25-34, 2017. , p. 33), a fim de auxiliar para que os alunos não somente se expressem, mas também desenvolvam o conhecimento reflexivo (ANHALT et al., 2018; LOPES, 2022LOPES, A. P. C. Aspects of attitudes towards mathematics in modeling activities: Usefulness, interest, and social roles of mathematics. International Electronic Journal of Mathematics Education, [s.l.], v. 17, n. 4 em0711, p. 1-15, 2022. ). Todavia, é importante ter cautela a fim de evitar possíveis imposições de valores, visões particulares ou perguntas tendenciosas que direcionem as respostas dos alunos ( GIBBS; PARK 2022GIBBS, A.M.; PARK, J.Y. Unboxing mathematics: creating a culture of modeling as critic. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 110, n. 1, p. 167-192, 2022. ).

Além disso, é importante que atuais e futuros professores apoiem e estimulem seus alunos a participar de discussões críticas, pois, dessa forma, desenvolverão sua competência crítica. É papel do educador “iniciar e facilitar tais oportunidades, fornecer o estímulo externo necessário para que a reflexão crítica ocorra” ( WRIGHT, 2021WRIGHT, P. Transforming mathematics classroom practice through participatory action research. Journal of Mathematical Teacher Education , Netherlands, v. 24, n. 2, p. 155–177, 2021. , p. 161), uma vez que esse incentivo pode potencializar discussões a respeito do papel de modelos na sociedade.

Todavia, é importante salientar que não queremos afirmar que o caminho para se tornar um indivíduo crítico seja abandonar resultados matemáticos e científicos, já que isso poderia ser perigoso e levar indivíduos a acreditar em teorias da conspiração e fake news ( SOUZA; ARAÚJO, 2022SOUZA, L. D. O.; ARAÚJO, J. D. L. O fenômeno das fakenews: formação de crenças sob a ótica pragmatista e a educação matemática. Acta Scientiae – Revista de Ensino de Ciências e Matemática, Porto Alegre, v. 24, n. 1, p. 1-29, 2022. ). No entanto, possibilitar que os estudantes reconheçam incertezas envolvidas na matemática pode fortalecer a ciência (STEFFENSEN; HERHEIM; RANGNES, 2021). A educação matemática crítica evidencia a cidadania crítica, e atividades que promovam o conhecimento reflexivo, como é o caso da modelagem matemática, podem ser relevantes no desenvolvimento de um cidadão crítico.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2022
  • Aceito
    30 Jan 2023
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