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Bioética e seus paradigmas teóricos

Resumo

O artigo busca contribuir para a compreensão da história e dos modelos teóricos da bioética por meio de abordagem interdisciplinar que engloba diversas áreas do conhecimento, em especial história e filosofia. Num primeiro momento, o trabalho procura caracterizar o panorama histórico de surgimento da bioética, as questões terminológicas surgidas nesse período e o enquadramento da bioética como disciplina ou campo de discursividade. Posteriormente, o texto apresenta os principais paradigmas teóricos da bioética e os analisa criticamente.

Bioética; História; Biotecnologia

Abstract

This article seeks to contribute to the understanding of the history and theoretical models of bioethics by an interdisciplinary approach that encompasses different areas of knowledge, especially history and philosophy. First, the study characterizes the historical background on the emergence of bioethics, the terminological issues that arose in this period, and the framing of bioethics as a discipline or field of discourse. Subsequently, the text presents the main theoretical paradigms of bioethics and critically analyzes them.

Bioethics; History; Biotechnology

Resumen

El artículo busca contribuir a la comprensión de la historia y los modelos teóricos de la bioética a través de un enfoque interdisciplinario que abarca varias áreas del conocimiento, especialmente la historia y la filosofía. En un primer momento, el trabajo busca caracterizar el panorama histórico del surgimiento de la Bioética, las cuestiones terminológicas surgidas en ese período y el encuadre de la bioética como disciplina o campo de discursividad. Posteriormente, el texto presenta los principales paradigmas teóricos de la Bioética y los analiza críticamente.

Bioética; Historia; Biotecnología

Nas últimas décadas, vivencia-se um período de intenso e acelerado desenvolvimento no campo das ciências biomédicas, que fez surgir possibilidades inéditas de intervenção no ser humano. As técnicas de reprodução assistida, o suporte artificial da função cardiorrespiratória, o transplante de órgãos, a farmacologia, a engenharia genética e a clonagem são apenas alguns exemplos de como a atual revolução biomédica vem modificando a compreensão do ser humano sobre si mesmo e criando dimensões de atuação para os profissionais da área da saúde. A função terapêutica passa a dividir espaço com a preventiva e a diagnóstica e até mesmo com a possibilidade de ações que visam selecionar e melhorar características físicas e mentais. Nesse contexto, é inevitável que surjam questionamentos éticos concernentes aos limites de aplicação de tais biotecnologias.

A fim de alcançar soluções racionais para os conflitos decorrentes da referida conjuntura, a bioética é essencial. No intuito de contribuir para a disseminação e o estudo desse campo de estudo, o presente artigo apresenta, num primeiro momento, um panorama histórico do surgimento da bioética, analisando questões terminológicas e seu enquadramento como disciplina ou campo do discurso. Posteriormente, o texto aborda alguns paradigmas teóricos da bioética: virtude, utilitarismo, kantismo (dever), personalismo, principialismo de ética biomédica e principialismo hierarquizado. Nesse segundo momento, serão analisados os pontos positivos e problemáticos dos conceitos e dos modos de aplicação de cada paradigma.

Panorama histórico do surgimento da bioética

A bioética nasce na segunda metade do século XX, e seu surgimento é caracterizado por fatores típicos do período. Inicialmente, cabe ressaltar o fator sociocultural. Os anos 1960, principalmente nos países ocidentais, foram marcados por movimentos culturais e políticos caracterizados por discursos críticos, que se disseminaram no espaço público. Tais movimentos chamavam atenção para questões de justiça e igualdade e para a afirmação de direitos individuais, vinculados ao exercício da liberdade e da autonomia pessoal. A desconfiança e a contestação do poder e da autoridade das instituições provocaram mudanças consideráveis na esfera pública e privada. Fomentado pelo despertar crítico, acentuou-se também o questionamento ao positivismo científico. Na medicina, as reprovações recaíram sobre o paternalismo na relação médico-paciente e o abuso na experimentação com seres humanos 11. Jonsen AR. The birth of bioethics. New York: Oxford University Press; 1998. . Na década de 1970, com a popularização dos meios de comunicação de massa, essas ideias se expandiram rapidamente, atingindo um vasto público 22. Parizeau MH. Bioéthique. In: Canto-Sperber M. Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale. 2ª ed. Paris: Presses Universitaires de France; 1997. .

O segundo fator que impulsionou o surgimento da bioética foi o estrondoso desenvolvimento científico e biotecnológico do período. Essa conjuntura, que recebeu diversas denominações (“nova biologia” 33. Jonsen AR, Jecker NS, Pearlman RA. Introduction to the history of bioethics: moral questions and the new biology. In: Kass LR, organizador. Bioethics: an introduction to the history, methods and practice. Sudbury: Jones and Bartlett; 1997. p. 3-11. , “revolução biomédica” 44. Bik C. Tratado de bioética. São Paulo: Paulus; 2015. , “revolução biológica”, “ecológica” e “médico-sanitária” 55. Gracia Guillén D. Fundamentación y enseñanza de la bioética. Bogotá: El Búho; 1998. , “revolução terapêutica” e “biológica” 66. Bernard J. La bioéthique. Paris: Flammarion; 1994. ) ficou marcada pela descoberta e o aprimoramento de inúmeras biotécnicas. Parizeau 22. Parizeau MH. Bioéthique. In: Canto-Sperber M. Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale. 2ª ed. Paris: Presses Universitaires de France; 1997. menciona que o desenvolvimento técnico-científico fez a medicina multiplicar sua capacidade de intervir eficazmente no corpo da pessoa doente, por meio de medicamentos (antibióticos, vacinas, antipsicóticos), técnicas sofisticadas de intervenção (cirurgia cardíaca, reanimação, transplante de órgãos) ou, ainda, novos mecanismos de diagnóstico (eletrocardiograma, arteriografia, ressonância magnética).

Esse quadro, para além de transformar os conhecimentos sobre a vida, evidenciou as promessas e os perigos dos novos poderes biotécnicos, uma vez que o ser humano, de mero espectador, passou a ser senhor da evolução biológica 55. Gracia Guillén D. Fundamentación y enseñanza de la bioética. Bogotá: El Búho; 1998. . Tornou-se possível, por exemplo, intervir por meio da medicina nos próprios mecanismos da vida humana e de sua organização, garantindo, pelo menos parcialmente, o controle da procriação e abrindo caminhos para o domínio da hereditariedade 44. Bik C. Tratado de bioética. São Paulo: Paulus; 2015. . As técnicas biomédicas puderam ser direcionadas a outros fins que não os estritamente terapêuticos, emergindo finalidades de conveniência pessoal. Nesse contexto, o modelo técnico-científico passou a preponderar no desenvolvimento da medicina 22. Parizeau MH. Bioéthique. In: Canto-Sperber M. Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale. 2ª ed. Paris: Presses Universitaires de France; 1997. .

Segundo Bik 44. Bik C. Tratado de bioética. São Paulo: Paulus; 2015. , não se pode ignorar que a referida revolução tem por objeto a remodelação do ser humano, e não apenas a aplicação de terapias e tratamentos. Em razão disso, criaram-se duas incertezas: uma relacionada às origens do ser humano como indivíduo e como espécie, pois as novas intervenções biotecnológicas tornaram antiquadas as referências antropológicas até então consolidadas; e outra vinculada aos efeitos que a utilização do conhecimento científico e das biotécnicas pode causar.

Inseridos nesse contexto, cientistas e demais profissionais da saúde se depararam com novos âmbitos de tomada de decisões, tendo que proferir opiniões e determinar ações cabíveis em situações inéditas e complexas. Ademais, os problemas éticos nesse campo também começaram a preocupar a consciência pública em razão de possibilidades técnicas e científicas até então desconhecidas 77. Ferrer JJ, Álvarez JC. Para fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. São Paulo: Loyola; 2005. . A bioética, portanto, surge nesse contexto de desenvolvimento biotecnológico, novos questionamentos éticos e possibilidades decisórias e crescimento de movimentos culturais por autonomia e igualdade.

A primeira menção ao termo “bioética” remonta a décadas anteriores – mais especificamente, ao ano de 1927, quando a palavra é empregada pelo teólogo alemão Fritz Jahr em artigo publicado no periódico Kosmos . Jahr definiu “bioética” como a obrigação ética não apenas para com o ser humano, mas para com todos os seres vivos. O imperativo proposto pelo autor transformou o campo da ética, fazendo emergir a denominada “ética da responsabilidade”: respeita todo ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e trata-o, se possível, como tal 88. Goldim JR. Bioética: origens e complexidade. Clin Biomed Res [Internet]. 2006 [acesso 20 ago 2020];26(2):86-98. p. 86. Disponível: https://bit.ly/3nbIn0X
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. O pensamento de Jahr permaneceu praticamente desconhecido até poucas décadas, mas atualmente vem sendo redescoberto em razão do crescente interesse pela bioética.

Em 1970, coube a Van Rensselaer Potter 99. Potter VR. Bioethics, the science of survival. Perspect Biol Med [Internet]. 1970 [acesso 20 ago 2020];14(1):127-53. DOI: 10.1353/pbm.1970.0015 , bioquímico e pesquisador da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, no artigo intitulado “Bioethics: the science of survival”, usar o termo em língua inglesa ( bioethic s) pela primeira vez. Nesse trabalho, Potter reconheceu que os fatos biológicos deveriam estar vinculados a valores éticos. Essa nova ética teria de ser interdisciplinar, de forma a incluir tanto as ciências quanto as humanidades. Nesse sentido, Potter definiu “bioética” como a sabedoria de usar o conhecimento para promover a sobrevivência e a qualidade de vida dos humanos e de todo o ecossistema.

Para Potter 99. Potter VR. Bioethics, the science of survival. Perspect Biol Med [Internet]. 1970 [acesso 20 ago 2020];14(1):127-53. DOI: 10.1353/pbm.1970.0015 , os dois elementos essenciais da bioética seriam o conhecimento biológico e os valores humanos, e o objetivo da nova disciplina seria oferecer modelos de vida entre os quais a comunidade pudesse escolher, decidindo sobre políticas públicas capazes de construir pontes para o futuro. Apesar do pensamento de Potter ter exercido influência modesta no desenvolvimento posterior da bioética, suas ideias sempre estiveram presentes. Na atualidade, os estudos do bioquímico norte-americano estão sendo retomados mediante o movimento intitulado “bioética global”, o que demonstra a relevância de sua visão para dirimir os problemas produzidos pelo avanço científico-tecnológico desvinculado de valores éticos 77. Ferrer JJ, Álvarez JC. Para fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. São Paulo: Loyola; 2005. .

Na mesma época, em 1971, foi fundado na Universidade de Georgetown, Estados Unidos, o primeiro instituto universitário dedicado ao estudo da bioética. Por iniciativa do médico obstetra André Hellegers, e com donativos da Joseph P. Kennedy Jr. Foundation, nasceu o Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics. A visão bioética que se desenvolveu no Kennedy Institute diferia das ideias de Potter ao enfatizar dois aspectos específicos: 1) as questões biomédicas mais próximas da vida cotidiana; e 2) a adoção da herança teórica e metodológica da tradição filosófica e teológica do Ocidente. Esses fatores, assim como a localização da universidade (Washington/DC), permitiram que os pesquisadores participassem da elaboração de políticas públicas e tivessem acesso a fundos para pesquisa77. Ferrer JJ, Álvarez JC. Para fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. São Paulo: Loyola; 2005. .

Além disso, também nos Estados Unidos, o estabelecimento de comissões governamentais (para analisar questões e oferecer propostas) e a realização de audiências públicas nas décadas de 1970 e 1980 contribuíram para uma vinculação maior da bioética com problemas éticos oriundos do cuidado à saúde. Em 1974, em decorrência de inúmeros casos de abusos em experimentação científica1010. Kuhse H, Singer P. What is bioethics? A historical introduction. In: Kuhse H, Singer P. A companion to bioethics. Oxford: Blackwell; 1998. p. 3-12 , o Congresso norte-americano aprovou a National Research Act, criando a National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, com o intuito de identificar princípios éticos básicos para nortear a experimentação científica em seres humanos. Já em 1980, foi aprovado o projeto de lei que autorizou a criação da President’s Commission for the Study of Ethical Problems in Medicine and Biomedical Behavioral Research, com o objetivo principal de discutir e estabelecer propostas para questões relacionadas com a eutanásia, a engenharia genética, o consentimento informado e a assistência à saúde11. Jonsen AR. The birth of bioethics. New York: Oxford University Press; 1998. .

No entanto, apesar de o surgimento da bioética ter consolidado a união entre fatos biológicos e valores éticos (em uma perspectiva mais geral ou especificamente voltada aos cuidados com a saúde humana), não ficava claro ainda se o novo campo poderia ser considerado ou não uma disciplina. No início dos anos 1970, o filósofo norte-americano Daniel Callahan1111. Callahan D. Bioethics as a discipline. In: Jecker NS, Jonsen AR, Pearlman RA. Bioethics: an introduction to the history, methods and practice. Sudbury: Jones and Bartlett; 1997. p. 17-22. chamou atenção para a necessidade de uma disciplina que determinasse a função do eticista ante questões problemáticas oriundas da medicina e da biologia. Essa disciplina, que Callahan chamou de “bioética”, ajudaria médicos e biólogos na tomada de decisões, e, para isso, deveria delimitar questões problemáticas, estratégias metodológicas e procedimentos, sendo sensível a toda a complexidade dos casos em análise.

Não obstante as orientações de Callahan, a tendência que acabou se consolidando foi a de considerar a bioética mais como campo de estudos, discursos e práticas do que como disciplina propriamente dita 11. Jonsen AR. The birth of bioethics. New York: Oxford University Press; 1998. . Nesse sentido, para Reich, a bioética é o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais 1212. Reich WT. Encyclopedia of bioethics. London: Collier Macmillan; 1978. p. XIX. .

De modo semelhante, Hottois afirma que a bioética designa um conjunto de investigações, de discursos e de práticas, geralmente pluridisciplinares, tendo por objeto a elucidação ou resolução de questões de alcance ético suscitadas pelo avanço e utilização das tecnologias biomédicas. Por fim, de nossa parte, entendemos que a bioética constitui um campo de estudos, reflexões e discursos, de caráter necessariamente pluridisciplinar, que objetiva oferecer diretrizes éticas para a resolução de problemas e conflitos oriundos do âmbito das ciências biomédicas 1313. Hottois G. Bioética. In: Hottois G, Parizeau MH. Dicionário da bioética. Lisboa: Piaget; 1998. p. 58-60. . Assim, pode-se afirmar que não existe uma única teoria bioética, mas vários modelos teóricos que, a partir de dinâmicas de discursividade e interação, apresentam continuamente a autotransformação, a adequação e a inovação teórica exigidas pelo veloz e intenso desenvolvimento biotecnológico.

Paradigmas teóricos em bioética

Virtude

A virtude é a mais antiga, durável e onipresente das ideias na história da teoria ética. Isso se deve ao fato de que não se pode separar o caráter de um agente moral dos atos que realiza ou deixa de realizar, bem como da natureza desses atos, das circunstâncias em que ocorreram e das consequências que deles advêm. As teorias da virtude focam a figura do agente e suas intenções, disposições e motivos, bem como o tipo de pessoa que o agente moral é, deseja ser ou provavelmente será em razão de sua disposição habitual para agir de certa maneira 1414. Pellegrino ED. Toward a virtue-based normative ethics for the health professions. Kennedy Inst Ethics J [Internet]. 1995 [acesso 20 ago 2020];5(3):253-77. DOI: 10.1353/ken.0.0044 .

Na cultura ocidental, a ideia mais difundida e duradoura de virtude remonta à Antiguidade (Platão e Aristóteles) e à Idade Média (Tomás de Aquino). Em síntese, nessa perspectiva a virtude é entendida como excelência de racionalidade (e não emotividade) nos traços de caráter, orientada para fins e objetivos, centrada no juízo prático e aprendida pela prática. Nessa perspectiva, as virtudes têm força normativa não porque são admiradas, mas porque estão de acordo com as finalidades, os propósitos e o bem dos seres humanos (de acordo com uma metafísica subjacente)1414. Pellegrino ED. Toward a virtue-based normative ethics for the health professions. Kennedy Inst Ethics J [Internet]. 1995 [acesso 20 ago 2020];5(3):253-77. DOI: 10.1353/ken.0.0044 .

Atualmente, é o filósofo britânico Alasdair Maclntyre quem reconstrói e reformula com mais êxito a noção aristotélica de virtude. Para MacIntyre, as virtudes são disposições ou qualidades adquiridas e necessárias: 1 ) para alcançar o bem intrínseco das práticas ( condutas ), 2) para servir de sustentáculo às comunidades, de forma a permitir que os indivíduos possam buscar um bem maior como um bem de suas próprias vidas e 3 ) para sustentar tradições que fornecem contextos históricos necessários para as vidas individuais. A virtude, assim, é um traço de caráter imprescindível para o alcance de um bem, uma perfeita excelência 1515. Pellegrino ED. Op. cit. p. 261. .

Nesse sentido, como aponta Pellegrino 1414. Pellegrino ED. Toward a virtue-based normative ethics for the health professions. Kennedy Inst Ethics J [Internet]. 1995 [acesso 20 ago 2020];5(3):253-77. DOI: 10.1353/ken.0.0044 , qualquer teoria ética normativa baseada na virtude e aplicada à relação clínica requer: uma teoria da medicina para a definição do telos , o bem da medicina como atividade; uma definição de virtude com base na finalidade da relação clínica; e um rol de virtudes vinculado à teoria, determinando como deve ser o bom profissional da saúde. Conforme esse autor, a teoria da medicina está fundamentada em três fenômenos: o fato do adoecimento, o uso do conhecimento para auxiliar o paciente, e o agir direcionado para a cura do paciente. Já no que se refere à definição de virtude, Pellegrino corrobora o viés aristotélico de MacIntyre e, por fim, estabelece uma lista de virtudes do bom profissional da saúde: fidelidade à confiança, benevolência, abnegação, compaixão e cuidado, honestidade intelectual, justiça e prudência 1616. Pellegrino ED. Op. cit. p. 266-70. .

Utilitarismo

O utilitarismo como modelo ético tem origem no pensamento do filósofo britânico Jeremy Bentham. Rejeitando profundamente a ideia de direitos naturais, Bentham desenvolveu uma formulação intuitiva segundo a qual o mais elevado objetivo da moral é maximizar a felicidade, assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor. Assim, o filósofo entende que os conceitos de certo e de errado – e, consequentemente, as ações humanas decorrentes desses conceitos – visam promover a felicidade e se distanciar da dor ou desprazer. Para Bentham, o agir ético utilitarista deve ser analisado caso a caso 1717. Bentham J. An introduction to the principles of morals and legislation. Oxford: Clarendon; 1996. .

Discípulo de Bentham, o também britânico John Stuart Mill procurou aperfeiçoar o raciocínio utilitarista de seu mestre. Para Stuart Mill, a utilidade precisa ser considerada em um sentido mais amplo, com fundamento nos interesses permanentes do ser humano como ser em evolução. Para isso, é imprescindível um princípio de liberdade que permita às pessoas agir como bem entenderem, desde que não causem mal a outras pessoas. Assim, em longo prazo, o respeito à liberdade individual produziria a máxima felicidade/utilidade ao ser humano 1818. Mill JS. On liberty and considerations on representative government. Oxford: Basil Blackwell; 1948. . Ademais, diferentemente de Bentham, que compreendia a utilidade apenas em seu aspecto quantitativo e de intensidade, Mill acreditava ser possível estabelecer uma escala qualitativa à utilidade 1919. Mill JS. El utilitarismo. 3ª ed. Buenos Aires: Aguilar; 1962. p. 31-2. .

No utilitarismo clássico (também denominado de “utilitarismo de ações”), de que os referidos filósofos são representantes, analisar as consequências de agir ou não agir é essencial. O objetivo desse raciocínio utilitarista é definir a ação que produz o melhor benefício (utilidade), ponderando as consequências e os interesses de todas as pessoas afetadas e envolvidas em determinada conjuntura fática. Por outro lado, também desponta o chamado “utilitarismo de regras”, vertente do pensamento utilitarista que admite a necessidade de regras morais (constituídas consuetudinariamente no meio social). A conformidade de uma ação às regras morais (justificadas pela utilidade) é o que determina a moralidade da ação, mesmo que, em um contexto particular, a obediência à regra não maximize a utilidade 2020. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5ª ed. New York: Oxford University Press; 2001. .

Outra visão de utilitarismo bastante difundida atualmente se baseia no princípio de igual consideração de interesses e é formulada pelo filósofo australiano Peter Singer. Para explicar esse princípio, Singer parte do entendimento de que a conduta ética é universal, e que um princípio ético não pode ser justificado considerando apenas interesses individuais ou de grupos específicos. O raciocínio moral deve seguir o curso de ação que apresenta as melhores consequências para todos os afetados, após exame das alternativas possíveis. Portanto, a essência do princípio é atribuir o mesmo peso aos interesses de todos os atingidos pela ação 2121. Singer P. Practical ethics. 2ª ed. Cambridge: Cambridge University Press; 1993. .

Kantismo (dever)

A filosofia kantiana é a base de grande parte do pensamento contemporâneo sobre moral e política. Diferentemente do utilitarismo, a ética do dever de Immanuel Kant não diz respeito ao aumento da felicidade ou de qualquer outra finalidade. Nessa perspectiva, a moralidade não deve se basear apenas em elementos empíricos (como desejos e preferências), pois esses são fatores variáveis e contingentes. Para Kant, como ser racional, capaz de pensar, agir e decidir livremente (ou seja, como ser autônomo), o homem é merecedor de dignidade e respeito e, por isso, a moral deve estar fundamentada na consideração das pessoas como fins em si mesmas 2222. Sandel MJ. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 15ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2014. p. 136-9. .

O filósofo alemão compreende que agir livremente (com autonomia) não é escolher a melhor forma para atingir determinado fim, de acordo com determinações exteriores (heteronomia), mas escolher o fim em si. Na concepção de Kant, quando agimos de maneira heteronômica, atuamos como instrumentos, e não como autores dos objetivos que pretendemos alcançar 2222. Sandel MJ. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 15ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2014. p. 136-9. . Dessa forma, é a autonomia do ser humano, tratado como fim em si mesmo, que lhe confere respeito e dignidade. Portanto, o valor moral de uma ação não consiste em suas consequências, mas na intenção com que é realizada, ou seja, o que importa é a motivação (dever) de fazer a coisa certa porque é a coisa certa, sem outra motivação exterior (consequência).

Se a moralidade significa agir em função do dever, resta saber em que consiste o dever. Kant acredita que os deveres decorrem da razão, isto é, de uma razão prática pura que cria suas leis a priori , a despeito de objetivos empíricos. Nesse sentido, o filósofo estabelece que a razão orienta a vontade por meio dos imperativos categóricos (deveres incondicionais), que devem prevalecer em quaisquer circunstâncias . Em seu primeiro imperativo categórico, Kant estabelece: uma ação é moralmente correta se, e apenas se, o agente da ação pode consistentemente desejar que o princípio geral da ação (máxima) seja uma lei universal 2323. Sandel MJ. Op. cit. p. 150-1. .

Em outras palavras, o sujeito apenas deve agir segundo o princípio (máxima) que entende dever constituir uma lei universal. Nesse viés, o imperativo categórico kantiano aponta aquilo que deve ser evitado na ação, isto é, deve-se evitar as ações cujos princípios ( máximas ) não podem ser universalizados ( aplicados a todas as pessoas, incluindo o próprio agente ) 2424. Feldman F. Kantian ethics. In: Jecker NS, Jonsen AR, Pearlman RA, organizadores. Bioethics: an introduction to the history, methods and practice. Sudbury: Jones and Bartlett; 1997. p. 134-5. .

Já no segundo imperativo categórico, Kant estabelece o valor absoluto que fundamenta a lei moral: a humanidade e sua dignidade. O ser humano como ser racional existe como fim em si mesmo e não pode ser usado meramente como meio para a satisfação arbitrária da vontade. Em todas as suas ações, o ser humano deve ser considerado simultaneamente como fim. No “reino dos fins” kantiano, tudo tem um preço ou uma dignidade, e o ser humano, por estar acima de todo preço (ele não pode ser substituído por nada equivalente nem ser objeto de quantificações ou graduações), possui dignidade. Assim, Kant enuncia o imperativo da dignidade, que constitui um dever do ser humano para consigo mesmo e para com os demais: age de tal maneira que uses a dignidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como meio 2525. Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70; 1986. p. 68-9, 76-8. .

Personalismo

O modelo teórico denominado “personalismo” adota um viés triangular, que se afasta tanto da indução como da simples dedução. Dessa forma, o personalismo estabelece a necessidade de examinar três pontos para solucionar problemas de natureza bioética. Inicialmente, cabe expor o fato biomédico com consistência e exatidão científica. Desse ponto, segue-se o aprofundamento do significado antropológico, analisando quais valores estão vinculados à situação-problema. A partir de então, pode-se determinar os valores que devem ser protegidos e as diretrizes que guiarão a ação e os agentes no plano individual e social 2626. Sgreccia E. Manuale di bioetica: fondamenti ed etica biomédica. 2ª ed. Milano: Vita e Pensiero; 1994. p. 87. . Para o personalismo, esse terceiro ponto, o de solução dos problemas bioéticos, precisa convergir com os conceitos e os valores fundamentais da pessoa humana 2626. Sgreccia E. Manuale di bioetica: fondamenti ed etica biomédica. 2ª ed. Milano: Vita e Pensiero; 1994. p. 87. .

Conceitualmente, seguindo a antropologia cristã, ancorada na tradição aristotélico-tomista, Sgreccia sustenta que a pessoa humana, em sua essência e existência, é uma unidade corpo-espírito, que possui valor intrínseco. Por isso, substancialmente, é essa unidade a estrutura ontológica de humanidade 2727. Sgreccia E. Op. cit. p. 174-7. . Além disso, o personalismo sustenta que é da constituição unitária do corpo-espírito – ou seja, da própria natureza do ser humano – que advém sua dignidade. Nesse sentido, ser humano e dignidade são elementos que se identificam, isto é, a humanidade em si é dignidade. Por essa razão, é com referência à realidade humana da unidade corpo-espírito e à sua intrínseca dignidade que o personalismo estabelece os princípios que caracterizam seu modelo bioético: defesa da vida física, liberdade-responsabilidade, totalidade-terapia, sociabilidade-subsidiariedade 2828. Sgreccia E. Op. cit. p. 171. .

O princípio de defesa da vida física emerge no personalismo como valor decorrente da própria concepção de pessoa que o modelo teórico adota. Desse modo, se o corpo é elemento constitutivo da pessoa, no qual e por meio do qual a pessoa se realiza, integra o tempo-espaço e se manifesta, o primeiro imperativo ético do homem diante de si mesmo e diante dos demais é respeitar e defender a vida. Ademais, o personalismo vincula a liberdade à responsabilidade. Assim, a responsabilidade consolida uma obrigação moral para com os procedimentos necessários à salvaguarda da vida e da saúde, limitando a liberdade do paciente e do profissional. A liberdade apenas deve receber tratamento privilegiado nos casos em que a vida não integra a situação-problema 2626. Sgreccia E. Manuale di bioetica: fondamenti ed etica biomédica. 2ª ed. Milano: Vita e Pensiero; 1994. p. 87. .

Já o princípio de totalidade-terapia consiste em salvaguardar a saúde da pessoa, considerando-a integralmente, em seus aspectos físicos, espirituais e morais. Isso significa dizer que a intervenção terapêutica deve ser realizada apenas sobre a parte doente ou diretamente causadora da doença, quando não há outro meio para erradicar a doença, existe chance de cura e há consentimento do paciente. Enfim, o princípio de sociabilidade-subsidiariedade obriga a comunidade a promover o bem comum por meio da proteção da vida e da saúde de cada pessoa. Conforme o modelo personalista, as ações de promoção da vida e da saúde no âmbito social devem obedecer ao critério de subsidiariedade, privilegiando os casos de maior gravidade 2626. Sgreccia E. Manuale di bioetica: fondamenti ed etica biomédica. 2ª ed. Milano: Vita e Pensiero; 1994. p. 87. .

Principialismo de ética biomédica

O modelo principialista de ética biomédica, desenvolvido pelos filósofos norte-americanos Tom Beauchamp e James Childress, tem como marco histórico a publicação, em 1978, do Relatório Belmont. Resultado de estudos e discussões da National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research , o relatório estabeleceu princípios para a experimentação em seres humanos. Partindo do conteúdo apresentado no relatório, Beauchamp e Childress elaboraram uma proposta filosófica, desenvolvendo, aprofundando e modificando em certos aspectos o conceito e o fundamento desses princípios. Ao incorporar a não maleficência aos princípios de respeito à autonomia, beneficência e justiça, a nova configuração principiológica assumiu relevante papel na tomada de decisões em toda a atividade biomédica 77. Ferrer JJ, Álvarez JC. Para fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. São Paulo: Loyola; 2005. .

Para compreender o princípio de respeito à autonomia, naturalmente, antes é necessário estabelecer o que é autonomia pessoal. Para Beauchamp e Childress, um indivíduo autônomo é aquele que: 1 ) age livremente, de acordo com um plano escolhido intencionalmente por ele mesmo, 2 ) que não possui limitações que acarretem uma inadequada compreensão para a escolha consciente e 3 ) cuja liberdade não sofre nenhuma espécie de interferência indevida de terceiros 2929. Beauchamp TL, Childress JF. Op. cit. p. 58-60 . Nessa estrutura, o elemento de intencionalidade não admite gradação (ou seja, está presente ou não está), mas a compreensão e a interferência de terceiros admitem certo grau de relativização. Assim, o princípio de respeito à autonomia exige o reconhecimento de que cada pessoa pode ter suas opiniões, fazer suas escolhas e agir de acordo com suas crenças e valores. Tal respeito é não apenas um ato negativo, de não intervenção nas escolhas das pessoas, mas também uma obrigação positiva, que melhora as condições para a tomada de decisão.

Já o princípio de não maleficência representa a obrigação de não causar dano intencionalmente e envolve atos de abstenção. Conforme Beauchamp e Childress, o princípio de não maleficência engloba regras morais mais específicas, dentre elas: 1 ) não matar, 2) não causar dor ou sofrimento, 3) não causar incapacitação, 4) não causar ofensa e 5 ) não privar ou impedir a fruição da vida . A moralidade requer não apenas a não causação de danos, mas também que, sempre que possível, se promovam ações que tragam benefícios, ou seja, que contribuam para o bem-estar das pessoas 3030. Beauchamp TL, Childress JF. Op. cit. p. 114-7 . O termo “beneficência” traduz atos de gratidão, bondade e caridade, além de incluir o altruísmo, o amor e a humanidade. Nessa perspectiva, a beneficência representa a ação realizada em benefício de outros e oriunda do traço de caráter denominado “benevolência” 2020. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5ª ed. New York: Oxford University Press; 2001. , 3131. Clotet J. Bioética: uma aproximação. Porto Alegre: EdiPUCRS; 2003. p. 59-63. .

Por fim, a ideia de justiça tem relação com o que é devido às pessoas, com aquilo que, de alguma maneira, lhes pertence ou corresponde. Geralmente, agir com justiça é agir de acordo com o merecimento, de forma equânime e apropriada. No campo biomédico, a dimensão de justiça que se sobressai é a de distribuição equitativa de direitos, benefícios e responsabilidades. No entanto, para que essa distribuição seja efetivamente justa, é necessário analisar o princípio na esfera de formalidade e materialidade. Nesse sentido, as teorias que procuram delimitar um conceito para a justiça formal recorrem, na maioria das vezes, ao ditado Aristotélico: casos iguais devem ser tratados igualmente, e casos desiguais devem ser tratados desigualmente. Porém, pela ausência de concretude, o critério de formalidade requer conteúdos materiais. Beauchamp e Childress mencionam os seguintes: a cada pessoa 1) uma porção igual, 2) segundo suas necessidades, 3) segundo seus esforços, 4) segundo sua contribuição, 5) segundo seu mérito e 6) segundo as regras de intercâmbio em um mercado livre 2020. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5ª ed. New York: Oxford University Press; 2001. .

Principialismo hierarquizado

Segundo Gracia Guillén, os quatro princípios bioéticos propostos por Beauchamp e Childress devem ser estruturados em dois níveis diferentes, que definem as duas dimensões da vida moral: um nível de gestão pública, formado pelos princípios de não maleficência e de justiça, e outro de gestão privada, composto pelos princípios de respeito à autonomia e de beneficência 3232. Gracia Guillén D. Op. cit. p. 100. .

Os deveres do nível da gestão pública (não maleficência e justiça) decorrem do fato de que a vida em sociedade obriga que todos aceitem certos preceitos morais. O dever de justiça exige que o Estado aplique esses preceitos a todos os seus membros de maneira igualitária. Dessa forma, salvo exceções justificadas, a ética pública deve tratar as pessoas de modo igual, evitando a discriminação, a marginalização e a segregação social. Por outro lado, o dever de não maleficência traduz a obrigação de não causar dano a outra pessoa, inclusive no que se refere à inviolabilidade da vida e da integridade física ou biológica. Tanto a justiça como a não maleficência são expressões da igual consideração e respeito aos seres humanos 55. Gracia Guillén D. Fundamentación y enseñanza de la bioética. Bogotá: El Búho; 1998. .

Os deveres do nível de gestão privada (respeito à autonomia e beneficência) estão vinculados à esfera ética particular dos indivíduos. Respeitar a autonomia significa respeitar o sistema de valores, os objetivos de vida e a ideia de perfeição e felicidade das pessoas, em sua singularidade. A beneficência também se encontra intimamente relacionada ao sistema de valores adotado por cada pessoa – sistema que determina o que o indivíduo entende como “agir beneficente”. Esse é o nível no qual todos os indivíduos se diferenciam, devido à diversidade de ideias e concepções de felicidade. Os princípios de autonomia e de beneficência não apenas possibilitam a existência de diferenças morais entre as pessoas, como obrigam que as concepções morais particulares sejam respeitadas 55. Gracia Guillén D. Fundamentación y enseñanza de la bioética. Bogotá: El Búho; 1998. .

Partindo dessa distinção entre o nível de gestão pública e o de gestão privada, Gracia Guillén estabelece a hierarquia entre os princípios. Assim, pela regra hierárquica, em caso de conflito entre deveres dos dois níveis, o público tem prioridade sobre o privado. Nesse sentido, Gracia Guillén entende que a não maleficência, ou seja, o dever de não causar dano à outra pessoa é claramente superior à beneficência, isto é, ao dever de promover benefícios 3333. Gracia Guillén D. Op. cit. p. 97. .

O autor ainda sustenta o mesmo raciocínio no que se refere à relação entre não maleficência e justiça: a primeira ocuparia uma posição hierárquica superior em relação à segunda. Já a superioridade hierárquica da não maleficência e da justiça em relação à beneficência é explicada pelo fato de que um ato de beneficência deve ser promovido e recebido livremente, e por isso está intrinsecamente vinculado à autonomia, o que justifica a opinião do filósofo de que a beneficência e a autonomia são princípios estreitamente relacionados, integrantes do mesmo nível (deveres privados) e, portanto, situados hierarquicamente abaixo dos deveres de nível público.

Considerações finais

Considerando o panorama histórico que caracterizou a segunda metade do século XX, percebe-se que dois fatores foram essenciais para o surgimento da bioética: a revolução biomédica e as transformações socioculturais. A partir de então, o interesse e o estudo da bioética se disseminaram, fazendo com que se constituíssem diversos paradigmas teóricos e métodos de aplicação desses paradigmas a conflitos de interesses nas ciências biomédicas. Assim, passou-se à análise crítica dos pontos positivos e dos problemas apresentados pelos modelos teóricos estudados.

No que se refere ao paradigma da virtude, Pellegrino reconhece que é necessário fundamentá-lo em bases que se situem para além da circularidade de justificação lógica (o bem é aquilo realizado pela pessoa virtuosa, e a pessoa virtuosa é aquela que pratica o bem ). Nessa circularidade, o paradigma da virtude pode ser intuitivo, subjetivo e incompreensível, pois o que é virtuoso em uma comunidade pode ser vicioso em outra. Uma segunda dificuldade de uma ética da virtude é a insuficiência de diretrizes definitivas de ação que deem força a princípios, regras e máximas, pelo menos em abstrato. Enfim, ainda se pode mencionar o problema da super-rogação, uma vez que a compreensão das virtudes como traço de caráter de excelência exige um esforço incomum do sujeito da ação 1414. Pellegrino ED. Toward a virtue-based normative ethics for the health professions. Kennedy Inst Ethics J [Internet]. 1995 [acesso 20 ago 2020];5(3):253-77. DOI: 10.1353/ken.0.0044 .

Na perspectiva utilitarista, os pontos positivos ressaltados por Beauchamp e Childress 2020. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5ª ed. New York: Oxford University Press; 2001. são: 1) o princípio de utilidade tem papel importante no desenvolvimento de políticas públicas, dada a característica do raciocínio utilitarista em avaliar o interesse de todos e fazer uma escolha imparcial, maximizando os bons resultados para todas as partes afetadas; 2) o utilitarismo entende a moralidade principalmente em função da produção do bem-estar, visão que guarda relação estreita com a ideia de beneficência; e 3) o raciocínio consequencialista pode ser utilizado de maneira frutífera em determinados casos, mesmo que o raciocínio completo não seja aceito.

Por outro lado, emergem algumas críticas ao utilitarismo. Um dos problemas ocorre quando indivíduos adotam uma posição de preferências moralmente inaceitáveis pelos juízos ponderados. Assim, parece que o utilitarismo baseado em preferências subjetivas só poderia ser aceitável caso houvesse a formulação de um rol de preferências aceitáveis, independentes das preferências dos agentes. Além disso, Beauchamp e Childress 2020. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5ª ed. New York: Oxford University Press; 2001. suscitam dúvidas de legitimidade moral quanto ao fato de o utilitarismo entender ser possível cometer um ato imoral, desde que esse seja o único modo de alcançar a máxima utilidade ao final.

Já quanto à ética kantiana do dever, primeiramente, ressalta-se o problema de como garantir que pessoas diversas, com vontades diferentes (em tese), alcançarão uma única e correta lei universal em processos decisórios de moralidade. Ademais, é extremamente difícil ter certeza de que a moralidade exista independentemente da influência de poderes e interesses, ou seja, se o ser humano (agente) é capaz de agir com autonomia 2222. Sandel MJ. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 15ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2014. p. 136-9. . Por outro lado, críticas também podem ser feitas ao modelo personalista, em especial ao desenvolvido por Sgreccia. Conforme Ferrer e Álvarez 77. Ferrer JJ, Álvarez JC. Para fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. São Paulo: Loyola; 2005. , a impressão que se tem é que as propostas conceituais e principiológicas de Sgreccia estão mais no campo da teologia moral do que propriamente no da filosofia.

Além disso, parece que esse rol principiológico não consegue efetivamente fornecer soluções adequadas para a diversidade de problemas existentes na bioética, uma vez que a junção de diferentes elementos constitutivos em princípios unitários e a hierarquização relativa desses mesmos princípios (o autor apenas considera o princípio de defesa da vida física hierarquicamente superior ao de liberdade-responsabilidade, não mencionando os demais) cria um vazio de método e aplicação. Não obstante, entendemos que o personalismo ontológico fornece relevante contribuição à bioética ao estabelecer que a dignidade humana é intrínseca a todo ser humano, pelo simples fato de ser, não havendo necessidade de nenhuma outra espécie de reconhecimento. Assim, a dignidade humana emerge como fundamento ético básico, sobre o qual os princípios bioéticos e sua aplicação devem se sustentar.

No que diz respeito ao modelo principialista de ética biomédica, Beauchamp e Childress reconhecem que os quatro princípios cardeais não constituem uma teoria moral geral, mas apenas compõem uma estrutura para identificar dilemas morais e refletir sobre eles 2020. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5ª ed. New York: Oxford University Press; 2001. . Por isso, os filósofos norte-americanos sustentam a aplicação de um raciocínio que compreenda métodos de especificação e ponderação. Assim, a especificação corresponde ao processo de reduzir as indeterminações das normas abstratas, dotando-as de conteúdos adequados para guiar as ações concretas. Mediante a aplicação prudente dos princípios às situações concretas, o significado e o alcance dos princípios e normas morais gerais passam a apresentar coerência com os valores e as normas aceitas pelo indivíduo e pela comunidade. Além disso, a ponderação emerge como elemento metodológico para sopesar os princípios e normas morais, indicando qual alternativa produzirá as melhores consequências no caso concreto.

A crítica mais contundente ao principialismo de Beauchamp e Childress foi feita por Gert, Culver e Clouser 3434. Gert B, Culver C, Clouser KD. Bioethics: a return to fundamentals. New York: Oxford University Press; 1997. p. 74-91. . Para eles, os princípios não contêm um status conceitual ou sistemático e, por isso, obscurecem e confundem o raciocínio moral, falhando, portanto, na função de atuar como diretrizes para a ação correta. Isso se deve ao fato de que os princípios apresentam considerações morais diversas, apenas superficialmente inter-relacionadas, e inúmeros conflitos internos, sem suporte em uma teoria ética única, mas em várias.

Concordamos em parte com Gert, Culver e Clouser. Por um lado, o modelo principiológico de ética biomédica elaborado por Beauchamp e Childress não tem base teórica ético-filosófica, e conflitos bioéticos de difícil resolução podem ser gerados pela logicidade sistemática e a aplicação dos princípios aos casos concretos. Por outro lado, tal modelo incorpora um conteúdo material de extrema relevância para a bioética, que pode e deve ser utilizado como diretriz para resolver conflitos bioéticos, desde que inserido como parte da estrutura de um sistema moral organizado hierarquicamente.

Na realidade, essa é a solução oferecida por Gracia Guillén 55. Gracia Guillén D. Fundamentación y enseñanza de la bioética. Bogotá: El Búho; 1998. , que propõe uma perspectiva sistemática ao principialismo de ética biomédica a partir da distinção entre princípios que integram o nível de gestão pública e princípios que integram a gestão privada. Essa parece ser uma metodologia mais apurada para resolver conflitos entre os princípios bioéticos. Porém, não se pode esquecer da necessidade de uma ontologia de base para o paradigma principialista (seja ponderado, seja hierarquizado).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2020
  • Revisado
    6 Out 2021
  • Aceito
    11 Out 2021
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