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Caracterização atual da objeção de consciência: proposta crítica e renovada

Resumo

O artigo caracteriza a “objeção de consciência” – cercada por controvérsias e marcada pela ausência de definição unificada – e os limites de seu exercício. O objetivo da pesquisa, baseada na abordagem de revisão crítica de literatura, é propor uma definição para o termo. Para isso, identificaram-se situações em que a objeção de consciência é erroneamente invocada ou serve de pretexto para comportamentos antiéticos, e se procurou estabelecer os elementos que verdadeiramente compõem tal objeção. O conceito proposto pretende contribuir para esclarecer o assunto e estabelecer limites justos ao exercício ético desse direito.

Autonomía profesional; Recusa consciente em tratar-se; Ética médica

Abstract

This article characterizes “conscientious objection” – surrounded by controversies and marked by the absence of a unified definition – and the limits of its exercise. From a critical literature review approach, the objective is to propose a definition for the term. For such, situations where conscientious objection is wrongly invoked or serves as a pretext for unethical behavior were identified, and an attempt to establish the elements that truly compose such objection was made. The proposed concept intends to contribute to clarifying the matter and establishing fair limits to the ethical exercise of this right.

Professional autonomy; Conscious refusal to be treated; Medical ethics

Resumen

El artículo caracteriza la “objeción de conciencia”, rodeada de controversias y marcada por la ausencia de una definición unificada, y los límites de su ejercicio. El objetivo de la investigación, basada en el enfoque de la revisión crítica de la literatura, es proponer una definición para el término. Para ello, se identificaron situaciones en las que la objeción de conciencia se invoca erróneamente o sirve de pretexto para conductas poco éticas, y se intentó establecer los elementos que verdaderamente componen dicha objeción. El concepto propuesto pretende contribuir a clarificar el tema y establecer límites justos al ejercicio ético de este derecho.

Autonomía profesional; Rechazo conciente al tratamiento; Ética médica

A objeção de consciência é a recusa em realizar determinada ação que contrarie os ditames da própria consciência 11. Wicclair MR. Conscientious objection in health care: an ethical analysis. Cambridge: Cambridge University Press; 2011.

2. Giubilini A. Objection to conscience: an argument against conscience exemptions in healthcare. Bioethics [Internet]. 2017 [acesso 11 set 2021];31(5):400-8. DOI: 10.1111/bioe.12333
- 33. Echeverría CB, Serani AM, Arriagada AU, Goic AG, Rojas AO, Ruiz-Esquide G et al. Objeción de conciencia y acciones de salud. Rev Med Chile [Internet]. 2020 [acesso 15 set 2021];148(2):252-7. Disponível: https://bit.ly/2YoBPmM
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. Trata-se de recurso empregado por diversos profissionais de saúde quando confrontados com conflitos éticos entre a natureza de determinado ato profissional solicitado e a própria liberdade de consciência. Esse é um assunto riquíssimo para estudo no campo da bioética. Sua essência envolve a interação entre aspectos morais, legais e deontológicos e, por definição, seu emprego ocorre obrigatoriamente na vigência de um conflito ético.

Apesar de tal recurso ser facilmente identificável em documentos de caráter deontológico e na Constituição brasileira, sua aplicação não deixa de representar algum grau de limitação à autonomia do paciente e, a depender das circunstâncias, à acessibilidade de determinados procedimentos no sistema de saúde 44. Fink LR, Stanhope KK, Rochat RW, Bernal OA. “The fetus is my patient, too”: attitudes toward abortion and referral among physician conscientious objectors in Bogotá, Colombia. Int Perspect Sex Reprod Health [Internet]. 2016 [acesso 15 nov 2019];42(2):71-80. DOI: 10.1363/42e1016 . Ademais, sua conceituação é significativamente heterogênea, e muitas vezes a objeção de consciência é erroneamente usada como falsa justificativa para comportamentos discriminatórios, situação criada e agravada pela ausência de critérios que claramente a identifiquem. Assim, é fundamental refletir sobre tais questões a partir de uma perspectiva bioética.

No Brasil, a objeção de consciência se encontra claramente prevista no Código de Ética Médica (CEM) vigente e em algumas versões anteriores. O primeiro código próprio do país surgiu em 1929 e atualmente vigora sua nona versão, publicada em 2018 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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. O trecho do CEM que mais claramente representa a objeção de consciência se encontra no artigo VII do Capítulo I, que discorre: o médico exercer á sua profissão com autonomia, não sendo obriga do a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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. Um segundo trecho do CEM fundamental para compreender o tema é o inciso IX do Capítulo II, que estabelece como direito profissional dessa categoria recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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Observa-se que o termo “objeção de consciência”, apesar de usado no campo da bioética há várias décadas, não tem uma única definição e é usado de forma bastante variável – com diferenças de significado que alteram substancialmente o caráter da discussão e a compreensão do tema. Desse modo, este artigo tem como objetivo propor uma definição para objeção de consciência, identificando situações em que o termo não deveria ser usado e relacionando elementos que de fato o caracterizam. A abordagem metodológica do trabalho é a revisão crítica de literatura. Procurou-se selecionar fontes de autores consagrados, assim como artigos de periódicos que abordam o tema com uma perspectiva atual. Também se utilizou amplamente o CEM brasileiro em sua mais recente versão.

O que não é objeção de consciência?

A seguir, busca-se identificar e analisar brevemente situações em que a objeção de consciência tem sido aplicada de modo equivocado.

Objeção de consciência não é discriminação

Em caso de conhecimento público ocorrido em 2016, uma pediatra, atuante em Porto Alegre, informou a uma paciente, filiada a determinado partido político, que não mais poderia continuar atendendo regularmente seu filho, de 1 ano de idade, devido ao posicionamento político dos pais. A criança estava doente, já tinha consulta marcada para poucos dias após o informe, e a mãe relata ter encontrado dificuldades para marcar atendimento com novo profissional, visto que a situação ocorreu na véspera de um feriado 66. Lara G. Pediatra causa polêmica ao se recusar a atender bebê porque a mãe da criança é petista. O Estado de S. Paulo [Internet]. Política; 30 mar 2016 [acesso 31 ago 2019]. Disponível: https://bit.ly/3oHs5PO
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Encontra-se aí ilustrada situação que poderia ser erroneamente taxada de objeção de consciência, mas que na realidade constitui discriminação de cunho político. Analisando tal caso, percebemos que a objeção da médica em questão não era em relação ao ato profissional em si, ou seja, ao ato da consulta médica de pediatria, mas sim em relação às pessoas envolvidas – no caso, os pais (responsáveis) do paciente. A partir desse exemplo, pode-se identificar a primeira característica da objeção de consciência, que não se fez presente em tal situação: a objeção de consciência verdadeira nunca se refere às pessoas envolvidas, mas sim aos atos esperados do profissional.

Objeção de consciência não é omissão de socorro

Em emergências, não é permitido ao médico recusar atendimento, independentemente das circunstâncias. Em tais situações, deve-se agir rapidamente para assegurar o melhor cuidado ao indivíduo – não há espaço para discriminação de qualquer tipo, seja política, étnica, de sexualidade ou gênero, econômica, por afinidade pessoal etc. O valor da vida em risco supera a importância de qualquer outra circunstância. O CEM, em seu Capítulo V, artigo 33, declara que é vedado ao médico deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência quando não houver outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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Situação bastante comum na prática clínica de hospitais de trauma é o atendimento a pacientes presos em flagrante e feridos durante a abordagem policial, ou que já estavam cumprindo pena e necessitaram de cuidado médico, sendo levados ao hospital pela própria polícia. Como seria a prática médica se o profissional se recusasse a atender esses pacientes com base no caráter, conduta ou idoneidade do indivíduo? O médico não pode fazer esse tipo de avaliação em contextos de emergência – o socorro à vida ameaçada deve ser sempre sua prioridade.

Igualmente, na situação clássica de objeção de consciência ao aborto, o mesmo médico que se recusa a participar de aborto não pode legitimamente recusar atendimento à mulher com complicações provenientes de aborto já em curso. Na primeira situação, mesmo que de forma discutível, o profissional se nega a induzir o aborto, ato cuja moralidade pode ser questionada. Contrariamente, quando se espera do profissional o tratamento de paciente com fortes sangramentos vaginais – não importa se resultante de aborto espontâneo, provocado ou de qualquer outra situação clínica – não há margem para objeção de consciência. Isso ocorre por dois motivos: o fato de se tratar de quadro emergencial e o fato de que, como já argumentado, o ato esperado do profissional não é em si carregado de peso moral.

Objeção de consciência não é autopreservação

Alguns autores argumentam que a objeção de consciência estaria relacionada a um desejo injustificado de autopreservação. Savulescu 77. Savulescu J. Conscientious objection in medicine. BMJ [Internet]. 2006 [acesso 31 ago 2019];332(7536):294-7. DOI: 10.1136/bmj.332.7536.294 , por exemplo, identifica inconsistência no exercício de tal objeção. Para o autor, a postura do objetor seria semelhante à do médico que se recusa a atender pacientes em uma epidemia por medo de ser contaminado. Savulescu questiona então como é possível que valores religiosos sirvam de argumento para objeção de consciência, visto que a própria necessidade de preservação física – que em sua opinião é hierarquicamente superior aos valores religiosos – não pode prevalecer sobre o dever do profissional. A mesma visão é compartilhada por Stahl e Emanuel 88. Stahl RY, Emanuel EJ. Physicians, not conscripts: conscientious objection in health care. NEJM [Internet]. 2017 [acesso 20 set 2017];376(14):1380-5. DOI: 10.1056/NEJMsb1612472 .

Em parte, a confusão se dá porque a objeção de consciência costuma ser considerada um direito individual do profissional. Sem dúvida, seu exercício é pessoal e opcional, no entanto não se trata de direito que visa o bem do próprio indivíduo que o exerce, mas sim não causar suposto mal a outrem 99. Lamb C. Understanding the right of conscience in health and health care practice. New Bioeth [Internet]. 2016 [acesso 31 ago 2019];22:33-44. DOI: 10.1080/20502877.2016.1151252 . Pode-se dizer que a objeção de consciência é primordialmente uma tentativa de heteropreservação , e não de autopreservação .

Não à toa, tal direito é exercido em situações-limite, frequentemente relacionadas ao início ou ao final da vida 11. Wicclair MR. Conscientious objection in health care: an ethical analysis. Cambridge: Cambridge University Press; 2011. . Em situações desse tipo, não há consenso sobre a melhor conduta, pois não há unanimidade sobre como ordenar os diferentes valores em jogo – daí a necessidade de contribuição da bioética. Colocado em conflito e confrontado com algum componente em relação ao qual a sociedade já definiu, com maior ou menor profundidade de discussão, sua particular prioridade de valores (legislação do país, sistema de saúde, regimento do hospital etc.), o profissional escolhe não atuar por temor de causar mal ao paciente, por mais discutível que possa ser tal temor.

Objeção de consciência não é recusa simples

O CEM 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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, em seu inciso VII do Capítulo I, diferencia a recusa de atendimento por motivos de consciência e a recusa de atendimento a quem o profissional não deseja atender, que propomos chamar, para fins didáticos, de “recusa simples”. Mas qual a necessidade de diferenciar a recusa simples da recusa por motivos de consciência? E por qual motivo a confusão entre esses dois termos é tão frequente?

Wicclair também ressalta a importância de diferenciar esses dois tipos de recusa. Segundo o autor, recusas que não são baseadas em consciência podem incluir aquelas derivadas de razões de interesse próprio e de considerações de integridade profissional. (…) Entretanto, na medida em que a recusa é baseada em um ou em ambos os motivos, e não nas crenças morais do profissional, não pode ser considerada baseada em consciência 1010. Wicclair MR. Conscientious objection in health care: an ethical analysis. Cambridge: Cambridge University Press; 2011. p. 6. .

Considerando que a recusa simples não tem motivação especificada na normativa profissional médica, sendo simplesmente a recusa de atendimento a quem o profissional não deseja assistir, os motivos não são particularmente relevantes, desde que respeitadas as três condições de exceção: possibilidade de substituição por outro profissional, ausência de urgência ou emergência e ausência de dano ao paciente. Nesse contexto, por que não enquadrar os motivos de consciência na categoria dos não especificados?

É mais complexo avaliar a interação entre recusa por motivos de consciência e suas respectivas exceções do que avaliar a recusa simples. Isso se dá precisamente porque os valores comparados se equivalem mais na recusa por motivos de consciência do que na simples. Em outras palavras, na recusa por motivos de consciência, a autonomia do paciente e a do médico estão muito mais alinhadas. Nesse caso, a autonomia médica é exercida com base em argumentos mais relevantes. A verdadeira recusa por consciência é baseada obrigatoriamente em razões consideradas graves pelo objetor. Trata-se, necessariamente, de questões morais, e não apenas de ordem prática, como na recusa simples.

Objeção de consciência não é exercida pelo paciente

É evidente que o paciente, assim como o médico, possui uma consciência, e que esta pode ser igualmente contrariada. O paciente pode escolher não realizar determinada ação por motivos de consciência. No entanto, o conceito de objeção de consciência se refere a situações de conflito de consciência do profissional, e não do paciente.

Isso não ocorre porque a consciência do médico teria mais importância que a do paciente. Quando o paciente, por alguma razão, inclusive de consciência, decide recusar determinado procedimento ou tratamento, esse conflito já está contemplado em questões relacionadas a sua autonomia, como elaboração de diretivas antecipadas de vontade ou mesmo a própria recusa terapêutica. Após esse aprofundamento, passamos à seção seguinte, em que pretendemos lançar alguma luz sobre a natureza da verdadeira objeção de consciência.

O que é objeção de consciência?

Vejamos as definições citadas por autores que escrevem sobre o tema. Fiala e Arthur afirmam que a objeção de consciência é usualmente definida como a recusa por um profissional de saúde em fornecer um serviço ou tratamento médico legal, pelo qual ele seria normalmente responsável, com base em sua objeção ao tratamento por razões pessoais ou religiosas 1111. Fiala C, Arthur JH. There is no defence for “conscientious objection” in reproductive health care. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol [Internet]. 2017 [acesso 31 ago 2019]216:254-8. p. 254. DOI: 10.1016/j.ejogrb.2017.07.023
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. Posteriormente, no mesmo artigo, os autores propõem uma definição discretamente diferente: a objeção de consciência seria a recusa em fornecer um tratamento legal que o paciente solicita e necessita com base na crença pessoal e subjetiva do provedor de que o tratamento é imoral 1212. Fiala C, Arthur JH. Op. cit. p. 255. .

Segundo o Código de Ética dos Enfermeiros Canadenses, a objeção de consciência é uma situação na qual um enfermeiro informa seu empregador a respeito de um conflito de consciência e da necessidade de deixar de prover assistência porque uma prática ou procedimento conflita com suas crenças morais 1313. Canadian Nurses Association. Code of ethics for registered nurses [Internet]. Ottawa: Canadian Nurses Association; 2017 [acesso 31 ago 2019]. p. 21. Disponível: https://bit.ly/3iIssph
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. Já conforme a mais recente versão do CEM, o elemento da objeção de consciência contempla dois aspectos principais: o direito de recusa ao atendimento por motivos de consciência e o direito de permanecer em tal decisão, mesmo se contraposta à lei vigente 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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. Além disso, são citadas três exceções ao exercício de tal direito: a ausência de substituto, os casos de urgência ou emergência, e o risco de que a recusa cause danos ao paciente.

A partir do exposto, procuramos identificar elementos que consideramos primordiais para a verdadeira objeção de consciência, em contraponto àqueles que deveriam ser rejeitados na busca por uma definição adequada.

Liberdade de consciência e de recusa

O CEM estabelece que o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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. Sgreccia define que o médico é o profissional chamado e escolhido livremente pelo paciente e por ele aceito (…) para ajudar a prevenir a doença ou a tratá-la ou a reabilitar as forças e as capacidades da pessoa 1414. Sgreccia E. Manual de bioética: fundamentos e ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2015. p. 218. .

No próprio CEM 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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há vários excertos que mostram a busca pelo equilíbrio ideal entre respeito ao paciente, busca por fazer o bem e liberdade profissional. No capítulo I, incisos XIX e XX, vemos que o médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação de confiança particular, e executados com diligência, competência e prudência , e que a natureza personalíssima da relação profissional do médico não caracteriza relação de consumo 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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. Adicionalmente, o capítulo V do mesmo documento, artigo 31, veda ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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É evidente que tanto o médico quanto o paciente têm direito a algum grau de liberdade 1515. Curlin FA, Lawrence RE, Chin MH, Lantos JD. Religion, conscience, and controversial clinical practices. N Eng J Med [Internet]. 2007 [acesso 1º out 2019];356(6):593-600. DOI: 10.1056/NEJMsa065316 . Nem o médico tem direito de tomar decisões autoritárias, nem a prática médica caracteriza relação de consumo, na qual o paciente seria um cliente que pagou por um serviço e pode exigir sua realização de maneira inequívoca 1616. Cowley C. A defence of conscientious objection in medicine: a reply to Schuklenk and Savulescu. Bioethics [Internet]. 2016 [acesso 11 set 2021];30(5):358-64. DOI: 10.1111/bioe.12233 . Wicclair 1717. Wicclair MR. Conscientious objection in medicine. Bioethics [Internet]. 2000 [acesso 31 ago 2019];14(3):205-27. DOI: 10.1111/1467-8519.00191 propõe que a tomada de decisão do profissional médico seja guiada, por um lado, pelo senso de obrigação em relação ao paciente (e não pelo interesse próprio) e, por outro lado, por valores éticos e padrões profissionais. Os médicos, portanto, não podem atuar como técnicos que executam serviços sob demanda. E é justamente na interface entre essas duas liberdades – do paciente e do profissional – que nasce o conflito da objeção de consciência.

Para entender a liberdade do profissional, é fundamental abordar o conceito de responsabilidade. Conforme o CEM, Capítulo III, artigo 4º, o médico não pode deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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. Infere-se, assim, que a escolha do paciente, mesmo que absolutamente livre, não desobriga o médico de sua própria responsabilidade em determinado ato profissional.

É útil, para compreender essa questão, rever o conceito de “ato humano”. Conforme Silveira ao discorrer sobre a antropologia tomista, não há nenhum ato propriamente humano que não proceda da inteligência e da vontade, do entendimento e da volição. Noutras palavras, os atos involuntários não são propriedade do homem, pois outros animais também os realizam. Somos, portanto, livres no ato de escolha (electione) que radica na vontade, sendo este o apetite intelectivo do bem 1818. Silveira S. Cosmogonia da desordem: exegese do declínio espiritual do Ocidente. Rio de Janeiro: Sidney Silveira; 2018. p. 496. . Nas palavras do próprio Santo Tomás, como o homem conhece ao máximo o fim de sua ação e move a si mesmo, é nos seus atos que o voluntário se manifesta ao máximo 1919. Aquino T. Suma teológica. São Paulo: Loyola; 2003. p. 119. . Orr 2020. Orr RD. The role of moral complicity in issues of conscience. Am J Bioeth [Internet]. 2007 [acesso 11 set 2021];7(12):23-4. DOI: 10.1080/15265160701710014 também chama a atenção para a questão da cumplicidade moral nas questões de consciência, estipulando que essa cumplicidade é tanto maior quanto mais diretamente envolvido o indivíduo no ato em questão.

É fundamental compreender o ato médico como ato humano que, como tal, depende do uso da inteligência e da vontade e pressupõe uma responsabilidade que vai além da mera aquiescência ao desejo do paciente. Fica assim identificado o primeiro elemento para caracterizar a objeção de consciência: a liberdade profissional de consciência e de recusa.

A autonomia do paciente, que trouxe ganhos inquestionáveis para o equilíbrio da prática clínica nas últimas décadas, não é negligenciada nessa perspectiva. Porém, como apontam Pellegrino e Thomasma, a autonomia tampouco é absoluta e ilimitada, e não pode ser usada para fins que sejam hostis aos bens intrínsecos dos indivíduos e da sociedade (…) sem perigo moral 2121. Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente: a restauração da beneficência nos cuidados da saúde. São Paulo: Loyola; 2018. p. 55. . Embora os modelos baseados unicamente na autonomia do paciente sejam frequentemente contrastados ao modelo paternalista 2222. Lynch HF. Conflicts of conscience in health care: an institutional compromise. Cambridge: MIT Press; 2008. , Pellegrino e Thomasma sugerem uma inesperada similaridade entre eles: não percebemos diferença real entre o modelo autonomista e o paternalismo médico. Ambos os modelos enfatizam a tomada de decisões individual; os dois enfatizam a liberdade de restrição que a sociedade pode impor sobre os indivíduos. Para o modelo de autonomia, a liberdade é a do paciente. Para o modelo paternalista, é a do médico 2323. Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. 2018. p. 59. .

Fica claro que a objeção de consciência – apesar de ser vista por alguns como apenas mais uma faceta do conhecido paternalismo médico 2424. Savulescu J, Schuklenk U. Doctors have no right to refuse medical assistance in dying, abortion or contraception. Bioethics [Internet]. 2017 [acesso 11 set 2021];31(3):162-70. DOI: 10.1111/bioe.12288 , 2525. Fiala C, Arthur JH. “Dishonourable disobedience”: why refusal to treat in reproductive healthcare is not conscientious objection. Woman [Internet]. 2014 [acesso 11 set 2021];1:12-23. DOI: 10.1016/j.woman.2014.03.001
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– diz respeito a um tema muito mais profundo: a interação entre dois tipos valiosos de liberdade. A liberdade do paciente, ou autonomia, não pode ser de nenhuma maneira abolida. No entanto, a liberdade do profissional, que é ele próprio também um sujeito moral, deve ter lugar na prática clínica. Com base nessas considerações, é possível identificar que a objeção de consciência pressupõe um profissional de saúde capaz de atuar de forma moral, ou seja, livremente e em congruência com seus próprios valores.

Objeção ao ato

Conforme exemplificado na seção anterior, a verdadeira objeção de consciência se refere aos atos propostos, e não à pessoa que os solicita. Essa é uma condição importantíssima, pois é por meio dela que se evita a confusão bastante frequente entre objeção de consciência e atos discriminatórios.

Para a objeção de consciência ser considerada legítima, o profissional deve se negar a realizar o ato em questão de forma consistente, ou seja, sua objeção se estende a todos os casos análogos com os quais é confrontado. Essa condição é necessária porque, do ponto de vista do objetor, a imoralidade do ato precisa ser intrínseca, não circunstancial.

Para que essa condição (a consistência) seja satisfeita, é necessário um raciocínio lógico por trás da recusa. Caso contrário, ela tem um caráter arbitrário que a torna inválida. Portanto, a base filosófica ou religiosa que motivou a recusa deve ser racionalmente defendida, ou não tem razão de ser. Em síntese, é fundamental que o objetor, após ter escolhido o critério que considera correto, mantenha um conjunto lógico e consistente de ações subsequentes 2626. Martínez K. Medicina y objeción de conciencia. Anales Sis San Navarra [Internet]. 2007 [acesso 15 set 2021];30(2):215-23. DOI: 10.23938/ASSN.0219 . É também de suma importância que a objeção de consciência se refira ao ato especificamente proposto, e não à pessoa que o solicita 88. Stahl RY, Emanuel EJ. Physicians, not conscripts: conscientious objection in health care. NEJM [Internet]. 2017 [acesso 20 set 2017];376(14):1380-5. DOI: 10.1056/NEJMsb1612472 .

Objeção com a intenção exclusiva de não malefício

Para ser aceitável, é imprescindível que a objeção de consciência seja exercida com a intenção do não malefício alheio, e não em benefício próprio. Porém, nesse argumento reside um ponto de grande confusão. Como já observado, para muitos autores a reivindicação da objeção de consciência não passa de uma forma do profissional satisfazer algum tipo de necessidade própria 2424. Savulescu J, Schuklenk U. Doctors have no right to refuse medical assistance in dying, abortion or contraception. Bioethics [Internet]. 2017 [acesso 11 set 2021];31(3):162-70. DOI: 10.1111/bioe.12288 , 2525. Fiala C, Arthur JH. “Dishonourable disobedience”: why refusal to treat in reproductive healthcare is not conscientious objection. Woman [Internet]. 2014 [acesso 11 set 2021];1:12-23. DOI: 10.1016/j.woman.2014.03.001
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, 2727. Giubilini A, Savulescu J. Beyond money: conscientious objection in medicine as a conflict of interests. J Bioeth Inq [Internet]. 2020 [acesso 15 set 2021];17:229-43. DOI: 10.1007/s11673-020-09976-9 , como que para aliviar um mal-estar psicológico. Para tais autores, parece absolutamente imoral que a necessidade subjetiva do profissional se superponha à autonomia do paciente.

Cabe então questionar a intenção de quem se recusa a realizar determinado ato por motivos de consciência. Sem dúvida, caso o objetivo do profissional seja unicamente o proveito pessoal, de modo a trabalhar menos ou se autopreservar do incômodo de participar do procedimento, não há justificativa ética para a objeção. Também Lamb 99. Lamb C. Understanding the right of conscience in health and health care practice. New Bioeth [Internet]. 2016 [acesso 31 ago 2019];22:33-44. DOI: 10.1080/20502877.2016.1151252 ressalta que, quando exercida com base em motivações inadequadas, como racismo, preferências e desequilíbrios de poder, a objeção de consciência fica eticamente comprometida.

Por esse motivo, é fundamental que a objeção se baseie na nobreza de intenção, ou seja, o profissional deve agir de maneira virtuosa. Conforme Pellegrino e Thomasma, a virtude implica um traço de caráter; uma disposição interna que habitualmente busca a perfeição moral de viver a vida de acordo com a lei moral, e para atingir um equilíbrio entre a intenção nobre e a mera ação 2828. Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. 2018. p. 137. . Segundo os autores, nenhuma sociedade civilizada poderia perdurar sem um número significativo de cidadãos comprometidos com esse conceito de virtude 2828. Pellegrino ED, Thomasma DC. Op. cit. 2018. p. 137. . A partir dessas considerações, delineia-se mais um ponto importante para o adequado exercício da objeção de consciência: a intenção de não malefício, nunca de interesse próprio.

Não coincidência entre objetor e aquele que é afetado

Conforme já argumentado, não convém chamar a recusa do paciente a determinado procedimento de “objeção de consciência”. Isso porque o conflito da objeção nasce justamente da contradição entre aquele que objeta (o profissional) e aquele que é mais diretamente afetado por tal objeção (o paciente). Justamente por ser uma decisão tomada por outro que não o paciente, a objeção de consciência é bastante complexa.

Uma questão puramente semântica motiva a estipulação desse critério. Naturalmente, quando recusa um tratamento, o paciente pode fazê-lo, entre outras razões, por motivos de consciência. Lato sensu , esse ato do paciente poderia ser chamado de “objeção de consciência”. Nesse caso, porém, a imprecisão que cerca o termo se agravaria ainda mais.

Sendo a objeção de consciência, no contexto da saúde, um conceito criado e estudado no que tange a uma decisão profissional , não seria esclarecedor confundir o termo com questões que dizem respeito ao paciente . Assim, sugere-se que a “objeção de consciência” exercida pelo paciente seja chamada simplesmente de “autonomia”.

Ausência de risco iminente de morte

Entre as três exceções à objeção de consciência sugeridas pelo CEM 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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, a que parece mais relevante é a ausência de situação de urgência/emergência. É compreensível que, caso a situação clínica em questão traga risco iminente de morte (o que configuraria emergência, mais do que urgência), o foco principal do profissional deve ser a manutenção da vida do paciente, acima de qualquer outro valor. O que diferencia urgência e emergência é sobretudo o fato de que, nessa última, o risco de morte não apenas está presente como é também iminente 2929. Giglio-Jacquemot A. Urgências e emergências em saúde: perspectivas de profissionais e usuários. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. .

Também em outros temas o CEM estabelece o risco iminente de morte como limitador do exercício de direitos. No que diz respeito à obtenção de consentimento do paciente – considerada obrigatória do ponto de vista ético –, o médico está desobrigado a solicitá-la em caso de risco iminente de morte, conforme artigo 22 do capítulo IV do CEM 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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. Adicionalmente, o capítulo V, artigo 31, veda ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 211, p. 179, 1º nov 2018 [acesso 31 ago 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3AeHKrS
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. Chama a atenção que, nesses casos, a presença do risco iminente de morte, e não apenas de situação de urgência, é necessária para que outro valor importante seja colocado em segundo plano.

A urgência não é suficiente para legitimar a exceção. É necessário que haja uma condição de emergência, ou seja, de iminente risco de morte, para justificar a sobreposição a outro valor importante. Nos exemplos citados, estipula-se esse risco como condição para que o consentimento e o direito de decisão do paciente, valores importantíssimos, fiquem em segundo plano. Da mesma forma, a objeção de consciência – também ela um valor importante, como manifestação da liberdade profissional – só deve ser suplantada quando houver condição grave o suficiente. Por isso propomos limitá-la apenas ao risco iminente de morte, sem estendê-la à urgência, que é condição séria, porém não imediatamente fatal.

Contraposição à lei vigente

Apesar de se tratar de documento infralegal, é interessante observar como o CEM contrapõe a objeção de consciência à lei vigente. A justiça e o direito carregam uma significativa dimensão axiológica. Do ponto de vista aristotélico, a lei e a virtude são indissociáveis. Conforme Pegoraro, a justiça é a virtude total, pois prescreve a obediência às leis e o respeito da igualdade entre os cidadãos 3030. Pegoraro OA. Ética é justiça. Petrópolis: Vozes; 1995. p. 33. . O autor acrescenta que a justiça, na ética aristotélica, é uma virtude inerente ao sujeito, e nossas ações só podem ser consideradas justas ou injustas se voluntárias.

Essa concepção de justiça é completamente dependente do valor nela contido. Assim, é na interface com o aspecto de valor contido na lei que atua a objeção de consciência. Por se tratar de exercício de atuação moral, responsável e consciente, conforme os princípios defendidos pelo objetor, ainda que a objeção de consciência confronte uma lei vigente, ela pode ser justificada como uma forma ética de defender princípios morais caros à sociedade.

A esse respeito, Finnis questiona: dado que a obrigação legal presumivelmente acarreta uma obrigação moral, e que o sistema legal é de modo geral justo, uma lei injusta em particular impõe a mim qualquer obrigação moral de obedecer a ela? 3131. Finnis J. Lei natural e direitos naturais. São Leopoldo: Unisinos; 2006. p. 342-3. . O autor começa por estabelecer que o governante não tem, falando muito estritamente, o direito de ser obedecido (…); mas tem a autoridade de dar orientações e fazer leis que são moralmente obrigatórias e que ele tem a responsabilidade de implementar 3232. Finnis J. Op. cit. 2006. p. 344. . Após alertar para o fato de que leis criadas contra princípios razoáveis não devem ser encaradas necessariamente como injustas, e que os que não são injustamente afetados por tal lei não têm o direito de desobedecê-la, Finnis conclui que leis injustas não obrigam o sujeito a seu cumprimento, por serem desprovidas de autoridade moral.

Rawls, por sua vez, estabelece um conceito de objeção de consciência que não é sinônimo de desobediência civil, como não cumprimento de uma exigência legal (ou comando administrativo) mais ou menos direta 34. O autor ainda destaca que os princípios nos quais se fundamenta a objeção de consciência não são necessariamente políticos.

A discussão nos leva a uma última característica que parece pertinente para uma definição adequada do conceito de objeção de consciência: a verdadeira objeção de consciência tem fundamento suficiente para ser exercida mesmo quando contradiz a lei vigente. Ainda: tal objeção só tem razão de ser quando o ato que objeta é legal. Se não o fosse, não seria necessário recorrer a ela, mas simplesmente justificar que o ato proposto é ilegal.

Considerações finais

Considerando todas as características importantes para delimitar a objeção de consciência enumeradas neste texto, propõe-se em seguida uma conceituação mais detalhada e precisa do que as frequentemente encontradas no meio acadêmico. A proposição desse conceito não almeja de maneira alguma esgotar a discussão, mas sim dar novo fôlego a ela. Seria bastante proveitoso que tal conceito servisse de base para aprofundar a reflexão, pautando o debate em um denominador comum, quiçá para posteriores aprimoramentos. Assim, procura-se contribuir, ainda que minimamente, para dar mais clareza ao assunto e reduzir o emprego inadequado do termo.

Considerando todos os elementos explorados anteriormente, propõe-se a seguinte conceituação: a objeção de consciência é o direito do médico de se recusar a realizar determinado ato médico legal, ato este percebido pelo profissional como danoso ao paciente e intrinsecamente imoral, a partir de uma base de valores fundamentada, razoável e claramente compreendida pelo objetor, devendo tal direito ser afastado em situações de risco iminente de morte, quando o ato for a única forma ética de salvar a vida em risco.

Nessa proposta de conceituação pode-se encontrar todos os elementos considerados relevantes ao longo da pesquisa: o direito de liberdade de consciência do profissional; a objeção ao ato proposto, e não à pessoa que o propõe; a motivação lógica e consistente; a recusa com intenção obrigatória de não prejudicar o paciente; o fato de que quem objeta é o próprio profissional, em contraposição a outras situações de conflito como a recusa terapêutica; a impossibilidade de seu exercício quando o ato médico for a única forma de salvar uma vida em risco iminente de morte; e a manutenção da validade da objeção de consciência mesmo quando esta confronta a lei vigente.

Apesar de o CEM propor como exceção ao exercício da objeção de consciência a ausência de outro profissional substituto, não consideramos essa exceção suficientemente válida. Um profissional que se recusa a realizar determinado procedimento, conforme todos os critérios aqui estabelecidos, o faz de modo a não contrariar sua consciência, que indica, segundo sua razão, ser danosa ao paciente a realização do ato proposto. Assim, sua recusa se dá até mesmo em contradição ao que estabelece a lei, por ser sua convicção robusta, e a despeito de qualquer vantagem pessoal. Nesse contexto, na chamada “verdadeira objeção de consciência”, a ausência de outro profissional disponível não afeta em nada a disposição dos fatos.

Se o ato proposto é percebido pelo objetor como um mal, ainda que consentido pelo paciente, e mesmo não havendo outro profissional disponível para levá-lo a cabo, toda a argumentação em relação à objeção de consciência permanece válida. Não é razoável propor que alguém disposto a se posicionar vigorosamente contra algo que considera um mal – a ponto de confrontar a lei e gerar uma situação delicada e complexa na relação médico-paciente, por vezes sendo pessoal e profissionalmente prejudicado por sua escolha – subitamente abra mão de seus princípios apenas por não ter outro colega que possa substituí-lo.

A sociedade contemporânea é extremamente plural e diversa, e os médicos são parte integrante dela. É bastante improvável, exceto em comunidades muito isoladas, com poucos profissionais, que entre o grupo de médicos não haja também uma diversidade de crenças e posições pessoais suficiente para que esse tipo de situação não seja comum. Cabe ao sistema de saúde se estruturar de forma a garantir um número adequado de profissionais em todos os locais, de modo a acomodar tanto as diversas demandas de pacientes que estejam dentro da lei como a liberdade de consciência dos objetores legítimos. Na hipótese improvável de determinado ato ser rejeitado por 100% dos profissionais disponíveis, isso significaria não a necessidade de banir a objeção de consciência, mas sim um sintoma de que tal ato precisa ser mais bem discutido entre as partes envolvidas antes de ser implementado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    3 Maio 2021
  • Revisado
    8 Set 2021
  • Aceito
    17 Set 2021
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