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Vade mecum sobre o morrer e a morte

Resumo

Considerando o impacto da morte em múltiplos aspectos da coletividade humana, este artigo reflete sobre como diferentes culturas, em épocas distintas, relacionaram-se com esse tema, buscando interpretar os vários significados associados à finitude. Para tanto, o estudo parte de uma revisão bibliográfica de abordagem qualitativa. Constata-se que as civilizações que se sucederam ao longo dos séculos têm em comum uma série de barreiras para compreender e aceitar a morte. E, a despeito de novos paradigmas socioculturais, da liberdade de expressão e de toda a evolução tecnológica que caracterizam a sociedade contemporânea, a desmistificação da morte ainda requer empenho. Em sua conclusão, o texto enfatiza a necessidade de ampliar discussões e estratégias para enfrentar as questões relacionadas à finitude humana, levando em conta que novas ressignificações conceituais sempre emergem com o progresso da ciência.

Temas bioéticos; Morte; Tanatologia; Direito a morrer; Eutanásia

Abstract

Considering the impact of death on multiple aspects of human collectivity, this article reflects on how different cultures, at different times, related to this theme, seeking to interpret the various meanings associated with finitude. Therefore, the study starts with a literature review of a qualitative approach. It found that civilizations that have succeeded each other over the centuries have in common a number of barriers to understanding and accepting death. And, despite new sociocultural paradigms, freedom of expression and all the technological evolution that characterize contemporary society, the demystification of death still requires commitment. In its conclusion, the text emphasizes the need to broaden discussions and strategies to address issues related to human finitude, considering that new conceptual re-significations always emerge with the progress of science.

Bioethical themes; Death; Thanatology; Right to die; Euthanasia

Resumen

Considerando el impacto de la muerte en múltiples aspectos de la colectividad humana, este artículo reflexiona sobre cómo diferentes culturas, en diferentes momentos, se relacionaron con este tema, buscando interpretar los diversos significados asociados a la finitud. Por lo tanto, el estudio parte de una revisión bibliográfica de un enfoque cualitativo. Se constata que las civilizaciones que se han sucedido a lo largo de los siglos tienen en común una serie de barreras para comprender y aceptar la muerte. A pesar de los nuevos paradigmas socioculturales, la libertad de expresión y toda la evolución tecnológica que caracteriza a la sociedad contemporánea, la desmitificación de la muerte aún requiere compromiso. En su conclusión, el texto enfatiza la necesidad de ampliar las discusiones y estrategias para abordar cuestiones relacionadas con la finitud humana, teniendo en cuenta que siempre surgen nuevas resignificaciones conceptuales con el progreso de la ciencia.

Temas bioéticos; Muerte; Tanatología; Derecho a morir; Eutanasia

Conceito de morte na ampulheta do tempo

Desde os primórdios da civilização, as questões referentes à finitude da vida exercem influência ambígua na raça humana. Embora a morte seja um dos marcadores somáticos mais significativos na existência dos indivíduos e seguramente simbolize o grau máximo da vulnerabilidade humana, essa temática sempre esteve permeada por múltiplos tabus, temores e incertezas, em todas as culturas que se sucederam no decorrer dos séculos, incluindo a sociedade contemporânea.

No antigo Egito, o fenecimento não era considerado uma circunstância derradeira ou de repouso final, mas sim o início de uma nova vivência em um mundo paralelo. Conforme registros arqueológicos datados de pelo menos 4 mil anos e conhecidos atualmente como Livro dos dois caminhos 11. Willems H. A fragment of an early Book of Two Ways on the coffin of Ankh from Dayr al-Barshā (B4B). J Egypt Archaeol [Internet]. 2018 [acesso 15 mar 2021];104(2):145-60. DOI: 10.1177/0307513319856848 , essa civilização realizava pinturas em sarcófagos com a finalidade de instruir a alma dos falecidos em sua difícil jornada para o reino de Osíris, o deus da morte. Posteriormente, os egípcios passaram a deixar junto às múmias papiros que foram chamados de Livro dos mortos (ou Livro de sair para a luz ), com fórmulas, preces e recomendações diversas destinadas a auxiliar os mortos na jornada em uma nova dimensão existencial após a vida.

Já na mitologia grega, considerava-se Hades o deus do submundo e o rei dos mortos, a divindade mais temida e abominada, como registrado por Platão: E as fábulas que contam sobre Hades, de que, o que se há cometido aqui, será pago ali. Histórias antes não levadas a sério, transtornam-nos a alma, por temermos serem verdadeiras 22. Platão. A república. Brasília: Kiron; 2012. p. 26. . Ressalte-se que, na Grécia antiga, o infanticídio era ocasionalmente executado a pretexto da erradicação de recém-nascidos portadores de defeitos físicos, e anciães gravemente enfermos também podiam ter a morte antecipada para aliviar seu sofrimento.

No Império Romano, que considerava Plutão o deus da morte, também era usual que crianças malformadas fossem mortas por seus familiares, que contavam com esse direito assegurado pela legislação (Lei das Doze Tábuas, Tábua IV). Esse questionável costume foi estigmatizado no judaísmo e posteriormente também no cristianismo, que gradualmente modificaram padrões culturais. O domínio sobre a vida humana passou a ser interpretado como prerrogativa exclusiva de Deus, não cabendo aos homens usurpar esse poder divino.

Na Idade Média, a resignação perante doenças ou infortúnios fatais era a conduta cotidiana. Nas suas orações, os cristãos ocidentais clamavam a Deus para não serem vítimas de mortes repentinas, pois se considerava que o sofrimento e a dor tinham um propósito redentor que beneficiava a evolução espiritual dos moribundos. Paradoxalmente, nesse período a Igreja Católica foi responsável por muitas incongruências praticadas sob a alegação de defesa da fé cristã. Santo Tomás de Aquino, citado por Engelhardt, chegou a afirmar, em sua Summa Theologica , que os hereges merecem não apenas ser separados da Igreja pela excomunhão, mas também separados do mundo pela morte 33. Engelhardt HT Jr. Fundamentos da bioética. São Paulo: Loyola; 1998. p. 46. . Até hoje os historiadores não conseguiram determinar com exatidão o número de vítimas das Cruzadas e da Inquisição.

Prática habitual na Idade Média e na Idade Moderna, a aplicação de torturas e condenações à morte em indivíduos acusados de transgredir normas religiosas ou legais dos diversos reinos ou países era considerada a melhor alternativa para reprimir práticas consideradas perigosas para a estabilidade dos regimes. Como exemplo, pode-se citar o inconfidente mineiro Tiradentes, condenado pela Coroa portuguesa à pena de “morte natural para sempre”, que consistia no enforcamento, esquartejamento do corpo, perda de todos os bens e supressão de todos os registros civis referentes à existência prévia do condenado. Além dos monarcas e governantes, o único segmento da sociedade que se beneficiava de tais medidas era a medicina, pois os cadáveres dos condenados eram ocasionalmente cedidos para estudos anatômicos que contribuíam excepcionalmente para o desenvolvimento dessa ciência.

Por sua vez, a Idade Contemporânea modificou o conceito social de morte. O padecimento e a agonia deixaram de ser relevantes para a salvação espiritual na fase terminal da vida. Além disso, as pessoas passaram a falecer em hospitais, e não mais em suas residências. Essa era foi pródiga em revoluções e guerras que disseminaram fome, miséria e morte em níveis estratosféricos. Alguns países foram responsáveis diretos por eliminar sua própria população civil por razões discriminatórias diversas, como racismo e eugenia. Como exemplo, a Alemanha nazista foi responsável pelo extermínio de milhares de cidadãos (estimativas atuais calculam entre 70 mil e 200 mil vítimas) no seu programa eugenista Aktion T4, entre 1939 e 1945 44. Berenbaum M. T4 Program: Nazi Policy. In: Encyclopaedia Britannica [Internet]. 2018 [acesso 15 mar 2021]. Disponível: https://bit.ly/3vOSJYz
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. O programa incluiu crianças, adultos e idosos portadores de deficiências físicas, epilepsia, doenças mentais e outras patologias “incuráveis”.

Com o avanço da ciência médica, passou-se a discutir sobre uma nova definição do diagnóstico da morte. Esse polêmico tema somente seria esclarecido após o primeiro transplante cardíaco da história, feito pelo cirurgião Christiaan Neethling Barnard em dezembro de 1967 no hospital Groote Schuur, na África do Sul. A necessidade imperiosa de o doador estar vivo (ainda que moribundo) por ocasião da retirada de seu coração era uma das principais críticas dos que discordavam dessa nova técnica. As contestações só seriam amenizadas em agosto de 1968, quando uma comissão ad hoc da Escola de Medicina de Harvard, presidida por Henry Knowles Beecher 55. Beecher HK. A definition of irreversible coma. Int Anesthesiol Clin [Internet]. 2007 [acesso 22 fev 2020];45(4):113-9. DOI: 10.1097/AIA.0b013e318142cb9e , estabeleceu os critérios médicos para a caracterização efetiva dos conceitos de “coma irreversível” e “morte cerebral”, situações clínicas até então mal definidas.

Na atualidade, o fenômeno da morte permanece envolto por receios e incompreensões. Algumas diversidades culturais são bastante peculiares, como a tradição do “casamento-fantasma”, que ocorre em determinadas cidades no interior da China. Nesses locais, persiste a antiga crença de que homens solteiros com mais de 12 anos de idade falecidos antes de se casar sofrerão aflições no mundo espiritual e trarão muitas desventuras para seus familiares. Para evitar essa adversidade, seus parentes passam a buscar outras famílias camponesas onde tenha ocorrido o falecimento de uma mulher solteira. Ao encontrá-las, as famílias ajustam o casamento dos filhos já falecidos, mesmo que eles não tenham se conhecido em vida. Após o pagamento de um dote financeiro para a família da noiva, os cadáveres são exumados e vestidos adequadamente para que uma cerimônia tradicional de matrimônio seja realizada. Os novos cônjuges são então novamente inumados em uma tumba conjunta, e todos se regozijam, pois acreditam que assim cumpriram satisfatoriamente seus deveres familiares.

Outro costume hodierno controverso consiste nos martírios e sacrifícios terroristas de homens ou mulheres-bomba em defesa de uma causa pretensamente religiosa ou patriótica – prática já registrada em épocas diversas, como na Roma Antiga (sicários), no Império Turco-Otomano (guerreiros suicidas ou bashi-bazouk ) e, mais recentemente, no Japão ( kamikazes ).

Vale destacar, no entanto, que nem todas as expressões culturais refletem uma perspectiva trágica ou lúgubre. No México por exemplo, a comemoração tradicional do Dia dos Mortos celebra o reencontro cerimonial das pessoas com seus familiares falecidos com festejos, desfiles, música e muita alegria. A festa é reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 2003.

Complexo debate na contemporaneidade

A citação latina timor mortis conturbat me (“o temor da morte me perturba”) exemplifica o fenômeno de negação cultural da morte na época atual. Os múltiplos aspectos médicos, psicológicos, jurídicos e sociais da morte são hoje exaustivamente pesquisados pela tanatologia e a bioética. No entanto, é possível identificar uma questão basilar que motiva a maioria das discussões sobre esse tema: o sofrimento presente no fim da existência ou no enfrentamento de uma doença grave, progressiva e sem prognóstico favorável. Entre os diversos diálogos que se estabelecem na sociedade, alguns até mesmo antagônicos, seguramente o consenso global converge no compromisso com a defesa da dignidade humana.

Como aponta Kovács 66. Kovács MJ. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 15 mar 2021];14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 , perguntas controversas permanecem sem respostas conclusivas na sociedade contemporânea: podemos programar o momento e as circunstâncias da nossa própria morte? O direito dos indivíduos que optaram conscientemente por encerrar antecipadamente sua vida deve ser respeitado? Amigos, familiares e profissionais da saúde podem ajudar piedosamente uma pessoa que deseja antecipar a própria morte? Tratamentos médicos cuja finalidade é prolongar a vida de pacientes com prognóstico fatal, a despeito de uma piora progressiva da qualidade de vida, podem (ou devem) ser suspensos? Quem poderá efetivamente decidir por doentes terminais que já não têm mais autonomia para se manifestar?

O conhecimento dos vários tipos de morte colabora notavelmente na adequada percepção desse fenômeno. Embora o vocábulo “eutanásia” tenha sido utilizado pela primeira vez ainda em 1623 pelo filósofo Francis Bacon, em sua obra Historia vitae et mortis , como tratamento adequado para doenças incuráveis, o termo continua imprescindível para compreender esse complexo assunto. Composta pelo grego eu (bom) e thánatos (morte), a palavra era inicialmente compreendida como boa morte, morte sem dor ou morte serena, consistindo em uma prática pela qual se buscava abreviar, sem dor nem sofrimento, a vida de um paciente reconhecidamente incurável. Atualmente, a acepção do conceito sofreu modificações, passando a significar a conduta de colocar fim deliberado à vida de uma pessoa enferma. Conforme Lepargneur, citado por Pessini e Barchifontaine, no século XX, a eutanásia passou a ter conotação pejorativa e, pouco a pouco, a representar um mero eufemismo para significar a supressão indolor de vida voluntariamente provocada de quem sofre ou poderia vir a sofrer de modo insuportável 77. Pessini L, Barchifontaine CP. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Loyola; 2000. p. 293. .

Atualmente a palavra “eutanásia” é polissêmica, isto é, tem muitos significados. No entanto, há consenso de que a prática depende de solicitação voluntária e explícita de indivíduo autônomo que almeja antecipar a morte, não havendo, necessariamente, vinculação direta entre eutanásia e doença terminal (nessa acepção, portadores de doenças degenerativas em qualquer estágio de evolução estão todos incluídos). Não obstante alguns países como Países Baixos e Bélgica já terem regulamentado a eutanásia, no Brasil sua ocorrência é crime de homicídio que pode ser agravado em caso de emprego de asfixia (por exemplo, sufocamento com travesseiro) ou utilização de veneno de qualquer tipo (Código Penal, artigo 121, § 2º, III) 88. Brasil. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 31 dez 1940 [acesso 15 mar 2021]. Disponível: https://bit.ly/316l80T
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Entre as diversas classificações existentes (algumas bastante questionáveis), podemos citar a “eutanásia ativa” (também chamada de “positiva” ou “direta”), que consiste em uma ação que acelera ou causa a morte; a “eutanásia passiva” (ou “negativa”), que consiste basicamente em uma omissão para antecipar a morte ou suspender procedimentos para prolongar a vida; a “eutanásia voluntária”, ação que causa a morte quando há pedido do paciente; e “eutanásia involuntária”, ação que causa a morte sem o consentimento explícito do paciente, o que para muitos é sinônimo de homicídio.

Os suicídios (ações que os indivíduos cometem contra si próprios visando um desenlace fatal) são ainda acrescidos de outras duas definições: o “suicídio assistido”, que ocorre quando a pessoa realiza o ato com ajuda de uma ou mais pessoas, e o “suicídio passivo”, que ocorre mediante omissão de medidas ou procedimentos que possam resultar na morte. Na legislação brasileira, também se considera crime induzir, instigar ou auxiliar o suicídio (Código Penal, artigo 122) 88. Brasil. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 31 dez 1940 [acesso 15 mar 2021]. Disponível: https://bit.ly/316l80T
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Há tanto defensores enfáticos da eutanásia como adversários obstinados. A Igreja Católica Apostólica Romana, por exemplo, desaprova a prática, considerando-a violação da lei de Deus, ofensa à dignidade humana e crime contra a vida 99. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Declaração sobre a Eutanásia [Internet]. 1980 [acesso 15 mar 2021]. Disponível: https://bit.ly/3nyoMId
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. A Associação Médica Mundial (AMM) deliberou em 1987 que a eutanásia, que é o ato de deliberadamente terminar com a vida de um paciente, mesmo com a solicitação do próprio ou de seus familiares próximos, é eticamente inadequada 1010. World Medical Association. WMA Declaration on euthanasia and physician-assisted suicide [Internet]. 2019 [acesso 15 mar 2021]. Disponível: https://bit.ly/3Gqh7V5
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. Contudo, fez uma oportuna ressalva de que essa diretriz não impede o médico de respeitar o desejo do paciente ao permitir o curso natural da morte na fase terminal da doença. Esse parecer foi recentemente reiterado na 70ª Assembleia Geral da AMM, realizada em Tbilisi, Geórgia.

Há ainda outras importantes definições, que devem ser abordadas em razão da grande frequência com que aparecem na literatura científica atual. Dentre elas, está o termo “distanásia” – derivado do prefixo grego dys (ato defeituoso) e thánatos (morte) –, cujo uso foi proposto em 1904 por Georges Morache1111. Morache G. Naissance et mort: étude de socio-biologie et de médecine légale [Internet]. Paris: Alcan; 1904 [acesso 15 mar 2021]. Disponível: https://bit.ly/3EkVJPm
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. A distanásia consiste no prolongamento da vida de pessoa com doença incurável por meios extraordinários, mesmo que em condições deploráveis para o enfermo. A prática é chamada também de “obstinação” ou “judiação terapêutica” (ou ainda “futilidade médica”, termo comum nos Estados Unidos), por implicar a manutenção de tratamentos invasivos em pacientes sem qualquer possibilidade de recuperação. Geralmente a distanásia ocorre em instituições hospitalares bem estruturadas e com muitos recursos tecnológicos, visto que essa discutível manutenção vital tem custos elevados. Personalidades proeminentes, como Franco (Espanha), Tito (Iugoslávia), Hirohito (Japão) e Tancredo Neves (Brasil), foram exemplos célebres de distanásia na história.

Outro termo também com etimologia grega e usado com muita frequência em países pobres e subdesenvolvidos é a “mistanásia”, ou “eutanásia social” (embora muitos considerem essa última denominação inadequada). A mistanásia resulta da falta de assistência adequada a milhares de pessoas portadoras de deficiências físicas e mentais ou outras doenças tratáveis, durante toda a sua existência, e não apenas em estágios avançados ou terminais. Sua ocorrência afeta notadamente pessoas carentes e é causa habitual de morte indevida e precoce. Em resumo, trata-se de morte miserável, fora e antes do seu tempo. O escritor brasileiro João Cabral de Melo Neto aborda magistralmente este tema em sua obra-prima Morte e vida severina .

O termo “criptonásia” se refere a outro fenômeno que também tem como vítimas predominantemente pessoas carentes, com baixa escolaridade, idosos e portadores de doenças crônicas ou degenerativas 66. Kovács MJ. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 15 mar 2021];14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 . A prática consiste na antecipação da morte de doentes em estado grave ou fase terminal de uma doença por deliberação exclusiva da equipe médica, que toma tal decisão com a finalidade de liberar vagas para outros pacientes críticos com perspectiva de recuperação e que ainda não conseguiram leito em unidades ou centros hospitalares de tratamento intensivo. Nesse caso, inexiste solicitação do próprio paciente ou de seus familiares para o abreviamento da vida, e a criptonásia configura homicídio na legislação brasileira e de outros países.

Já a “ortotanásia” é definida por França como a suspensão de meios medicamentosos ou artificiais de vida de um paciente em coma irreversível e considerado emmorte encefálica ”, quando há grave comprometimento da coordenação da vida vegetativa e da vida de relação 1212. França GV. Medicina legal. 7ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2004. p. 358. . O neologismo, também oriundo do grego – orthós (direito, reto, normal, em linha reta) e thánatos (morte) –, parte do pressuposto de que a morte não é uma doença a ser curada, mas algo indissociável da vida.

Ao contrário do que ocorre com a eutanásia, praticamente não há restrições à ortotanásia. Em manifestação oficial, a Igreja Católica Apostólica Romana considera lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos aos doentes em casos semelhantes 99. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Declaração sobre a Eutanásia [Internet]. 1980 [acesso 15 mar 2021]. Disponível: https://bit.ly/3nyoMId
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. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu que na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal 1313. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.805, de 9 de novembro de 2006. Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou seu representante legal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 169, 28 nov 2006 [acesso 15 mar 2021]. Disponível: https://bit.ly/3vLjflz
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Outro avanço extraordinário ocorrido no século XX foi o movimento hospice moderno, idealizado pela doutora Cicely Saunders visando a adequada assistência a pacientes com doenças avançadas e terminais. Surgido na Inglaterra (mais precisamente, no St. Christopher’s Hospice) na década de 1960, essa iniciativa encontra-se em franco processo de expansão no Brasil e engloba dois objetivos fundamentais: os cuidados paliativos (que revolucionaram a terapêutica de pacientes com doenças terminais) e o cuidado hospice , oferecido em locais idealizados para receber pacientes que vão morrer em um tempo não muito distante.

Na área jurídica, onde os dilemas resultantes dos direitos e deveres estabelecem os fundamentos da harmonia social, (pre)conceitos arcaicos vêm sendo reformulados a passos largos, possibilitando a introdução de novas intervenções, como as diretrizes antecipadas de vontade, ou testamento vital ( living will e health care proxies, nos Estados Unidos, e testament de vie , na França). Graças a esses documentos, inexequíveis até poucas décadas atrás, hoje é possível que uma pessoa lúcida especifique previamente os cuidados e os tratamentos que almeja receber ou refutar na hipótese de apresentar quadro de incapacidade física ou mental que lhe impeça de expressar sua vontade de forma livre e autônoma. Para isso, é habitual a nomeação de um procurador para a tomada de decisões pelo paciente. No Brasil, porém, essa é uma expressão de cidadania ainda pouco praticada.

Perspectivas de futuro

Em um momento histórico designado como Quarta Revolução Industrial 1414. Schwab K. Aplicando a quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro; 2018. , marcado por avanços tecnológicos e mudanças culturais, constata-se, paradoxalmente, que determinadas concepções continuam arraigadas na sociedade, a despeito da necessidade de serem reformuladas. Embora, nas últimas décadas, tenhamos evoluído em questões controversas referentes à terminalidade da vida humana, ainda há muito a avançar para desmistificar esse complexo fenômeno.

Não obstante toda a evolução científica e a liberdade de expressão que caracterizam a época atual, persiste o costume arcaico de evitar intervenções ou debates relacionados às múltiplas implicações da morte no cotidiano. Hans Jonas assevera que não importa para quantas doenças o homem ache cura, a mortalidade não se dobra à sua astúcia 1515. Jonas H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto; 2006. p. 32. .

Além disso, outras demandas singulares passaram a ser consideradas em razão da questão ambiental. Esse é o caso, por exemplo, da discussão sobre o destino dos corpos humanos. Segundo dados oficiais da Organização Pan- Americana da Saúde e da Organização Mundial de Saúde 1616. Associação Pan-Americana de Saúde. 10 principais causas de morte no mundo [Internet]. 2018 [acesso 15 mar 2021]. Disponível: https://bit.ly/3be6yWT
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, ocorreram aproximadamente 56,9 milhões de falecimentos em 2016, o que corresponde a 1,8 óbito a cada segundo. Esse dado demonstra a necessidade de equacionar as implicações ecológicas da finitude humana, como escassez de espaço físico para novas inumações, contaminação de lençóis freáticos e elevadas emissões de carbono associadas com o alto consumo de energia em cremações.

O imperativo de ampliar os debates sobre esse polêmico tema extrapola os limites do luto ou da autonomia em estabelecer o momento almejado para a morte. Em artigo publicado na Nature , pesquisadores da Universidade de Yale surpreenderam a comunidade científica ao descrever uma experiência em que foi possível atenuar a morte de células cerebrais, manter atividade sináptica, restaurar vasos sanguíneos e preservar parcialmente o metabolismo cerebral de suínos decapitados quatro horas antes do início do estudo 1717. Vrselja Z, Daniele SG, Silbereis J, Talpo F, Morozov YM, Sousa AMM et al. Restoration of brain circulation and cellular functions hours post-mortem. Nature [Internet]. 2019 [acesso 15 mar 2021];568:336-43. Disponível: https://go.nature.com/3jH2ymh
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. Embora esses resultados não tenham implicações clínicas imediatas, a probabilidade de resultarem em notáveis avanços na medicina e especialmente na neurologia é grande. Todavia, o mais notável é a enorme potencialidade do experimento para modificar não apenas o conhecimento hodierno, mas a sociedade como um todo. Conceitos estabelecidos há longa data e até então inquestionáveis, como o atual diagnóstico de morte encefálica e diversos outros paradigmas médicos, jurídicos, políticos e sociais, poderão ser radicalmente reformulados em um prazo ainda indefinido. Novos tempos, novos desafios.

Considerações finais

Uma sociedade que consegue interpretar a morte encontra-se estruturada para enfrentar os diversos dilemas da vida. No entanto, exorcizar aspectos anacrônicos, preconceituosos e atemorizadores desse fenômeno não é simples. Desconstruir arquétipos seculares requer motivação, persistência, respeito a ideários divergentes e, sobretudo, diálogo irrestrito, embasado em argumentações científicas. Dúvidas relevantes continuam sem respostas definitivas, como o direito à morte e o desrespeito à autonomia dos portadores de doenças incuráveis. Protelar o inevitável seguramente não é a melhor alternativa para enfrentar esses intrincados dilemas.

Os debates sobre controvérsias relacionadas à morte precisam ser ampliados a fim de abranger todos os segmentos da população, sem exclusões por faixa etária, etnia, gênero, classe social ou nível de escolaridade. Se, por um lado, pode-se considerar como indispensável o papel dos bioeticistas na condução desse processo, por outro, deve-se ressaltar a necessidade de expandir a discussão para além dos muros das universidades e das instituições de pesquisa, aproximando-a do cotidiano da população. Essa estratégia pode contribuir para a construção efetiva de uma nova realidade congruente com o futuro que aspiramos para nossa civilização.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2020
  • Revisado
    28 Set 2021
  • Aceito
    4 Out 2021
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