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Análise da pandemia e considerações bioéticas sobre o tratamento precoce

Resumo

A crise global gerada pelo vírus SARS-CoV-2, responsável pela covid-19, pode ser interpretada de diversas formas, incluindo comportamento epidêmico, ondas de impacto sobre os sistemas de saúde e consequências de medidas direta ou indiretamente ligadas ao enfrentamento da pandemia. Assim, as respostas a esses desafios devem ser integrais, contemplando os diversos níveis de prevenção. Como uma possível resposta, o tratamento precoce não deve ser visto isoladamente, mas num contexto de cuidado integral. Este trabalho apresenta formas de analisar a presente crise e os elementos éticos pertinentes ao tratamento precoce.

Bioética; Covid-19; SARS-CoV-2

Abstract

The global crisis caused by the SARS-CoV-2 virus, responsible for COVID-19, can be interpreted in different ways, including epidemic behavior, waves of impact on health systems and consequences of measures directly or indirectly linked to fighting the pandemic. Thus, the responses to these challenges must be comprehensive, covering the different levels of prevention. As a possible answer, early treatment should not be seen in isolation, but in a context of comprehensive care. This article presents ways to analyze the current crisis and the ethical elements relevant to early treatment.

Bioethics; COVID-19; SARS-CoV-2

Resumen

La crisis mundial generada por el virus del SARS-CoV-2, responsable de la covid-19, se puede interpretar de varias maneras, incluido el comportamiento epidémico, las olas de impacto en los sistemas de salud y las consecuencias de las medidas directas o indirectamente relacionadas con el enfrentamiento de la pandemia. Por lo tanto, las respuestas a estos desafíos deben ser integrales, considerando los diversos niveles de prevención. Como posible respuesta, el tratamiento temprano no debe ser visto aisladamente, sino en un contexto de atención integral. Este trabajo presenta formas de analizar la crisis actual y los elementos éticos pertinentes al tratamiento precoz.

Bioética; Covid-19; SARS-CoV-2

A crise mundial gerada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) e a emergência em saúde pública de importância nacional (Espin) 11. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 188, de 03 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 24-A, p. 1, 4 fev 2020 [acesso 10 fev 2021]. Disponível: https://bit.ly/3abGtaf
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tornaram necessário refletir acerca dos diversos aspectos éticos, econômicos, culturais, científicos e políticos envolvidos. Um dos elementos que sofreu enorme impacto político foi o tratamento em fase de replicação viral, ou “tratamento precoce”, exemplificado na Nota Informativa 9/2020-SE/GAB/SE/MS 22. Brasil. Ministério da Saúde. Nota Informativa nº 9/2020-SE/GAB/SE/MS. Orientações do Ministério da Saúde para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico de covid-19 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [acesso 10 fev 2021]. Disponível: https://bit.ly/3uLdqnq
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, do Ministério da Saúde (MS), documento que discorre sobre possíveis esquemas terapêuticos para intervenção precoce contra a covid-19 utilizados à época em vários serviços privados e públicos de saúde dentro e fora do Brasil.

Desde então, houve progressivo aumento das evidências acerca de possibilidades de conduta nas diversas fases da doença e estágios de gravidade do paciente 33. McCullough PA, Alexander PE, Armstrong R, Arvinte C, Bain AF, Bartlett RP et al. Multifaceted highly targeted sequential multidrug treatment of early ambulatory high-risk SARS-CoV-2 infection (covid-19). Rev Cardiovasc Med [Internet]. 2020 [acesso 10 fev 2021];21(4):517-30. DOI: 10.31083/j.rcm.2020.04.264

4. McCullough PA, Kelly RJ, Ruocco G, Lerma E, Tumlin J, Wheelan KR et al. Pathophysiological basis and rationale for early outpatient treatment of SARS-CoV-2 (covid-19) infection. Am J Med [Internet]. 2021 [acesso 10 fev 2021];134(1):16-22. DOI: 10.1016/j.amjmed.2020.07.003
- 55. Gautret P; Million M, Jarrot PA, Camoin-Jau L, Colson P, Fenollar F et al. Natural history of covid-19 and therapeutic options. Expert Rev Clin Immunol [Internet]. 2020 [acesso 10 fev 2021];16(12):1159-84. DOI: 10.1080/1744666X.2021.1847640 . Diante disso, este texto tem como objetivo apresentar formas de compreensão do complexo cenário que se observa e aprofundar a reflexão acerca dos elementos éticos pertinentes ao tratamento precoce da covid-19.

Compreensão da crise

Pode-se analisar o cenário atual por meio da busca de padrões no número de casos ou de mortes, identificando padrões sazonais, reativos a certas condutas da população ou reativos a medidas de prevenção. As variações da incidência têm sido denominadas de ondas epidêmicas 66. Jefferson T, Heneghan C. Covid-19: epidemic “waves”. The Centre for Evidence-Based Medicine [Internet]. 2020 [acesso 11 fev 2021]. Disponível: https://bit.ly/3BenWGi
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, 77. Kempinska-Mirolawska B, Wozniak-Kosek A. The influenza epidemic of 1889-90 in selected European cities: a picture based on the reports of two Poznań daily newspapers from the second half of the nineteenth century. Med Sci Monit [Internet]. 2013 [acesso 10 fev 2021];19:1131-41. DOI: 10.12659/MSM.889469 e podem estar ligadas a diversos eventos com nexos de causalidade mais ou menos fortes.

Contudo, há formas adicionais de se compreender a pandemia, baseadas na história natural da doença 88. Almeida Filho N, Rouquayrol, MZ. Introdução à epidemiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2006. , com o objetivo de não somente melhorar a capacidade analítica, mas também aprimorar possíveis respostas. Essas maneiras alternativas abrangem desde a prevenção primária (evitar o adoecimento) até a quaternária (evitar os danos iatrogênicos) e incluem planos de assistência integral à saúde.

Ondas de impacto no sistema de saúde

Uma possibilidade consiste em analisar os efeitos da pandemia sobre o sistema de saúde 99. Bourgeault IL, Maier CB, Dieleman M, Ball J, MacKenzie A, Nancarrow S et al. The covid-19 pandemic presents an opportunity to develop more sustainable health workforces. Hum Resour Health [Internet]. 2020 [acesso 11 fevereiro 2021];18(1):83. DOI: 10.1186/s12960-020-00529-0 , 1010. Savassi LCM, Bedetti AD, Abreu ABJ, Costa AC, Perdigão RMC, Ferreira TP. Ensaio acerca das curvas de sobrecarga da covid-19 sobre a atenção primária. JMPHC [Internet]. 2020 [acesso 11 fev 2021];12:e38. Disponível: https://bit.ly/2YzssB3
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, medindo o impacto em quatro grandes ondas ( Figura 1 ).

Figura 1
Ondas de impacto da pandemia no sistema de saúde

A primeira onda é gerada pelo impacto da própria doença, que, em sua evolução mais grave, demanda muitos dias de ventilação mecânica, consumindo grandes quantidades de oxigênio e medicamentos destinados à sedação e ao relaxamento muscular. Isso gera a necessidade constante de monitorar e fortalecer a equipe multidisciplinar desse ambiente de alta complexidade.

A segunda onda é causada pelo represamento da demanda normal de casos urgentes, de modo que a mobilização de esforços e equipamentos e a possibilidade de que profissionais da saúde adoeçam e necessitem de isolamento prejudique o atendimento aos demais pacientes. O próprio paciente, motivado pelo medo de adoecer e por orientações equivocadas, pode negligenciar o tratamento de doenças crônicas e ter complicações agudas. Essa onda demanda recursos humanos e materiais adicionais e pode ter enorme impacto sobre o sistema de saúde já sobrecarregado.

A terceira onda, causada por complicações crônicas da própria covid-19 ou de outras doenças que foram negligenciadas, pode ter impacto econômico de longo prazo sobre o sistema de saúde e as famílias. Isso ocorre porque em muitas situações os pacientes demandam uma atenção especializada, multidisciplinar e multiprofissional que requer alto investimento. Por exemplo, um paciente com retinopatia diabética pode evoluir para cegueira se não receber a devida assistência a tempo 1111. Bowling B. Kanski oftalmologia clínica: uma abordagem sistêmica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016. p. 520-38. .

Ademais, doenças crônicas e suas complicações, muitas vezes graves e incapacitantes, podem favorecer o surgimento de quadros psiquiátricos como ansiedade e depressão, que caracterizam a quarta onda, gerada pelo desenvolvimento de alterações psíquicas de menor ou maior gravidade.

Negligenciar o efeito psíquico de um processo epidêmico também ocasiona grande impacto em termos econômicos, potencializando o aumento do absenteísmo no trabalho e prejudicando a subsistência de muitas famílias. Assim, como as ondas podem ocorrer de forma relativamente simultânea, mesmo que não coincidentes, a gestão da saúde pública deve responder ao desafio, adaptando-se aos diferentes momentos de cada onda e suas interações.

Interpretação consequencialista

Uma terceira possibilidade de análise pode derivar dos níveis de impacto de uma nova tecnologia e da divisão do poder e dos fatos sociais em três esferas: política, econômica e cultural. Ela pode ser denominada de “interpretação consequencialista de análise do impacto social de uma pandemia” e tem implicações na gestão de crise com responsabilidade, ao projetar o impacto causado pela forma como a sociedade aplica tecnologias e políticas na resposta à pandemia.

Nessa interpretação, a primeira onda é a de impacto político direto de uma tecnologia, visto que, para lidar com a pandemia, diversas tecnologias foram pesquisadas e normas alteradas: modificação de leis trabalhistas para evitar desemprego e falência; auxílios financeiros emergenciais para famílias em dificuldade; mudança de processos de assistência à saúde; investimento em transferência tecnológica e fundos internacionais para desenvolver vacinas; aumento da ingerência do Estado sobre o cidadão, com o intuito de evitar a disseminação da doença; e desenvolvimento de vacinas mediante plataformas tecnológicas inovadoras. Essa onda de impacto tecnológico imediato, regulatório e político tem efeito quase instantâneo sobre o cotidiano e o poder do Estado.

A esfera política de reação se caracteriza por uma associação mais direta entre causa e efeito e, de acordo com Allenby e Sarewitz 1212. Allenby BR, Sarewitz D. The techno human condition. Cambridge: MIT Press; 2011. , pode ser atrelada ao que se denominou nível I, que é o efeito direto da intencionalidade de um ato ou tecnologia. Muitas consequências de um ato administrativo ou tecnologia nova implantada na sociedade são previsíveis e podem ser devidamente gerenciadas. Essa preocupação em checar consequências e gerenciar riscos se traduz, por exemplo, em manuais de formulação de políticas 1313. Brasil. Casa Civil da Presidência da República. Avaliação de políticas públicas: guia prático de análise ex ante. Brasília: Ipea; 2018. .

Essa primeira intervenção, entretanto, gera consequências de caráter mais tardio e menos previsível, contingenciadas pela resposta humana e pelo contexto em constante mutação. Isso leva à segunda onda de impacto social – o econômico –, equivalente ao nível II ou de complexidade sistêmica. Dessa forma, a economia sofre o efeito direto da própria doença e das ondas sobre os sistemas de saúde, bem como o impacto previsto ou imprevisto das ações, tecnologias e medidas políticas adotadas.

A indústria nacional, por exemplo, foi motivada a dar resposta à necessidade de produção de equipamentos de proteção individual e higiene, altamente demandados por causa das orientações sanitárias e das normas para o funcionamento de estabelecimentos comerciais. Com isso, entregas em domicílio se intensificaram e restaurantes reduziram sua capacidade de atendimento presencial. Se muitos empregos foram perdidos, outros foram criados como reação às novas necessidades.

O elevado consumo de determinados medicamentos gerou aumento internacional do preço de insumos farmacêuticos, dificultando processos de compra e impactando mecanismos regulatórios de importação em diversos países. A compra de equipamentos eletrônicos, como computadores pessoais e notebooks, e o desenvolvimento de programas para videoconferência sofreu grande escalada por causa do aumento do número de trabalhadores em home office .

Por fim, os componentes políticos e econômicos levam à mais imprevisível onda de impacto social: a cultural. Cada alteração tecnológica, política e econômica na sociedade pode gerar uma mudança comportamental e até mesmo civilizacional de longo prazo. Esse é o nível III, o sistêmico global, que impacta de forma difusa e sutil a própria percepção do ambiente e da sociedade.

A aceleração na busca de uma solução terapêutica eficaz nesse contexto de conflito político, por exemplo, na fase precoce ou tardia da doença, pode motivar a pesquisa bilionária de novas soluções ou o investimento em soluções antigas, mas também tem potencial para colocar em xeque toda a credibilidade depositada na ciência. Assim, instituições internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), passaram por momentos de perda de credibilidade ao tomarem como referência dados de caráter incerto, que foram publicados e posteriormente retirados, após amplo questionamento técnico e científico 1414. Mehra MR, Ruschitzka F, Patel AN. Retraction-hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of covid-19: a multinational registry analysis. Lancet [Internet]. 2020 [acesso 11 fev 2021];395(10240):1820. DOI: 10.1016/S0140-6736(20)31324-6 .

A dificuldade para adquirir insumos internacionais levou os países a revisarem seu modo de lidar com questões estratégicas nacionais, como a capacidade de produzir insumos farmacêuticos ativos e equipamentos médicos e de proteção individual. Mais do que uma mudança econômica, isso pode ter profundo impacto na geopolítica e nas relações internacionais. Ainda, políticas restritivas não somente devastaram inúmeros processos econômicos, mas também alteraram a percepção que muitos têm do próprio Estado e sua capacidade coercitiva.

Os impactos dessa terceira onda social são relativamente imprevisíveis, pois as interações que moldam a cultura de um povo são intrincadas e multifatoriais, envolvendo tudo o que pode impactar a sociedade a longo prazo. Essa forma de análise enseja uma reflexão sobre o acompanhamento de ações de resposta em termos de mudanças geradas na sociedade. É um chamado à responsabilidade.

Aspectos sociológicos e filosóficos

A última forma de análise é a abordagem baseada em aspectos sociológicos e filosóficos 1515. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2011. e abrange três dimensões da doença. A primeira é a da compreensão unidimensional ou abstrata da doença, vista como “entidade” evolutiva, de modo que se fale de sua história natural e de intervenções em diversos níveis. Há o estudo aprofundado do agente causal e de seus processos patológicos e bioquímicos, bem como o acúmulo de conhecimentos acerca da doença, transformada em “objeto de estudo”.

Uma forma bidimensional de percepção englobaria não somente a doença, entendida como objeto de estudo abstrato, mas também o corpo humano, o indivíduo. Seria, portanto, a análise da interação entre doença e organismo humano.

Uma compreensão tridimensional uniria o conhecimento acerca da doença e sua interação com o organismo humano ao fato de que este integra uma sociedade com diversos outros e apresenta uma infinidade de associações com o ambiente. Há questões morais, econômicas, políticas e culturais que envolvem o organismo humano, sadio ou não, e é nesse espaço que o Estado intervém em específico, diferentemente do que fazem os profissionais da saúde.

Com a espacialização terciária, a doença torna-se compreendida em termos epidêmicos. Espaço e tempo (…) constituem as condições para que surja a doença. Essa mudança de foco gera um conceito nascente de saúde pública, uma saúde que o Estado pode gerir e promover. Portanto, Foucault defende, o espaço mais importante em termos políticos para a emergência da clínica desloca-se do espaço abstrato das formas da doença – essências da doença – para o espaço político da sociedade 1616. Bishop JP. The anticipatory corpse: medicine, power, and the care of the dying. Notre Dame: Notre Dame Press; 2011. p. 41. Tradução livre. .

Não ter abordado outras formas de análise não significa que elas não tenham relevância ou que somente as mencionadas neste trabalho sejam importantes. Foram escolhidas as que oferecem um conjunto de ferramentas úteis a uma avaliação de contexto.

Tratamento precoce como forma de resposta

Diante desse cenário desafiador, os esforços dos sistemas de saúde em todo o mundo foram colocados à prova. Era preciso manter o sistema de saúde funcional, para não desamparar a população, e simultaneamente envidar esforços em todos os níveis de atenção à saúde e prevenção para o enfrentamento à covid-19. Nesse contexto, uma das respostas possíveis é o tratamento na fase de replicação viral da doença.

Para um cuidado integral ao paciente, devem ser promovidas ações nos diversos níveis de prevenção. No caso do tratamento precoce ou do tratamento em fase mais tardia da doença, cabe ressaltar o papel da prevenção secundária e terciária, que agem no rápido diagnóstico e possível tratamento, identificando riscos e realizando o diagnóstico diferencial para evitar o agravamento não somente da covid-19 – se possível –, mas também das demais doenças. O tratamento precoce, que demonstra multiplicidade de formas e resultados de diversos níveis científicos de qualidade, tem potencial para reduzir o risco de evolução para a forma grave da infecção.

Caso o paciente evolua para fases mais graves da doença, a terapia a ser adotada deve ser adaptada, incluindo medicamentos e medidas mais complexas para lidar com elementos inflamatórios e trombóticos, que podem comprometer o prognóstico e gerar graves sequelas. Uma prevenção secundária ou terciária adequada possibilita o diagnóstico correto e o tratamento com a maior celeridade possível, por diversos meios além do juízo clínico, como exames laboratoriais e de imagem.

A terapêutica, ou tratamento, que consiste em um dos momentos da assistência, é justamente (…) a ação ou conjunto de ações destinadas a proteger, manter ou restabelecer a saúde do paciente. Pode ser medicamentosa, cirúrgica, dietética, fisioterápica ou de qualquer outra natureza preconizada pelas ciências da saúde. Muitas vezes associam-se duas ou mais dessas ações para obter melhores resultados 1717. Baptista, R Jr. Fundamentos da saúde: as bases para uma atenção humanizada. São Paulo: Editora Senac; 2019. p. 39. .

Em caso de forte suspeita de covid-19, o tratamento precoce pode ser feito de imediato por meio do diagnóstico clínico, mesmo sem confirmação laboratorial. A noção de tratamento pode variar desde um ato contido na relação terapêutica entre médico e paciente até uma concepção mais sistêmica e complexa, como a que ocorre no Projeto Terapêutico Singular, que (…) é um conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, para um sujeito individual ou coletivo, resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar, com apoio matricial se necessário 1818. Brasil. Ministério da Saúde. Clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico singular [Internet]. 2ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2007 [acesso 11 fev 2021]. p. 40. Disponível: https://bit.ly/2ZTlQ0G
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A ênfase na precocidade do tratamento deu-se em parte pela necessidade de rever a orientação anterior, que levava os indivíduos a permanecer em suas casas até a ocorrência de dispneia, que caracteriza um quadro mais avançado e potencialmente letal da covid-19. Ademais, a baixa especificidade dos sintomas iniciais poderia gerar confusão com outras doenças, ressaltando a importância de um atendimento não somente para a intervenção precoce voltada à covid-19 e suas complicações, mas também para o possível diagnóstico e tratamento de outras condições de saúde que, ao evoluir, poderiam comprometer o prognóstico do paciente. A seguir, serão abordados elementos bioéticos ligados ao tratamento precoce da covid-19.

Informações, não maleficência e segurança do paciente

Diversas orientações foram publicadas por entes privados e públicos, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), que publicou sobre o uso de medicamentos contra a covid-19 em caráter off label 1919. Conselho Federal de Medicina. Processo-Consulta CFM nº 8/2020: Parecer CFM nº 4/2020. Considerar o uso da cloroquina e hidroxicloroquina, em condições excepcionais, para o tratamento da covid-19 [Internet]. Brasília: CFM; 2020 [acesso 11 fev 2021]. Disponível: https://bit.ly/3oCy3RI
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, e o MS, que editou notas informativas com dados e análises relevantes do ponto de vista da administração pública, disponibilizando informações capazes de qualificar o exercício autônomo da medicina 2020. Brasil. Ministério da Saúde. Manual de redação da secretaria de vigilância em saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. . Este deve considerar as melhores evidências disponíveis, a experiência prática profissional e os valores subjacentes a qualquer relação terapêutica 2121. Guyatt G, Haynes B, Jaescke R, Meade MO, Wilson M, Montori V, Richardson S. A filosofia da medicina baseada em evidências. In: Guyatt G, Rennie D, Meade MO, Cook DJ. Diretrizes para a utilização da literatura médica: fundamentos para prática clínica da medicina baseada em evidências. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2011. p. 31-7. .

Ao tratar de elementos de saúde pública de enorme impacto, um princípio que se impõe é o da não maleficência, que inclui a segurança do paciente 2222. Gracia D. Fundamentos de bioética. Madrid: Triacastela; 2008.

23. Gracia D. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Loyola; 2010.

24. Gracia D. Procedimientos de decisión en ética clínica. Madrid: Triacastela; 2008.

25. Silva FM. Implicações dos princípios de ética biomédica na saúde pública e coletiva. In: Hellman F, Verdi M, Gabrielli R, Caponi S. Bioética e saúde coletiva: perspectivas e desafios contemporâneos. Florianópolis: Dioesc, 2012. p. 65-85.

26. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical bioethics. Oxford: Oxford University Press; 2019.
- 2727. Angotti Neto H. Bioética: vida, valor e verdade. Brasília: Academia Monergista; 2019. . Assim, o ambiente de insegurança e informações conflitantes gerou a necessidade de oferecer parâmetros mínimos de segurança para opções terapêuticas que já se encontravam em uso desde os primeiros meses da pandemia.

Medicamentos de uso antigo, como cloroquina, hidroxicloroquina, dexametasona, azitromicina, ivermectina e nitazoxanida têm seu perfil de segurança e dados farmacocinéticos e de farmacodinâmica conhecidos há décadas. Contudo, se utilizados de forma errônea, podem gerar efeitos colaterais e têm o potencial de piorar o quadro de um paciente já debilitado. Dessa forma, é necessário garantir acesso à informação para que o uso de determinados medicamentos seja mais seguro, evitando impactos ainda maiores da pandemia sobre o sistema de saúde.

Há décadas determinados fármacos têm sido usados por milhares de pessoas em todo o mundo, não só para condições inflamatórias, mas em alguns casos também para doenças virais, mesmo com níveis de evidência abaixo do máximo – como também ocorre com grande parte das terapêuticas medicamentosas utilizadas em medicina 2828. Ebell MH, Sokol R, Lee A, Simons C, Early J. How good is the evidence to support primary care practice? Evid Based Med [Internet]. 2017 [acesso 11 fev 2021];22(3):88-92. DOI: 10.1136/ebmed-2017-110704 . Essa experiência de uso de medicamentos visando seus potenciais efeitos alternativos reforça a necessidade e a possibilidade de divulgar doses seguras, visto que houve ações similares em tempos anteriores, como a prescrição off label contra o vírus da chikungunya para reduzir o impacto da artrite:

apesar de inexistência de estudos de comparação de eficácia entre metotrexato e hidroxicloroquina em chikungunya, optamos por recomendar no tratamento desta fase a hidroxicloroquina como primeira escolha, por seus conhecidos efeitos anti-inflamatórios no controle da artrite e da dor musculoesquelética. Também há potencial ação antiviral, mas principalmente por ser uma droga mais segura quando comparada ao uso de metotrexato a ser prescrita por não especialistas 2929. Brasil. Ministério da Saúde. Chikungunya: manejo clínico [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [acesso 11 fev 2021]. p. 65. Disponível: https://bit.ly/3uR5NMl
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Cabe enfatizar que a preocupação com a segurança do paciente deve ser sempre reforçada pela ênfase no atendimento médico adequado, incluindo anamnese, exame físico e, conforme juízo clínico, exames complementares.

Beneficência: potencial de salvar vidas e reduzir o impacto no sistema de saúde

A beneficência se traduz pelo dever de ajudar o próximo e promover seus legítimos interesses 2626. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical bioethics. Oxford: Oxford University Press; 2019. . Sobreviver à infecção com o menor impacto possível na saúde física e mental e nas atividades cotidianas é o bem almejado e quanto mais precoce e mais efetiva a medida adotada, melhor será o potencial benefício.

Reduzir a proporção de pacientes infectados que necessitam de internação hospitalar ou que infelizmente acabam morrendo é obrigação de qualquer ação terapêutica no combate à covid-19. Mesmo com a possibilidade de obter uma forma de prevenção primária eficaz por meio de imunização (vacina) ou de medidas não medicamentosas, permanece a necessidade do diagnóstico rápido e de iniciar o tratamento o quanto antes em pacientes com a doença, principalmente se forem de grupo de risco. Ações em determinado nível de prevenção não dispensam ou tampouco evitam a adoção de medidas diversas nos demais níveis.

O diagnóstico tardio e, consequentemente, o início tardio de um tratamento, podem resultar em comprometimento sistêmico maior pela doença e pior prognóstico. Aumentar ao máximo a chance de sobrevivência do indivíduo e promover sua autonomia e qualidade de vida são objetivos essenciais de um esforço terapêutico que promove o bem do paciente de forma sistêmica 3030. Cassel EJ. The nature of suffering and the goals of medicine. New York: Oxford University Press; 2004.

31. Pellegrino ED, Thomasma DC. Para o bem do paciente: a restauração da beneficência nos cuidados da saúde. São Paulo: Loyola; 2018.
- 3232. López Quintás A. O conhecimento dos valores: introdução metodológica. São Paulo: É Realizações; 2016. . No cenário científico atual, não há justificativa para orientar o paciente a suportar a doença e procurar atendimento somente quando apresentar um sintoma de gravidade, que é a dispneia (falta de ar).

Não há consenso acerca do tratamento, mas existem diversas propostas de combinações de fármacos embasadas em achados de pesquisas em todo o mundo, com diferentes níveis de evidência e qualidade. Portanto a oportunidade do encontro terapêutico não deve ser negligenciada ou suprimida.

Assim, no contexto atual de emergência em saúde pública e em face das terapias medicamentosas reposicionadas para covid-19 e utilizadas em doses seguras conhecidas há décadas, há condição técnica, ética e profissional para prescrever uma terapia em situações mais favoráveis, ou seja, na fase precoce da doença. Isso é válido sobretudo se essa opção terapêutica ocorre por meio da manifestação da autonomia do paciente junto à autonomia e ao juízo clínico do profissional (médico assistente).

Em termos de evidências sobre o benefício dos medicamentos propostos para o tratamento precoce, considerando o cenário emergencial e o risco de morte trazido para milhões de pessoas no mundo inteiro, dados baseados em estudos observacionais consistentes 3333. Concato J, Shah N, Horwitz RI. Randomized, controlled trials, observational studies, and the hierarchy of research designs. N Engl J Med [Internet]. 2000 [acesso 11 fevereiro 2021];342(55):1887-92. DOI: 10.1056/nejm200006223422507 ou ensaios clínicos não devem ser ignorados.

Autonomia: respeito ao paciente e ao profissional da saúde

Diante da autonomia do médico para praticar a medicina baseada nas melhores evidências científicas disponíveis e em preceitos éticos focados no bem do paciente e na experiência profissional 2121. Guyatt G, Haynes B, Jaescke R, Meade MO, Wilson M, Montori V, Richardson S. A filosofia da medicina baseada em evidências. In: Guyatt G, Rennie D, Meade MO, Cook DJ. Diretrizes para a utilização da literatura médica: fundamentos para prática clínica da medicina baseada em evidências. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2011. p. 31-7. , o princípio do respeito pelo paciente evoca a possibilidade de prescrever o tratamento precoce, mesmo que ainda não haja um protocolo de caráter estável.

Apresentar as possibilidades de terapias em uso e estudo é elemento de uma consulta médica tecnicamente adequada. Portanto, diante do risco de morte de um paciente, afirmar que não há evidências sobre o tratamento precoce configura lacuna de informação e coloca em risco o desfecho do atendimento médico, restringindo o esclarecimento necessário para uma tomada de decisão consciente e responsável por parte do paciente e do médico.

O cuidado em saúde deve considerar evidências de diversos níveis, prezando pelo maior benefício possível ao paciente em um contexto de redução máxima de riscos. Assim, informar adequadamente o paciente sobre as possibilidades terapêuticas existentes com base nos diversos níveis de evidência consiste em boa prática médica, sendo um direito inalienável de quem recebe assistência médica, de necessário reconhecimento para o devido respeito à dignidade humana. Negligenciar o estudo direto da literatura científica no contexto atual pode configurar desrespeito ao verdadeiro conceito de autonomia e o que este implica: o esclarecimento que precede o plano terapêutico a ser adotado e o consentimento para sua aplicação.

O preceito de respeito pelo paciente, afirmado no Relatório Belmont e formalizado posteriormente pelo princípio bioético da autonomia – compreendida como o governo de si mesmo, livre tanto de interferências controladoras por parte de outros quanto de limitações pessoais que impeçam a expressão de escolhas 2626. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical bioethics. Oxford: Oxford University Press; 2019. –, é um elemento essencial da ética médica. Ele é demonstrado pela liberdade do médico para prescrever a terapia que julgar apropriada, desde que amparado pelo aceite do paciente e pelas melhores evidências disponíveis no momento do ato médico, utilizando todos os recursos possíveis para o bem do paciente 3535. World Medical Association. WMA Declaration of Helsinki: ethical principles for medical research involving human subjects [Internet]. Ferney-Voltaire: WMA; 2013 [acesso 11 fev 2021]. Disponível: https://bit.ly/3AlTQj1
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De fato, o cenário atual é extremamente complexo e problemático em termos sanitários, científicos, econômicos e políticos. Todavia, em face das evidências provisórias, não é recomendável proibir arbitrariamente a prescrição de medicamentos em doses seguras diante de uma pandemia com potencial letal. Pelo contrário, preza-se o respeito a uma das manifestações éticas mais consagradas da medicina: quando procedimentos comprovados não existirem ou forem ineficientes, o médico pode recorrer a intervenções não comprovadas que em seu julgamento ofereçam a esperança de salvar a vida, reestabelecer a saúde ou aliviar o sofrimento.

Esse tipo conduta deve ser seguido com ajuda especializada e consentimento informado do paciente ou seu representante legal. Quando possível, tais intervenções devem ser objeto de pesquisa, desenhada para avaliar segurança e eficácia. Em todos os casos, elas devem ser registradas e, quando apropriado, publicadas 3636. Beauchamp TL, Childress JF. Op. cit. p. 268. Tradução livre. .

Justiça: liberdade de consciência e o bem da sociedade

Ao lado da não maleficência, a justiça é um dos mais proeminentes princípios na esfera pública, orientada para resolver problemas com foco em ações de caráter coletivo 2222. Gracia D. Fundamentos de bioética. Madrid: Triacastela; 2008. , que englobem expressões e conceitos como equidade, mérito e prerrogativa. A injustiça, de forma oposta, compreende ato injusto ou de omissão que nega às pessoas benefício a que têm direito ou falha em distribuir algo de forma equânime 2626. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical bioethics. Oxford: Oxford University Press; 2019. .

Considerando o cenário atual, o tratamento precoce ocorre de forma regular em determinados serviços públicos ou privados, porém cidadãos que dependem exclusivamente dos cuidados do Sistema Único de Saúde (SUS) podem estar sendo privados dessa possibilidade por decisões administrativas restritivas. Não permitir a prescrição e a dispensação de tais medicamentos no SUS pode atentar contra princípios de equidade e integralidade, configurando falha no que se convencionou chamar de justiça distributiva.

[Esta] (…) se refere a uma distribuição justa, equitativa e apropriada no interior da sociedade, determinada por normas justificadas que estruturam os termos de cooperação social. Seu domínio inclui políticas que repartem diversos benefícios e encargos, como propriedades, recursos, taxas, privilégios, oportunidades, distribuição de comida, serviços jurídicos e serviços como sujeito de pesquisa 3737. Jonas H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; 2011. .

Perante as evidências presentes em um cenário emergencial, com uma doença potencialmente letal e capaz de gerar enorme impacto no sistema de saúde 99. Bourgeault IL, Maier CB, Dieleman M, Ball J, MacKenzie A, Nancarrow S et al. The covid-19 pandemic presents an opportunity to develop more sustainable health workforces. Hum Resour Health [Internet]. 2020 [acesso 11 fevereiro 2021];18(1):83. DOI: 10.1186/s12960-020-00529-0 e na qualidade de vida, não fornecer meios assistenciais minimamente equitativos, informando e permitindo o tratamento precoce para todos que assim desejarem, pode configurar injustiça.

Responsabilidade: decisões complexas em cenários inéditos

A responsabilidade dita uma necessidade de cautela diante de eventos inéditos e atitudes potencialmente irreversíveis. É um princípio que considera a impossibilidade de prever completamente os resultados de ações em um contexto de incerteza 3838. Jonas H. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. São Paulo: Paulus; 2013. , 3939. Sanders JM, Monogue ML, Jodlowski TZ, Cutrell JB. Pharmacologic treatments for coronavirus disease 2019 (covid-19): a Review. JAMA. 2020 [acesso 11 fev 2021];323(18):1824-36. DOI: 10.1001/jama.2020.6019 .

As diversas formas de tratamento precoce em estudo para covid-19 incluem medicamentos muito conhecidos pela comunidade terapêutica, não de uso mais recente ou ainda em estudo. Além disso, antimaláricos e vermífugos com potencial ou efetiva ação antiviral 4040. Bakhshaliyev N, Uluganyan M, Enhos A, Karacop E, Ozdemir R. The Effect of 5-day course of hydroxychloroquine and azithromycin combination on QT interval in non-ICU covid-19(+) patients. J Eletrocardiol [Internet]. 2020 [acesso 11 fev 2021];62:59-64. DOI: 10.1016/j.jelectrocard.2020.08.008 são usados há décadas e demonstraram segurança quando administrados em doses adequadas 4141. Faria NR, Claro IM, Candido D, Franco LAM, Andrade OS, Colleti TM et al. Genomic characterisation of an emergent SARS-CoV-2 lineage in Manaus: preliminary findings. Virological.org. 12 jan 2021 [acesso 11 fev 2021]. Disponível: https://bit.ly/3ljn91h
https://bit.ly/3ljn91h...
. Assim, utilizar doses bem conhecidas e recomendadas e preconizar o uso em fase inicial da doença, quando a probabilidade de dano sistêmico inflamatório ainda é pequena e o corpo está mais propenso a reagir à doença de forma eficaz, reforçam o elemento de responsabilidade do tratamento precoce.

Da perspectiva administrativa da saúde pública e das políticas públicas de saúde, o tratamento precoce não apresenta inovação substancial, desde que abordado por meio de notas informativas, pareceres e manuais. Isso é mais um elemento a reforçar o princípio da responsabilidade, avocando a continuidade em termos de ação administrativa no âmbito do Poder Executivo e de autarquias, como o CFM.

Logo, conclui-se que o risco de consequências está dentro de expectativas responsáveis, considerando que: 1) nenhuma instituição legal foi radicalmente alterada; 2) a economia não foi significativamente impactada pela recomendação – por se tratar de medicamentos de baixo custo e sem patente –, ao contrário do que ocorreu com outras medidas (como o isolamento social difuso ou a restrição radical à mobilidade); e 3) não houve impacto à cultura de publicação administrativa brasileira, já que recomendações similares foram feitas pelo CFM ou pelo MS em situações análogas.

Considerações finais

Evidências científicas definitivas podem demorar um tempo que custa muito em vidas humanas e gerar dano irreparável à sociedade. Por uma questão de ciência e humanidade, soluções amparadas por evidências de diversos níveis de confiança e qualidade e que atendem aos princípios aqui elencados podem constar no rol de atividades assistenciais e administrativas responsáveis. Portanto, a cada médico cabe justificar a seu paciente a terapia proposta, conforme sua autonomia profissional, de modo que suprimir a liberdade para buscar ou disponibilizar tratamento nas fases iniciais da doença incorre em forte risco ético.

As evidências científicas disponíveis, mesmo que em caráter provisório, ganham destaque ao se considerar a potencial evolução clínica catastrófica e muitas vezes fatal da covid-19. Além disso, o quadro de incerteza diante da identificação de novas mutações 4242. Borba MGS, Val FFA, Sampaio VS, Alexandre MAA, Melo GC, Brito M et al. Effect of high vs low doses of chloroquine diphosphate as adjunctive therapy for patients hospitalized with severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) infection. a randomized clinical trial. JAMA Netw Open [Internet]. 2020 [acesso 11 fev 2021];3(4):e208857. DOI: 10.1001/jamanetworkopen.2020.8857 reforça a necessidade de promover o bem do paciente com segurança utilizando os meios disponíveis.

A expectativa de pacientes e profissionais de exercer sua liberdade para receber e prescrever racionalmente o tratamento precoce em nada viola a liberdade dos demais, mas responde a um potencial benefício terapêutico. Por essa razão não pode ser suplantada pela distorção do uso da ciência, utilizada como pretexto para disputas políticas ou fins adversos aos da medicina. Evidências descontextualizadas, por exemplo, utilizando doses elevadas de medicamentos aplicados em momentos tardios e muitos mais graves da doença 43 não são parâmetro para desqualificar opções terapêuticas responsáveis e seguras aplicadas na fase de replicação viral.

Com ou sem comprovação máxima da efetividade de uma ou mais das diversas modalidades de tratamento em uso e pesquisa no momento, deve-se ter em mente que cada situação e fase da evolução histórica dessa crise apresenta seu próprio contexto e suas dificuldades. O desafio à capacidade técnica, científica e humanística dos médicos que assistem pacientes com covid-19 é um dos maiores de nossos tempos. Portanto cabe a cada profissional, consoante sua experiência clínica e em respeito ao seu paciente, fazer os devidos esclarecimentos e promover ao máximo princípios, virtudes e valores que regem a ética médica e favorecem o bem do paciente.

Conforme surgirem novas evidências científicas, informações atualizadas com bases éticas e técnico-científicas deverão ser publicadas pelos órgãos responsáveis, sempre objetivando o maior bem possível para a população do Brasil. Na maior crise sanitária vivida por esta geração, a evolução do conhecimento e das ações deve ser constante, assim como precisa ser permanente o respeito aos princípios que pautam a boa prática médica.

Agradecimentos

Agradecimentos à Dra. Maria Inêz Pordeus Gadelha pela leitura do trabalho e pelos comentários e críticas realizadas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2021
  • Revisado
    16 Set 2021
  • Aceito
    30 Set 2021
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