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Sigilo e privacidade das informações sobre usuário nas equipes de atenção básica à saúde: revisão

Resumos

No atendimento à saúde, a equipe multiprofissional de atenção básica tem acesso às informações de saúde do usuário como parte do cuidado. Diante disso, é oportuno levantar a questão do sigilo e da privacidade das informações no trabalho de equipe. O artigo faz revisão da literatura, com o objetivo de discutir o tema. As consultas foram realizadas nas bases de dados SciELO, Lilacs e BVS, utilizando sigilo, privacidade e confidencialidade como descritores fixos. Os artigos mais antigos reportam o assunto ao código profissional, que exclui os agentes comunitários de saúde do acesso às informações; os mais recentes introduzem o acolhimento, ao tratar do cuidado de portadores do HIV. Conclui-se que a confidencialidade é uma pactuação entre a equipe e o usuário, abrindo novas perspectivas para a atuação dos agentes e para o papel e a acessibilidade do prontuário médico.

Atenção básica em saúde; Equipe de saúde; Privacidade; Comunicação sigilosa; Acolhimento


As part of the treatment process, a multi professional primary health care team has access to the health information of a user. Such access raises questions regarding the confidentiality of this information and the privacy of the user. The present study uses a review of literature as a basis with which to discuss this issue. A search was performed of the SciELO, Lilacs and BVS databases using the fixed descriptors: secrecy, privacy and confidentiality. While earlier articles discuss the issue in the context of a professional code of conduct, excluding community health agents from access, the most recent study, concerning the care of HIV patients, is more embracing. It can be concluded that confidentiality is an arrangement between the health team and patient, creating new perspectives for the activities of community health agents and regarding access to and the role of the medical records system.

Primary Health Care; Health Team; Privacy; Confidentiality; User embracement


En la atención de la salud, el equipo multi profesional de atención primaria tiene acceso a las informaciones de salud del usuario como parte del cuidado. Esta realidad pone en discusión la cuestión del sigilo y la privacidad de las informaciones cuando se trabaja en equipo. Este artículo es una revisión de literatura con el objetivo de discutir sobre el tema. Las consultas fueron hechas en la base de datos de SciELO, Lilacs e BVS, al utilizar como descriptores fijos: sigilo, privacidad y confidencialidad. Los artículos más antiguos reportan el asunto al código profesional, excluyendo los agentes comunitarios de salud del acceso a las informaciones, mientras que los más recientes introducen el acogimiento para hablar del cuidado de los portadores del VIH. Se concluye que la confidencialidad es un pacto entre el equipo y el usuario, abriendo nuevas perspectivas para la actuación de los agentes y para el acceso y papel de los registros médicos.

Atención primaria a la salud; Equipo de salud; Privacidad; Confidencialidad


Nos modelos clássicos de atendimento à saúde, o sigilo e a privacidade das informações eram deveres do médico na sua relação com o paciente. Tratava-se de questão atinente aos códigos deontológicos das classes profissionais encarregadas de atender o paciente em suas demandas por serviços de saúde. Com a crescente introdução da assistência multiprofissional de equipes, principalmente na atenção básica – a exemplo da Estratégia Saúde da Família (ESF) –, faz-se necessário repensar a forma de lidar eticamente com informações sigilosas e privadas, quando o compartilhamento dessas informações na atenção básica é fator fundamental para que a equipe possa responsabilizar-se pelo cuidado longitudinal do usuário, que não depende apenas de um único profissional. Nesse novo panorama, como manter a confidencialidade em relação ao usuário?

O sigilo e a privacidade referem-se à maneira pela qual os profissionais devem tratar as informações colhidas no atendimento. A confidencialidade diz respeito à atitude requerida dos profissionais para lidar com as informações advindas desse relacionamento. Os três atributos – sigilo, privacidade e confidencialidade – são deveres profissionais no manuseio da informação 1. Massarollo MCKB, Saccardo DP, Zoboli ELCP. Autonomia, privacidade e confidencialidade. In: Oguisso T, Zoboli ELPC. Ética e bioética: desafios para a enfermagem e a saúde. Barueri: Manole; 2006. p. 136-52., bem como um direito dos usuários.

As equipes de atenção básica à saúde, que incluem também os agentes comunitários, têm acesso e manuseio amplos de informações sobre os usuários, fato que torna cabível a questão de como respeitar o sigilo e a privacidade dessas informações, trabalhando em uma equipe multiprofissional. A troca de informações entre usuário e profissional está a princípio ligada ao clima de confiança que se cria na relação entre ambos, relação que, segundo Teixeira 2. Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social/Abrasco; 2003. p. 89-111., depende da qualidade do acesso e da recepção do usuário no serviço, marcadas pelo estabelecimento ou não de relação pautada pelo acolhimento.

Para Franco, Bueno e Merhy 3. Franco TB, Bueno WS, Merhy EE. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso de Betim, Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública. 1999;15(2):345-53., o acolhimento constitui uma etapa do “processo de produção” de trabalho na saúde, e é por meio dele que se dá a formação do vínculo entre usuário, profissional e serviço, ocorrendo assim a “responsabilização” e a consequente resolutividade dos processos de produção de saúde. Nesse contexto de acolhimento, a privacidade das informações do usuário, compartilhadas com a equipe de saúde, é combinada como um “pacto” de confidencialidade.

Diante disso, apresenta-se a hipótese de que uma combinação entre os membros da equipe de atenção básica e o usuário, no que diz respeito ao manuseio de informações sigilosas e privadas, deve iniciar-se no momento do acolhimento e persistir durante toda a trajetória dos atendimentos, de forma a estabelecer um vínculo baseado nos preceitos éticos do respeito à autonomia e à singularidade do sujeito e do tratamento adequado das informações.

Sendo assim, o objetivo deste estudo é realizar a revisão e análise das publicações sobre o tema, bem como, a partir dos resultados obtidos, promover a discussão do problema do sigilo e privacidade no manejo de informações sobre o usuário, quando se atua em equipe multiprofissional de atenção básica.

Método

A pesquisa caracteriza-se como revisão de literatura, de caráter exploratório. Nessa metodologia investigativa, uma ferramenta útil para essa tarefa é um mapa de literatura da pesquisa sobre um tópico 4. Creswell JW. Projeto de pesquisa: métodos qualitativos, quantitativos e mistos. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2010. p. 55.. A revisão de literatura busca reunir estudos sobre determinado assunto, apresentá-los, analisá-los e compará-los, no intuito de aprofundar a compreensão a respeito do tema. Ao captar dados e compará-los com suas hipóteses, os pesquisadores podem discutir seus resultados a partir dos pontos nos quais identificam similitudes e diferenças 5. Race R. Literature Review. In: Given, LM, editor. The sage encyclopedia of qualitative research methods. Vol. 1. Thousand Oaks: Sage; 2008. p. 487-9.,6. Polit DF, Beck CT. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: avaliação de evidências para a prática da enfermagem. 7ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2011..

Foram consultados artigos disponíveis nas bases de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), utilizando “sigilo”, “privacidade” e “confidencialidade” como descritores fixos, pesquisados um de cada vez, em conjunto com os demais descritores: “acolhimento”, “vínculo”, “equipe”, “ESF”, “PSF”, “atenção básica à saúde” e “cuidado”.

Os fatores de inclusão dos trabalhos selecionados foram: pesquisas qualitativas sobre a atenção básica realizadas entre os anos de 1995 e 2013. Os fatores de exclusão dizem respeito ao fato de se tratar de pesquisas quantitativas, monografias, teses, dissertações, temáticas fora do contexto, estudos na rede hospitalar, pesquisas de revisão bibliográfica.

Resultados

Na revisão da literatura, foram encontrados apenas oito artigos que correspondem aos critérios de inclusão e de exclusão. Alguns autores se repetem em mais de um artigo, e a maioria deles recomenda que o tema específico do sigilo e privacidade na atenção básica deve fazer parte, mais visivelmente, da pauta de discussão da bioética. Para a análise dos resultados, os artigos foram organizados no quadro a seguir, de acordo com ano, nome, volume e número do periódico de publicação, título do artigo e respectivos autores.

Quadro 1
Resumo dos resultados encontrados na revisão da literatura

Os resultados encontrados por Fortes e Spinetti 7. Fortes PAC, Spinetti SR. A informação nas relações entre os agentes comunitários de saúde e os usuários do Programa de Saúde da Família. Saúde Soc. 2004 maio-ago;13(2):70-5. mostram a preocupação da equipe de saúde com a questão do gerenciamento da privacidade dos usuários feita pelos agentes comunitários de saúde (ACS), já que eles não contam com regulamentação profissional e código de ética. Os profissionais da equipe entendem que o ACS deve apenas transmitir informações simples e gerais aos usuários, não sendo do âmbito de sua competência ter acesso às informações acerca da patologia de cada paciente.

Do ponto de vista dos médicos e gerentes, o acesso ao prontuário diz respeito apenas à relação profissional-usuário, não sendo permitido aos ACS. Por outro lado, a equipe julga que o ACS deve repassar as informações dos pacientes ao médico, mesmo que eles solicitem para não contá-las. Surgiu também, como preocupação, a questão da preservação da privacidade do próprio ACS, na condição de morador de uma comunidade próxima ou da mesma comunidade em que vivem os pacientes, o que o torna praticamente vizinho desses pacientes.

Partindo dos resultados encontrados por Fortes e Spinetti 8. Fortes PAC, Spinetti SR. O agente comunitário de saúde e a privacidade das informações dos usuários. Cad Saúde Pública. 2004 set-out;20(5):1.328-33., as informações prestadas ao ACS dentro da unidade de saúde devem ser definidas pela chefia e restritas aos aspectos administrativos e organizacionais do serviço. Como os ACS não têm formação em saúde, não cabe a eles transmitir informações sobre doenças aos pacientes. Assim, as informações prestadas pelos agentes ao usuário devem restringir-se aos aspectos previamente definidos no treinamento que receberam da equipe.

Em vista disso, os dados registrados no prontuário, contendo informações privativas do usuário, não devem ser abertos aos ACS. Nota-se que os agentes compreendem não ser de sua competência o fornecimento de informações sobre patologias, tratamentos, medicamentos e interpretações de exames, além de terem clareza sobre o seu papel de auxiliar e intermediário no acesso do usuário ao serviço de saúde. Contudo, para os agentes, entender melhor o estado de saúde do usuário ajudaria na atuação desse papel.

Em estudo publicado por Zoboli e Fortes 9. Zoboli ELCP, Fortes PAC. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa Saúde da Família de São Paulo. Cad Saúde Pública. 2004;20(6):1.690-9., foram identificados e organizados três grupos de problemas éticos vividos na atenção primária, atinentes a: 1) relações entre os usuários e sua família; 2) relações entre a equipe; 3) relações com a organização e o sistema de saúde. Os autores verificaram, no discurso dos médicos, dificuldades de definir situações da rotina diária na atenção primária e destacam que os conflitos éticos são sutis, diferentes das crises vivenciadas nos hospitais.

Os autores apontam ainda que o vínculo, na condição de instrumento de trabalho da ESF, abre espaço para uma relação mais próxima, a qual, por sua vez, pode gerar dúvidas nos profissionais, que acabam tomado parte em situações desconfortáveis e constrangedoras. Eis que o sigilo se coloca como questão importante, tendo em vista a maior dificuldade de manter a privacidade em atendimentos domiciliares. Além disso, essa forma de prestação de serviço de saúde torna mais difícil definir quais informações devem ser compartilhadas em equipe. Os autores advertem que essa situação atinge principalmente os ACS, uma vez que residem na própria comunidade, sendo vizinhos das famílias atendidas.

Outra questão importante identificada pelos autores refere-se à tênue linha de conduta dos profissionais entre uma postura persuasiva nas propostas terapêuticas para o usuário, que pode ser eticamente defensável, em contraposição a uma postura coercitiva que não leva em consideração o necessário protagonismo do usuário em seu processo de recuperação. Nesse sentido, os médicos e demais integrantes da equipe da ESF devem ter como mote a produção de saúde, a autonomia e a garantia de direitos aos usuários.

Artigo de Abdalla e Nichiata 1010 . Abdalla FTM, Nichiata LYI. A abertura da privacidade e o sigilo das informações sobre o HIV/Aids das mulheres atendidas pelo Programa Saúde da Família no município de São Paulo, Brasil. Saúde Soc. 2008;17(2):140-52. menciona, como resultados de pesquisa, quatro conjuntos de questões sobre sigilo e privacidade, relacionados com mulheres portadoras de HIV: 1) revelação do diagnóstico de HIV para a usuária; 2) acolhimento e vínculo na abertura da privacidade; 3) revelação do diagnóstico de HIV aos membros da equipe do PSF; 4) discussão do caso em equipe e sigilo das informações.

O acolhimento foi indicado pelos profissionais como fator fundamental da construção do vínculo, cujo processo requer tempo e paciência por parte da equipe, bem como o estabelecimento de um acordo de confidencialidade, um pacto entre o profissional e o usuário. O acolhimento inicia-se quando ocorre o vínculo, e os profissionais o entendem como um momento de escuta para a identificação das necessidades do usuário.

Pelo relato dos profissionais no grupo de discussão focal, os autores verificaram que o diagnóstico do HIV, quando não descoberto pela equipe por meio de exames e encaminhamentos, muitas vezes é revelado pela própria usuária. Na discussão da equipe acerca do sigilo das informações, foram identificadas diferenças de opinião entre os profissionais, ao discutirem casos concretos de mulheres com HIV. Segundo os autores, um dos médicos defende a democratização das ideias, já que o PSF trabalha com a dinâmica de equipe 1515 . Abdalla FTM, Nichiata LYI. Op. cit. p. 147., querendo afirmar, ao referir-se à “democratização”, a necessidade de repensar a questão do sigilo e privacidade quando se trabalha em equipe. Os próprios ACS, embora se preocupem com o sigilo pelo fato de residirem na área de abrangência das usuárias, defendem que as situações devem ser discutidas em equipe. Contudo, todos concordam que a condição necessária para que essa discussão ocorra é o consentimento da usuária para o compartilhamento das informações sobre seu diagnóstico com a equipe 1010 . Abdalla FTM, Nichiata LYI. A abertura da privacidade e o sigilo das informações sobre o HIV/Aids das mulheres atendidas pelo Programa Saúde da Família no município de São Paulo, Brasil. Saúde Soc. 2008;17(2):140-52..

A partir de entrevistas realizadas com seis mulheres portadoras do vírus HIV e usuárias de um serviço de atendimento especializado (SAE), bem como da discussão ética acerca da privacidade e autonomia do sujeito, Ferreira e Nichiata 1111 . Ferreira FC, Nichiata LYI. Mulheres vivendo com Aids e os profissionais do Programa Saúde da Família: Revelando o diagnóstico. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):483-9. levantam duas categorias analíticas indicadoras dos motivos que levam ou não a usuária do SAE a revelar seu diagnóstico de HIV a um ou mais profissionais do Programa Saúde da Família (PSF). São situações favoráveis à revelação: 1) quando o diagnóstico é feito na própria unidade, ocorrendo um compartilhamento decorrente do próprio diagnóstico; 2) quando a informação for relevante ao tratamento, por se sentir mais bem atendida como portadora do HIV; 3) quando estabelece vínculo com o(s) profissional(is), especialmente o ACS, adquirindo confiança neles em decorrência do esclarecimento das dúvidas e informações sobre seus direitos como usuária do serviço; 4) quando tem certeza da inexistência de sentimento de pena por parte do profissional.

Em contrapartida, os autores identificaram as situações em que as usuárias não revelam o diagnóstico aos profissionais do PSF: 1) quando sentem medo e insegurança por alguma atitude inadequada do profissional; 2) quando desconhecem ou têm informações errôneas sobre o papel do PSF; 3) quando desconfiam de uma possibilidade de quebra de sigilo por parte do profissional do PSF; e/ou 4) quando utilizam outro serviço e julgam não ser necessário o atendimento da equipe do PSF.

Estudo de Seoane e Fortes 1212 . Seoane AF, Fortes PAC. A percepção do usuário do Programa Saúde da Família sobre a privacidade e a confidencialidade de suas informações. Saúde Soc. 2009;18(1):42-9. mostra o ponto de vista do usuário da atenção básica sobre questões importantes da atuação do ACS na comunidade e como integrante da equipe de Saúde da Família. Fica claro que o ACS é tido como facilitador do acesso do usuário ao serviço, não havendo nenhum depoimento que expressasse incômodo quanto a isso. Muitas vezes é o agente que promove o vínculo do usuário com os demais profissionais da equipe, atuando como intermediário no acesso às residências dos usuários.

No entanto, quando se trata das informações transmitidas ao ACS, nota-se certa diversidade de opiniões entre os usuários. Alguns pensam em limitar as informações a esse profissional, não confiando a ele aspectos referentes à sua patologia. Outros não se importam em relatar ao ACS tudo o que diz respeito à sua saúde, e têm ciência de que aquilo que disserem ao ACS poderá ser compartilhado com a equipe de profissionais.

Ferreira, Silva, Zanolli e Varga 1313 . Ferreira RC, Silva RF, Zanolli MB, Varga CRR. Relações éticas na atenção básica em saúde: a vivência dos estudantes de medicina. Cienc Saúde Colet. 2009;14(Supl.1):1.533-40. pesquisam a percepção dos acadêmicos de medicina acerca das relações éticas envolvidas nas ações de estágio em saúde na comunidade. Nas análises das falas, apareceram três categorias: 1) a importância da formação ética e profissional na realidade da atenção básica em saúde (ABS); 2) confidencialidade da informação no desenvolvimento do sigilo profissional médico; 3) as relações interpessoais na formação ética do estudante de medicina. O aprendizado de relações éticas nesse nível de ABS é apontado, desde o início, como importante pelos estudantes, que, apesar disso, demonstram dificuldade em definir as situações nas quais é necessário partilhar informações.

Bellenzani e Mendes 1414 . Bellenzani R, Mendes RF. Sigilo na atenção em DST/Aids: do consultório aos processos organizacionais. Polis e Psique. 2011; 1(número temático):140-65. avaliam, em seu estudo, o tratamento dado à questão do sigilo nos processos de trabalho em serviço especializado em HIV/Aids. Os autores mostram que a equipe profissional considerou o tema do sigilo e privacidade fator de grande importância para a oferta de serviço de qualidade e humanizado. Pela natureza do atendimento prestado, o serviço preocupou-se em incluir outros tipos de atendimento, a fim de evitar a classificação discriminatória e a estigmatização dos usuários pela população do município, considerado pequeno.

Em contrapartida ao depoimento dos profissionais sobre a importância do sigilo, durante a observação do cotidiano do serviço, foram identificadas situações de desrespeito profissional ao direito do usuário ao sigilo. Esse desrespeito foi evidenciado tanto na busca por atendimento quanto na realização de exames. Suas causas podem ser atribuídas à desorganização do serviço e à insuficiente capacitação para lidar com situações delicadas como essas, que podem levar o profissional a revelar inadvertidamente aspectos concernentes à privacidade sexual do usuário ou de terceiros (inclusive quando esses não estão presentes), expondo-o a julgamento moral por parte de quem recebeu a informação, que pode ser até mesmo um familiar.

Percebeu-se, no estudo, que a noção de sigilo por parte dos profissionais daquele serviço limitava-se a não revelar o nome das pessoas que eram portadoras do vírus HIV. Contudo, o fluxo da entrega dos resultados dos exames sorológicos e demais rotinas de trabalho do serviço, tal como a utilização de transporte de usuários por veículos identificados com o programa DST/Aids, deixavam brechas para a exposição do paciente a situações de constrangimento e até mesmo de quebra de sigilo e privacidade, ainda que indiretamente.

Discussão

Nas análises dos dados bibliográficos selecionados na literatura, surgiram três grandes eixos temáticos inter-relacionados sobre o sigilo e privacidade das informações: o primeiro diz respeito ao prontuário do paciente; o segundo relaciona-se ao agente comunitário de saúde e o terceiro refere-se ao acolhimento como ferramenta de formação de vínculo.

Quanto ao primeiro aspecto, o prontuário do paciente, verificou-se, pela análise, a importância de seu preenchimento pelos membros da equipe, do tipo de informação que deve conter e de quem pode ter acesso a ele. No segundo aspecto, relacionado ao ACS, identificou-se a importância de definir com precisão quais informações deve coletar e quais não deve, como repassar ou comunicar essas informações à equipe e qual é seu nível de acesso ao prontuário. O terceiro eixo temático, o acolhimento, foi identificado como ferramenta de formação de vínculo centrada no usuário e apontado como momento oportuno para trabalhar o sigilo e a privacidade das informações e, por isso, o contexto ideal para pactuar seu compartilhamento pela equipe multiprofissional.

Os primeiros artigos 7. Fortes PAC, Spinetti SR. A informação nas relações entre os agentes comunitários de saúde e os usuários do Programa de Saúde da Família. Saúde Soc. 2004 maio-ago;13(2):70-5.,8. Fortes PAC, Spinetti SR. O agente comunitário de saúde e a privacidade das informações dos usuários. Cad Saúde Pública. 2004 set-out;20(5):1.328-33. defendem o não acesso dos agentes ao prontuário e às informações sobre as patologias dos usuários, argumentando que os ACS não são de fato profissionais da saúde, por carecerem de um código de ética profissional que os obrigue juridicamente ao sigilo. A análise e a exclusão dos ACS do acesso às informações caracterizam-se por uma perspectiva legal de código profissional. Os próprios estudantes de medicina descobrem o valor positivo do aprendizado prático de relações éticas, mas têm dificuldade de definir como lidar com as informações na atenção básica, porque seu imaginário profissional é pautado por aqueles deveres deontológicos que se inscrevem no código profissional 1313 . Ferreira RC, Silva RF, Zanolli MB, Varga CRR. Relações éticas na atenção básica em saúde: a vivência dos estudantes de medicina. Cienc Saúde Colet. 2009;14(Supl.1):1.533-40..

Os artigos mais recentes apresentam outro ponto de vista 1010 . Abdalla FTM, Nichiata LYI. A abertura da privacidade e o sigilo das informações sobre o HIV/Aids das mulheres atendidas pelo Programa Saúde da Família no município de São Paulo, Brasil. Saúde Soc. 2008;17(2):140-52.,1111 . Ferreira FC, Nichiata LYI. Mulheres vivendo com Aids e os profissionais do Programa Saúde da Família: Revelando o diagnóstico. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):483-9.,1414 . Bellenzani R, Mendes RF. Sigilo na atenção em DST/Aids: do consultório aos processos organizacionais. Polis e Psique. 2011; 1(número temático):140-65. ao tratar, por exemplo, do modo de lidar com informações de portadores do HIV, não assumindo a abordagem legal do código de ética profissional, mas sim a perspectiva do acolhimento como facilitador de um ambiente de confiança, necessário para a pactuação entre usuários e profissionais 2. Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social/Abrasco; 2003. p. 89-111.. Buscam trazer formas mais satisfatórias de abordagem e manuseio da informação quando apresentam situações vivenciadas em serviços de atendimento a pessoas com HIV, como é o caso dos estudos de 2008 1010 . Abdalla FTM, Nichiata LYI. A abertura da privacidade e o sigilo das informações sobre o HIV/Aids das mulheres atendidas pelo Programa Saúde da Família no município de São Paulo, Brasil. Saúde Soc. 2008;17(2):140-52.,1111 . Ferreira FC, Nichiata LYI. Mulheres vivendo com Aids e os profissionais do Programa Saúde da Família: Revelando o diagnóstico. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):483-9.. Entretanto, esses trabalhos também apontam críticas quanto à organização dos serviços, que, embora assumam um discurso de humanização e acolhimento, apresentam falhas na abordagem profissional, expondo os usuários à quebra de sigilo das informações, justamente por não conseguirem de fato promover no cotidiano dos atendimentos ações que estejam de acordo com as necessidades éticas do serviço.

Ao analisar a literatura, percebeu-se a necessidade de uma abordagem mais adequada quando se trata do manuseio das informações necessárias ao trabalho do grupo multiprofissional encarregado do cuidado dos usuários. Esse é o caso da atenção básica, serviço caracterizado por práticas em equipe que dependem da ativa colaboração dos ACS. Nesse sentido, os agentes são membros da equipe que, em suas visitas domiciliares, têm acesso a informações confidenciais que observem e por meio de conversas com os usuários. Às vezes, eles sabem mais coisas sobre o estado geral do usuário que os próprios profissionais da saúde. Por isso, a questão da confidencialidade precisa ser mencionada e discutida nas reuniões da equipe, para permitir a construção e pactuação da responsabilidade quanto a essas informações compartilhadas.

A perspectiva legal do código de ética profissional mostra-se insuficiente para discutir esse problema quando se trabalha em equipe multiprofissional e se utiliza uma abordagem longitudinal de cuidado pela vida, aspectos para os quais o único modo de lidar com a questão da confidencialidade só pode ser o clima de acolhimento, confiança e vínculo. A perspectiva legal tem como foco os deveres expressos no código profissional, enquanto que a abordagem do acolhimento está centrada no bem-estar e nos direitos do usuário, com vistas a definição e pactuação do compartilhamento das informações.

O detentor de direito sobre o prontuário é o usuário, que deverá saber e definir quem pode ter acesso a ele na atenção básica. Como a atenção básica trabalha em equipe e com uma visão ampliada de saúde, o prontuário poderá e deverá incluir todas aquelas informações – mesmo não diretamente clínicas – que consideradas imprescindíveis no cuidado longitudinal do usuário. Nesse sentido, o agente poderá trazer informações pertinentes a esse cuidado e que, por isso mesmo, devem fazer parte do prontuário. Assim, com a devida anuência do usuário interessado, o ACS poderá ter acesso ao prontuário e ajudar em seu preenchimento. Mas isso tudo necessita ser discutido em equipe, como forma de educação permanente, e pactuado na construção de uma responsabilização sanitária do coletivo profissional do qual também faz parte o agente.

Nesse sentido, a Política Nacional de Atenção Básica de 2012 pauta a educação permanente como resposta à exigência de maior capacidade de análise, intervenção e autonomia para o estabelecimento de práticas transformadoras, a gestão das mudanças e o estreitamento dos elos entre concepção e execução do trabalho 1616 . Ministério da Saúde (Brasil). Política Nacional de Atenção Básica. [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2012 [acesso 26 fev 2015]; p. 38. Disponível: http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/pnab.pdf
http://189.28.128.100/dab/docs/publicaco...
. O desafio e as exigências de sigilo e privacidade das informações em uma equipe multiprofissional de atenção básica é um desses elos de necessário estreitamento entre o modelo de atenção proposto, concepção ampliada de saúde e trabalho em equipe, e as práticas transformadoras de atendimento. Essa perspectiva permite identificar, discutir e enfrentar os nós críticos desse novo modelo, entre os quais o sigilo e privacidade das informações em uma equipe multiprofissional, estimulando experiências inovadoras na gestão do cuidado e dos serviços de saúde 1717 . Ministério da Saúde (Brasil). Op. cit. p. 39..

Considerações finais

Os resultados da revisão sistemática demonstram que houve, na discussão do sigilo e privacidade das informações na prática da atenção básica, um gradativo transpasso da perspectiva legal do código profissional, com foco nos deveres do profissional individualizado, para a abordagem do acolhimento, centrada nos direitos do usuário e no trabalho multiprofissional em equipe. Quando, na atenção básica, se parte de uma visão ampliada de saúde e da prática em equipe, instaura-se nova perspectiva que permite repensar, com base em outro paradigma, a questão da confidencialidade, tendo em vista, especialmente no que tange a seus aspectos práticos, o preenchimento e a função do prontuário, já que que esse documento pode incluir informações do usuário que não sejam puramente clínicas, bem como seu consequente acesso por parte dos ACS. Essa diferença de enfoque na análise do sigilo e privacidade na prática da atenção básica descortina perspectivas diversas entre a ética profissional e a bioética no equacionamento de questões éticas: a primeira está mais centrada nos deveres do código profissional da área de atuação, ao passo que a segunda não se caracteriza por uma perspectiva legal, ao levar em consideração outros elementos contextuais e subjetivos na discussão do problema.

Referências

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    Ministério da Saúde (Brasil). Op. cit. p. 39.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2014
  • Revisado
    17 Fev 2015
  • Aceito
    27 Fev 2015
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