Acessibilidade / Reportar erro

Autonomia da pessoa com problema de álcool: consentimento informado

Resumo

O consentimento livre e esclarecido, como forma de garantir envolvimento e participação em tratamento, é parte da abordagem terapêutica à pessoa com problemas relacionados ao uso de álcool. O valor ético central da autonomia e sua imanência para o consentimento informado apresenta desafios ético-clínicos no caso de pessoa que busca tratamento em situação de coerção, ansiedade ou depressão. Entre abril de 2018 e junho de 2019, conduziu-se estudo observacional longitudinal prospetivo que incluiu 150 pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool assistidas em unidade especializada de tratamento. O objetivo foi verificar se o consentimento com interferência de coerção, perturbação de ansiedade ou depressão determina a participação terapêutica. A ausência de coerção judicial e sintomatologia ansiosa e a maior valorização da perceção de autonomia no consentimento informado relacionaram-se com a participação. Propõem-se contributos para reforçar a prática do consentimento informado assente no reconhecimento e promoção da autonomia.

Consentimento livre e esclarecido; Bioética; Transtornos relacionados ao uso de álcool; Participação do paciente; Coerção; Transtornos de ansiedade; Depressão

Abstract

Informed consent, as a way to ensure involvement and treatment adherence, is part of the therapeutic approach to individuals with alcohol-related disorders. Autonomy, as a core ethical value, and its immanence for informed consent presents ethical-clinical challenges in the case of individuals seeking treatment due to coercion, anxiety, or depression. Between April 2018 and June 2019, a prospective longitudinal observational study was conducted with 150 people with alcohol-related disorders attending a specialized treatment facility. The goal was to verify whether consent obtained under coercion, or influenced by anxiety disorder or depression determines therapeutic participation. Absence of judicial coercion and anxious symptomatology and the greater value placed on perceived autonomy in informed consent were related to participation. The study proposes contributions to strengthen the practice of obtaining informed consent based on the recognition and promotion of autonomy.

Informed consent; Bioethics; Alcohol-related disorder; Patient participation; Coercion; Anxiety disorder; Depression

Resumen

El consentimiento informado, que garantiza comprometimiento y participación en el tratamiento, forma parte del enfoque terapéutico del manejo de la persona con problemas relacionados al consumo de alcohol. El valor ético de la autonomía y su inmanencia para el consentimiento informado tiene desafíos ético-clínicos en el caso de personas que buscan tratamiento en situación de coerción, ansiedad o depresión. Entre abril de 2018 y junio de 2019 se realizó un estudio observacional longitudinal prospectivo con 150 personas con problemas relacionados al consumo de alcohol, asistidas por un centro de tratamiento especializado. Este estudio pretendió confirmar si el consentimiento por coerción, trastorno de ansiedad o depresión influye en la participación terapéutica. La ausencia de coerción judicial y de síntomas ansiosos, así como la mayor autonomía en el consentimiento se relacionaron con la participación. Se proponen aportes para reforzar la práctica del consentimiento informado desde el reconocimiento y promoción de la autonomía.

Consentimiento informado; Bioética; Transtorno relacionado con alcohol; Participación del paciente; Coerción; Transtornos de Ansiedad; Depresión

Os transtornos relacionados ao uso de álcool podem levar a um conjunto de consequências físicas, mentais e sociais que não afeta apenas o indivíduo, mas também a família, a sociedade 11. Mello LM, Barrias J, Breda J. Álcool e problemas ligados ao álcool em Portugal [Internet]. Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2001 [acesso 27 set 2022]. Disponível: https://bit.ly/3uxfAYC
https://bit.ly/3uxfAYC...
e todos aqueles que, direta ou indiretamente, estão implicados no sofrimento de quem sofre com este problema. As repercussões desse transtorno têm peso significativo na forma como a pessoa acorre a tratamento e se envolve no processo terapêutico.

Individualmente, o álcool afeta todos os sistemas e órgãos. São frequentes, também, as perturbações de ansiedade e a depressão induzidas pelo álcool ou que antecedem o seu consumo 22. Boden JM, Fergusson DM. Alcohol and depression. Addiction [Internet]. 2011 [acesso 27 set 2022]; 106(5):906-14. DOI: 10.1111/j.1360-0443.2010.03351.x,33. Lai HMX, Sitharthan T, Huang QR. Exploration of the comorbidity of alcohol use disorders and mental health disorders among inpatients presenting to all hospitals in New South Wales, Australia. Subs Abus [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];33(2):138-45. DOI: 10.1080/08897077.2011.634967. Nas dimensões social e familiar, são significativas as ocorrências de perturbação das relações pessoais, de criminalidade e sinistralidade rodoviária, bem como de absentismo laboral relacionados ao uso de álcool 44. Hernández M, Fuentes J. Aspectos sociales de la evalución diagnóstica del alcoholismo. In: Usieto E, Caviedes S, Martinez G., Hermida J. Manual SET de alcoholismo. Panamá: Editorial Medica Panamericana; 2003. p. 131-60..

O tratamento da pessoa com problema de álcool requer, de maneira geral, a participação em um processo terapêutico, tendo em vista o autocuidado autónomo de longo prazo, a recuperação e a qualidade de vida 55. Chi F, Parthasarathy S, Mertens J, Weisner CM. Continuing care and long-term substance use outcomes in managed care: early evidence for a primary care-based model. Psychiatr Serv [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];62(10):1194-200. DOI: 10.1176/ps.62.10.pss6210_1194,66. Haug S, Schaub MP. Treatment outcome, treatment retention, and their predictors among clients of five outpatient alcohol treatment centres in Switzerland. BMC Public Health [Internet]. 2016 [acesso 27 set 2022];16(581):1-10. DOI: 10.1186/s12889-016-3294-4. O envolvimento com esse processo, fator importante para o sucesso do tratamento 55. Chi F, Parthasarathy S, Mertens J, Weisner CM. Continuing care and long-term substance use outcomes in managed care: early evidence for a primary care-based model. Psychiatr Serv [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];62(10):1194-200. DOI: 10.1176/ps.62.10.pss6210_1194, é aspecto central da abordagem terapêutica e motivo de preocupação dos profissionais, com evidências clínicas e científicas a indicar que a pessoa que sofre de alcoolismo costuma recusar ou abandonar precocemente o tratamento 77. Brorson HH, Arnevik ES, Rand-Hendriksen K, Duckert F. Drop-out from addiction treatment: a systematic review of risk factors. Clin Psychol Rev [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];33(8):1010-24. DOI: 10.1016/j.cpr.2013.07.007
https://doi.org/10.1016/j.cpr.2013.07.00...

8. Rehem J, Allamani A, Aubin HJ, Della Vedova R, Elekes Z, Frick U et al. People with alcohol use disorders in specialized care in eight different European countries. Alcohol [Internet]. 2015 [acesso 27 set 2022];50(3):310-18. DOI: 10.1093/alcalc/agv009
https://doi.org/10.1093/alcalc/agv009...
-99. Hell ME, Nielsen AS. Does patient involvement in treatment planning improve adherence, enrollment and other treatment outcome in alcohol addiction treatment? A systematic review. Addict Res Theory [Internet]. 2020 [acesso 27 set 2022];28(6):537-45. DOI: 10.1080/16066359.2020.1723083.

O consentimento informado (CI), como forma de garantir o envolvimento e obter a participação no tratamento, é parte da terapêutica de pessoas com perturbações relacionada ao uso de álcool 1010. Pedersen R, Hofmann B, Mangset M. Patient autonomy and informed consent in clinical practice. Tidsskr Nor Laegeforen [Internet]. 2007 [acesso 27 set 2022];127(12):1644-7. Disponível: https://bit.ly/3FMUwnA
https://bit.ly/3FMUwnA...
,1111. Walker R, Logan TK, Clark JJ, Leukefeld C. Informed consent to undergo treatment for substance abuse: a recommended approach. J Subst Abuse Treat [Internet]. 2005 [acesso 27 set 2022];29(4):241-51. DOI: 10.1016/j.jsat.2005.08.001. Seu objetivo é garantir o respeito pela dignidade humana e afirmar a autonomia como valor ético primordial da relação entre profissional e paciente. “Autorregulação e integração em exercício” 1212. Ryan RM, Deci E, Vansteenkiste M. Autonomy and autonomy disturbances in self-development and psychopathology: research on motivation, attachment, and clinical process. In: Cicchetti D, organizador. Developmental psychopatoly: theory and method [Internet]. Hoboken: Wiley; 2016 [acesso 27 set 2022]. p. 385-433. Disponível: https://bit.ly/3HrTyyf
https://bit.ly/3HrTyyf...
, a autonomia é marca do “verdadeiro self1313. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed; 1983. p. 135., que precisa da experiência – e, necessariamente, da experiência vivida na relação humana – como possibilidade de existência.

A autonomia é fundamental para o desenvolvimento e funcionamento psicológico saudável. As restrições a seu livre exercício, experimentadas em relações passadas e atuais (como ocorreu no recente período pandémico, por exemplo), podem influenciar na emergência ou descompensação da conduta aditiva, entendida como tentativa de alívio para o sofrimento de perda identitária 1414. Khantzian EJ. Addiction as a self-regulation disorder and the role of self-medication. Addiction [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];108(4):668-9. DOI: 10.1111/add.12004.

Quando se trata de consentir com um procedimento assistencial 1515. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5th ed. Oxford: Oxford University Press; 2001., a perceção da autonomia pessoal é pressuposto básico. Por meio dela, é possível fazer frente às influências externas ou internas que impactam as condições essenciais à tomada de decisão: a voluntariedade e a capacidade de refletir, com base nas informações recebidas, sobre riscos e benefícios das possíveis modalidades terapêuticas, bem como sobre as eventuais consequências de não fazer o tratamento.

No tratamento da pessoa que sofre de transtornos relacionados ao uso de álcool, devem ser levadas em conta a vivência subjetiva das pressões externas para levá-la a entrar ou a manter-se em tratamento, bem como a perturbação de ansiedade ou a depressão. Estes fatores podem interferir na perceção da autonomia e mesmo na tarefa de obter consentimento ao tratamento.

Frequentemente, a pessoa acorre a tratamento sob inúmeras estratégias sociais de controlo – de tipo legal, formal ou informal 1616. Klag S, O’Callaghan F, Creed P. The use of legal coercion in the treatment of substance abusers: an overview and critical analysis of thirty years of research. Subst Use Misuse [Internet]. 2005 [acesso 27 set 2022];40(2):1777-95. DOI: 10.1080/10826080500260891 –, que podem conter um elemento de coerção. Esta pode ser definida como a pressão externa que expressa uma ameaça que coloca a pessoa numa situação pior se recusar o tratamento 1717. Molodynski A, Turnpenny L, Rugkasa J, Burns T, Moussaoui D. Coercion and compulsion in mental healthcare: an international perspective. Asian J Psychiatr [Internet]. 2014 [acesso 27 set 2022];8:2-6. DOI: 10.1016/j.ajp.2013.08.002

18. Rhodes MR. The nature of coercion. J Value Inq [Internet].2000 [acesso 27 set 2022];34(2):369-81. DOI: 10.1023/A:1004716627533
-1919. Szmukler G, Appelbaum PS. Treatment pressures, leverage, coercion, and compulsion in mental health care. J Ment Health [Internet]. 2008 [acesso 27 set 2022];17(3):233-44. DOI: 10.1080/09638230802052203. A coerção pode traduzir-se na perceção de uma imposição 1818. Rhodes MR. The nature of coercion. J Value Inq [Internet].2000 [acesso 27 set 2022];34(2):369-81. DOI: 10.1023/A:1004716627533,2020. Wendler D, Wertheimer A. Why is coerced consent worse than no Consent and deceived consent? J Med Philos [Internet]. 2017 [acesso 27 set 2022];42(2):114-31. DOI: 10.1093/jmp/jhw064, fazendo-se acompanhar da intensificação de reações emocionais, que podem interferir com o senso de autonomia pessoal e dificultar as decisões de aceitar ajuda ou confiar nos outros 2121. Wolfe S, Kay-Lambkin F, Bowman J, Childs S. To enforce or engage: the relationship between coercion, treatment motivation and therapeutic alliance within community-based drug and alcohol clients. Addict Behav [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];38(5):2187-95. DOI: 10.1016/j.addbeh.2013.01.017.

As interferências sobre a expressão da autonomia podem ser adensadas, ainda, quando a pessoa acorre a tratamento perturbada devido à ansiedade ou com sintomas depressivos. A pessoa adita ao álcool que sofre devido à ansiedade pode vivenciar, como um perigo acrescido, o risco da incerteza associado à escolha da modalidade terapêutica e à decisão de fazer tratamento, mostrando-se, no encontro relacional, impulsiva e com decisões irrefletidas. Já o sofrimento depressivo pode adensar os sentimentos de incapacidade e desesperança, mobilizando respostas de desinteresse pelos valores pessoais e relacionais e pelo tratamento.

Podem, ainda, surgir dificuldades de comunicação relacionadas à ansiedade – o que pode afetar a retenção de informações – ou à depressão, o que tende a diminuir os processos intelectuais, mesmo que não haja evidências clínicas ou de pesquisa que mostrem que estas pessoas deveriam ser consideradas incompetentes para fornecer consentimento ao tratamento 1111. Walker R, Logan TK, Clark JJ, Leukefeld C. Informed consent to undergo treatment for substance abuse: a recommended approach. J Subst Abuse Treat [Internet]. 2005 [acesso 27 set 2022];29(4):241-51. DOI: 10.1016/j.jsat.2005.08.001,2222. Amer AB. Informed consent in adult psychiatry. Oman Med J [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];28(4):228-31. DOI: 10.5001/omj.2013.67.

O direito à autonomia do paciente é eticamente expresso pelo direito de recusa ao tratamento. O desafio ético dos profissionais, portanto, é respeitar a autonomia na procura do consentimento, reconhecendo que a participação da pessoa no processo terapêutico é indispensável 55. Chi F, Parthasarathy S, Mertens J, Weisner CM. Continuing care and long-term substance use outcomes in managed care: early evidence for a primary care-based model. Psychiatr Serv [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];62(10):1194-200. DOI: 10.1176/ps.62.10.pss6210_1194,66. Haug S, Schaub MP. Treatment outcome, treatment retention, and their predictors among clients of five outpatient alcohol treatment centres in Switzerland. BMC Public Health [Internet]. 2016 [acesso 27 set 2022];16(581):1-10. DOI: 10.1186/s12889-016-3294-4. No contexto do cuidado prestado ao outro, o respeito pela autonomia implica sua promoção e o favorecimento dos recursos pessoais e contextuais para a tomada de decisão como condição para assegurar o seu exercício. Esse direito é consignado, de forma expressa, no consentimento livre e esclarecido prévio ao tratamento 1515. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5th ed. Oxford: Oxford University Press; 2001.,2323. Joffe S, Manocchia M, Weeks JC, Cleary PD. What do patients value in their hospital care? An empirical perspective on autonomy centred bioethics. J Med Ethics [Internet]. 2003 [acesso 27 set 2022];29(2):103-8. DOI: 10.1136/jme.29.2.103

24. Racine E, Rosseau-Lesage S. The voluntary nature of decision-making in addiction: static metaphysical view versus epistemologically dinamic views. Bioethics [Internet]. 2017 [acesso 27 set 2022];31(5):349-59. DOI: 10.1111/bioe.12356
-2525. Goldim JR, Fernandes MS, Pechansky F. Ethical, legal and social issues related to alcohol and drug research. Curr Opin Psychiatry [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];24(3):181-85. DOI: 10.1097/YCO.0b013e32834593bc.

O respeito pela autonomia na procura do consentimento significará, então, não apenas observar que a pessoa não sofre de alguma condição clínica que compromete a capacidade para compreender e decidir, mas também atender às vivências da sua condição e do tratamento que interferem na expressão do self com competências de autonomia.

O medo de parar o consumo, de recair ou de confiar na relação de cuidado, mobilizado pela condição pessoal e intensificado pela relação com pessoas e situações dão sentido ao modo como muitos pacientes respondem negativamente ou desenvolvem atitudes erráticas. Essas respostas são uma forma de evitar sentimentos dolorosos de incapacidade, de autodesvalorização ou de culpa por perdas afetivas reais ou imaginárias, que acabam por afetar as perceções e os julgamentos mais precisos a respeito da sua condição e do tratamento, incluindo de suas consequências futuras 2626. Barger B, Derrybery WP. Do negative mood states impact moral reasoning? J Moral Educ [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];42(4):443-59. DOI: 10.1080/03057240.2013.809517

27. Braude H, Kimmelman J. The ethics of managing affective and emotional states to improve informed consent: autonomy, comprehension, and voluntariness. Bioethics [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022]; 26(3):149-56. DOI: 10.1111/j.1467-8519.2010.01838.x

28. Carmona-Pereira M, Clark L, Young L, Pérez-Garcia M, Verdejo-Garcia A. Impaired decoding of fear and disgust predicts utilitarian moral judgment in alcohol-dependent individuals. Alcohol Clin Exp Res [Internet]. 2014 [acesso 27 set 2022];38(1):179-85. DOI: 10.1111/acer.12245
-2929. Krishnakumar S, Rymph D. Uncomfortable ethical decisions: the role of negative emotions and emotional intelligence in ethical decision-making. J Manag Issues [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];35(3):321-44. Disponível: https://bit.ly/3FI8tD9
https://bit.ly/3FI8tD9...
.

Mais que liberdade para autorizar eventuais exames complementares de diagnóstico e a modalidade de tratamento livre e informadamente escolhidos, o CI pressupõe a autonomia que se enriquece de imaginar percursos alternativos e, também, a que seleciona o encontro relacional de cuidado como via adequada para a autorrealização satisfatória. Isso favorece a capacitação da pessoa para o domínio de si mesma e de sua relação com o meio.

A visão que coloca o sofrimento humano no centro do fenómeno aditivo apela, assim, a uma ética relacional e do cuidado assente na “solicitude” 3030. Ricoeur P. Soi-même comme un autre. Toulon: Éditions du Seuil; 1990. p. 224. – a entrega do terapeuta à escuta empática da subjetividade oferecida pelo outro. A bússola orientadora desta relação de reciprocidade é a capacidade de a pessoa estimar-se a si própria e o reconhecimento da autonomia de cada um na alteridade.

Alicerçado na ideia de que a autonomia, mais do que racionalidade e independência, é a subjetividade do indivíduo na relação humana e na interdependência, o CI perspetiva-se como um processo dialógico empático entre paciente e cuidador. Não envolve apenas os aspetos cognitivos, mas também os emocionais, relacionais e sociais da tomada de decisão, assentes no reconhecimento mútuo do self com competências de autonomia como elemento constituinte do autogoverno e promotor da autodeterminação 3131. Mackenzie C, Stoljar N. Relational autonomy. Feminist perspectives on autonomy, agency and the social self. Oxford: Oxford University Press; 2000.,3232. Mackenzie C, Rogers W. Autonomy, vulnerability and capacity: a philosophical appraisal of the Mental Capacity Act. Int J Law Context [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];9(1):37-52. DOI: 10.1017/S174455231200047X.

A coerção, a perturbação de ansiedade ou a depressão na pessoa que sofre de problema de álcool podem ser fatores que interferem na tomada de decisão a respeito do tratamento. O facto de não se conhecerem estudos nacionais ou internacionais sobre esta temática específica foi um estímulo para o desenho de uma pesquisa sobre a influência daqueles aspetos na decisão de participação no tratamento.

Este estudo pretende reforçar a prática do consentimento livre e voluntário, assente no reconhecimento e promoção da autonomia, como forma de obter a participação da pessoa no seu tratamento.

Método

Realizou-se um estudo observacional longitudinal prospetivo entre abril de 2018 e junho de 2019 na Unidade de Alcoologia do Porto, unidade da rede pública de cuidados de saúde em comportamentos aditivos e dependências que tem por competência prestar cuidados integrados a utentes oriundos da região norte de Portugal. A unidade é constituída por diferentes equipas de tratamento, que integram diferentes profissionais sob responsabilidade médica.

Objetivos

O objetivo geral do estudo foi avaliar se o CI na pessoa que acorre a tratamento sofrendo de coerção, ansiedade ou depressão influencia a participação no tratamento.

Os objetivos específicos foram:

  • Avaliar se a coerção é determinante para a participação no tratamento;

  • Avaliar se a sintomatologia ansiosa ou depressiva é determinante para a participação no tratamento;

  • Avaliar a importância que a pessoa atribui ao CI para a participação no tratamento;

  • Propor contributos com vista à valorização da autonomia na prática do CI.

Participantes

Todos os participantes consecutivamente atendidos em primeira consulta na unidade entre 1 de abril e 31 de junho de 2018 foram incluídos no estudo. Pessoas que consomem substâncias ilícitas ou que apresentaram quadros de intoxicação alcoólica aguda, sintomatologia psicótica e deterioração clínica foram excluídas.

Fontes de informação e instrumentos

Todos os participantes foram caracterizados quanto a aspetos sociodemográficos (idade, sexo, escolaridade, coabitação, situação profissional) e de história clínica (antecedentes psiquiátricos relacionados e não relacionados ao uso de substâncias, consequências físicas, comportamentais e psicológicas e sociofamiliares relacionadas ao consumo e padrão de consumo) bem como quanto à referenciação para tratamento (autorreferenciação, referenciação da área da saúde, referenciação da área social e referenciação judicial) e à existência de processo judicial, com recurso à consulta do registo clínico.

Para avaliar as variáveis de estudo, foram usados os instrumentos descritos a seguir.

Escala de perceção de coerção

Utiliza-se essa escala para avaliar a perceção de coerção para acorrer a tratamento oriunda de pressões externas referidas por Klag, O’Callaghan e Creed 1616. Klag S, O’Callaghan F, Creed P. The use of legal coercion in the treatment of substance abusers: an overview and critical analysis of thirty years of research. Subst Use Misuse [Internet]. 2005 [acesso 27 set 2022];40(2):1777-95. DOI: 10.1080/10826080500260891como de tipo legal. Trata-se de instrumento construído pelo investigador, por não ter sido encontrado, na literatura, qualquer outro validado para a população portuguesa, adaptado à população clínica em estudo e adequado aos objetivos do estudo. A Escala de Perceção de Coerção (EPC) foi previamente validada com recurso a uma análise fatorial exploratória, cujos resultados suportaram a confiabilidade por meio do coeficiente alfa de Cronbach.

A EPC é um instrumento de autorresposta de sete itens, que podem assim ser agrupados:

  • Dois avaliam a coerção legal (quando a recusa do tratamento significa enfrentar o sistema judicial ou a prisão);

  • Três, a coerção formal (quando as consequências de recusar o tratamento envolvem a ameaça de perda do benefício dos apoios sociais, da tutela de filhos menores ou do trabalho);

  • Um, a coerção informal (quando as consequências de recusar o tratamento envolvem a ameaça de separação/divórcio);

  • O último avalia o reconhecimento do problema e da necessidade de tratamento (tendo por base o pressuposto referido por Molodynski, Turnpenny e Rukga 1717. Molodynski A, Turnpenny L, Rugkasa J, Burns T, Moussaoui D. Coercion and compulsion in mental healthcare: an international perspective. Asian J Psychiatr [Internet]. 2014 [acesso 27 set 2022];8:2-6. DOI: 10.1016/j.ajp.2013.08.002 de que a perceção de coerção pode ocorrer mesmo quando a vontade da pessoa de se tratar coincide com a do agente de coerção). O participante responde usando uma escala de Likert com valores entre 1 e 5, em que 1 corresponde a “não sinto nada assim” e 5 significa “sinto totalmente assim”.

Hospital Anxiety and Depression Scale

Empregada na avaliação de ansiedade e depressão clínicas. Usou-se a versão portuguesa validada por Pais-Ribeiro e colaboradores 3333. Pais-Ribeiro J, Silva I, Ferreira T, Martins A, Meneses R, Baltar M. Validation study of a portuguese version of the hospital anxiety and depression scale. Psychol Health Med [Internet]. 2007 [acesso 27 set 2022]; 12(2):225-37. DOI: 10.1080/13548500500524088, que consideram que ela mede os mesmos constructos da mesma forma que a escala original.

A Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS) tem sido frequentemente aplicada a diversas populações clínicas. Trata-se de uma escala de autorresposta de 14 itens: metade reflete sintomas de depressão e metade mede sintomas de ansiedade. Cada item tem uma pergunta que é seguida por 4 opções de resposta, tipo Likert, pontuadas de 0 a 3.

De acordo com Pais-Ribeiro e colaboradores 3333. Pais-Ribeiro J, Silva I, Ferreira T, Martins A, Meneses R, Baltar M. Validation study of a portuguese version of the hospital anxiety and depression scale. Psychol Health Med [Internet]. 2007 [acesso 27 set 2022]; 12(2):225-37. DOI: 10.1080/13548500500524088, o manual da escala original indica que, para cada subescala, uma pontuação entre 0 e 7 corresponde a nível normal; entre 8 e 10, nível suave; entre 11 e 14, nível moderado, e entre 15 e 21, nível severo. Resultados de valor igual ou superior a 11 implicam a provável presença de perturbação do humor.

Escala do consentimento informado

Serve para avaliar a importância atribuída ao CI para a participação no tratamento. A escala foi construída pelo investigador em virtude de não se ter encontrado, na literatura, um instrumento destinado a avaliar a importância do consentimento livre e voluntário para a participação no tratamento.

A formulação da Escala de Consentimento Informado (ECI) teve por base os pressupostos apresentados por Beauchamp e Childress 1515. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5th ed. Oxford: Oxford University Press; 2001. para definir a ação autónoma – designadamente a intencionalidade, a compreensão e a ausência de influências de controlo. A ECI foi previamente validada com recurso a uma análise fatorial exploratória, cujos resultados suportaram a confiabilidade através do coeficiente alfa de Cronbach.

Trata-se de um instrumento de autorresposta constituído por cinco itens, cada um dos quais avalia, respetivamente, os seguintes aspetos do consentimento ao tratamento:

  • Reconhecimento do problema e da necessidade de tratamento;

  • Compreensão da informação divulgada;

  • Vontade autónoma;

  • Decisão livre; e

  • Oportunidade de expressão a respeito do tratamento.

O participante responde a cada item usando uma escala de Likert com valores entre 1 e 5, em que 1 corresponde a “nada importante” e 5 a “extremamente importante”. Resultados mais altos indicam maior importância do consentimento livre e voluntário à participação no tratamento.

Procedimentos

A coleta de dados com os participantes desenvolveu-se em dois momentos distintos segundo o plano de avaliação previamente estruturado.

Primeiro momento de observação: logo após a primeira consulta na unidade, os participantes foram encaminhados para uma entrevista com o investigador responsável ou com o seu substituto, quando ética e metodologicamente necessário.

Inicialmente, foi obtido o consentimento escrito após apresentação do estudo, das razões da sua implementação, da sua duração temporal e das fases de observação, bem como dos seus objetivos. Confirmou-se a compreensão das informações partilhadas, incluindo o direito à retirada do consentimento, a qualquer momento, sem consequências para os cuidados terapêuticos habituais. Posteriormente, administraram-se a EPC e a HADS.

Segundo momento de observação: decorrido um ano da primeira entrevista, foi avaliada a participação no tratamento com recurso à agenda eletrónica da unidade. Definiu-se o período de um ano de observação como tempo mínimo para que a pessoa tomasse a sua decisão a respeito do tratamento, tendo por base as vicissitudes do problema e do modelo assistencial da unidade.

Os participantes que se encontravam em seguimento foram contactados para uma segunda entrevista de avaliação, que teve lugar a seguir à sua consulta regular. Após reapresentação e revalidação do consentimento à participação no estudo, administrou-se a ECI e foram recolhidas informações relativas à ingestão de bebidas alcoólicas e à toma da medicação.

Com os participantes que não se encontravam em seguimento, realizou-se uma entrevista telefónica em que foram seguidos os mesmos procedimentos. Toda a informação recolhida foi aferida por meio do registo clínico e com o médico responsável por cada equipa de tratamento.

Análise de dados

Após proceder à codificação binária, usaram-se as características sociodemográficas e da história clínica, bem como as fontes de encaminhamento, como variáveis independentes.

A variável dependente “participação no tratamento” foi categorizada em “continua em tratamento/não continua em tratamento”: a primeira categoria incluiu o contato com a Unidade de Alcoologia (incluindo situações de internamento na Unidade de Desabituação ou em Comunidade Terapêutica) ou com outra Unidade de Intervenção da rede de cuidados de saúde em comportamentos aditivos e dependências após transferência. A ausência presencial, após quatro ou mais consultas consecutivas, ou de qualquer tipo de contacto, decorridos quatro meses, definiu a descontinuidade do tratamento, independentemente do motivo.

A variável de ingestão alcoólica foi definida pelas categorias “abstinente/não abstinente”; a variável da medicação coadjuvante ao apoio psicoterapêutico, pelas categorias “toma a medicação/não toma a medicação”.

As variáveis contínuas foram descritas pela média e desvio-padrão, e as variáveis categoriais foram descritas pelo n amostral e frequência relativa.

Na análise de associação entre as variáveis categoriais, usou-se o teste do qui-quadrado ou o teste de Fisher, conforme mais apropriado. Para comparação de diferenças de médias entre dois grupos, usou-se o teste t para duas amostras independentes ou o teste não paramétrico Mann-Whitney. Para a comparação entre três ou mais grupos usou-se a Anova não paramétrica, devido ao pequeno tamanho amostral de alguns grupos e à ausência de normalidade das variáveis.

As análises dos dados foram realizadas com recurso ao programa informático IPSS (IBM 2011, IBM SPSS Statistics for Windows, versão 23.0.). O nível de significância dos testes estatísticos foi fixado em p<5.

Resultados

A amostra de estudo foi constituída por 150 pessoas com problema de álcool que acorreram a tratamento na Unidade de Alcoologia do Porto. Cinco participantes não foram elegidos para o estudo e três foram excluídos: dois por motivo de morte e um por detenção em meio prisional. Da amostra final de 150 participantes, 81,3% (n=122) são homens e 18,7% (n=28) são mulheres. A idade média foi de 50,47 anos (desvio-padrão=10,64).

Relativamente às variáveis sociodemográficas, destaca-se que 68% dos participantes (n=102) apresentou idade ≥45 anos e 32% (n=48) idade ˂45 anos. Quanto ao nível de escolaridade, verificou-se que uma maioria de cerca de 75,3% (n=113) apresenta o nível básico (1º, 2º e 3º ciclos). Aproximadamente 82% (n=123) dos participantes vive em meio familiar, prevalentemente com o cônjuge/companheiro(a) e/ou com filhos. Do total de participantes, 54% (n=81) está ativo e 37,7% (n=56) encontra-se a auferir de algum tipo de pensão (reforma/aposentação, subsídio de desemprego, rendimento social de inserção). Essas informações estão em sintonia com os dados oficiais do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, de 2021 3434. Carapinha L, Guerreiro C. Enquadramento epidemiológico: uma breve perspetiva da situação atual: plano nacional para a redução dos comportamentos aditivos e dependências 2021-2030 [Internet]. Lisboa: Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências; 2021 [acesso 27 set 2022]. Disponível: https://bit.ly/3WaZIXD
https://bit.ly/3WaZIXD...
.

No que diz respeito à referenciação para tratamento, constatou-se que 52,7% (n=79) dos participantes foi encaminhado pela área da saúde (médico de família ou outro profissional/instituição de saúde) e cerca de 24% (n=36) acorreu a tratamento autorreferenciadamente (por iniciativa própria ou por meio de amigos e familiares). Aproximadamente 16% (n=24) dos participantes foi enviado para tratamento pelo sistema legal (tribunal e Ministério Público), e 7,3% (n=11) pela área social (Segurança Social, Equipas Sociais, Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, Entidades Empregadoras).

No que diz respeito às variáveis da história clínica, salienta-se que a grande maioria dos participantes não relatou história de consumo problemático de substâncias ilícitas (86%; n=129) nem de outra perturbação mental prévia ao uso de substâncias (78,7%; n=118). Constatou-se vulnerabilidade causada pela prevalência de danos físicos (83,3%; n=125) bem como de alterações comportamentais e psicológicas (95,9%; n=142) ligadas ao consumo. Cerca de 52,7% (n=84) dos participantes apresentou sinais e sintomas compatíveis com um padrão de dependência, e 47,3% (n=66) com um padrão de abuso de álcool.

Verificou-se uma taxa de permanência em seguimento de 54,3% (n=82) ao final da observação. Observou-se que os pacientes que continuaram o tratamento tendem a fazer mais abstinência alcoólica (78% vs. 26,8%; p<0,001) em comparação com os pacientes que não permanecem em tratamento (38,2% vs. 61,8%, p<0,001). Foi constatada uma associação significativa entre abstinência e idade (p=0,015): quem mais cumpriu a abstinência apresentou ter mais de 45 anos (75,6%).

Em relação à toma de medicação, os pacientes que continuaram em tratamento tendem mais a tomar a medicação prescrita (73,2% vs. 26,8%, p=0,001). A maioria dos pacientes que descontinuou o tratamento não se encontrou a fazer medicação para problema de álcool (83,8%).

Os resultados da associação entre a variável dependente participação terapêutica (“continua em tratamento” vs. “não continua em tratamento”) e as variáveis sociodemográficas indicam a ausência de associações significativas entre as variáveis, com exceção da associação verificada entre abstinência e idade, já mencionada.

Não se constataram associações significativas entre a variável da participação no tratamento e as variáveis da história clínica, mas constatou-se que a toma de medicação estava significativamente associada à presença de alterações comportamentais e psicológicas ligadas ao consumo e ao padrão de consumo de dependência (p<0,05).

A coerção foi estudada com base na referenciação para tratamento, na existência de processo judicial em curso e nos resultados da EPC. Os resultados da relação entre a variável referenciação e a variável participação no tratamento (“continua em tratamento” vs. “não continua em tratamento”) mostram a ausência de associações significativas. Por seu lado, observou-se uma associação significativa entre a participação terapêutica e o processo judicial em curso no final da observação (p=0,016): quem continuou em tratamento apresentou menor frequência de processo judicial em curso no final da observação (80,5%) (Tabela 1).

Tabela 1
Relação entre participação no tratamento e a variável processo judicial em curso

Os resultados da perceção de coerção para entrar em tratamento medida pela EPC mostram um valor médio de respostas de 3,6, situando-se entre o valor correspondente a “sinto moderadamente assim” e “sinto muito assim” na escala de Likert. É de salientar que a quase totalidade dos participantes (90,7%; n=136), em resposta ao item 7 da EPC, relatou reconhecer o problema e a necessidade de tratamento.

Não se observou associação significativa entre a participação no tratamento e a perceção de coerção para entrar em tratamento medida pela EPC. A participação no tratamento também não se associou ao reconhecimento do problema e à necessidade de tratamento. Constatou-se, contudo, que o valor médio de coerção percebida à entrada em tratamento esteve associado significativamente à toma da medicação (p=0,003), sendo inferior em quem estava com medicação (M=2.8 vs. 5.0).

A análise da relação entre a participação no tratamento e a sintomatologia depressiva e de ansiedade (Tabela 2) permitiu verificar que, no grupo que permanece em seguimento, a sintomatologia ansiosa de nível normal e suave foi prevalente em comparação com a presença de sintomatologia moderada e severa (73,2% vs. 26,8%).

Tabela 2
Relação entre participação no tratamento e sintomatologia ansiosa e depressiva

Observou-se um valor médio de respostas na ECI de 25,4 num intervalo de pontuação entre 0 e 32, indicando um valor tendencialmente alto da importância do CI para a participação no tratamento.

Na escala do CI, encontrou-se uma diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos de participação no tratamento (“continua em tratamento” vs. “não continua em tratamento”). Tal como se ilustra na Tabela 3, na escala do CI, a média das respostas sobre a importância do CI para a participação no tratamento foi significativamente superior em quem não continuou em seguimento do que em quem continuou em tratamento (26,4 vs. 24,4; p<0,001).

Tabela 3
Relação entre a participação no tratamento e a importância do consentimento informado

Discussão

O tratamento da pessoa com problema de álcool implica, em geral, a participação em um processo de cuidados continuados relacionado à recuperação a longo prazo 55. Chi F, Parthasarathy S, Mertens J, Weisner CM. Continuing care and long-term substance use outcomes in managed care: early evidence for a primary care-based model. Psychiatr Serv [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];62(10):1194-200. DOI: 10.1176/ps.62.10.pss6210_1194,66. Haug S, Schaub MP. Treatment outcome, treatment retention, and their predictors among clients of five outpatient alcohol treatment centres in Switzerland. BMC Public Health [Internet]. 2016 [acesso 27 set 2022];16(581):1-10. DOI: 10.1186/s12889-016-3294-4. Este processo, ajustado à situação individual e ao estágio da condição clínica, prevê diferentes fases, incluindo a fase da paragem do consumo nocivo, a da prevenção da recaída e a da manutenção da abstinência.

A evidência clínica e a pesquisa indicam que a pessoa recusa ou abandona precocemente o tratamento 77. Brorson HH, Arnevik ES, Rand-Hendriksen K, Duckert F. Drop-out from addiction treatment: a systematic review of risk factors. Clin Psychol Rev [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];33(8):1010-24. DOI: 10.1016/j.cpr.2013.07.007
https://doi.org/10.1016/j.cpr.2013.07.00...

8. Rehem J, Allamani A, Aubin HJ, Della Vedova R, Elekes Z, Frick U et al. People with alcohol use disorders in specialized care in eight different European countries. Alcohol [Internet]. 2015 [acesso 27 set 2022];50(3):310-18. DOI: 10.1093/alcalc/agv009
https://doi.org/10.1093/alcalc/agv009...
-99. Hell ME, Nielsen AS. Does patient involvement in treatment planning improve adherence, enrollment and other treatment outcome in alcohol addiction treatment? A systematic review. Addict Res Theory [Internet]. 2020 [acesso 27 set 2022];28(6):537-45. DOI: 10.1080/16066359.2020.1723083. Isto é motivo de questionamento ético-clínico no interior das equipas de tratamento, cientes do sofrimento individual, familiar e social que pode resultar da manutenção ou do eventual recrudescimento do problema.

O CI, como uma forma de garantir o envolvimento e de obter a participação no tratamento, é parte integrante da abordagem terapêutica 1010. Pedersen R, Hofmann B, Mangset M. Patient autonomy and informed consent in clinical practice. Tidsskr Nor Laegeforen [Internet]. 2007 [acesso 27 set 2022];127(12):1644-7. Disponível: https://bit.ly/3FMUwnA
https://bit.ly/3FMUwnA...
,1111. Walker R, Logan TK, Clark JJ, Leukefeld C. Informed consent to undergo treatment for substance abuse: a recommended approach. J Subst Abuse Treat [Internet]. 2005 [acesso 27 set 2022];29(4):241-51. DOI: 10.1016/j.jsat.2005.08.001, tendo como pressuposto a promoção da autonomia enquanto valor ético primordial no interior da relação de cuidado entre o profissional e o paciente 1515. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5th ed. Oxford: Oxford University Press; 2001.,2323. Joffe S, Manocchia M, Weeks JC, Cleary PD. What do patients value in their hospital care? An empirical perspective on autonomy centred bioethics. J Med Ethics [Internet]. 2003 [acesso 27 set 2022];29(2):103-8. DOI: 10.1136/jme.29.2.103

24. Racine E, Rosseau-Lesage S. The voluntary nature of decision-making in addiction: static metaphysical view versus epistemologically dinamic views. Bioethics [Internet]. 2017 [acesso 27 set 2022];31(5):349-59. DOI: 10.1111/bioe.12356
-2525. Goldim JR, Fernandes MS, Pechansky F. Ethical, legal and social issues related to alcohol and drug research. Curr Opin Psychiatry [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];24(3):181-85. DOI: 10.1097/YCO.0b013e32834593bc.

O respeito pela autonomia na procura do consentimento constituiu um desafio ético adicional para a terapêutica da pessoa com problema de álcool que acorre a tratamento sofrendo de coerção, ansiedade ou depressão. Na hipótese de que a vivência da coerção e a perturbação de ansiedade ou a depressão viessem a interferir com a expressão do self com competências de autonomia, realizou-se um estudo observacional longitudinal prospetivo com recurso a uma amostra de 150 pessoas que acorreram a tratamento na Unidade de Alcoologia do Porto.

Este estudo pretendeu verificar se o consentimento à participação no tratamento interferido de coerção ou de sintomatologia ansiosa e depressiva é determinante para a participação da pessoa no seu tratamento. Os resultados obtidos indicaram que a permanência em seguimento é uma medida significativa relacionada à qualidade e eficácia dos cuidados de saúde, em sintonia com a literatura 66. Haug S, Schaub MP. Treatment outcome, treatment retention, and their predictors among clients of five outpatient alcohol treatment centres in Switzerland. BMC Public Health [Internet]. 2016 [acesso 27 set 2022];16(581):1-10. DOI: 10.1186/s12889-016-3294-4,3535. Cohen E, Feinn R, Arias A, Kranzler HR. Alcohol treatment utilization: findings from national epidemiologic survey on alcohol and related conditions. Drug Alcohol Depend [Internet]. 2007 [acesso 27 set 2022];86(2-3): 214-21. DOI: 10.1016/j.drugalcdep.2006.06.008-3636. McLellan AT, Lewis DC, O’Brien CP, Kleber HD. Drug dependence, a chronic medical illness: implications for treatment, insurance, and outcomes evaluation. JAMA [Internet]. 2000 [acesso 27 set 2022];284:1689-95. DOI: 10.1001/jama.284.13.1689, tendo sido observado que as pessoas conseguem fazer mais a abstinência alcoólica quando continuam em tratamento (p<0,001).

Constatou-se que a continuidade do tratamento não foi determinada por variáveis sociodemográficas, não se confirmando os resultados de estudos prévios 3737. Elbreder MF, Silva RS, Pillon SC, Laranjeira R. Alcohol dependence: analysis of factors associated with retention of patients in outpatient treatment. Alcohol [Internet]. 2011 [acesso 27 set 2022];46(1):74-6. DOI: 10.1093/alcalc/agq078,3838. Mundle G, Brügel R, Urbaniak H, Längle G, Buchkremer G, Mann K. Short- and medium-term outcome of outpatient treatment of alcohol dependent patients. A 6-, 18- and 36-month follow-up. Fortsch Neurol Psychiatr [Internet]. 2001 [acesso 27 set 2022];69(8):374-78. DOI: 10.1055/s-2001-16509 que indicam que ter mais idade e viver do rendimento do trabalho é fator de permanência em seguimento.

Atendendo às características da amostra, designadamente ao facto de: a) a maioria dos participantes estar profissionalmente ativa (54%; n=81) e cerca de 37,7% (n=56) auferir de algum tipo de pensão (reforma, subsídio de desemprego, rendimento social de inserção); e b) a maioria dos participantes apresentar retaguarda familiar (82%;n=123), este resultado sugere a importância de aprofundar-se o insight acerca do problema de álcool e da participação no tratamento como forma de assegurar a saúde e bem-estar da pessoa e dos que a rodeiam e, simultaneamente, do alívio do medo da recaída e da entrega à confiança na relação de cuidado.

O facto de se ter verificado que as pessoas mais velhas tenderam a fazer mais a abstinência, em comparação com as mais novas (p=0,015), aponta para a importância de desenvolver e reforçar as estratégias de educação para a saúde sobre o impacto do consumo no desenvolvimento de perturbação, particularmente entre as mais novas. Esta é uma forma de dotá-las de conhecimentos que as ajudem a fazer opções e a tomar as decisões adequadas à saúde e bem-estar pessoal e dos que as rodeiam.

Relativamente às variáveis da história clínica, não se verificaram associações significativas com a participação no tratamento, não se observando que a dependência alcoólica seja fator de permanência em seguimento, tal como indicado no estudo de Elbreder e colaboradores 3737. Elbreder MF, Silva RS, Pillon SC, Laranjeira R. Alcohol dependence: analysis of factors associated with retention of patients in outpatient treatment. Alcohol [Internet]. 2011 [acesso 27 set 2022];46(1):74-6. DOI: 10.1093/alcalc/agq078.

O facto de as consequências físicas e a presença de alterações comportamentais e psicológicas ligadas ao uso de álcool prevalentes na amostra não terem surgido relacionadas com a permanência em seguimento pode indicar a sua perceção limitada, devido quer à baixa literacia em saúde, eventualmente associada à baixa escolaridade da amostra (75,3%; n=113 com nível de escolaridade básico), quer à mobilização ou intensificação de mecanismos de negação ou de desvalorização do problema e destas consequências.

Intervenções que visem o aumento da literacia desta área da saúde poderão promover o entendimento sobre o impacto do álcool no desenvolvimento de danos à saúde física e mental, além de auxiliar na identificação dos valores e atitudes que são consonantes com a saúde e a qualidade de vida, bem como na capacitação para a decisão que mais as viabilizam.

Confirmou-se que as pessoas com processo judicial em curso (13,3%; n=20) tendem a não continuar em seguimento (p=0,016), em sintonia com a pesquisa recente de Wild e colaboradores 3939. Wild TC, Yuan Y, Rush BR, Urbanoski KA. Client engagement in legally mandated addiction treatment: a prospective study using self-determination theory. J Subst Abuse Treat [Internet]. 2016 [acesso 27 set 2022];69:35-43. DOI: 10.1016/j.jsat.2016.06.006. A quase totalidade da amostra relata reconhecer o problema de álcool e a necessidade de tratamento (90,7%; n=136). Esse resultado parece dar conta de que, mesmo que o tratamento sob mandado legal não seja per se involuntário, podem ocorrer, no contexto terapêutico, movimentos acentuados de externalização da reflexão crítica que sustenta o insight.

Este mecanismo psíquico pode ser mobilizado como defesa em face das ansiedades reativadas ou intensificadas pela/na relação com os profissionais e o tratamento, interferindo com a apropriação dos valores pessoais e relacionais e com a perceção das consequências negativas advindas da recusa ou abandono do tratamento. De forma geral, constatou-se que a perceção de coerção à admissão medida pela EPC não se relacionou com a permanência em seguimento.

O facto de o valor médio das respostas obtidas na escala indicar que a pessoa se perceciona moderadamente ou muito coagida quando acorre a tratamento pode justificar o aparecimento de respostas erráticas. As pessoas que se sentiram mais coagidas aceitaram mais fazer medicação, mas não permaneceram em seguimento, mesmo sofrendo de consequências mentais/comportamentais e de dependência alcoólica (p<0,05).

O conjunto destes resultados parece indicar que a coerção, mais do que traduzir-se numa perceção de controlo da voluntariedade por parte de um outro/entidade, parece corresponder à encenação da clivagem oscilante do self por meio de seu movimento de externalização com competências de autonomia, o que, segundo Rhodes 1818. Rhodes MR. The nature of coercion. J Value Inq [Internet].2000 [acesso 27 set 2022];34(2):369-81. DOI: 10.1023/A:1004716627533, abre o campo da correlação entre a coerção percebida e outras variáveis como o funcionamento mental do sujeito e o tipo de ansiedade prevalente, os fenómenos do campo relacional e o insight sobre a condição de saúde e a necessidade de tratamento.

Observou-se menor prevalência na sintomatologia ansiosa moderada/severa entre as pessoas que continuaram o tratamento, na comparação com as que não permaneceram em seguimento (73,2% vs. 26,8%), em sintonia com estudos prévios 4040. Lucas-Taracena MT, Maldonado D, Tossio-González C, Bravo-Ortiz MF. Abandono del tratamento para dependencia alcohólica en medio ambulatório: estudio pospectivo de dos anos. Actas Esp Psiquiatr [Internet]. 2002 [acesso 27 set 2022];30(5):273-8. Disponível: https://bit.ly/3WapzPj
https://bit.ly/3WapzPj...
,4141. Morley KC, Baillie A, Sannibale C, Teesson M, Haber PS. Integrated care for comorbid alcohol dependence and anxiety and/or depressive disorder: study protocol for an assessor-blind, randomized controlled trial. Addict Sci Clin Pract [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];8(1):19. DOI: 10.1186/1940-0640-8-19. Este resultado aponta para a importância de reconhecer o impacto da eventual perturbação de ansiedade na capacidade da pessoa de transformar o seu desejo de se tratar numa ação efetiva.

Sob pano de fundo ansioso, os medos de parar o consumo, de recair ou de se entregar à confiança na relação de cuidado podem surgir incontidos e gerar respostas impulsivas que comprometem as perceções e os julgamentos mais precisos a respeito da sua condição e do tratamento 2626. Barger B, Derrybery WP. Do negative mood states impact moral reasoning? J Moral Educ [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];42(4):443-59. DOI: 10.1080/03057240.2013.809517

27. Braude H, Kimmelman J. The ethics of managing affective and emotional states to improve informed consent: autonomy, comprehension, and voluntariness. Bioethics [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022]; 26(3):149-56. DOI: 10.1111/j.1467-8519.2010.01838.x

28. Carmona-Pereira M, Clark L, Young L, Pérez-Garcia M, Verdejo-Garcia A. Impaired decoding of fear and disgust predicts utilitarian moral judgment in alcohol-dependent individuals. Alcohol Clin Exp Res [Internet]. 2014 [acesso 27 set 2022];38(1):179-85. DOI: 10.1111/acer.12245
-2929. Krishnakumar S, Rymph D. Uncomfortable ethical decisions: the role of negative emotions and emotional intelligence in ethical decision-making. J Manag Issues [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];35(3):321-44. Disponível: https://bit.ly/3FI8tD9
https://bit.ly/3FI8tD9...
, fazendo refletir o papel do álcool como automedicação 1414. Khantzian EJ. Addiction as a self-regulation disorder and the role of self-medication. Addiction [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];108(4):668-9. DOI: 10.1111/add.12004 e a pertinência do tratamento integrado para a pessoa com esta comorbidade 4141. Morley KC, Baillie A, Sannibale C, Teesson M, Haber PS. Integrated care for comorbid alcohol dependence and anxiety and/or depressive disorder: study protocol for an assessor-blind, randomized controlled trial. Addict Sci Clin Pract [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];8(1):19. DOI: 10.1186/1940-0640-8-19.

Foi feita a escolha metodológica de avaliar a importância atribuída ao CI para a participação no tratamento no final do período de observação por se ter considerado que o CI podia prolongar-se no tempo – quer devido à natureza da adição, quer devido às características do modelo assistencial da unidade e seus procedimentos terapêuticos habituais. O CI surgiu valorizado no total da amostra, mas observou-se que foi mais valorizado pelo grupo de participantes que não continuou o tratamento (p=0,001).

Uma primeira leitura deste resultado sugere que as pessoas que não participaram no tratamento perspetivaram o CI como lugar de afirmação do direito de recusa. Entretanto, o facto de a grande maioria dos participantes reconhecer o problema de álcool e a necessidade de tratamento (90,7%; n=136) sugere a hipótese de que aqueles que não permaneceram em seguimento não encontraram no CI a oportunidade de apropriação do self com competências para transformar o desejo de se tratar numa efetiva participação no processo terapêutico.

Assim, será de enfatizar, entre outros aspetos, a importância de atender ao impacto da coerção judicial e da sintomatologia ansiosa no processo de tomada de decisão. Estes fatores, ao mobilizar e/ou intensificar as reações de medo de parar os consumos, de recair ou de se entregar à confiança na relação de cuidado, podem associar-se a respostas de recusa ou de abandono do tratamento que traduzem a limitação do self com competências de autonomia.

Considerações finais

Numa ética do cuidado centrado na pessoa com problema de álcool, a recusa ou o abandono precoce do tratamento não podem ser separados do encontro relacional de cuidado atento às vivências da condição pessoal e da relação com outros e/ou com situações implicados no tratamento, do respeito pela dignidade humana entendida como expressão da autonomia relacional 4242. Ells C, Hunt MR, Chambers-Evans J. Relational autonomy as an essential component of patient-centered care. Int J Fem Approaches to Bioeth [Internet]. 2011 [acesso 27 set 2022];4(2):79-101. DOI: 10.2979/intjfemappbio.4.2.79
https://doi.org/10.2979/intjfemappbio.4....

43. Stephenson LA, Wagner SJ, Bolton D. Maximizing patient autonomy to improve outcomes. Br J Hosp Med [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];74(1):14-6. DOI: 10.12968/hmed.2013.74.sup1.c14
-4444. Tomaselli G, Buttigieg SC, Rosano A, Cassar M, Grima G. Person-centered care from a relational ethics perspective for the delivery of high quality and safe healthcare: a scoping review. Front Public Health [Internet]. 2020 [acesso 27 set 2022];8:44. DOI: 10.3389/fpubh.2020.00044 e do reconhecimento de que a participação da pessoa no processo terapêutico é fundamental ao sucesso do mesmo 4545. Neves MCP. O admirável horizonte da bioética. Lisboa: Glaciar; 2016..

Assim, para além do reforço das estratégias no âmbito da promoção e educação para a saúde anteriormente referidas, formulam-se contributos para reforçar a prática do consentimento livre e voluntário assente no reconhecimento e promoção da autonomia como forma de obter a participação no tratamento:

  1. Com a pessoa sob coerção judicial, será importante:
    1. Operar a desconfusão entre tratamento e punição pela criação de um ambiente relacional não crítico e desculpabilizador, atento ao movimento de externalização do self autónomo como resposta às reações emocionais mobilizadas e intensificadas pela relação com os profissionais e o tratamento, tendo em vista aliviar o sofrimento da estigmatização e favorecer a autoestima e a coesão do self;

    2. Aprofundar o insight sobre o problema de álcool e as suas consequências na saúde e no bem-estar mental do próprio e de terceiros, as fases do tratamento e os motivos para aceitar ou recusar o tratamento, afirmando o processo terapêutico como forma de reassegurar a pessoa da sua capacidade para o autocuidado autónomo;

    3. Incrementar o esclarecimento sobre os direitos e liberdades fundamentais no contexto terapêutico e, especificamente, o conhecimento sobre o momento e a natureza das informações a serem partilhadas por imperativo legal, evitando as quebras de confidencialidade moralmente irrelevantes 1515. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5th ed. Oxford: Oxford University Press; 2001.;

  2. Com a pessoa que acorre a tratamento perturbada pela sintomatologia ansiosa, será importante:
    1. Reforçar a compreensão das informações relevantes sobre as intervenções terapêuticas possíveis, divulgadas em dose adequada e em tempo relacional suficiente, de forma a encontrar a pessoa em estado de maior elaboração psíquica;

    2. Promover a capacidade da pessoa de identificar e ressignificar os seus medos e ponderar as alternativas terapêuticas, incluindo a da possibilidade do tratamento integrado das condições clínicas em presença, disponibilizadas como viáveis e válidas para si 4141. Morley KC, Baillie A, Sannibale C, Teesson M, Haber PS. Integrated care for comorbid alcohol dependence and anxiety and/or depressive disorder: study protocol for an assessor-blind, randomized controlled trial. Addict Sci Clin Pract [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];8(1):19. DOI: 10.1186/1940-0640-8-19;

  3. Será importante reforçar a prática do CI como lugar de um processo ético de cuidado:
    1. Distendido no tempo e na relação, configurando uma oportunidade para a pessoa se apropriar do self com competências para transformar o desejo de se tratar numa efetiva participação no processo terapêutico, tendo como pano de fundo a capacidade da pessoa para estimar-se a si mesma e para o autocuidado autónomo;

    2. Pautado pela partilha de informação pertinente e adequada sobre o problema, as alternativas terapêuticas e o processo de tratamento, fornecida em dose adequada à capacidade psíquica de metabolização das ansiedades reativadas ou adensadas pela condição pessoal e o contacto com os profissionais e o tratamento, e com atenção ao nível intelectual, sociocultural e à literacia em saúde;

    3. Assente na escuta empática desenvolvida em contexto afetivo não crítico e desculpabilizante, e na atenção à dinâmica das respostas intersubjetivas, particularmente na pessoa que acorre a tratamento sofrendo de coerção e de ansiedade;

    4. Com respeito pela pessoa como parceiro do relacionamento e participante do processo terapêutico que visa a reparação da integridade física e psíquica tanto da pessoa quanto dos que lhe são próximos, bem como da qualidade das relações com os outros e as instituições.

Desenvolveu-se, ainda, uma ação de divulgação sobre o CI dirigida às pessoas com problema ligado ao álcool, sob a forma de folheto informativo. Esse breve folheto, construído em forma de pergunta/resposta – com a preocupação de tornar fácil a sua leitura e compreensão considerando o nível de escolaridade da maior parte das pessoas que acorrem a tratamento – teve por objetivos:

  • Promover a autonomia como valor ético central no interior da interação clínica que sustenta a procura do consentimento à participação no tratamento;

  • Mitigar as ansiedades convocadas e intensificadas pela/na relação com os profissionais e o tratamento pela afirmação do self com competências de autonomia para transformar o desejo de se tratar numa ação efetiva, independentemente das fontes habituais de pressão externa;

  • Estimular o processo dialógico que conduz à tomada de decisão a respeito do tratamento, incluindo a sua execução, modificação, ou possibilidade de interrupção.

Esse folheto informativo pode ser acedido por meio de contacto com o autor.

Reconhece-se a limitação da generalização do significado das associações obtidas no presente estudo à população clínica portuguesa, bem como do uso de instrumentos não validados para a população portuguesa. Não foram usados, de forma sistemática, biomarcadores diretos para avaliar a ingestão alcoólica. Esta escolha metodológica não seria compatível com o modelo de abordagem terapêutica de muitos profissionais, e considerou-se ser eticamente desaconselhada junto aos participantes que descontinuaram o tratamento.

Este trabalho reforça a importância de desenvolver mais estudos sobre o tema do consentimento livre e esclarecido na área do tratamento das perturbações relacionadas ao uso de substâncias.

Referências

  • 1
    Mello LM, Barrias J, Breda J. Álcool e problemas ligados ao álcool em Portugal [Internet]. Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2001 [acesso 27 set 2022]. Disponível: https://bit.ly/3uxfAYC
    » https://bit.ly/3uxfAYC
  • 2
    Boden JM, Fergusson DM. Alcohol and depression. Addiction [Internet]. 2011 [acesso 27 set 2022]; 106(5):906-14. DOI: 10.1111/j.1360-0443.2010.03351.x
  • 3
    Lai HMX, Sitharthan T, Huang QR. Exploration of the comorbidity of alcohol use disorders and mental health disorders among inpatients presenting to all hospitals in New South Wales, Australia. Subs Abus [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];33(2):138-45. DOI: 10.1080/08897077.2011.634967
  • 4
    Hernández M, Fuentes J. Aspectos sociales de la evalución diagnóstica del alcoholismo. In: Usieto E, Caviedes S, Martinez G., Hermida J. Manual SET de alcoholismo. Panamá: Editorial Medica Panamericana; 2003. p. 131-60.
  • 5
    Chi F, Parthasarathy S, Mertens J, Weisner CM. Continuing care and long-term substance use outcomes in managed care: early evidence for a primary care-based model. Psychiatr Serv [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];62(10):1194-200. DOI: 10.1176/ps.62.10.pss6210_1194
  • 6
    Haug S, Schaub MP. Treatment outcome, treatment retention, and their predictors among clients of five outpatient alcohol treatment centres in Switzerland. BMC Public Health [Internet]. 2016 [acesso 27 set 2022];16(581):1-10. DOI: 10.1186/s12889-016-3294-4
  • 7
    Brorson HH, Arnevik ES, Rand-Hendriksen K, Duckert F. Drop-out from addiction treatment: a systematic review of risk factors. Clin Psychol Rev [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];33(8):1010-24. DOI: 10.1016/j.cpr.2013.07.007
    » https://doi.org/10.1016/j.cpr.2013.07.007
  • 8
    Rehem J, Allamani A, Aubin HJ, Della Vedova R, Elekes Z, Frick U et al. People with alcohol use disorders in specialized care in eight different European countries. Alcohol [Internet]. 2015 [acesso 27 set 2022];50(3):310-18. DOI: 10.1093/alcalc/agv009
    » https://doi.org/10.1093/alcalc/agv009
  • 9
    Hell ME, Nielsen AS. Does patient involvement in treatment planning improve adherence, enrollment and other treatment outcome in alcohol addiction treatment? A systematic review. Addict Res Theory [Internet]. 2020 [acesso 27 set 2022];28(6):537-45. DOI: 10.1080/16066359.2020.1723083
  • 10
    Pedersen R, Hofmann B, Mangset M. Patient autonomy and informed consent in clinical practice. Tidsskr Nor Laegeforen [Internet]. 2007 [acesso 27 set 2022];127(12):1644-7. Disponível: https://bit.ly/3FMUwnA
    » https://bit.ly/3FMUwnA
  • 11
    Walker R, Logan TK, Clark JJ, Leukefeld C. Informed consent to undergo treatment for substance abuse: a recommended approach. J Subst Abuse Treat [Internet]. 2005 [acesso 27 set 2022];29(4):241-51. DOI: 10.1016/j.jsat.2005.08.001
  • 12
    Ryan RM, Deci E, Vansteenkiste M. Autonomy and autonomy disturbances in self-development and psychopathology: research on motivation, attachment, and clinical process. In: Cicchetti D, organizador. Developmental psychopatoly: theory and method [Internet]. Hoboken: Wiley; 2016 [acesso 27 set 2022]. p. 385-433. Disponível: https://bit.ly/3HrTyyf
    » https://bit.ly/3HrTyyf
  • 13
    Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed; 1983. p. 135.
  • 14
    Khantzian EJ. Addiction as a self-regulation disorder and the role of self-medication. Addiction [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];108(4):668-9. DOI: 10.1111/add.12004
  • 15
    Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 5th ed. Oxford: Oxford University Press; 2001.
  • 16
    Klag S, O’Callaghan F, Creed P. The use of legal coercion in the treatment of substance abusers: an overview and critical analysis of thirty years of research. Subst Use Misuse [Internet]. 2005 [acesso 27 set 2022];40(2):1777-95. DOI: 10.1080/10826080500260891
  • 17
    Molodynski A, Turnpenny L, Rugkasa J, Burns T, Moussaoui D. Coercion and compulsion in mental healthcare: an international perspective. Asian J Psychiatr [Internet]. 2014 [acesso 27 set 2022];8:2-6. DOI: 10.1016/j.ajp.2013.08.002
  • 18
    Rhodes MR. The nature of coercion. J Value Inq [Internet].2000 [acesso 27 set 2022];34(2):369-81. DOI: 10.1023/A:1004716627533
  • 19
    Szmukler G, Appelbaum PS. Treatment pressures, leverage, coercion, and compulsion in mental health care. J Ment Health [Internet]. 2008 [acesso 27 set 2022];17(3):233-44. DOI: 10.1080/09638230802052203
  • 20
    Wendler D, Wertheimer A. Why is coerced consent worse than no Consent and deceived consent? J Med Philos [Internet]. 2017 [acesso 27 set 2022];42(2):114-31. DOI: 10.1093/jmp/jhw064
  • 21
    Wolfe S, Kay-Lambkin F, Bowman J, Childs S. To enforce or engage: the relationship between coercion, treatment motivation and therapeutic alliance within community-based drug and alcohol clients. Addict Behav [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];38(5):2187-95. DOI: 10.1016/j.addbeh.2013.01.017
  • 22
    Amer AB. Informed consent in adult psychiatry. Oman Med J [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];28(4):228-31. DOI: 10.5001/omj.2013.67
  • 23
    Joffe S, Manocchia M, Weeks JC, Cleary PD. What do patients value in their hospital care? An empirical perspective on autonomy centred bioethics. J Med Ethics [Internet]. 2003 [acesso 27 set 2022];29(2):103-8. DOI: 10.1136/jme.29.2.103
  • 24
    Racine E, Rosseau-Lesage S. The voluntary nature of decision-making in addiction: static metaphysical view versus epistemologically dinamic views. Bioethics [Internet]. 2017 [acesso 27 set 2022];31(5):349-59. DOI: 10.1111/bioe.12356
  • 25
    Goldim JR, Fernandes MS, Pechansky F. Ethical, legal and social issues related to alcohol and drug research. Curr Opin Psychiatry [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];24(3):181-85. DOI: 10.1097/YCO.0b013e32834593bc
  • 26
    Barger B, Derrybery WP. Do negative mood states impact moral reasoning? J Moral Educ [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];42(4):443-59. DOI: 10.1080/03057240.2013.809517
  • 27
    Braude H, Kimmelman J. The ethics of managing affective and emotional states to improve informed consent: autonomy, comprehension, and voluntariness. Bioethics [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022]; 26(3):149-56. DOI: 10.1111/j.1467-8519.2010.01838.x
  • 28
    Carmona-Pereira M, Clark L, Young L, Pérez-Garcia M, Verdejo-Garcia A. Impaired decoding of fear and disgust predicts utilitarian moral judgment in alcohol-dependent individuals. Alcohol Clin Exp Res [Internet]. 2014 [acesso 27 set 2022];38(1):179-85. DOI: 10.1111/acer.12245
  • 29
    Krishnakumar S, Rymph D. Uncomfortable ethical decisions: the role of negative emotions and emotional intelligence in ethical decision-making. J Manag Issues [Internet]. 2012 [acesso 27 set 2022];35(3):321-44. Disponível: https://bit.ly/3FI8tD9
    » https://bit.ly/3FI8tD9
  • 30
    Ricoeur P. Soi-même comme un autre. Toulon: Éditions du Seuil; 1990. p. 224.
  • 31
    Mackenzie C, Stoljar N. Relational autonomy. Feminist perspectives on autonomy, agency and the social self. Oxford: Oxford University Press; 2000.
  • 32
    Mackenzie C, Rogers W. Autonomy, vulnerability and capacity: a philosophical appraisal of the Mental Capacity Act. Int J Law Context [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];9(1):37-52. DOI: 10.1017/S174455231200047X
  • 33
    Pais-Ribeiro J, Silva I, Ferreira T, Martins A, Meneses R, Baltar M. Validation study of a portuguese version of the hospital anxiety and depression scale. Psychol Health Med [Internet]. 2007 [acesso 27 set 2022]; 12(2):225-37. DOI: 10.1080/13548500500524088
  • 34
    Carapinha L, Guerreiro C. Enquadramento epidemiológico: uma breve perspetiva da situação atual: plano nacional para a redução dos comportamentos aditivos e dependências 2021-2030 [Internet]. Lisboa: Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências; 2021 [acesso 27 set 2022]. Disponível: https://bit.ly/3WaZIXD
    » https://bit.ly/3WaZIXD
  • 35
    Cohen E, Feinn R, Arias A, Kranzler HR. Alcohol treatment utilization: findings from national epidemiologic survey on alcohol and related conditions. Drug Alcohol Depend [Internet]. 2007 [acesso 27 set 2022];86(2-3): 214-21. DOI: 10.1016/j.drugalcdep.2006.06.008
  • 36
    McLellan AT, Lewis DC, O’Brien CP, Kleber HD. Drug dependence, a chronic medical illness: implications for treatment, insurance, and outcomes evaluation. JAMA [Internet]. 2000 [acesso 27 set 2022];284:1689-95. DOI: 10.1001/jama.284.13.1689
  • 37
    Elbreder MF, Silva RS, Pillon SC, Laranjeira R. Alcohol dependence: analysis of factors associated with retention of patients in outpatient treatment. Alcohol [Internet]. 2011 [acesso 27 set 2022];46(1):74-6. DOI: 10.1093/alcalc/agq078
  • 38
    Mundle G, Brügel R, Urbaniak H, Längle G, Buchkremer G, Mann K. Short- and medium-term outcome of outpatient treatment of alcohol dependent patients. A 6-, 18- and 36-month follow-up. Fortsch Neurol Psychiatr [Internet]. 2001 [acesso 27 set 2022];69(8):374-78. DOI: 10.1055/s-2001-16509
  • 39
    Wild TC, Yuan Y, Rush BR, Urbanoski KA. Client engagement in legally mandated addiction treatment: a prospective study using self-determination theory. J Subst Abuse Treat [Internet]. 2016 [acesso 27 set 2022];69:35-43. DOI: 10.1016/j.jsat.2016.06.006
  • 40
    Lucas-Taracena MT, Maldonado D, Tossio-González C, Bravo-Ortiz MF. Abandono del tratamento para dependencia alcohólica en medio ambulatório: estudio pospectivo de dos anos. Actas Esp Psiquiatr [Internet]. 2002 [acesso 27 set 2022];30(5):273-8. Disponível: https://bit.ly/3WapzPj
    » https://bit.ly/3WapzPj
  • 41
    Morley KC, Baillie A, Sannibale C, Teesson M, Haber PS. Integrated care for comorbid alcohol dependence and anxiety and/or depressive disorder: study protocol for an assessor-blind, randomized controlled trial. Addict Sci Clin Pract [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];8(1):19. DOI: 10.1186/1940-0640-8-19
  • 42
    Ells C, Hunt MR, Chambers-Evans J. Relational autonomy as an essential component of patient-centered care. Int J Fem Approaches to Bioeth [Internet]. 2011 [acesso 27 set 2022];4(2):79-101. DOI: 10.2979/intjfemappbio.4.2.79
    » https://doi.org/10.2979/intjfemappbio.4.2.79
  • 43
    Stephenson LA, Wagner SJ, Bolton D. Maximizing patient autonomy to improve outcomes. Br J Hosp Med [Internet]. 2013 [acesso 27 set 2022];74(1):14-6. DOI: 10.12968/hmed.2013.74.sup1.c14
  • 44
    Tomaselli G, Buttigieg SC, Rosano A, Cassar M, Grima G. Person-centered care from a relational ethics perspective for the delivery of high quality and safe healthcare: a scoping review. Front Public Health [Internet]. 2020 [acesso 27 set 2022];8:44. DOI: 10.3389/fpubh.2020.00044
  • 45
    Neves MCP. O admirável horizonte da bioética. Lisboa: Glaciar; 2016.
  • Aprovação CES-ARSNP 111/2018

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2021
  • Revisado
    10 Ago 2022
  • Aceito
    15 Ago 2022
Conselho Federal de Medicina SGAS 915, lote 72, CEP 70390-150, Tel.: (55 61) 3445-5932, Fax: (55 61) 3346-7384 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: bioetica@portalmedico.org.br